I - O tipo objectivo descrito no nº 1 do artº 180º do Código Penal - difamação- exige que a imputação do facto ou a formulação do juízo ofensivos da honra tenham por objecto um pessoa identificada ou identificável.
II - Se, em face das 'regras gerais da experiência e o normal acontecer dos factos', a acção praticada não deveria desencadear, como consequência, a produção do evento, não se pode imputar ao arguido o resultado lesivo que se veio a verificar, não se encontrando, por isso, preenchido o tipo objectivo do crime de difamação.
III - Mas, mesmo que se pudesse imputar objectivamente o resultado produzido à conduta do arguido, sempre haveria que concluir que o arguido não tinha agido com dolo (do tipo) uma vez que este exige o conhecimento e a vontade de realizar todos os elementos do tipo objectivo.
Proc. 6510/03 3ª Secção
Desembargadores: Carlos Almeida - Telo Lucas - Rodrigues Simão -
Sumário elaborado por João Vieira
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO
1 – O arguido V., que tinha sido acusado pelo assistente J. (fls. 73 a 76) e pelo Ministério Público (fls. 77) da prática, em 13 de Fevereiro de 2001, de um crime de difamação p. e p. pelo artigo 180º, n.º 1, do Código Penal, foi julgado no Tribunal Judicial da Comarca do Cadaval, onde, por sentença de 7 de Novembro de 2002 (fls. 116 a 124), veio a ser absolvido.
Nessa peça processual o tribunal considerou provado que:
a) «No dia 13 de Fevereiro de 2001, pelas 15H30, nas instalações da Conservatória do Registo Civil, Predial e Comercial dessa vila de Cadaval, o arguido, dirigindo-se a Exm.ª Senhora D. I., funcionária daquela Instituição Pública, em tom de desabafo, disse que seu sócio comprou o Conservador de Azambuja, a fim de que este proferisse uma decisão favorável àquele e desfavorável a si.
b) Momentos antes, o arguido, dirigiu-se à Sr.ª D. I., pedindo-lhe que lhe cedesse o Diário da República para consultar a publicação de acto societário.
c) Após ter verificado que não vinha publicada no número daquele dia do Diário da República o que pretendia, e naquelas circunstâncias, proferiu então aquelas palavras.
d) A conversa havida entre ambos decorreu junto ao balcão da referida Conservatória e na presença de 3 a 5 utentes que na ocasião ali se encontravam.
e) Os factos imputados pelo denunciado ao ora denunciante, a serem verdadeiros, integrariam a prática de crimes».
2 – O assistente interpôs recurso dessa sentença (fls. 127 a 131).
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
«1ª - O Tribunal deu como provado que, nas circunstâncias de tempo e lugar referidas na douta Sentença, o arguido Vasco Páscoa dirigindo-se a uma funcionária da Conservatória do Registo Civil, Predial e Comercial da Vila de Cadaval, disse que o seu sócio comprou o Conservador de Azambuja, a fim de que este proferisse uma decisão favorável àquele e desfavorável a si;
2ª - Esta frase, não é ocioso repeti-lo, é notoriamente ofensiva da honra e consideração da(s) pessoa(s) visada(s), tanto mais que, a ser verdadeira, integraria a prática de grave infracção criminal;
3ª - Daí que haja que concluir-se pelo caracter objectivamente difamatório da citada frase;
4ª - O ora recorrente era na ocasião, e é ainda, o único sócio do arguido, sendo certo que na ocasião, e já não agora, havia duas outras sócias;
5ª - O ora recorrente tomou, efectivamente, conhecimento da referida frase, do seu autor e das circunstâncias de tempo, lugar e modo em que foi proferida;
6ª - Consequência lógica dessa tomada de conhecimento é, sem margem para dúvidas, que o ora recorrente se tenha sentido profundamente ofendido na sua honra e consideração;
7ª - Dito por outras palavras: é manifesto que existe uma relação de causalidade adequada entre aquela produzida frase e esta ofensa;
8ª - Sendo, o crime p. e p. pelo artigo 180° do Código Penal, um crime de resultado, é, precisamente este - a ofensa da honra e consideração da pessoa visada, o resultado que constitui elemento típico essencial de tal infracção;
9a - É de todo irrelevante (não o seria para a quantificação dos danos morais sofridos ...), para a qualificação como crime, da acção protagonizada pelo arguido, o facto de o ofendido não residir nem ser conhecido na Vila de Cadaval, onde, comprovadamente, foi proferida a frase difamatória;
10ª - Deve, em conformidade, ser revogada a douta Sentença sub judice, e proferida uma outra em que seja o arguido condenado pelo crime de Difamação, por que vinha acusado;
11ª - Foram violadas as normas dos artigos 14° e 180° do Código Penal».
3 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 137.
4 – O Ministério Público respondeu à motivação apresentada defendendo a improcedência do recurso (fls. 143 a 149).
5 – Neste tribunal, o sr. procurador-geral-adjunto, quando o processo lhe foi apresentado, apôs nele o seu visto (fls. 156).
II – FUNDAMENTAÇÃO
6 – Uma vez que o recurso interposto pelo assistente é manifestamente improcedente, o tribunal limitar-se-á, nos termos dos n.°s 1 e 3 do artigo 420° do Código de Processo Penal, a especificar sumariamente os fundamentos da decisão.
7 – Os poderes de cognição dos tribunais da relação abrangem quer a matéria de facto, quer a matéria de direito (nº 1 do artigo 428º do Código de Processo Penal), podendo os recursos, sempre que a lei não restrinja a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida (nº 1 do artigo 410º do mesmo diploma).
Tendo, porém, os sujeitos processuais com legitimidade para recorrer da sentença declarado, no início da audiência em 1ª instância, como fizeram nestes autos (fls. 111), que prescindiam da documentação das declarações oralmente nela prestadas (artigo 364º, nº 1, do referido diploma), os poderes de cognição deste tribunal, salvo no que respeita ao conhecimento dos vícios enunciados nos nºs 2 e 3 do artigo 410º do Código de Processo Penal, encontram-se limitados à apreciação da matéria de direito uma vez que aquela declaração vale como renúncia ao recurso em matéria de facto (artigo 428º, nº 2).
Por isso, não pode este tribunal apreciar esse segmento da decisão proferida na 1ª instância.
Assim, e porque também não se vislumbra a existência de qualquer um dos vícios enunciados nos mencionados nºs 2 e 3 do artigo 410º daquele código, deve considerar-se definitivamente assente a matéria de facto dada como provada pelo tribunal recorrido, só a ela podendo este tribunal atender para a apreciação das questões jurídicas suscitadas.
8 – O recorrente afirma, e nisso tem inteira razão, que as palavras proferidas pelo arguido na Conservatória do Cadaval, quando dirigidas a pessoas determinadas, são objectivamente lesivas da sua honra e consideração. Não nos esqueçamos que ele, mesmo que em tom de desabafo, imputou ao sr. Conservador da Azambuja a prática de um crime de corrupção passiva e ao seu “sócio” um crime de corrupção activa.
Porém, se o arguido identificou claramente o funcionário público a que se referia, o mesmo não aconteceu com o seu “sócio”, pessoa de que ele não referiu o nome ou outro elemento que o permitisse individualizar.
Através da simples expressão “sócio”, proferida por quem não era conhecido no concelho, nem da funcionária a que se dirigia, a pessoa a que ele se referia não era previsivelmente identificável por nenhum dos presentes, tanto mais que nem sequer se sabia a que se sociedade o arguido se estava a referir.
Só por uma rara coincidência a afirmação pôde ser compreendida em todo o seu significado por um dos presentes e, assim, veio a lesar a honra e consideração do assistente.
Porque, em face das «regras gerais da experiência e o normal acontecer dos factos (o id quod plerumque accidit) » a acção praticada não teria como consequência a produção do evento, não se pode imputar o resultado lesivo que se veio a verificar ao comportamento do arguido, o que era imprescindível para que o tipo objectivo em causa se encontrasse preenchido.
Mas, mesmo que se pudesse imputar objectivamente o resultado produzido à conduta do arguido, sempre haveria que concluir que o arguido não tinha agido com dolo.
Na verdade, o dolo (do tipo) exige o conhecimento e a vontade de realizar todos os elementos do tipo objectivo, entre os quais se encontra a imputação da prática de um facto ofensivo da honra ou consideração a uma pessoa identificada ou identificável.
Ora, não tendo o agente identificado a pessoa a quem imputava o facto desonroso, nem sendo ela, numa situação normal, identificável por nenhum dos presentes, bem se compreende a decisão da 1ª instância de considerar como não provados os factos que se referiam ao elemento subjectivo do tipo e à consciência da ilicitude da conduta (quanto ao “sócio”, único ofendido que aqui está em causa).
Cingindo-se o recurso à matéria de direito e não tendo ficado provados os referidos elementos, necessários para a afirmação da responsabilidade criminal, linear e imediata se tornaria, também por isso, a conclusão de que o recurso interposto não podia proceder, devendo, por isso, ser rejeitado.
9 – Uma vez que o assistente decaiu no recurso que interpôs é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua actividade deu lugar (artigos 515º, n.º 1, alínea b), e 518º do Código de Processo Penal).
De acordo com o disposto na alínea b) do nº 1 e no nº 3 do artigo 87º do Código das Custas Judiciais a taxa de justiça varia entre ½ e 15 UCs.
Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 4 UCs.
Para além disso, uma vez que o recurso foi considerado manifestamente improcedente, deve o recorrente, como medida dissuasória, pagar uma importância entre 3 e 10 UCs (nº 4 do artigo 420º do Código de Processo Penal).
Atendendo aos factores considerados na graduação da taxa de justiça e ainda ao grau de abuso do direito de recurso, julga-se adequado fixar essa importância no mínimo legal, ou seja, em 3 UCs.
III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação em:
a) Rejeitar, por manifestamente improcedente, o recurso interposto pelo assistente Jorge Manuel Veiga da Silva.
b) Condenar o recorrente no pagamento das custas do recurso, com taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UCs.
c) Condenar o assistente na sanção processual correspondente a 3 (três) UCs.
Lisboa, 15 de Fevereiro de 2006
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(Carlos Rodrigues de Almeida)
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(Horácio Telo Lucas)
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(António Rodrigues Simão)