Proc. 9616/06 3ª Secção
Desembargadores: Carlos Almeida - Telo Lucas - Pedro Mourão -
Sumário elaborado por João Vieira
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO
1 – O arguido O. foi, juntamente com outro, julgado na 3ª secção do 5º Juízo Criminal de Lisboa e aí condenado, por sentença de 3 de Março de 2006, como autor de um crime de exploração ilícita de jogo p. e p. pelo artigo 108º, n.º1, com referência aos artigos 1º, 3º, n.º1, e 4º, n.º 1, al. g), todos do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, na pena de 60 dias de prisão, substituída por multa por igual período de tempo à taxa diária de 2 euros e subsidiariamente na pena de 40 dias de prisão e ainda na pena de 30 dias de multa à taxa diária de 2 euros e subsidiariamente na pena de 20 dias de prisão, perfazendo tudo a pena de 90 dias de multa à taxa diária de 2 euros e subsidiariamente a pena de 60 dias de prisão.
Nessa peça processual o tribunal considerou provado que:
«Em 25/2/1998, agentes da P.S.P., no decurso de uma acção de fiscalização, verificaram que no estabelecimento comercial sito na Rua Inácio Pardelhas Sanches, n.º 144-A, Lisboa, que comercializa bebidas, explorado pelo 1º arguido, se encontrava instalada e em funcionamento e exploração, uma máquina electrónica do tipo vídeo, que desenvolvia um jogo nos moldes semelhantes aos do “Poker”.
A máquina tem as características exteriores e funciona da forma descrita no relatório de exame da Inspecção-Geral de Jogos de fls. 23 e 24, que se dá por reproduzido.
A máquina foi apreendida - cfr. Auto de fls. 4.
O cofre da máquina continha a quantia de 6.000$00, apreendida.
Neste jogo não interfere qualquer conhecimento ou perícia do jogador, pelo que os resultados obtidos dependem exclusivamente da sorte ou azar.
Este tipo de jogos só pode ser explorado e funcionar em casinos ou outras zonas de jogo autorizadas.
A máquina em causa havia sido colocada naquele estabelecimento por indivíduo não identificado, que dividia com o 1º arguido as receitas do jogo.
O 1º arguido não é concessionário de qualquer licença válida que lhe permita explorar esse tipo de jogo.
O arguido conhecia o sistema de funcionamento do mencionado jogo, o que não o impediu de o ter em exploração e sabia que a sua exploração nas circunstâncias em que ocorria lhe estava vedada por lei.
O 1º arguido agiu voluntária e conscientemente.
Os arguidos não têm antecedentes criminais.
2 – O Ministério Público interpôs recurso dessa sentença.
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
1.ª O arguido Orlando Eduardo da Silva Pires foi condenado pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punível sob os arts.108º, nº1, da Lei do Jogo, o Decreto-Lei 422/89 de 2 de Dezembro, na actual redacção;
2.ª Porém, em passo algum da prova e consequentemente da matéria de facto foi possível observar e, logo, concluir, que o jogo explorado no bar em causa oferecesse algum prémio, maxime, em dinheiro;
3.ª Com efeito, na matéria de facto não consta nem podia constar a exploração do jogo – que obviamente tem uma estrutura e modo de funcionamento perfeitamente aleatório e desenvolve tema semelhante, para não dizer coincidente, ao do poker – coenvolvesse a atribuição de quaisquer prémios;
4.ª Tal jogo, sendo de fortuna e azar na acepção dos arts.1º e 4º corpo e alínea g) do Decreto-Lei 422/89 de 2 de Dezembro, na actual redacção, no que concerne à sua estrutura de desenvolvimento, não é um jogo exclusivo de casinos, pelas características intrínsecas que tem, de ausência de prémios, sendo até semelhante a um jogo de diversão, nem se vendo aliás qual o óbice que impediria se inscrevesse nessa categoria, salvo por causa do tema, competindo-lhe antes a classificação de jogo afim daqueles, nos termos do art.159º;
5.ª Jogos de fortuna e azar e jogos de casino não são equivalências reais nem sequer jurídicas, pelo que a exploração de jogos de resultado contingente fora das condições legalmente exigidas não é, ipso facto, um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punível pelo citado art.108º, desde que se trate de jogos cujo fito consista não na atribuição de prémios em dinheiro, mas em espécie ou na não atribuição de prémio algum, já que estes últimos serão essencialmente jogos afins daqueles, cfr. artigos 159º e 161º, n.º 3, não jogos exclusivos de casinos;
6.ª As definições genéricas do art. 4º têm de ser compreendidas à luz e complementados pelo disposto nos arts. 159ºss., com respeito ao âmbito de aplicação respectivo, quer do artigo108º, quer dos ilícitos típicos dos arts. 159º ss, com cuja entrada em vigor (pelo menos), introduzidos que foram estes pelo Decreto-Lei 10/95 de 19 de Janeiro, ficou claro que nem todos os jogos de fortuna e azar num sentido lato, isto é, aqueles cuja evolução e sequência dependem exclusiva ou predominantemente da sorte, são exclusivos dos casinos, e que há uma outra série de jogos, modalidades afins daqueles, que não são, como nunca foram, jogos próprios de casas de jogo, como os casinos;
7.ª Tal diferenciação resulta do facto de se tratar de um universo de jogos ou de modalidades afins daqueles que socialmente sempre estiveram associadas, em oposição aos jogos dos casinos, a divertimento não gerador de lucro ou riqueza relevantes, a fins de solidariedade ou de benefício comum ou de dado grupo social, como se extrai do art. 159º nº2.
8.ª O que torna a exploração de um jogo relevante do ponto de vista criminal e a inscreve no art.108º citado é o seu relevo e sentido do ponto de vista da salvaguarda de bens jurídico-penais tutelados pelo crime – sendo certo que sobre qualquer jogo há um controlo público em Portugal, cfr. v.g. as já referidas normas dos jogos afins aos de fortuna e azar –, não a álea em si, que todos os jogos comportam, ou o esquema ou estrutura de desenvolvimento do jogo, em si mesmo, mas o perigo que importa a possibilidade de o jogo não ter garantido o cumprimento das suas próprias regras e/ou as de atribuição dos prémios que oferece alcançar;
9.ª Em suma, a tutela penal conferida à exploração/prática de jogo revela-se quando nelas se releva ou precipita, de uma forma mais ou menos elaborada, a consumação ou a eclosão de uma burla, de resultados tão imprevisíveis como aleatórios, isto é, de uma fraude;
10.ª Por isso as condições de realização dos jogos constituem o cerne do controlo público e da garantia da lisura e fiabilidade dos jogos, como formas específicas do contratos de jogo e aposta, nos termos dos arts. 1245º ss. do Código Civil, com consequências juridicamente tuteladas, justamente para garantia de que são organizados segundo as condições prescritas e com as autorizações administrativas constitutivas da possibilidade de organizar e publicitar o jogo, cfr. Lei do Jogo nomeadamente nos arts. 9º ss. e 159º ss. e os arts. 1245º, II parte e 1247º, ambos do Código Civil;
11.ª O controlo referido na conclusão anterior assegura seja afastada a ilicitude do jogo, como confere sob normas especiais, a natureza de obrigações civis às que emirjam do seu resultado, como garante a fiabilidade do funcionamento dos jogos e a honestidade dos seus resultados;
12.ª Assim, é no agravamento socialmente insuportável da álea inerente a estes cenários que intervém a tutela penal, especialmente quando os prémios se constituem em dinheiro, directa ou indirectamente e em que, portanto, tal aleatoriedade do jogo e seus resultados se estende ou pode estender-se destes para passar a incidir e a subverter, também, o desenvolvimento e a atribuição dos prémios, que se volvem, também eles, em aleatórios: o jogo ou concurso é uma operação duvidosa em si mesma, sem qualquer garantia de não ser, senão, e não obstante o nome, uma fraude;
13.ª Em síntese, podemos dizer que a intervenção do direito penal nos jogos de fortuna e azar ocorre quando os mesmos são explorados/jogados sem garantias de que são desenvolvidos conforme às regras que os regem e de forma fiável, como sem garantias de atribuição dos prémios salvaguardadas;
14.ª Assim, não é indiferente à Lei, antes lhe é essencial, a natureza do prémio a atribuir e a tipologia e temática do jogo enquanto exclusivamente reservado à exploração por entidades credenciadas, daí que a exploração em geral dos jogos que sempre foram jogados a dinheiro ser circunscrita aos casinos, em oposição a outros que não atribuem prémios dessa natureza e não são jogados com o intuito de obter prémios em dinheiro;
15.ª Em complementaridade a tal regime e tipologia de exploração e de ganhos, as normas sobre jogos afins de jogos de fortuna e azar para que provêem os arts. 159º ss. da Lei do Jogo tipificam como contra-ordenações as violações àquele controlo público, quando os jogos ou modalidades afins sejam desenvolvidas por imitação de jogos de casino, sem as demais características e sem as autorizações prévias de que deveria estar pendente a sua exploração, ainda que não ofereçam quaisquer prémios;
16.ª Nestas últimas circunstâncias se enquadra o caso dos autos, pelo que o arguido cometeu factos tipificados como contra-ordenações, previstas e punidas na conjugação dos citados arts. 159º n.ºs 1 e 2, 160º nº1 e 161º nº3 e 163º nº1, por referência aos arts.1º e 4º, todos da Lei do Jogo, o Decreto-Lei 422/89 de 2 de Dezembro, na actual redacção;
16.ª Por todo o exposto, na recondução dos factos ao Direito a douta sentença violou, ao inobservá-los, os arts.159º n.os1 e 2, 160º nº1 e 161º nº3 e 163º nº1 e violou, ao aplicá-los, os arts. 4º e 108º nº2 todos da Lei do Jogo, o Decreto-Lei 422/89 de 2 de Dezembro, na actual redacção, razões por que deverá ser revogada, e o arguido do crime absolvido, no mais se devendo manter o doutamente decidido, atentas as características objectivas do material apreendido e a falta de autorização em que se processou a exploração do jogo.
3 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 304.
4 – Não foi apresentada qualquer resposta à motivação do Ministério Público.
5 – Neste tribunal, o sr. procurador-geral-adjunto, quando o processo lhe foi apresentado em 7 de Novembro de 2006, apôs nele o seu visto.
II – FUNDAMENTAÇÃO
6 – Uma vez que o recurso interposto pelo Ministério Público é manifestamente improcedente, o tribunal limitar-se-á, nos termos dos n.°s 1 e 3 do artigo 420° do Código de Processo Penal, a especificar sumariamente os fundamentos da decisão.
7 – O artigo 4º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, na sua actual redacção, inclui, entre os jogos de fortuna ou azar cuja exploração é autorizada nos casinos, «os jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte» (alínea g) do n.º 1).
As regras desses jogos, de acordo com o artigo 5º do mesmo diploma, devem ser aprovadas por diploma de natureza regulamentar, constando actualmente da Portaria n.º 817/2005, de 13 de Setembro.
Entre essas regras constam as respeitantes às máquinas automáticas que desenvolvem temas próprios dos jogos de fortuna ou azar (alínea b) do n.º 1 do Capítulo Único do Título III).
Daí que a comprovada conduta do arguido O. preencha o tipo penal descrito no n.º 1 do artigo 108º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, não sendo para isso necessário que se verifique qualquer engano, tanto mais que o jogo fraudulento é objecto de uma incriminação própria (artigo 113º).
8 – Tal conduta não constitui, ao contrário do que sustenta o recorrente, uma mera contra-ordenação.
De facto, os jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar não são modalidades afins destes uma vez que são expressamente qualificados pela lei como jogos de fortuna ou azar no citado artigo 4º e nas disposições complementares já citadas e porque o n.º 3 do artigo 161º do mesmo diploma legal impede que as modalidades afins desenvolvam temas característicos dos jogos de fortuna ou azar, entre os quais expressamente inclui o póquer.
9 – Também não são máquinas de diversão porque o artigo 19º do Decreto-Lei n.º 310/2002, de 18 de Dezembro, como tal as não considera.
10 – Assim, e pelo sumariamente exposto, não pode este tribunal deixar de rejeitar o recurso interposto pelo Ministério Público por o mesmo ser manifestamente improcedente.
III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação em rejeitar, por manifesta improcedência, o recurso interposto pelo Ministério Público da sentença proferida nestes autos em 3 de Março de 2006.
Sem custas.
Lisboa, 15 de Novembro de 2006
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(Carlos Rodrigues de Almeida)
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(Horácio Telo Lucas)
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(Pedro Mourão)