Justiça Militar. Transição de processos para os tribunais comuns. Impossibilidade de alteração da qualificação jurídica dos factos.
I – Nos termos do artigo 110º, da Lei nº. 100/2003, de 15 de Novembro e do artigo 3º da Lei nº. 105/2003, de 10 de Dezembro, para a 1ª e 2ª Varas Criminais de Lisboa transitaram os processos pendentes, em fase de julgamento, nos tribunais militares.
II – Transitando processo pendente nos tribunais militares, já depois de julgamento dado sem efeito, a 2ª Vara a que foi distribuído o processo, surge como substituta do extinto tribunal militar onde corria o processo. Assim, não terá já lugar o despacho do artigo 311º. do Código Processo Penal, nomeadamente no tocante à questão da competência territorial, não podendo essa Vara, com fundamento na alteração jurídica dos factos, de que resulta competência de tribunal não militar, remeter o processo ao tribunal competente em função dessa alteração, quando tal questão já fora conhecida no processo e objecto de decisão definitiva do Supremo Tribunal Militar.
III – Constado do libelo acusatório a imputação de crime essencialmente militar, de homicídio culposo, p. e p. pelo artigo 207º, nº. 1, alínea a), do CJM, a estrutura acusatória do processo penal, impede o juiz de alterar a qualificação para crime de homicídio voluntário, p. e p. pelo artigo 131º, do Código Penal, devendo designar data para julgamento e, no decurso deste, se for caso disso, observar o disposto no artigo 359º, do Código Processo Penal.
IV - Estando em causa um crime de natureza essencialmente militar, os ascendentes da vítima não podem constituir-se assistentes.
Proc. 1980/05 3ª Secção
Desembargadores: Telo Lucas - Rodrigues Simão - Carlos Sousa -
Sumário elaborado por João Ramos
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Rec. n.º 1980-05 (3ª secção)
2ª VARA CRIMINAL DE LISBOA
NUIPC 283/04.7TCLSB
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO
1. No Processo n.º 10/03, do 2º Tribunal Militar Territorial de Lisboa , foi deduzido libelo, em 25-03-2003, contra o arguido f. … , devidamente identificado nos autos, pela prática de um crime de homicídio na pessoa do 1º Cabo f. …, p. p. pelo art. 207º, n.º 1, al. a), do Código de Justiça Militar, e, subsidiariamente, pelos arts. 13º e 15º, al. a), do Código Penal, aplicável ex vi do art. 4º do Código de Justiça Militar, de natureza essencialmente militar (sic) (fls. 293-303-v.º).
2. Iniciada a respectiva audiência de julgamento naquele Tribunal Militar, e depois de interrogado o arguido, foi entendido que a actuação deste, podendo integrar uma conduta negligente, podia igualmente integrar uma conduta dolosa, ainda que na forma eventual.
Em consequência, e porque o tribunal “só tem competência para julgar crimes culposos de homicídio”, foi deliberado declarar «este 2º TMTL incompetente para a realização do julgamento destes autos, ordenando-se a sua posterior remessa ao Tribunal Judicial do Montijo, para aí prosseguirem os seus ulteriores trâmites» (acta de fls. 474 e v.º).
3. Interposto recurso pelo arguido do assim deliberado, veio o Supremo Tribunal Militar, por seu acórdão de 02-07-2004, a conceder-lhe provimento, determinando «que o julgamento já iniciado prossiga seus termos, devendo o Tribunal ter em conta o disposto no art. 324º n.ºs 1 e 2 do Código de Justiça Militar». (fls. 581-585).
4. Após baixa dos autos, o Snr. Juiz Auditor do 2º TMTL, por despacho de 08-07-2004, considerando que a prova produzida em audiência perdera eficácia «ope legis» (art. 328º, n.º 6, do Cod. Proc. Penal), devendo a audiência de julgamento iniciar-se de novo, determinou que os autos aguardassem até 14-09-2004 o seu envio ao tribunal competente, face ao novo regime de justiça militar aprovado pelas Leis 100/2003, de 15-11, e 105/2003, de 15-12, pois não se tratando de processo de natureza urgente não teria o julgamento que decorrer durante as férias judiciais (fls. 594 e v.º).
5. Distribuídos os autos à 2ª Vara Criminal (1ª secção) de Lisboa – onde foram registados com o n.º 283/04.7 TCLSB –, o Snr. Juiz proferiu, em 29-09-2004, o seguinte despacho (transcrevendo, na parte que interessa considerar):
«(...).
Verificada que se mostra a inutilidade superveniente de o colectivo do 2º tribunal militar territorial de Lisboa “prosseguir o julgamento já iniciado” para, em “sentença final, decidir, em face dos factos provados, sobre a eventual incompetência do tribunal” (...) cumpre, ex vi artigo 311º do C.P.P., conhecer da seguinte questão prévia:
Os factos vertidos em sede de acusação tiveram lugar na área da comarca do Montijo, e consubstanciam a prática de um crime de homicídio, p. p. pelo art. 131º do Código Penal (e não pelo artigo 207º, n.º 1, al. a), do C.J.M.).
Nestes termos, e nos dos artigos, conjugados, 19º e 32º, n.º 2, al. b), do C.P.P., deverão os autos ser remetidos ao T.J. daquela área territorial (Montijo), por ser o competente para os demais trâmites processuais, e, designadamente, julgamento – o que se declara».
6. Com este despacho não se conformou o arguido, dele recorrendo para este Tribunal, concluindo assim na motivação de recurso (em transcrição):
1ª - Os factos que estão na origem deste processo ocorreram em 08/11/2001, quando o arguido se encontrava nomeado por escala para Cabo de Serviço ao Centro Coordenador de Defesa na Base Aérea n.º 6, portanto na vigência do Código de Justiça Militar, aprovado pelo D.L. n.º 141/77, de 9 de Abril (a indicação do dia – “9” - foi omitida, certamente por lapso, nas conclusões).
2ª – Naquela data, em conformidade com a lei, eram competentes para o julgamento dos crimes essencialmente militares cometidos por militares da Força Aérea, os Tribunais Militares Territoriais de Lisboa, independentemente da situação territorial em que o crime ocorreu.
3ª – Com a entrada em vigor, em 14/09/2004, do novo Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei n.º 100/2003, de 15 de Novembro, e a extinção dos tribunais militares em tempo de paz, a competência para o julgamento dos crimes estritamente militares, cometidos na área dos distritos judiciais de Évora e Lisboa, passou para as 1ª e 2ª Varas Criminais de Lisboa, como se dispõe no Art° 110°, n° 1 al. a), da Lei n.º 100/03, de 15/11 e Art° 98°, n.º 2, da LOFTJ, com a redacção dada pela Lei n° 105/03, de 10/12, para onde serão também remetidos os processos pendentes nos Tribunais Militares Territoriais, à data da sua extinção, como determina o Artº 3º da Lei nº 105/03, de 10 de Dezembro.
4ª – Conforme se dispõe no Art.º 116°, n.º 1, al. c), da Lei n.º 100/03, de 15/11, a audiência de julgamento de crime estritamente militar é efectuada, nas varas criminais das comarcas de Lisboa e Porto, pelo presidente e por dois adjuntos, sendo um deles juiz militar (negrito de origem).
5ª – Em conformidade com o parecer expendido pelo Mº JIC (o qual tem por fundamento o depoimento das testemunhas e os Relatórios Periciais de Autópsia e de Balística) e com a ordem para a acusação constante do despacho de Ex.mo Senhor General Comandante do Pessoal da Força Aérea, o Digº Promotor de Justiça junto do 2° Tribunal Militar Territorial de Lisboa deduziu o libelo, acusando o arguido da prática de um crime de homicídio culposo, p. e p. pelo Artº 207º, nº 1, a1. a), do CJM.
6ª – A acusação foi recebida por despacho do Mº Juiz Auditor do 2° TMT de Lisboa nos precisos termos constantes do libelo, tendo o arguido sido notificado do recebimento.
7ª – Iniciada a audiência de julgamento e interrogado o arguido, sem a produção de qualquer prova e apenas com base na declaração do arguido de que manejava a arma com destreza, por já ter efectuado muitos serviços com ela, o 2° TMT de Lisboa, aventando a hipótese de a actuação do arguido poder integrar uma conduta dolosa, ainda que na forma eventual, decidiu declarar-se incompetente em razão da matéria para o julgamento, ordenando a remessa dos autos para o Tribunal Judicial da Comarca do Montijo.
8ª – Inconformado com esta decisão, recorreu o arguido para o Supremo Tribunal Militar, o qual, por Acórdão de 2 de Julho de 2004, decidiu: 'Pelo exposto, dá-se provimento ao recurso, revoga-se o Acórdão recorrido e determina-se que o julgamento prossiga os seus termos, devendo o tribunal ter em conta o disposto no Artº 324°, n.ºs 1 e 2, do Código de Justiça Militar.”
9ª – Tendo o processo baixado ao 2º TMT de Lisboa, o Mº Juiz Auditor proferiu o despacho de fls 594 e 594vº dos autos, onde diz:
“...Atento o novo regime da justiça militar, aprovado pelas leis nºs 100/03, de 15/11 e 105/03, de 10/12, a audiência não poderá, já, iniciar-se e terminar antes da extinção dos tribunais militares. De facto, não tendo este processo a natureza de 'urgente' a audiência não pode decorrer durante as férias judiciais. E não vislumbramos qualquer outro fundamento legal para que este (e não outros!) julgamento seja efectuado em férias judiciais. Assim, aguardam os autos até 14/SET/2004 o seu envio ao tribunal competente.'
10ª – Em cumprimento do despacho do Mº Juiz Auditor do 2° TMT de Lisboa, foram os autos remetidos, para sorteio, às 1ª e 2ª Varas Criminais de Lisboa, as quais, nos ternos das Leis nºs 100/03, de 15/11 e 105/03, de 10/12, são as competentes para o julgamento dos crimes estritamente militares cometidos após a extinção dos tribunais militares e para a continuação do julgamento dos processos que àquela data se encontravam pendentes nos tribunais militares pela prática de crimes essencialmente militares.
11ª – Tendo este processo sido distribuído à 2ª Vara Criminal de Lisboa, em 29-09-2004, foi, pelo Mº Juiz, proferido despacho em que se diz verificada 'a inutilidade superveniente' de o colectivo de o 2° TMT de Lisboa 'prosseguir o julgamento já iniciado' para em 'sentença final decidir, em face dos factos provados, sobre a eventual incompetência do tribunal'.
12ª – O recorrente não aceita este entendimento, pois o que se verifica é a 'impossibilidade' do 2° TMT de Lisboa de continuar o julgamento 'já iniciado', por entretanto ter sido extinto, julgamento que deverá prosseguir nos tribunais a quem, nos termos das Leis nºs 100/03, de 15/11 e 105/2003, de 10/12, foi atribuída competência para o julgamento dos crimes militares, ou sejam, as Varas Criminais de Lisboa, para em 'sentença final decidir, em face dos factos provados, sobre a eventual incompetência do Tribunal'.
13ª – E, no citado despacho, numa extemporânea questão prévia, sem qualquer base legal, o tribunal decidiu alterar a incriminação constante da acusação, de um crime de homicídio.
14ª – Esta decisão é nula tal como o seria uma decisão instrutória, na parte em que pronunciasse um arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público (no processo penal militar o Promotor de Justiça), como se dispõe no Artº 309º do Código de Processo Penal.
15ª – O julgamento já foi iniciado, tendo-se procedido ao interrogatório do arguido, pelo que a questão prévia suscitada pelo tribunal não é legalmente admissível, pois, como foi dito na fundamentação do Acórdão do STM de 2 de Julho de 2004, o tribunal só pode apreciar e decidir qualquer excepção ou questão prévia que ocorra até ao início do julgamento, antes do interrogatório do arguido, ou na decisão final.
16ª – Igualmente, após a dedução da acusação e o seu recebimento pelo Juiz, não é lícita a alteração dos factos nela descritos ou da respectiva incriminação até ser proferida decisão final com base nos factos provados em julgamento.
17ª – Além do mais, as disposições do CJM, como lei especial, prevalecem sobre a lei geral constante do Código Penal e do Código de Processo Penal, e, tendo os factos ocorrido na vigência do CJM, aprovado pelo DL nº 141/77, de 9 de Abril, é à luz deste Código que terão de ser julgados.
18ª – As normas dos Arts. 19°, 32°, nº 2, al. b), e 311°, todos do Código de Processo Penal, se interpretadas, como o fez o tribunal 'a quo', com o sentido de serem aplicáveis a um processo em que a acusação já foi recebida por um Juiz de Direito e já teve início a audiência de julgamento com o interrogatório do arguido, são inconstitucionais, por violação dos princípios do contraditório e do foro natural, constante do Artº 32°, nºs 5 e 9, da Constituição da República Portuguesa, o que aqui se suscita para todos os efeitos legais.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se o prosseguimento do julgamento nos tribunais competentes para o julgamento dos crimes estritamente militares, no caso, a 2ª Vara Criminal da Comarca de Lisboa.
E assim farão V. Exas. a costumada
JUSTIÇA».
7. Na resposta, a Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância, sem que formule conclusões, entende, em síntese, que o Snr. Juiz não podia deixar de designar data para julgamento, e realizá-lo, por forma a apurar, então, se o arguido cometeu o crime pelo qual vem acusado, ou outro, e, se fosse caso disso, dar cumprimento ao disposto no art. 359º do Cod. Proc. Penal.
8. Entretanto, tendo sido requerida a constituição como assistentes por parte dos progenitores do falecido f. …, o Snr. Juiz, depois de observar o disposto no art. 68º, n.º 4, do Cod. Proc. Penal , proferiu o seguinte despacho (transcrevendo no essencial):
«Visto (...) o disposto no artigo 68º, n.º 3, al. a), do C.P.P. (não se tratando, “in casu”, de resto, e por menção à oposição do arguido (...), de crime de natureza “estritamente militar”), admite-se a requerida constituição de assistentes».
9. Também deste despacho, interpôs o arguido recurso, concluindo na respectiva motivação (em transcrição, com as expressões a negrito a serem da responsabilidade do recorrente):
«1ª – Por despacho de 15/11/2004, a folhas 658 dos autos, o Mº Juiz do Tribunal 'a quo' decidiu admitir 'a requerida constituição de assistente', por parte dos ascendentes da vítima, com o fundamento, já utilizado no seu anterior despacho de 29/09/2004 a folhas 624 dos autos, de que 'in caso' não se trata de crime 'estritamente militar'.
2ª – Na verdade, na acusação, proferida por quem tinha competência para o fazer e oportunamente recebida por despacho do Mº Juiz Auditor do 2° TMT de Lisboa, o arguido vem acusado da prática de um crime 'essencialmente militar', p. e p. pelo Art° 207º, nº 1, al. a), do CJM, por ser essa a correcta terminologia do crime constante do CJM, à data da sua prática.
3ª – Sobre esta questão da alteração da incriminação constante do despacho do Mº Juiz do Tribunal 'a quo' de 29/09/2004, a folhas 624 dos autos, na forma e em momento que legalmente tal não era admissível, foi em 08/10/2004 interposto recurso desse despacho para esse Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, o qual ainda aguarda decisão.
4ª – Se, como se espera, for dado provimento ao citado recurso, o julgamento deste processo deverá continuar nos tribunais a quem entretanto foi conferida competência para a continuação do julgamento dos processos pendentes nos tribunais militares à data da sua extinção, como se determina no Art° 3° da Lei nº 105/03, de 10 de Dezembro, não sendo admissível a constituição de assistente, em conformidade com a lei vigente à data da prática dos factos.
5ª – Com efeito, dispõe o Artº 376º do CJM, aprovado pelo D. L. N° 141/77, de 9 de Abril, que pelos crimes essencialmente militares só é admissível a acusação pública, não sendo admissível a constituição de assistentes nestes processos.
6ª – Dispõe-se também no Artº 311º do CJM, aprovado pelo D.L. nº 141/77, de 9 de Abril, que os tribunais militares (ou aqueles a quem foi conferida competência para o julgamento de crimes essencialmente militares pendentes à data da extinção dos tribunais militares) não são competentes para apreciar as acções por perdas e danos emergentes dos factos criminosos de que vierem a conhecer.
7ª – Além do mais, dispõe o Artº 211° da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe 'Competência e especialização dos tribunais judiciais', no seu nº 3, que, 'Da composição dos tribunais de qualquer instância que julguem crimes de natureza estritamente militar fazem parte um ou mais juízes militares, nos termos da lei».
8ª – Resulta claro desta disposição constitucional que os juízes militares só têm competência para julgar crimes militares, nos termos previstos nos Artº 110º da Lei nº 100/03, de 15/11, Artº 98°, nº 2, da LOFTJ, com a redacção dada pela Lei n° 105/03, de 10/12, e Artº 3°, sob a epígrafe 'processos pendentes', da Lei n° 105/03, de 10/12, e nunca qualquer processo ou enxerto cível.
9º - Dispõe-se nos Artºs 111° e 116°, nº 1, al. c), do CJM, aprovado pela Lei n° 100/03, de 15/11, que os processos por crimes estritamente militares são da competência do tribunal colectivo, sendo esse colectivo composto por um presidente e por dois adjuntos, sendo um deles juiz militar, pelo que estas normas, se interpretadas no sentido de que um colectivo de que faz parte um juiz militar é competente para o julgamento de acções cíveis ou de enxertos cíveis, são inconstitucionais, por violação do disposto no Artº 211° da Constituição da República Portuguesa.
10ª – A inclusão no tribunal colectivo de um juiz militar, que até pode, como é o caso, não ser licenciado em direito, destina-se única e exclusivamente a introduzir no colectivo a perspectiva militar do crime e dos interesses em questão para a instituição militar, e nunca para o julgamento de qualquer eventual pedido de indemnização cível nos termos do Artº 71° e seguintes do CPP.
11ª – É a acusação que define o objecto do processo, com a fixação do 'thema probandi' e do 'thema decidendi', mandando o princípio da identidade que o objecto do processo se mantenha idêntico desde a acusação à decisão final.
12ª – Assim, os requerentes da constituição de assistentes, para instaurar qualquer eventual pedido de indemnização civil por perdas e danos, deverão recorrer aos meios cíveis, para o que lhes foi concedido apoio judiciário, e não o apoio judiciário para o processo penal, nos termos do Artº 42º e seguintes da Lei n° 30-E/2000, de 20 de Dezembro.
13ª – Pelo exposto, entende o arguido que enquanto o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa não decidir do recurso interposto do despacho do Mº Juiz 'a quo' de 29/09/2004, não poderá nem deverá ser deferido o pedido de constituição de assistente neste processo.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-a por outra, indeferindo o pedido de constituição de assistentes e remetendo os requerentes para os meios cíveis.
E assim farão V. Exas. a costumada
JUSTIÇA».
10. Nem o Ministério Público junto da 1ª instância nem os assistentes responderam a este recurso.
11. Subiram os autos a esta Relação e, aqui, o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, em douto parecer, começou por suscitar uma questão prévia que se prende com a recorribilidade do despacho que entendeu competente para o julgamento o tribunal judicial do Montijo, por entender que a via a percorrer é a do conflito de competência, não sendo por isso de conhecer do recurso.
Caso assim não seja entendido, defende que o recurso não merece provimento, solução por que pugna também em relação ao outro.
12. Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2, do Cod. Proc. Penal, apenas o arguido respondeu, reiterando as posições que já anteriormente expressara.
II – FUNDAMENTAÇÃO
13. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência, pelo que cumpre apreciar e decidir.
14. Independentemente do que já ficou referido na parte do relatório, os específicos desenvolvimentos processuais por que os autos passaram recomendam que, antes de tudo o mais, e para uma melhor apreensão dos mesmos, deles se faça aqui uma breve síntese.
- No então 2º Tribunal Militar Territorial de Lisboa foi deduzido libelo, em 25-03-2003, contra o aqui recorrente, pela prática de um crime de homicídio culposo, p. p. pelo art. 207º do CJM.
- No decurso do julgamento naquele tribunal, concretamente durante as declarações prestadas pelo arguido, entendeu-se que a actuação deste poderia integrar uma conduta dolosa, ainda que a título eventual, pelo que foi declarada a incompetência do mesmo tribunal para a realização do julgamento, pois que «só tem competência para julgar crimes culposos de homicídio», ordenando-se, em consequência, a remessa dos autos ao Tribunal Judicial do Montijo (local onde terão ocorrido os factos vertidos no libelo).
- O STM veio a revogar o assim decidido, determinando que o julgamento já iniciado prosseguisse naquele 2º TMTL.
- O Snr. Juiz deste tribunal militar, considerando, por um lado, que a prova perdera eficácia «ope legis», devendo a audiência iniciar-se de novo, e, por outro, o novo regime de justiça militar, decorrente da aprovação das Leis 100/2003, de 15-11, e 105/2003, de 15-12, ordenou que os autos aguardassem até 14-09-2004 o seu envio ao tribunal competente por força desse novo regime.
- Foi após estas ocorrências processuais e a entrada em vigor das alterações legislativas materializadas por aqueles diplomas, que os autos foram remetidos às Varas Criminais, aqui cabendo em distribuição à 2ª Vara (1ª secção).
A Lei n.º 100/2003, de 15-11, aprovando o novo Código de Justiça Militar e revogando a legislação existente sobre a matéria, introduziu profundas alterações na até aí designada «justiça militar», concretizando o propósito do legislador constitucional de extinguir os tribunais militares.
Com aquele novo Código, que no seu art. 110º fixa a competência das 1ª e 2ª Varas Criminais da Comarca de Lisboa, para conhecer dos crimes cometidos no distrito judicial de Lisboa, houve necessidade de introduzir alterações na LOFTJ (Lei n.º 3/99, de 13-01), o que veio a suceder através da Lei n.º 105/2003, de 10-12.
O art. 3º deste diploma, regulando o destino dos processos pendentes nos tribunais militares, dispõe que os mesmos «transitam para os tribunais competentes consoante o estado em que se encontrarem».
A referida Lei 100/2003, ao prever no seu art. 6º, n.º 1, a aplicação imediata do Código de Justiça Militar, ressalva a «validade dos actos realizados na vigência da lei anterior», para o n.º 2 do mesmo preceito estatuir que «Da aplicação imediata da nova lei processual penal fica ressalvada qualquer limitação dos direitos de defesa do arguido, aplicando-se a lei anterior com as necessárias adaptações».
Ora, tendo sido o aqui recorrente acusado pela prática do crime de homicídio culposo, p. p. pelo art. 207º do anterior CJM, iniciado que foi o respectivo julgamento no 2º TMTL, sendo que inclusivamente a prossecução do julgamento lhe foi ordenada superiormente, e tudo isto se passando em plena vigência daquele Código, temos sérias reservas que, mesmo considerando apenas os textos legais citados, o despacho proferido pelo Snr. Juiz da 2ª Vara Criminal tenha suporte legal.
Mais: será pelo menos duvidoso, face ao momento processual fixado na lei até ao qual pode ser deduzida ou declarada a incompetência territorial (cfr. art. 32º, n.º 2, al. b), do Cod. Proc. Penal), que o novo tribunal competente para o julgamento possa declarar a sua incompetência quando tal questão já tinha sido decidida em definitivo no tribunal até aí competente para proceder ao julgamento dos autos.
E esta dúvida ganhará maior consistência se ponderarmos que no despacho que declarou a incompetência, e agora sob censura, o Snr. Juiz, convocando o art. 311º do Cod. Proc. Penal, dela conheceu como “questão prévia”.
É que vistas bem as coisas, a 2ª Vara Criminal de Lisboa (1ª secção) surge aqui, por via de disposição legal expressa, e para o que agora importa considerar, como o tribunal que substitui o extinto 2º TMTL – no qual, enfatiza-se, por via do acórdão proferido pelo STM, e a que mais acima se fez referência, a questão já se encontrava definitivamente decidida.
Este um primeiro aspecto da questão, o qual, podendo não ser decisivo, não será despiciendo.
Aceita-se, pois, que a questão não fique solucionada apenas em função do que se acaba de dizer.
Na verdade, a incompetência territorial declarada no despacho recorrido decorre do facto de o Snr. Juiz ter aí entendido, como vimos, que os factos vertidos na acusação consubstanciam a prática de um crime de homicídio, p. p. pelo art. 131º do Código Penal, e não um crime de homicídio culposo, p. p. pelo referido art. 207º, n.º 1, al. a), como fora entendido no libelo.
Por conseguinte, a verdadeira questão – e nuclear – não tem a ver com a competência do tribunal. Esta é uma mera consequência de o despacho recorrido ter qualificado juridicamente os factos descritos na acusação de forma substancialmente diversa do que nesta peça processual fora entendido.
E tão substancialmente diversa – adiantamo-lo desde já – que a consequência é esta: o crime por que o arguido foi acusado é punível com uma pena de presídio militar de seis meses a dois anos ; o crime por que “optou” o despacho recorrido é punível com uma pena de 8 a 16 anos de prisão.
Ora, a questão de saber se o juiz, ao receber o processo para designar dia para julgamento, pode qualificar juridicamente os factos de forma diversa da qualificação operada pela acusação, tem sido alvo de soluções desencontradas por parte da jurisprudência.
Assim, e a título de exemplo, no sentido de que o juiz pode proceder a diversa qualificação jurídica dos factos, decidiram os Acs. desta Relação e da Relação do Porto, de 14-10-99 e de 16-05-2001, respectivamente ; em sentido oposto, decidiram os Acs. da Relação de Coimbra e desta Relação, de 05-01-2000 e de 28-09-2000, respectivamente.
Na doutrina, Germano Marques da Silva entende, em síntese, que a liberdade de qualificação jurídica só é possível quando daí não resultar alteração substancial da acusação.
«Quid juris?»
O processo criminal, por imposição da Constituição da República (art. 32º, n.º 5), tem estrutura acusatória. Daqui decorre, no essencial, que a entidade julgadora não possa ter também funções investigatórias preliminares e acusatórias das infracções criminais, antes deva apenas investigar e julgar dentro dos limites que são estabelecidos por uma acusação fundamentada e deduzida por um órgão diferenciado, em regra o Ministério Público.
Se dúvidas existissem sobre a vontade do legislador em salvaguardar e aprofundar a predita estrutura acusatória do processo penal, bastaria convocar para a aqui o que, a propósito, consta da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII, que esteve na origem da Lei n.º 59/98, de 25-08, que procedeu a profundas alterações do Código de Processo Penal.
Diz-se aí, a dado passo: «Com a dedução da acusação ou com o despacho de pronúncia fixam-se os factos que definem os limites dos poderes de cognição do tribunal, regulando-se, de forma exigente, as situações de alteração substancial dos factos nas várias fases do processo, em respeito dos princípios do acusatório, do contraditório e da igualdade de armas, elementos incindíveis de um processo equitativo».
Na declaração de voto do PS sobre a votação final na Assembleia da República daquela Lei 59/98, afirmou-se, entre o mais, a propósito das alterações então introduzidas no art. 311º do Cod. Proc. Penal: «A solução vai de encontro à estrutura acusatória do processo, de matriz constitucional, tornando ainda mais nítida a separação dos órgãos de acusação e de julgamento no processo penal português (...)». E mais adiante: «Ficará, a partir de agora, bem expresso que o juiz de julgamento não pode apreciar da prova indiciária do inquérito (...) e que a sua valorização apenas compete ao Ministério Público» .
Ora, foi seguramente na concretização destes princípios que aquele art. 311º, no seu n.º 2, com as alterações introduzidas pela mencionada Lei n.º 59/98, dispõe, de forma imperativa, sobre o teor e o alcance do despacho do juiz quando o processo lhe é remetido para julgamento sem ter havido instrução.
E cremos que essa imperatividade afasta a possibilidade legal de o juiz qualificar os factos diversamente da qualificação operada pela acusação.
E o afastamento dessa possibilidade legal será particularmente de acolher quando a qualificação adoptada pelo juiz do julgamento revista a natureza de uma alteração substancial (cfr. art. 1º al. f), do Cod. Proc. Penal), como gritantemente sucede no caso em apreço.
São estas as razões pelas quais se entende que o despacho em crise não se pode manter.
Como bem observa a Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância, o Snr. Juiz não podia deixar de designar data para julgamento e, no decurso deste, se fosse caso disso, observar o disposto no art. 359º do Cod. Proc. Penal.
E é isto que também entendemos, em função do que ficou exposto.
15. Em consequência, e entrando agora na apreciação do recurso do despacho que admitiu os pais da vítima a intervir nos autos como assistentes, também tal despacho não pode vingar.
É que definido que está o objecto do processo pela acusação deduzida, imputando ao aqui recorrente, como já se disse, o crime do referido art. 207º do CJM, na altura em vigor, não é admissível a constituição de assistente, como decorre do art. 376º do mesmo diploma.
É claro que, em fase posterior, vindo-se a constatar que afinal os factos integram um crime diverso, nada obstará a que as pessoas que o requeiram, e com legitimidade para tal, possam, então, face à lei, vir a ser admitidas como assistentes.
Mas, de momento, e é isso que aqui está em causa, essa admissão não é legalmente possível.
III – DECISÃO
A – Concedendo-se provimento aos recursos, revogam-se os despachos recorridos, devendo o primeiro ser substituído por outro que designe data para julgamento, caso, entretanto, nenhuma causa tenha advindo que obste à respectiva realização.
B – Sem tributação.
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Lisboa, 08 de Fevereiro de 2006
(Telo Lucas)
(Rodrigues Simão)
(Carlos de Sousa)