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Processo nº 817/98
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. M. S., com os sinais identificadores dos autos, veio, 'ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 de 15/11', interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (3ª Secção), de 17 de Junho de 1998, que, negando 'provimento aos recursos' (entre eles um interposto pelo recorrente), confirmou a decisão do Tribunal Colectivo da 8ª Vara Criminal de Lisboa, que o havia condenado 'pela co-autoria material de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21º nº 1 do DL
15/93, de 22 de Janeiro, com referência às tabelas I-A e I-B anexas ao mesmo diploma legal' na pena de 7 anos e seis meses de prisão.
2. No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade veio o recorrente delimitar assim o seu objecto:
'Com efeito o douto acórdão interpretou os artigos 174º, 177º, 251º, 268º e 269º do CPP, com o sentido da desnecessidade de a busca consentida ser imediatamente comunicado ao juiz e por este validada no prazo legal. Interpretou também o artigo 174º do CPP com o sentido de não ser necessário dar o consentimento dos visados para a realização da respectiva busca. Interpretou também esse preceito com o sentido de o consentimento ficar completo com o assentimento de um dos visados desde que o outro nada diga. Interpretou ainda esse preceito com o sentido da desnecessidade de o consentimento prestado ficar documentado. Ora, estas interpretações mencionadas violam os artigos 32º e 34º da CRP.
É pois inconstitucional a interpretação que o douto tribunal lhes deu'. E, em acatamento de um convite do Relator, feito ao abrigo dos poderes conferidos pelo artigo 75º-A, nº 6, da Lei nº 28/82, na redacção da Lei nº
13-A/98, de 26 de Fevereiro, veio o recorrente dizer:
1º O recorrente arguiu a inconstitucionalidade dos artigos 174º e 177º no recurso intercalar interposto da decisão instrutória. Arguiu também a inconstitucionalidade destas normas e ainda dos artigos 251º,
268º e 269º, todos do CPP, no recurso da decisão final.
2º O recorrente entende que a interpretação a dar ao artigo 174º, nº 4, al. b) do CPP de molde a estar em conformidade com a constituição, designadamente com os artigos 32º e 34º, é a de que compete aos visados pela diligência, no caso concreto a busca, dar autorização de realização da mesma, sendo certo que esse consentimento deverá ser expresso e inequívoco ficando o mesmo documentado por escrito.
3º O sentido a dar ao nº 2 do artigo 177º conjugado com o nº 5 do artigo 174º, ambos do CPP é o de que é necessário a validação expressa, pelo Meretíssimo Juiz, de uma busca consentido no prazo máximo de 24 horas. Só assim estes dispositivos estão conforme o disposto nos artigos 32º e 34º da CRP.
4º A interpretação a dar ao artigo 25Iº do CPP, para assim se respeitar os artigos 32º e 34º da CRP, é a de que o tribunal deverá expressamente validar a busca realizada pelos órgãos de policia criminal.
5º Os artigos 268º nº 4 e 269º do CPP, devem ser interpretados com o sentido de a realização consentida de uma busca ou a sua realização nos termos do artigo
251º do CPP, deve ser validada no mais curto espaço de tempo, ou seja 24 horas. Assim se respeitando os comandos constitucionais ínsitos nos artigos 32º e 34º'.
3. Nas suas alegações, concluiu assim o recorrente:
'1- Uma das inconstitucionalidades suscitadas ao longo do processo, em nosso entender, perdeu interesse uma vez que o douto tribunal recorrido entendeu que o regime, para a questão em análise, é o mesmo independentemente de se tratar de busca domiciliária.
2- Acontece que decidiu-se também no referido douto acórdão que, em nosso entender, uma das questões levantadas - o não consentimento do recorrente para a realização da busca - está sujeita ao regime previsto no artigo 120º nº3, al. a) do CPP.
3- Esta posição do douto tribunal vem na sequência da posição tomada, na questão de fundo, para além de se poder entender que o recorrente foi surpreendido com a tomada desta posição, pelo que, não era necessário ter suscitado a inconstitucionalidade daquele preceito, na devida altura, podendo fazê-lo agora.
4- Com efeito, a interpretação dada ao artigo 120º nº 3 al. a) viola o que dispõe o artigo 32º da CRP.
5- Não teria sentido o arguido no decorrer da busca, que ele não autorizou, requerer ao juiz que não existia?! ou ao agente da policia ?! no sentido de que nos termos do artigo tal (um cidadão normal não tem conhecimento jurídicos) arguir a nulidade da diligência.
6- O entendimento de que esta nulidade pode e deve ser arguida nos termos da al. c) daquele preceito é sufragada por vasta Jurisprudência do Tribunal da Relação e Supremo.
7- A interpretação dada ao artigo 174º, nº 4 al. b), pelo douto tribunal recorrido, traduz-se em a busca estar legitimada apenas com a autorização de um dos visados.
8- Entendemos que sendo vários os visados todos eles têm um direito à inviolabilidade do domicílio ou espaço equiparado sendo pessoal e intransmissível a sua autorização.
9- Foi assim que se decidiu no douto acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional, nº 507/94, proc. Nº 129/93, 1ª Secção.
10- É pois inconstitucional a interpretação dada pelo douto tribunal recorrido aos artigos 174º, nº 4, al. b) e 177º nº2, porquanto contende com o disposto nos artigos 32º e 34º da CRP.
11- O acórdão agora em crise também interpretou a norma supra citada - artigo
174º, nº 4, al. b) - com o sentido de que o consentimento não necessita de ficar documentado, ou melhor que pode ser entendido como positivo quando não recusado.
12- Ao silêncio do arguido não pode, juridicamente atribuir-se um sentido de declaração positiva ou negativa.
13- Tanto mais que o próprio preceito exige uma declaração afirmativa e documentada do desejo do arguido em consentir na busca.
14- Posto isto a interpretação dada pelo douto tribunal ao referido preceito, também nesta parte, é inconstitucional porquanto contende ostensivamente com o estatuído nos artigos 32º e 34º da CRP.
15- O douto tribunal interpretou o nº 5 do artigo 174º conjugado com a al. b) do nº 4 do mesmo preceito com o sentido de que, no caso de consentimento de uma busca esta não necessita de ser imediatamente comunicada ao juiz para este a apreciar no sentido de a validar.
16- Conforme resulta do nº 3 do artigo 174º o juiz deve presidir à diligência sempre que puder. Isto nos casos de autorização judicial de busca.
17- Nos casos previsto na al. a) e b) da aludida norma, a diligência está completamente despida de formalismos sendo, por isso, susceptível de violar direitos, liberdade e garantias dos cidadãos.
18- Daí a necessidade e a imposição legal de a realização da busca ser no mais curto espaço de tempo comunicado ao juiz e por este validada.
19- É este o entendimento de vários arestos do STJ bem como a posição perfilhada, por exemplo pelos Senhores Conselheiros Procuradores Simas Santos e Leal Henriques.
20- Do que resulta a interpretação dada, pelo douto tribunal ‘a quo’ ao nº 5 e al. b) do nº 4 do artigo 174º e 177º nº 2, estar fenda de inconstitucionalidade por violar o estatuído nos artigos 32º e 34º da CRP.'
4. Apresentou o Ministério Público recorrido contra-alegações, suscitando a questão prévia da 'não aplicação pelo Supremo Tribunal de Justiça das normas cuja constitucionalidade vem invocada, com o sentido pretensamente inconstitucional, especificado pelos recorrentes', e concluindo desta forma:
1º Não tendo o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido, realizado a interpretação, alegadamente inconstitucional, das normas a que se reporta o presente recurso - fundando antes o decidido em razões e argumentos de diversa e autónoma natureza - não deverá conhecer-se do presente recurso.
2º Na verdade, a decisão recorrida funda-se:
- na preclusão dos recursos interlocutórios interpostos, por competir a sua apreciação à Relação, por força do disposto nos artigos 407º, nº 3, e 427º do Código de Processo Penal, não incumbindo ao Supremo Tribunal de Justiça apreciar tal matéria conjuntamente com o recurso interposto da decisão final condenatória;
- na preclusão de quaisquer possíveis nulidades do acto de busca, por não tempestivamente invocadas, por força do preceituado no artigo 120º do Código de Processo Penal; o na consideração de que o arguido, ora recorrente, não tinha a disponibilidade do local onde se realizou tal busca, pelo que seria sempre irrelevante a prestação de um seu consentimento para o acto.
5. Ouvido o recorrente sobre a dita questão prévia, nada veio dizer.
6. Cumpre decidir, começando naturalmente por aquela questão prévia suscitada pelo Ministério Público recorrido, pois, a ser procedente, não se chegará ao conhecimento do mérito do recurso. E sem deixar desde já registado que o seu objecto está bem delimitado no requerimento respectivo, com referência apenas às normas dos artigos 174º, 177º, 251º, 268º e 269º do Código de Processo Penal. Como claramente flui da posição do recorrente, o que vem questionado, no plano da (in)constitucionalidade, é o sistema das revistas e buscas e da sua validação, regulado no Código de Processo Penal, sendo, no essencial, e como sustenta o Ministério Público recorrido, 'duas as questões suscitadas pelo recorrente':
'- a necessidade de os visados por ela (a busca realizada nos autos) darem consentimento expresso e inequívoco, documentado por escrito nos autos, em conformidade com a interpretação que se reputa constitucionalmente admissível dos artigo 174º, nº 4, alínea b) do Código de Processo Penal;
- a necessidade de a busca consentida ser imediatamente comunicada ao juiz e por este validada no prazo legal, em consequência da interpretação dos artigos 174º, nº 5, 177º, nº 2, 251º, 268º, nº 4, e 269º do Código de Processo Penal.'
É, na verdade, o que o recorrente, com o seu discurso, pretende efectivamente questionar, quando sustenta que a interpretação dada pelo acórdão recorrido
àquele sistema é violadora da Constituição (as interpretações 'violam os artigos
32º e 34º da CRP), 'com o sentido de não ser necessário dar o consentimento dos visados para a realização da respectiva busca', 'com o sentido de o consentimento ficar completo como assentimento de um dos visados desde que o outro nada diga', 'com o sentido da desnecessidade de o consentimento prestado ficar documentado' e 'com o sentido da desnecessidade de a busca consentida ser imediatamente comunicada ao juiz e por este validada no prazo legal'. A correspondência da identificação das tais duas questões é perfeita e revela os eixos da discussão: o consentimento do ou dos visados para a realização da busca e o modo e tempo da sua validação pelo juiz, tendo como referência as normas do Código de Processo Penal identificados pelo recorrente e pelo Ministério Público. Ora, e como também sustenta o Ministério Público recorrido, nenhuma dessas questões 'foi apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça, em termos de, no acórdão ora impugnado, se ter feito dos preceitos legais em causa a interpretação alegadamente inconstitucional' Vejamos.
7. Com efeito, e quanto ao eixo relativo ao consentimento do ou dos visados para a realização da busca, o acórdão recorrido tratou da matéria sobre a epígrafe
'8.1.- Nulidade da busca', para, depois de analisado o regime processual - e ele
'é idêntico para todos os casos: buscas não domiciliárias e buscas domiciliárias e equiparadas (escritórios de advogados e consultórios médicos)' - e depois de dar como assente que 'a autorização de busca foi pedida a ambos os arguidos e concedida por escrito por um e não recusada pelo outro' (o ora recorrente), concluir deste modo:
'O recorrente N. P. alega que não sabe ler e não lhe foi explicado o conteúdo do documento de fls. 12 (termo de autorização). Admitindo, por mera hipótese, que ao recorrente não foi explicado o conteúdo do documento que ele assinou, então ter-se-á cometido uma nulidade que devia ter sido arguida antes de o acto de busca haver terminado (art. 120º nº 1 e nº 3 a) do C.P.Penal). No mesmo sentido, o acórdão deste Supremo Tribunal de 23-4-92 (BMJ nº 416, pág.
536). A sua arguição feita no requerimento de abertura de instrução é manifestamente extemporânea. O recorrente M. P. alega que não autorizou aquela busca. Efectivamente, não prestou o seu consentimento por escrito. Contudo, não deduziu qualquer oposição, pelo que o regime de tal nulidade se encontra igualmente traçado nos citados dispositivos do art. l20º. Isto a provar-se que este arguido era titular de um direito de inviolabilidade do escritório, o que não se verifica.' Daqui decorre que o Supremo Tribunal de Justiça equacionou tal questão restritamente no plano das nulidades processuais dependentes de arguição, à luz do regime dos artigos 120º e seguintes do Código de Processo Penal, considerando que elas – as relativas ao dito consentimento – deviam ter sido arguidas em tempo ou deveria ter sido deduzida 'qualquer oposição' pelos arguidos. E esse regime não pode agora ser questionado, quanto a uma sua pretensa inconstitucionalidade, como quer o recorrente, porque não faz parte do objecto do recurso tal questão (cfr. ponto 2 e 6.), estando, assim, prejudicadas as conclusões 2. a 6. das suas alegações. Portanto, e porque foi esse o equacionamento da questão, não se detecta no acórdão recorrido a adopção do sentido interpretativo da norma questionada do artigo 174º, nº 4, b) (o sentido alegadamente inconstitucional que o recorrente aponta), na medida até em que o Supremo Tribunal de Justiça entendeu, pelo contrário, que a 'citada alínea b) refere-se às buscas efectuadas por órgão de polícia criminal consentidas pelos visados, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado' (não entendeu não ser necessário dar consentimento e não entendeu não ser necessário o consentimento prestado ficar documentado). E daí que no acórdão acabe por se afirmar que 'é manifesta a sem-razão de ser da invocação de inconstitucionalidade material das normas dos arts. 174º, 177º,
251º, 268º e 269º do C. P. Penal'.
8. Quanto ao eixo do modo e tempo da validação da busca, o Supremo Tribunal de Justiça considerou 'prejudicados' os recursos interlocutórios interpostos pelos arguidos e, portanto, também pelo ora recorrente, em que se questionava a validade da busca em questão. Fê-lo nestes termos no acórdão recorrido:
'9. Ao requererem a abertura da instrução (fls. 236 e 240), os arguidos alegaram a nulidade da busca a que se refere o auto de apreensão de fls. 9 e o termo de autorização de fls. 12, assinado pelo arguido N. P.. Tais alegações foram julgadas improcedentes pelo despacho de fls. 322. Deste despacho os arguidos interpuseram recurso para o Tribunal da Relação (fls.
3Estes recursos foram admitidos para subirem nos próprios autos a final (fls.
384). O regime de subida, instrução e julgamento conjuntos de vários recursos, previsto no art. 407º nº 3 do C. P. Penal, só tem lugar quando é o mesmo o tribunal ‘ad quem’ competente para julgamento de todos. Faltando aquele pressuposto, cada recurso terá de subir imediatamente, nada justifica a sua retenção para subida diferida.
É esta uma evidência que, portanto, não exige demonstração. Significa isto que os recursos interpostos a fls. 363 e 370 deviam ter subido imediatamente ao tribunal da Relação, por ser o competente (art. 427º CPP), pois a competência para o julgamento do recurso interposto da decisão final encontra-se atribuída ao Supremo Tribunal de Justiça (alínea c) do art.
432ºCPP). Tais recursos, porém, encontram-se prejudicados, em presença do exposto supra sob o nº 8. 1.' Daí que:
'Tal implicou, nomeadamente, que o Supremo Tribunal de Justiça não haja sequer apreciado a questão consistente em dever a busca autorizada ser validada judicialmente, no prazo legal, sendo manifesto que, por essa razão, se não fez minimamente naquele aresto a pretendida interpretação inconstitucional dos arts.
177º., nº 2, 174º, nº 6, 251º, 268º, nº 4 e 269º do Código de Processo Pena'(é o que sustenta o Ministério Público e aqui se adopta). Por tudo isto, é de concluir que, tratando-se do recurso previsto no artigo 70º, nº 1, b), da Lei nº 28/82, não se verifica o pressuposto processual, que resulta daquela alínea b), da aplicação no acórdão recorrido das normas cuja constitucionalidade vem questionada, com o sentido pretensamente inconstitucional identificado pelo recorrente, procedendo, deste modo, a questão prévia levantada pelo Ministério Público nas suas contra-alegações. Com o que não se pode tomar conhecimento do presente recurso, porque falta aquele pressuposto.
9. Termos em que, DECIDINDO, não se toma conhecimento do recurso e condena-se o recorrente nas custas, com a taxa de justiça fixada em seis unidades de conta. Lx. 2.12.98 Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma Pereira Bravo Serra Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa