Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
Assunto    Área   Frase
Processo   Sec.                     Ver todos
 - ACRL de 17-11-2005   ABUSO CONFIANÇA FISCAL. Salários. Não exclui ilicitude. Crime continuado.
I- A apropriação é elemento do tipo de crime de abuso de confiança fiscal. Que se traduz na falta de entrega, total ou parcial, da prestação tributária.
II- Tal apropriação não tem de se reconduzir ao gasto ou consumo em proveito próprio ou alheio, bastando para a sua consumação a não entrega do montante da prestação tributária deduzida nos termos da lei.
III- Com a punição de tal infracção fiscal, pretende-se tutelar a confiança do fisco em relação a quem a lei impõe o dever de deduzir a prestação tributária, enquanto receita do Estado.
IV- No caso em análise, segundo os artºs 1º e 3º do DL 103/80, de 9 e Maio, sobre a entidade patronal impõe-se o dever de inscrever como beneficiários, nas caixas de previdência, os trabalhadores por conta de outrem.
V- Por seu turno, conforme os artºs 5º, n.s 2 e 3 e 18º do DL 140-D/86, de 14 de Junho, as contribuições da segurança social devem ser descontadas das remunerações dos trabalhadores dependentes e entregues pela respectiva entidade patronal nos Centros de Segurança Social, até ao dia 15 do mês seguinte àquele a respeitarem.
VI- Por isso, a apropriação em causa verifica-se com a falta de entrega das contribuições retidas, dando-lhes destino diverso; é que a apropriação não tem de ser necessariamente material, podendo ser - como quase sempre o é - apenas contabilística.
VII- As pessoas colectivas são igualmente responsáveis pelos crimes previstos n regime jurídico das infracções fiscais não aduaneiras (artº 7º do RJIFNA ), respondendo solidariamente pelo pagamento das multas os respectivos órgãos, membros ou seus representantes (cfr. artº 6º do RJIFNA).
VIII- De harmonia com os factos provados, sobre o arguido, enquanto gerente da sociedade, recaía a obrigação de fazer entregar ao Estado as prestações descontadas no vencimento dos trabalhadores; ao agir de outra forma, e dando-lhe destino diferente, o arguido actuou com intenção proporcionar um benefício patrimonial indevido à empresa - que ela efectivamente obteve.
IX- As dificuldades financeiras e económicas da empresa não justificam a acção do arguido, designadamente por afectar a salários dos trabalhadores, os montantes retidos e não entregues ao fisco.
X- Com efeito, nos termos do artº 36º do Código Penal só 'não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que se sacrificar.' Ou seja, para que tal conflito tenha relevância e opere como causa de justificação do facto, afastando a ilicitude, é necessário, para além do mais, que a opção pela comissão do crime tivesse sido determinada pela inexistência de outro meio menos gravoso, por forma a evitar a lesão do bem jurídico ameaçado.
XI- Ora, a obrigação de pagar os salários só se põe enquanto se mantiver a obrigação de manutenção dos postos de trabalho, e, por seu turno a obrigação de manutenção da empresa em funcionamento só vigora se ela tiver viabilidade económica.
XII- Como tem sido afirmado dominantemente na jurisprudência, a obrigação legal de entregar as contribuições à Segurança Social é superior ao dever funcional de manter a empresa a funcionar e de pagar os salários aos trabalhadores e as dívidas aos fornecedores.
XIII- Daí que, acresce dizer que é irrelevante que a sociedade, posteriormente, tenha sido declarada falida, pois que ela só 'morre', só deixa de ter existência jurídica, depois da liquidação do seu património.
XIV- Repita-se, enquanto que a obrigação de entregar os impostos e as prestações à Segurança Social é um dever legal, cuja violação, por estar em causa um dos mais relevantes interesses do Estado - o da cobrança de impostos - encontra-se jurídico-penalmente tipificada, ao passo que a obrigação de pagar salários aos trabalhadores reveste natureza meramente contratual, não traduzindo um interesse superior àquele.
XV- Nos termos do artº 30º CP 'O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.' Haverá um só crime continuado (artº 30º, n. 2 CP) quando:- houver realização plúrima do mesmo tipo ou vários que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico; haja homogeneidade da forma de execução; a lesão do mesmo bem jurídico; uma unidade do dolo; e, por fim, mas não menos importante, que exista uma situação exógena que propicie a execução e seja susceptível de diminuir consideravelmente a culpa do agente.
XVI- In casu, como bem decidiu o tribunal a quo, o arguido cometeu um único crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, pois que se evidencia provado que actuou no quadro da mesma solicitação exterior e verificam-se os demais requisitos enunciados XV- que diminuem acentuadamente a sua culpa.
Proc. 4061/05 9ª Secção
Desembargadores:  Trigo Mesquita - Maria da Luz Batista - Almeida Cabral -
Sumário elaborado por João Parracho