ACTC nº 402/2014 -
ACTC nº 402/2014
_____________________
Texto integral:
Processo n.º 116/14
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A., Lda., recorrente nos presentes autos em que é recorrido o Instituto da Vinha e do Vinho I.P., impugnou judicialmente a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa do ato de autoliquidação da taxa de promoção do vinho devida referente ao mês de janeiro de 2009, no montante de € 48.821,64, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu (fls. 2 e seguintes). A impugnação foi julgada improcedente (fls. 175 e seguintes).
Inconformada, a ora recorrente interpôs recurso dessa sentença para o Supremo Tribunal Administrativo, requerendo a revogação da decisão proferida pela 1.ª instância e, subsidiariamente, a colocação de uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia, ao abrigo do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”). Por acórdão de 23 de outubro de 2013, aquele Supremo Tribunal negou provimento ao recurso (fls. 326 e seguintes).
Irresignada, a recorrente arguiu a nulidade de tal aresto e a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 267.º, 3.º parágr., feita no mesmo. No que toca à invocada inconstitucionalidade por não reenvio prejudicial, disse o tribunal a quo o seguinte, remetendo para o acórdão de 26 de junho de 2013 (Processo n.º 1503/12):
«5.3. Da inconstitucionalidade por não reenvio prejudicial
Finalmente, alega a Recorrente que se verifica uma inconstitucionalidade decorrente da omissão do dever de reenvio prevista no parágrafo 3 do artigo 267.º do Tratado de Funcionamento União Europeia.
Como bem argumenta o recorrido, “«[a] inconstitucionalidade material é o vício que afeta as normas ordinárias que infrinjam o disposto na Constituição e os princípios nela consignados, incluindo a interpretação que a tal conduza, pelo que não faz qualquer sentido jurídico a afirmação de que um acórdão é inconstitucional» – cfr. fr Acórdão do STJ, de 16 de Outubro de 2003, proferido no recurso n.º 03B1371”.
Por outro lado, “(...) o reenvio prejudicial só será obrigatório, designadamente se a questão for pertinente ou relevante para a decisão da causa, competindo ao juiz nacional apreciar, tendo em conta as particularidades de cada processo, quer a necessidade de uma decisão prejudicial, quer a pertinência das questões a submeter – neste sentido, veja-se a decisão do próprio TJ (atual TU) de 6 de Outubro de 1982, Cilfit e outros (proc. C-283/81) e, a título nacional, vide, por todos, o recente aresto deste STA de 21 de Novembro de 2012, proferido no recurso n.º 0222/12”.
Neste último acórdão deste Supremo Tribunal, acolhendo a jurisprudência do próprio TJ (…), diz-se que a mesma vai no sentido de que “os órgãos jurisdicionais nacionais referidos são obrigados a cumprir o seu dever de reenvio a menos que concluam que a questão não é pertinente ou que a disposição do direito da União em causa foi objeto de uma interpretação por parte do Tribunal de Justiça ou que a correta aplicação do direito da União se impõe com tal evidência que não dá lugar a qualquer dúvida razoável, devendo a verificação desta hipótese ser avaliada em função das características do direito da União, das dificuldades particulares de que a sua interpretação se reveste e do risco de surgirem divergências jurisprudenciais no interior da União”(…).
Por conseguinte, à luz da citada jurisprudência, o reenvio só será obrigatório, designadamente se a questão for pertinente ou relevante para a decisão da causa, competindo ao juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades de cada processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça”(…).
Neste sentido, também segundo JÓNATAS MACHADO “O reenvio não é um recurso ou uma faculdade processual das partes do processo principal (...). O reenvio integra uma competência exclusiva de natureza jurisdicional. (...) O facto de uma das partes suscitar uma questão de interpretação ou validade de um ato da UE não significa que haja lugar a reenvio prejudicial. (...)”.
E, mais adiante, o mesmo Autor pondera que “O reenvio prejudicial para o TJUE é, em princípio, facultativo, dependendo exclusivamente de decisão discricionária do tribunal nacional. No entanto, casos há de reenvio obrigatório”, sendo que pressuposto importante que vale independentemente de se tratar de reenvio facultativo ou obrigatório prende-se com a relevância da questão. Nos termos do art. 267º do TFUE, compete ao juiz nacional, a quem o litígio haja sido submetido, apreciar a necessidade de uma decisão prejudicial para a prolação de uma decisão final e decidir sobre a pertinência das questões que submete ao TJUE. A questão deve ser suficientemente relevante para o desfecho do caso concreto para justificar o reenvio (...)”.
Em suma, no caso dos autos, o acórdão recorrido, ao concluir pela desnecessidade do reenvio limitou-se a fazer uso da discricionariedade que lhe é própria na matéria, em conformidade com a jurisprudência do TJ e da doutrina.
Não procede, pois, a invocada nulidade do acórdão por inconstitucionalidade.
6. Nestes termos e pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a arguição de nulidade do acórdão.» (fls. 380 a 382)
2. É na sequência desta decisão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, com fundamento no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (“LTC”), considerando a recorrente que o Supremo Tribunal Administrativo «interpretou o disposto no n.º 3 do artigo 267.º do TFUE no sentido de autorizar aquele Tribunal, apesar de ser a última instância de recurso, a não cumprir com o dever de reenvio prejudicial (reenvio tendente a obter a correta interpretação do alcance da obrigação de notificação prévia prevista no n.º 3 do artigo 108.º do TFUE em face da medida parafiscal em causa nos autos, o que consubstancia uma questão basilar e essencial para a boa decisão da causa)», assim violando o princípio constitucional do juiz natural ou legal, consagrado nos artigos 216.º, n.º 1, e 217.º, n.º 3, da Constituição.
Pela Decisão Sumária n.º 173/2014, o relator decidiu não tomar conhecimento do objeto do recurso, com base em duas ordens de razões: não coincidência da ratio decidendi do acórdão recorrido com a norma sindicada pela recorrente, o que, pondo em causa a função instrumental do recurso de constitucionalidade devido a não impor uma reforma da decisão recorrida em caso de provimento do recurso, justifica que não se conheça do respetivo mérito (cfr., entre muitos, os Acórdãos n.ºs 463/94, 366/96, 687/2004 e 447/2012); e inidoneidade do objeto, uma vez que o dissídio que o objeto do recurso transmite se dirige à própria decisão judicial que optou por não efetuar o reenvio prejudicial, e não a uma suposta dimensão normativa extraída do 3.º parágrafo do artigo 267.º do TFUE.
Assim entendeu-se na sobredita Decisão Sumária:
(i) Quanto ao primeiro fundamento:
« [O] objeto do recurso – tal como foi explicitado pela recorrente na resposta que apresentou a fls. 434-435 – não coincide com o sentido normativo efetivamente aplicado pela decisão recorrida. Com efeito, esclarece a recorrente que o Supremo Tribunal Administrativo «interpretou o disposto no n.º 3 do artigo 267.º do TFUE no sentido de autorizar aquele Tribunal, apesar de ser a última instância de recurso, a não cumprir com o dever de reenvio prejudicial», sendo que este mecanismo «[se] mostra obrigatório para o Tribunal superior (ou seja, para o Tribunal cuja decisão não é suscetível de recurso judicial previsto no direito interno)».
Face aos esclarecimentos prestados pelo Tribunal a quo no acórdão que indeferiu a arguição de nulidade, torna-se evidente que o mesmo não interpretou o § 3 do artigo 267.º do TFUE no sentido de que tal norma autoriza a última instância judicial a não cumprir o dever de reenvio prejudicial. O Tribunal esclareceu, em consonância, aliás, com abundante doutrina, os casos em que o reenvio prejudicial é obrigatório, tratando-se os mesmos de situações em que a questão é pertinente ou relevante para a decisão da causa, competindo tal apreciação ao juiz da causa. Assim, e no uso da discricionariedade que, nesta matéria, o direito europeu lhe reconhece, o Tribunal a quo concluiu que o reenvio prejudicial não era, in casu, obrigatório.
Não foi aplicada, por conseguinte, qualquer norma com o sentido de que, tratando-se de situação de reenvio obrigatório, o juiz nacional está autorizado a não cumprir o dever de reenvio prejudicial.»
(ii) Quanto ao segundo fundamento:
«Resulta claro que o dissídio que o objeto do recurso transmite se dirige à própria decisão judicial que optou por não efetuar o reenvio prejudicial, e não a uma suposta dimensão normativa extraída do § 3 do artigo 267.º do TFUE que a mesma teria aplicado. A construção apresentada pela recorrente no seu recurso de constitucionalidade traduz, por conseguinte, uma verdadeira «ficção de norma», uma vez que o que a mesma pretende realmente impugnar é a decisão judicial tale quale. O que evidencia um outro fundamento para o não conhecimento do objeto do recurso uma vez [que] o mesmo é inidóneo face à ausência de caráter normativo.»
3. Novamente inconformada, vem agora a recorrente reclamar para a conferência, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, nos seguintes termos:
« Na decisão sumária ora notificada, este Alto Tribunal decidiu não tomar conhecimento do objeto do recurso, porquanto o objeto do recurso dirigir-se-ia à própria decisão judicial que optou por não efetuar o reenvio prejudicial e não a uma suposta dimensão normativa extraída do § 3 do artigo 267.º do TFUE, pelo que verificar-se-ia uma ausência de carácter normativo no recurso apresentado - cf. páginas 5 e 6 da Decisão Sumária ora notificada.
Sucede que, no modesto entendimento da Recorrente, a questão de inconstitucionalidade colocou-se nos presentes autos em virtude da interpretação que foi feita pelo Supremo Tribunal Administrativo no seu aresto, precisamente sobre a possibilidade de o Tribunal recorrido, apesar de ser a última instância de recurso, denegar o reenvio prejudicial para pronúncia do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) quanto ao âmbito da obrigação de notificação prévia prevista no artigo 108.º, n.º 3, do Tratado de Funcionamento da União Europeia (“TFUE”).
Com efeito, no modesto entendimento da Recorrente, o Acórdão recorrido, ao pronunciar-se sobre o não reenvio para o Tribunal de Justiça da União Europeia no que se refere ao âmbito da obrigação de notificação prévia prevista no n.º 3 do artigo 108.º do TFUE em face da medida parafiscal em causa nos autos, plasmou uma interpretação do disposto no artigo 267.º do TFUE confessadamente inconstitucional, por contrariar o princípio do juiz legal/natural consagrado nos artigos 216.º, n.º 1 e 217.º, n.º 3, da Constituição e o disposto nos nos 1 a 4 do artigo 8.º da Constituição.
Na verdade, por um lado, o alcance da obrigação de notificação prévia prevista no atual artigo 108.º, n.º 3, do TFUE, e não abrangência da medida parafiscal em causa nos autos por essa obrigação, consubstanciarem o parâmetro da decisão proferida pelo STA nos autos, porquanto, a questão suscitada nos autos e apreciada pelo STA assenta, em exclusivo, numa interpretação do alcance da obrigação de notificação prévia prevista no TFUE relativamente aos auxílios estatais – como sucedia com a medida parafiscal impugnada nos autos - e nas consequências do respetivo incumprimento por parte de um Estado-Membro.
Assim, tratava-se de matéria de interpretação de normas de Direito Comunitário – in casu, Direito Comunitário Primário.
Por outro lado, relembre-se que, nos termos do disposto no artigo 267.º do TFUE, o reenvio prejudicial é obrigatório para o Tribunal superior (ou seja, para o Tribunal cuja decisão não é suscetível de recurso judicial previsto no direito interno), não tendo o STA, no entanto, permitido que a instância autorizada em último grau a proceder à interpretação do direito da União Europeia o fizesse.
Desta forma, no caso em apreço, é manifesto que a interpretação implicitamente efetuada do artigo 267.º, n.º 3, do TFUE, no sentido de autorizar o Tribunal recorrido, apesar de ser a última instância de recurso, a denegar o reenvio prejudicial (reenvio tendente a obter a correta interpretação do alcance da obrigação de notificação prévia prevista no n.º 3 do artigo 108.º do TFUE em face da medida parafiscal em causa nos autos), viola o princípio constitucional do juiz natural ou legal, na medida em que o juiz comunitário vem a ser o intérprete último do artigo 108.º do TFUE, pois só ele pode garantir a aplicação uniforme do direito da União Europeia, que é acolhido diretamente no nosso ordenamento por força do disposto nos n.os 1 a 4 do artigo 8.º da Constituição.
Razão pela qual, no modesto entendimento da Recorrente, a questão de inconstitucionalidade da norma de que o Tribunal a quo fez aplicação nos autos para denegar o reenvio prejudicial – inconstitucionalidade decorrente da violação do princípio constitucional do juiz legal ou natural -, entra nos poderes de cognição deste Alto Tribunal, não estando em causa a decisão judicial em si.»
4. Notificado para, querendo, responder à reclamação apresentada, o recorrido nada disse.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. Em primeiro lugar, importa observar que a recorrente, ora reclamante, apenas contesta o segundo dos dois fundamentos em que se alicerça a decisão reclamada. Quanto ao primeiro, nada refere, pelo que se deve entender que se conforma com o mesmo. Tratando-se de um fundamento autónomo e por si só suficiente para sustentar aquela decisão, deve a mesma ser confirmada e a presente reclamação ser indeferida.
6. De todo o modo, o teor da reclamação também confirma o acerto do segundo fundamento em que se baseia a decisão reclamada. Com efeito, a invocada violação do artigo 267.º, 3.º parágrafo, do TFUE decorre exclusivamente da decisão do caso concreto e não pode ser dele dissociada, conforme resulta dos seguintes passos:
« [A] questão suscitada nos autos e apreciada pelo STA assenta, em exclusivo, numa interpretação do alcance da obrigação de notificação prévia prevista no TFUE relativamente aos auxílios estatais e nas consequências do respetivo incumprimento por parte de um Estado-Membro — como sucedia com a medida parafiscal impugnada nos autos -.
Assim, tratou-se de matéria de interpretação de normas de Direito Comunitário – in casu, Direito Comunitário Primário -,
Não tendo o STA, no entanto, permitido que a instância autorizada em último grau a proceder à interpretação do direito da União Europeia o fizesse.
Desta forma, no caso em apreço, é manifesto que a interpretação implicitamente efetuada do artigo 267.º, n.º 3, do TFUE no sentido de autorizar o Tribunal recorrido, apesar de ser a última instância de recurso, a denegar o reenvio prejudicial (reenvio tendente a obter a correta interpretação do alcance da obrigação de notificação prévia prevista no n.º 3 do artigo 108.º do TFUE em face da medida parafiscal em causa nos autos), viola o princípio constitucional do juiz natural ou legal.»
Por outras palavras, a recorrente insurge-se, isso sim – e apenas - contra a decisão de o tribunal recorrido não ter procedido ao reenvio prejudicial. O que apelida de «interpretação implícita» não é mais do que a própria subsunção do caso concreto à interpretação normativa do artigo 267.º, 3.º parágrafo, do TFUE perfilhada pelo tribunal recorrido – ou seja, o exercício concreto da discricionariedade que, na matéria em causa, o direito da União Europeia lhe reconhece.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada e condenar a reclamante nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 7 de maio de 2014. – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro.
|