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    Jurisprudência da Relação Criminal
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 - ACRL de 24-01-2007   Recurso manifestamente improcedente. Irregularidade dos actos do juiz de instrução. Despacho antes da abertura da Instrução.
1. A mera recolha prévia de informação que permita habilitar o juiz de instrução a proferir, simultaneamente com a declaração de abertura da instrução, despacho sobre os actos de instrução que o requerente pretende que sejam levados a cabo (artigo 287°, n.° 2), no sentido de deferir ou indeferir o requerimento sobre essa matéria formulado, não é em si um acto de instrução e, por isso, não é imperioso que seja praticado no decurso desta fase processual.
2. Essa informação é importante não só para aferir da pertinência das diligências requeridas, como para evitar o desrespeito pelo disposto no n.° 3 do artigo 291º do Código de Processo Penal.
Proc. 10409/2005 3ª Secção
Desembargadores:  Telo Lucas - Pedro Mourão - Ricardo Silva -
Sumário elaborado por João Ramos
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Rec. n.° 10409/05 (3A Secção)
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:
- RELATÓRIO
1 — O Ministério Público, no termo da fase de inquérito do processo n.° 3221/04.3TDLSB, deduziu acusação contra o arguido f. … … …, imputando-lhe a prática de dois crimes de difamação p. e p. pelos artigos 180°, n.° 1, 183°, n.° 2, 184°, este com referência aos artigos 132°, n.° 2, alínea j), e 386°, n.° 1, alínea c), e 187°, todos do Código Penal, artigo 30°, n.° 1, da Lei n.° 2/99, de 13 de Janeiro, e artigo 65°, n.°s 1 e 2, da Lei n.° 32/2003, de 22 de Agosto (fls. 29 a 32).
O arguido, depois de ter sido notificado dessa acusação, requereu a abertura de instrução (fls. 34 a 86).
Em 22 de Abril de 2005, o sr. juiz, antes de declarar aberta a instrução, proferiu o seguinte despacho (fls. 89):
«Antes de mais, notifique o arguido na pessoa do seu mandatário para, no prazo de 10 dias, esclarecer se as testemunhas por si indicadas no requerimento de abertura de instrução têm conhecimento directo dos factos em causa e qual a razão de ciência destas, para aferir da pertinência na inquirição das mesmas».
O arguido apresentou então um requerimento em que pedia que fosse declarada a irregularidade desse despacho (fls. 91 a 95).
Apreciando esse requerimento, o sr. juiz proferiu, em 9 de Maio de 2005, o despacho que se transcreve (fls. 96 e 97):
«Na sequência da notificação do despacho proferido a fis. 490 — 2 parte, veio o arguido f. … … …, a fls. 492 a 496, arguir a irregularidade do mesmo.
Para tanto, alega, em síntese, que até à presente data não foi notificado de qualquer despacho a declarar aberta a instrução ou a rejeitá-la, sendo, portanto, o despacho supra citado ilegal, anómalo e irregular por violar os n.°s 3 e 4 do artigo 287° do C.P.Penal.
Cumpre, pois, apreciar e decidir.
Vem o arguido arguir a irregularidade do despacho que determinou a sua notificação no sentido de esclarecer se as testemunhas por si indicadas no requerimento de abertura da instrução têm conhecimento directo dos factos e qual a razão de ciência das mesmas, uma vez que não foi, ainda, notificado do despacho que declarou aberta a instrução ou que rejeitou o requerimento de abertura de instrução.
Ora, dispõe o artigo 287°, n.° 2 do C.P.Penal, para além do mais, que o requerimento para abertura da instrução deve indicar “os actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que uns não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar (...)“.
Por outro lado, dispõe o n.° 3 do artigo 291º do mesmo diploma legal que “Não são inquiridas testemunhas que devam depor sobre os aspectos referidos no artigo 128°, n.° 2”.
Assim, sendo certo que não existe uma norma legal que preveja expressamente a notificação do arguido no sentido de esclarecer se as testemunhas que indicou no requerimento de abertura da instrução têm conhecimento directo dos factos em
causa nos autos, também não existe norma que expressamente o proíba, atento o teor das disposições legais supra referidas.
Sucede sim que antes de ser proferido o despacho de abertura de instrução, pretende-se aferir não só dos factos que as testemunhas têm conhecimento directo, como ainda da razão de ciência das mesmas, para posteriormente decidir-se da pertinência na inquirição destas.
Deste modo, a prolação do despacho de fls. 490 em nada afectou os termos normais do processo, pelo que, sem necessidade de maiores considerações, se indefere a invocada irregularidade, mantendo-se aquele nos seus precisos termos.
Custas do incidente pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC».
2 — O arguido interpôs recurso dos despachos proferidos em 22 de Abril e 9 de Maio (fls. 1 a 21).
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
«1° Vem o presente recurso interposto do conjunto de dois despachos proferidos nos autos pelo competente juiz de instrução nas datas de 22.04.2005 e 09.05.2005, respectivamente.
2° Do primeiro despacho, e na parte agora recorrida, foi inicialmente arguida, como cumpria, a respectiva irregularidade processual, e só quando, através do segundo despacho, aquela irregularidade foi indeferida, se reuniram as condições legais para recorrer de ambos os despachos.
3° O presente recurso é tempestivo, as duas decisões são recorríveis, o recorrente tem legitimidade e interesse e o recurso sobe imediatamente, nos próprios actos e no efeito suspensivo, atendendo a que está também em causa o pagamento de uma importância a que o recorrente foi condenado, sendo certo que, sempre sem conceder, procedeu ao depósito da quantia em apreço.
4° Mostra-se incompreensível e larguissimamente ultrapassado o prazo legal de duração máxima da instrução, sem que a instrução tenha começado ou tenha sido rejeitada.
5° Mesmo na Comarca de Vila Franca de Xira, para onde entretanto transitaram
os presentes autos, já foram excedidos todos os prazos legais de duração máxima da instrução e também aí a instrução nem sequer se iniciou.
6° Entretanto, o juiz de instrução vai proferindo despachos, designadamente os dois despachos de que agora se recorre, os quais não têm conduzido a nada que não seja à permanente dilação da abertura de instrução.
70 Assim, por serem anómalos e dilatórios, os dois despachos de que se recorre violam, em conjunto, o direito e a garantia constitucionais do arguido à instrução, consagrados no n.° 4 do artigo 32° da CRP.
8° Tem o seguinte teor o primeiro despacho impugnando, na parte em que dele ora se recorre:
“Antes de mais notifique o arguido na pessoa do seu mandatário para, no prazo de 10 dias, esclarecer se as testemunhas por si indicadas no requerimento de abertura de instrução têm conhecimento directo dos factos em causa e qual a razão de ciência destas, para aferir da pertinência na inquirição das mesmas” 9° Ao proferir este último despacho, protelador e dilatório do despacho liminar de abertura ou de rejeição de instrução, o juiz dos autos subverteu toda a lógica do sistema processual da fase instrutória e violou, por errónea interpretação e incorrecta aplicação, as diversas normas do artigo 287° do CPP.
10° Com efeito, o despacho em apreço, na parte aqui impugnada, só poderia ser proferido depois do despacho que tivesse admitido e declarada aberta a instrução.
11º Sem prejuízo do ordenamento legal dos termos do processo, o despacho em causa, na parte que dele aqui se impugna, também viola o sentido e o alcance das normas que regulam a produção da prova testemunhal em sede de instrução. 12° Na verdade, é às próprias testemunhas — e não ao arguido ou ao seu mandatário que o juiz de instrução deve inquirir se têm ou não conhecimento directo dos factos e das suas razões de ciência.
13° Ao pretender impor ao arguido, enquanto requerente de instrução, o dever de indicar se as testemunhas têm ou não conhecimento dos factos e respectivas razões de ciência, tarefa que compete exclusivamente ao juiz de instrução, o despacho impugnado viola o que conjugadamente dispõem os artigos 128°, n.° 1, 129°, 1300, 132°, 287°, n.° 2, 289°, n.° 1, primeira parte, e 290°, n.° 1, todos do CPP.
14° O despacho recorrido é ainda ilegal porquanto pretende, contra uma praxe deontológica dos advogados que se perde na noite dos tempos e contra uma directiva solene do 1 Congresso dos Advogados Portugueses, que seja pessoalmente o advogado mandatário do arguido a indicar a razão de ciência de cada uma das testemunhas arroladas, e se têm ou não conhecimento directo dos factos.
15º Ou seja, exige-se ao advogado do arguido que, para satisfação de curiosidades espúrias do juiz de instrução, viole a sua deontologia profissional.
16° Tudo quanto cabe ao arguido fazer e tudo quanto licitamente se lhe pode exigir em matéria de requerimento instrutório consta expressamente do n.° 2 do artigo 287° do CPP.
17° É ilegal pedir-lhe ou exigir-lhe mais do que isso, razão por que, na parte recorrida, o despacho viola, por errónea interpretação e incorrecta aplicação, o disposto na citada norma do n.° 2 do artigo 287° daquele Código.
18° Quando o segundo despacho, para justificar a prolação do primeiro, invoca o disposto no n.° 3 do artigo 291° do CPP, comete pior emenda que o soneto.
19° Com efeito, a norma do n.° 3 do artigo 291°, para ser aplicada, pressupõe que já tenha sido proferido despacho liminar de abertura de instrução.
20° Por isso, o segundo despacho viola as normas conjugadas do disposto nos os artigos 287°, n.° 2, 291°, n.° 3, ambos do CPP.
21° A questão é tão simples quanto isto: antes de proferir o despacho liminar de abertura de instrução, o juiz não pode praticar actos processuais que façam parte da fase instrutória.
22° Os despachos recorridos afrontam todo o sistema legal gizado pelo legislador nos Capítulos 1 e II do Título consagrado à instrução (artigo 286° a 296° do CPP).
23º É totalmente ilegal a condenação do arguido em custas, já que o incidente de arguição de irregularidade do primeiro despacho deveria ter sido deferido, e, além disso, sem suscitar esse incidente processual, não era possível recorrer desse primeiro despacho.
Nos termos expostos, deverão Vossas Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores, conceder integral provimento ao presente recurso, revogando os dois despachos recorridos e ordenando ao juiz de instrução criminal da Comarca de Vila Franca de Xira que, “antes de mais”, profira o despacho liminar de abertura de instrução, em observância do disposto no n.° 3 do artigo 287° do CPP, revogando ainda o despacho de condenação do arguido em custas e determinando a devolução integral da quantia de 2UCs (178 euros) depositada — como que farão Vossas Excelências a costumada e esperada justiça».
3 — Apenas foi admitido o recurso interposto deste último despacho (fls. 109).
4—O Ministério Público não respondeu à motivação apresentada.
5 — Neste tribunal, o sr. procurador-geral-adjunto, quando o processo lhe foi apresentado, apôs nele o seu visto (fls. 114).
6 — Entretanto, o sr. juiz declarou aberta a fase de instrução (fls. 109 e
110) nela tendo sido inquiridas todas as testemunhas arroladas pelo arguido (fls. 136).
A final, veio a ser proferido despacho de não pronúncia do arguido (fls. 136), decisão esta que foi confirmada em recurso por este Tribunal da Relação (fls. 138).

II- FUNDAMENTAÇÃO

7 — Uma vez que o recurso interposto pelo arguido é manifestamente improcedente, o tribunal limitar-se-á, nos termos dos n.°s 1 e 3 do artigo 420° do Código de Processo Penal, a especificar sumariamente os fundamentos da decisão.
8 — Embora o arguido tenha interposto recurso dos dois despachos atrás transcritos, o tribunal de 1ª instância apenas admitiu o recurso do último deles, daquele que apreciou a irregularidade suscitada, não tendo admitido a impugnação da primeira decisão por considerar que se tratava de um despacho de mero expediente.
Por isso, não pode este tribunal pronunciar-se sobre a parte da motivação que tem por objecto aquela primeira decisão.
Não se pode, no entanto, deixar de dizer que os sujeitos processuais têm ao seu dispor instrumentos próprios para reagir à falta de cumprimento dos prazos processuais previstos na lei, não sendo, no nosso modo de ver, a arguição da irregularidade de um despacho como o proferido em 22 de Abril de 2005 a forma mais expedita de obter a aceleração do processo.
9 — Delimitados os poderes de cognição deste tribunal, apreciemos agora os argumentos utilizados pelo recorrente para pôr em causa a decisão proferida em 9 de Maio de 2005.
Sustenta o arguido que «antes de proferir o despacho liminar de abertura de instrução, o juiz não pode praticar actos processuais que façam parte da fase instrutória», afirmação com a qual não se pode deixar de concordar.
Porém, a mera recolha prévia de informação que permita habilitar o juiz de instrução a proferir, simultaneamente com a declaração de abertura dessa fase processual, despacho sobre os actos de instrução que o requerente pretende que sejam levados a cabo (artigo 287°, n.° 2), no sentido de deferir ou indeferir o requerimento sobre essa matéria formulado, não é em si um acto de instrução e, por isso, não é imperioso que seja praticado no decurso desta fase processual.
Note-se que essa informação é importante não só para aferir da pertinência das diligências requeridas, como para evitar o desrespeito pelo disposto no n.° 3 do artigo 291º do Código de Processo Penal.
Não se trata, por isso, da satisfação de qualquer «curiosidade espúria», nem da violação de qualquer regra deontológica do advogado. Não se pode esquecer que o defensor, quando indica uma testemunha, não pode deixar de ter informação sobre os conhecimentos que ela presumivelmente terá dos factos relevantes e a razão de ciência desses conhecimentos tanto mais que existe uma limitação legal do número de testemunhas que podem ser indicadas (artigo 287°, n.° 2) e existem regras que excluem o testemunho de ouvir dizer e, em certos casos, o depoimento indirecto (artigos 129° e 130º).
E se é verdade que «a norma do n.° 3 do artigo 291°, para ser aplicada, pressupõe que já tenha sido proferido despacho liminar de abertura de instrução», não se pode deixar de notar que, no momento em que foi proferido o despacho recorrido, ainda não tinha sido inquirida qualquer testemunha, razão pela qual essa norma ainda não podia ter sido aplicada.
Daí que, nesta parte, o recurso não possa deixar de ser rejeitado por ser manifestamente improcedente.
10 — O despacho recorrido condenou também o recorrente, pelo incidente, em taxa de justiça que fixou em 2 UCs.
O arguido não pôs em causa que se trate de uma ocorrência estranha ao desenvolvimento normal do processo e, portanto, um incidente tributável (artigo 84° do Código das Custas Judiciais).
Limitou-se a dizer que «o incidente de arguição de irregularidade do primeiro despacho deveria ter sido deferido, e, além disso, sem suscitar esse incidente processual, não era possível recorrer desse primeiro despacho».
Se, como vimos, não havia qualquer motivo para deferir o requerimento em que foi arguida a irregularidade, também é certo que não foi por o mesmo ter sido apresentado que o despacho inicialmente proferido passou a ser recorrível.
Como se disse, o recurso quanto a ele interposto não foi admitido e essa decisão não gerou qualquer reacção do recorrente.
Daí que o recurso que foi admitido na 1ª. instância, também nesta parte, deva ser rejeitado por ser manifestamente improcedente.
11 — Uma vez que o arguido decaiu no recurso que interpôs é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua actividade deu lugar (artigos 513º e 514° do Código de Processo Penal).
De acordo com o disposto na alínea b) do n° 1 e no n° 3 do artigo 87° do Código das Custas Judiciais a taxa de justiça varia entre 1 e 15 UCs.
Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 4 UCs.
Para além disso, uma vez que o recurso foi considerado manifestamente improcedente, deve o recorrente, como medida dissuasória, pagar uma importância entre 3 e 10 UCs (n° 4 do artigo 420° do Código de Processo Penal).
Atendendo aos factores considerados na graduação da taxa de justiça e ainda ao grau de abuso do direito de recurso, julga-se adequado fixar essa importância no mínimo legal, ou seja, em 3 UCs.

III — DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3ª. secção deste Tribunal da
Relação em:
a) Rejeitar, por ser manifestamente improcedente, o recurso interposto pelo arguido f. … … …, do despacho proferido no dia 9 de Maio de 2005.
b) Condenar o recorrente no pagamento das custas do recurso, com taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UCs.
c) Condenar o arguido na sanção processual correspondente a 3 (três) UCs.
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Lisboa, 24/01/2007
Telo Lucas
Pedro Mourão
Ricardo Silva