1. O tráfico do art. 25° implica uma valorização global do facto, devendo o julgador sopesar todas as circunstâncias envolventes da situação em análise, por forma à obtenção do resultado final, qual seja o de saber se,
objectivamente, a ilicitude da acção é consideravelmente diminuída em relação à do tipo base - o do art. 21°.
2. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não se confunde com uma suposta insuficiência dos meios de prova para a decisão de facto tomada. Este vício só existe quando do acervo de factos vertido na sentença se constata faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados e julgados (provados ou não provados), são necessários para se formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição; ou, ainda noutra formulação, quando a matéria de facto provada é insuficiente para a decisão de direito, o que se verifica porque o tribunal recorrido deixou de apurar matéria de facto que lhe cabia apurar dentro do objecto do processo, tal como está configurado pela acusação e pela defesa.
3. O recurso da matéria de facto, que se fundamenta na existência de um erro de julgamento e implica que o tribunal «ad quem» reaprecie a prova produzida e examinada em 1ª instância não se confunde com a mera invocação dos vícios enumerados no n.º 2 do art. 410°.
Proc. 6894 3ª Secção
Desembargadores: Telo Lucas - Rui Gonçalves - Ricardo Silva -
Sumário elaborado por João Ramos
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6.2. Delimitação do âmbito do recurso
Como expressamente consta da parte decisória do acórdão, o colectivo não acolheu a tese da acusação na parte em que ao arguido F. ... ...a prática em co-autoria com o arguido agora recorrente, de um crime de tráfico.
Quer isto dizer que as condutas que estiveram na origem da condenação de cada um dos arguidos são, na subsunção jurídica que foi feita, independentes e autónomas entre si.
Vale então por dizer que não estamos no âmbito da previsibilidade contemplada na al. a), do nº. 2, do art. 402° do Código de Processo Penal, – diploma a que pertencem as demais disposições legais que se vierem a referir sem menção de origem –, pelo que o recurso interposto não aproveita ao arguido f. … …, não recorrente.
Os poderes de cognição desta Relação abrangem, por princípio, quer a matéria de facto quer a matéria de direito (art. 428°, n.º 1), podendo os recursos, sempre que a lei não restrinja a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecera decisão recorrida (art. 410°, nº. 1).
No caso presente, porque houve documentação das declarações orais produzidas em audiência (cfr. actas respectivas - 925-927; 965-969 e 988-991), poderia o recorrente, se considerasse ter existido qualquer erro na apreciação da matéria de facto, impugnar esse segmento da decisão.
Para tanto, deveria observar, minimamente que fosse, o disposto no nº. 3, do art. 412°. Se assim tivesse procedido, os poderes de cognição deste Tribunal estender-se-iam à matéria de facto, o que levaria a que, se o recurso fosse, nesse âmbito, procedente, viesse a ser modificada a decisão quanto a ela proferida pela 1ª instância (art. 4310, al. b)).
O recurso da matéria de facto, que se fundamenta na existência de um erro de julgamento e implica que o tribunal «ad quem» reaprecie a prova produzida e examinada em 1ª instância não se confunde com a mera invocação dos vícios enumerados no n.º 2 do art. 410°, aos quais, adiante-se desde já, voltaremos mais à frente.
Por tudo isto, temos de considerar , sem mais, que o recurso se restringe à matéria de direito.
Face ao. que fica dito, impõe-se então fazer salientar que é absolutamente irrelevante vir agora o recorrente afirmar que o acórdão não concretiza a factualidade dada como provada, no tempo, espaço e lugar» (conclusão 2.) ou que a actividade ilícita por que foi responsabilizado se resume «a um «acto de carácter genérico» (conclusão 4).
Daqui que também não assumam qualquer relevo outras afirmações feitas pelo recorrente, nomeadamente a de que foram ofendidos os seus direitos de defesa (art. 32°) ou a de que foi contrariado o disposto no art. 205.°, n.º 1 da Lei Fundamental (3).
E porque estes actos são invocados, se bem vistas as coisas, na decorrência directa da crítica que dirige à matéria de facto, sem que para tanto desse cumprimento às pertinentes normas legais que poderiam conduzir, aqui, à sua reapreciação, como já salientámos, não se justifica que sobre eles façamos qualquer outro comentário ou análise.
6.3. As questões a decidir e a sua resolução
Importa, sim, atentar nas verdadeiras questões colocadas pelo recurso, sabido que o seu objecto é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, o que de resto constitui jurisprudência uniforme (4).
São as seguintes essas questões:
- Vício da alínea a), do n.º 2, do art. 410º – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
- Subsunção dos factos ao crime de tráfico de menor gravidade – art. 25º do DL nº.15/93,de 22/11;
- Medida da pena; e;
- Suspensão da sua execução.
Ainda que o recurso, como dissemos, se restrinja à matéria de direito, impõe-se averiguar se a decisão impugnada enferma de algum dos vícios a que atrás aludimos, e em relação aos quais dissemos que voltaríamos mais à frente.
Façamo-lo de imediato.
Os vícios do n.º 2 do art. 410º, cujo conhecimento é oficioso (5), hão-de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
São vícios da decisão, que não do julgamento, e enquanto subsistirem a causa não pode ser decidida.
Como vimos, é o próprio recorrente que invoca um desses vícios, o da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (cfr. conclusão 6).
Este vício, em sintonia com a unanimidade da jurisprudência, só existe quando os factos declarados provados forem insuficientes para decisão fixada; ou, dito de outro modo, quando do acervo de factos vertido na sentença se constata faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados e julgados (provados ou não provados), são necessários para se formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição; ou, ainda noutra formulação, quando a matéria de facto provada é insuficiente para a decisão de direito, o que se verifica porque o tribunal recorrido deixou de apurar matéria de facto que lhe cabia apurar dentro do objecto do processo, tal como está configurado pela acusação e pela defesa (5).
E, como também vem sendo orientação dos tribunais superiores, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não se confunde com uma suposta insuficiência dos meios de prova para a decisão de facto tomada e a demonstração de tal insuficiência não pode emergir da mera discordância em relação à forma como o tribunal recorrido terá apreciado a prova produzida (6).
Pois bem. É chegado o momento de dizer que o acórdão está imune quer ao alegado vicio quer a qualquer outro dos previstos no falado n.º 2 do art. 410°.
Sobre esta questão nem se justifica qualquer outra consideração, bastando ler , com atenção, o texto da decisão impugnada.
Assim, mais não resta do que ter como definitivamente assente a matéria de facto apurada pela 1ª a instância.
Pugna o recorrente pela integração dos factos no tipo do referido artigo 25° – tráfico de menor gravidade.
Vejamos, pois.
Repetindo o que escrevemos no recurso n.º 5631/04, em que tratámos a questão que, aqui, e mais uma vez, nos ocupa, começaremos por fazer as seguintes considerações de carácter genérico.
O bem jurídico primordialmente protegido pelas normas que prevêem e punem o tráfico é o da saúde e integridade física dos cidadãos vivendo em sociedade, numa palavra – a saúde publica.
Na luta contra esse verdadeiro flagelo que atinge a humanidade nos nossos dias, de há muito constitui ideia assente, quer a nível do direito convencional internacional, quer a nível do direito interno, a necessidade da aplicação de penas severas aos narcotraficantes.
Sendo isto assim, a verdade é que a lei não poderia deixar de considerar a existência de gradações quanto a essa punição, e, de algum modo, distinguir a gravidade relativa dessa actuação.
Por isso, quer na lei actual (DL nº. 15/93, de 22-01) quer no diploma que o precedeu (DL n.º 430/83, de 13/12), pressupõe uma certa tipologia de traficantes: os grandes traficantes (artºs. 21.º e 22º),os médios e pequenos traficantes (art. 25°) e os traficantes consumidores(art. 26°) (todos estes preceitos pertencem à lei actual).
À natureza da punição também não é alheia a perigosidade da droga traficada.
Embora o legislador não tivesse aderido à conhecida distinção entre drogas duras e leves, verifica-se alguma graduação, consoante a posição nas tabelas I a III ou na tabela IV anexas àquele Dec.-Lei nº. 15/93 (7).
Por outro lado, apesar de a lei não incluir a realização do lucro ou sequer a intenção lucrativa na definição do tipo legal, a verdade é estes elementos não podem ser indiferentes para o fim que nos propomos.
Depois, 'mostrar-se-á muito relevante para o próprio enquadramento legal o conhecimento da personalidade do arguido, do seu habitat – se era um «dealer» de apartamento ou de rua, se era um simples intermediário - e, em particular, se não era consumidor de droga, se era consumidor ocasional ou era já um consumidor habitual ou mesmo um toxicodependente' (8).
Aqui chegados, é altura de perguntar se, afinal, a acção delituosa levada a cabo pelo recorrente se afeiçoa ou não, ao tipo de menor gravidade, tendo nós por seguro que o aspecto quantitativo da droga em causa assume grande relevância.
Enfim, o tráfico do predito art. 25° implica uma valorização global do facto, devendo o julgador sopesar todas as circunstâncias envolventes da situação em análise – a en1Jtneração constante do preceito não é taxativa -, por forma à obtenção do resultado final, qual seja o de saber se,
objectivamente, a ilicitude da acção é consideravelmente diminuída em relação à do tipo base - o do art. 21°.
Dito isto, façamos então incidir a nossa atenção sobre o circunstancialismo do caso concreto, recordando, para tanto, os factos respeitantes ao recorrente, surgindo qualquer referência àqueles respeitem ao arguido f. … … … apenas pela interligação que necessariamente exista entre uns e outros.
Entre aqueles a quem o arguido f. … … fornecia produto estupefaciente - haxixe - contava-se o agora recorrente, o arguido f. … … … .
Este, sempre que tinha alguém interessado em adquirir-lhe alguma quantidade daquele produto, contactava, por telefone, o f. … …, com quem combinava os termos em que o mesmo lhe fornecia as quantidades pretendidas pelo agora recorrente.
As quantidades fornecidas a este pelo f. … … variavam entre os 2 e os 5 quilos.
Depois de receber do co-arguido as quantidades de haxixe que lhe encomendava, o recorrente encarregava-se, ele próprio, da sua comercialização, fazendo-as chegar a quem, depois, vendia aquele haxixe repartido em doses individuais, a consumidores dessa substância.
Os fornecimentos de haxixe a o recorrente, nos temos enunciados, remontam, pelo menos, a Maio de 2005.
Por seu lado, o recorrente vinha comercializando haxixe fazendo chegar a quem, depois, o vendia a consumidores, desde, pelo menos, o ano de 2000.
O arguido f. … …, usava, por vezes, o veículo ligeiro de mercadorias, com a matricula 77-54-PZ, da marca ‘Mitsubtshi’, modelo 'L 200’, para se deslocar até Linda-a-Velha, local onde, próximo do terminal de autocarros da Companhia Carris de Ferro de Lisboa, recolhia as quantidades de haxixe.
Na sequência de uma busca efectuada, no dia 30 de Junho de 2005, vieram a ser encontradas dentro daquela Viatura, para além do mais, 105 placas de haxixe, com o peso liquido total de 25,092 kg, que o f. … … detinha com o propósito de as vir a comercializar, e, ainda, vários pedaços de haxixe com o peso líquido de 1,0l5gr.
O agora recorrente colaborou na transacção deste haxixe encontrado na referida Viatura, quando este estava no poder do f. … … .
Parte daquelas placas de haxixe destinava-se a ser entregue pelo arguido f. … … ao recorrente.
A este foi apreendido um telemóvel, com o n.º … … …, que utilizava para, entre o mais, estabelecer os contactos relativos à obtenção e fornecimento de haxixe que, nos termos descritos, vinha, juntamente com o arguido f. … … transaccionando .
Aos 18 anos, o recorrente, começando a actividade de 'disc-jokei' em festas nocturnas, iniciou consumos de haxixe e “ecstasy”.
Da facticidade acabada de descrever impressiona pela negativa, desde logo, o facto de o recorrente, pelo menos desde o ano de 2000, se dedicar ao comércio de haxixe fazendo-o chegar a quem, depois, o vendia aos consumidores.
É verdade que não nos diz o acórdão – naturalmente porque a tanto não consegui chegar em termos probatórios – em que concretos moldes o recorrente praticava esse comércio, com que regularidade e, sobretudo, em que quantidades. Mas o longo tempo (anos) em que traficou tal substância – actividade que sem exagero podemos situar nos antípodas do mero tráfico ocasional -não se coaduna com o tipo do tráfico atenuado.
Acresce que, ao longo de dois meses (Maio e Junho de 2005), o recorrente foi fornecido da mesma substância pelo co-arguido f. … …, em quantidades que variavam entre 2 e 5 kg, que posteriormente também ele próprio se encarregava da sua comercialização, fazendo-o chegar a quem depois o revendi-a já em doses individuais, aos respectivos consumidores.
É exacto que também aqui ainda por certo à míngua de prova, o acórdão não nos diz quantos fornecimentos, naquele período de tempo, terão ocorrido. A verdade, contudo, é que o recorrente, de uma forma reiterada, de certo modo organizada (na medida em que previamente por via telefónica, combinava com o co-arguido as quantidades de que necessitava, o que deixa implícita a ideia de preocupação em garantir escoamento para o «produto», e os termos da respectiva entrega), que se estendeu por anos, levou a cabo uma actividade que assumiu papel decisivo no circuito normalmente associado ao comércio de estupefaciente.
E se é verdade que a droga em causa é daquelas consideradas leves, logo de menor nocividade para a saúde daqueles que a consomem, nomeadamente se comparada com os efeitos negativos causados na saúde física e mental que o consumo das chamadas drogas duras provoca, não é menos exacto, ainda assim, que a imagem global que resulta da actividade desempenhada pelo recorrente, ao longo de anos, enfatiza-se, não permite que aí se vislumbre uma ilicitude consideravelmente diminuída.
Tanto basta, a nosso ver, para afastando a pretendida subsunção dos factos ao tipo do referido art. 25°, se concordar com a qualificação jurídica efectuada pelo acórdão recorrido.
Concordância que estendemos à medida concreta da pena aí encontrada.
Com efeito, quedando-se o douto colectivo pela cominação de uma pena que não vai além de seis meses acima do limite mínimo da moldura abstracta que ao crime cabe, não cremos que também aqui o acórdão mereça qualquer reparo, pois que observou os critérios legais que devem presidir à determinação da pena, nomeadamente a culpa, as exigências de prevenção e o grau de ilicitude do facto (art. 71º do Código Penal).
Aqui chegados, há somente que concluir pela impossibilidade da suspensão da execução da pena, inverificado que se mostra um dos pressupostos a que refere o art. 50º do mesmo diploma.
Improcede, pois, em toda a linha o recurso interposto, não se descortinando que o douto acórdão recorrido tenha violado alguma das normas legais indicadas pelo recorrente, ou quaisquer outras.
DECISÃO
A – Nega-se provimento ao recurso.
B – Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 (sete) UCs.
C – Honorários oficiosos, nesta instância, em conformidade com a respectiva tabela.
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Lisboa, 18 de Outubro de 2006
(Telo Lucas)
(Rui Gonçalves)
(Ricardo Silva)
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3. Diga-se, a propósito deste preceito constitucional, que o acórdão cumpre integralmente o disposto no art. 374°, nº 2, nomeadamente no que exigência legal de fundamentação respeita.
4. Cfr., por todos, Acs. do STJ, de 09-12-98, 24-03-99 e de 15-06-2000, em BMJ 482-68,485-281 e 498-148, respectivamente.
5. Assento do STJ, de 19-10-95, em DR I-A Série, de 28-12-95.
5. Cfr. a jurisprudência do STJ citada por Manuel Simas Santos c Leal-Henriques, in Recursos em
Processo Penal, 4. Ed., Rei dos Livros Lisboa, 2001, pp 71-73.
6. Idem.
7. Cfr. A.G. Lourenço Martins, Droga e Direito, pp. 122 e 88.
8. Idem. pp. 125.