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Procº nº 639/97.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. A. G., patrocinado pelo Ministério Público, intentou pelo Tribunal do Trabalho de Lisboa e contra L.T.E. - Electricidade de Lisboa e Vale do Tejo, S.A., acção, seguindo a forma de processo ordinário, solicitando a condenação desta a:-
- pagar ao representado autor, a partir de 1 de Janeiro de 1991, um complemento à pensão de reforma previsto no Estatuto Unificado de Pessoal da E.D.P. - Electricidade de Portugal, Empresa Pública (à qual a ré veio a suceder), Estatuto esse aprovado pelo despacho nº 103/79, proferido em 26 de Dezembro de 1979 pelo Secretário de Estado da Energia e Indústrias de Base, e pagamento que, por não efectuado, correspondia, em Setembro de 1996, a uma dívida que ascendia a Esc. 1.108.516$00;
- pagar ao representado autor as diferenças daquele complemento já vencidas e vincendas até à data da proferenda sentença;
- a calcular, para o futuro, o complemento da pensão de acordo com o aludido Estatuto até 31 de Agosto de 1986, no montante de Esc. 798.828$00,
- pagar juros de mora à taxa legal sobre as peticionadas quantias.
Após contestação deduzida pela L.T.E., na qual, inter alia, suscitou a nulidade das disposições constantes do Título I do assinalado Estatuto, por violação da alínea e) do nº 1 do artº 6º do Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro, a Juiz do 1º Juízo daquele Tribunal, por saneador/sentença de 29 de Agosto de 1997, teve por inverificada a invocada nulidade, vindo a considerar procedente a acção.
Para tanto, no que ora releva, referiu-se, em dados passos, naquela peça processual:-
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Coloca-se nestes autos a questão de julgar da conformidade ou desconformidade legal do EUP.
Pela R., vem invocada a nulidade das disposições do Título I do EUP.
Com efeito, a sustentar a sua tese a R. vem invocar o art.º 6.º, n.º
1, al. e) do D.L. 519-C/79 de 29.12 e diplomas que o precederam. De acordo com aquela disposição legal 'os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho não podem estabelecer e regular benefícios complementares dos assegurados pelas instuições de previdência'. À luz deste preceito as disposições do título I do EUP seriam nulas, porque violam a proibição nele ínsita.
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Recentemente, foi publicado no Diário da República - II Série, de
31.01.97 a páginas 1269 e seguintes, um Acórdão do Tribunal Constitucional que veio a julgar inconstitucional a norma constante da al. e) do n.º 1 do art.º 6.º do D.L. 519-C1/79, na sua versão originária.
Perfilhamos o entendimento expresso no referido acórdão e, que levou
à declaração de inconstitucionalidade.
O D.L. 164-A/76 de 28.02, que regulamentava as relações colectivas de trabalho, não continha o limite, que veio a ser introduzido pelo D.L. 887/76 de
29.12, já que, só com este diploma o legislador veio proibir que os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho, pudessem estabelecer e regular benefícios complementares dos assegurados pelas instituições de previdência.
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Seguindo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, que decorre do Acórdão acima citado declara-se inconstitucional o artº 4.º, n.º 1, al. e) do D.L. 887/76 de 29.12 e o art.º 6.º. n.º 1, al. e) do D.L. 519-C1/79 de 29.12 por violação dos art.ºs 58.º, n,º 3, 17.º e 18.º da C.R.P., versão de 1976 e art,ºs
17.º, 18.º e 57.º, n.º 3, versão de 1982.
Deste modo, julga-se não provada e improcedente a alegada nulidade.
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É do assim decidido que, pelo Ministério Público, vem interposto o presente recurso, circunscrito à questão da recusa de aplicação, por inconstitucionalidade, das normas constantes da alínea e) do nº 1 do artº 4º
[rectius] do Decreto-Lei nº 164-A/76, de 28 de Fevereiro, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 887/76, de 29 de Dezembro, e da alínea e) do nº 1 do artº 6º do Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro.
2. Determinada a feitura de alegações, conclui o recorrente a por si efectuada do seguinte modo:-
'1º A norma constante da alínea e) do nº 1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 519-C1/79
- bem como a que constava precedentemente do artigo 4º, nº 1, alínea e) do Decreto-Lei nº 887/[7]6 - é inconstitucional por violação do disposto nos artigos 56º, nºs 3 e 4, 17º e 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
2º Ainda que assim, porventura, se não entenda - por se considerar que tal norma apenas delimitou negativamente o âmbito 'natural' do direito à negociação colectiva, não revestindo natureza restritiva ou limitativa de tal direito fundamental dos trabalhadores - sempre padeceria de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da confiança, a sua interpretação que se traduzisse em facultar às entidades patronais que se obrigaram, em estipulação acessória introduzida numa convenção colectiva, à realização de certos benefícios complementares de previdência no confronto dos seus trabalhadores, a possibilidade de se desvincularem unilateralmente de tal compromisso, de natureza estritamente obrigacional e não conexionado com os efeitos típicos das convenções colectivas de trabalho.
3º Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.'
II
1. O regime jurídico das convenções colectivas de trabalho foi, durante muito tempo, regulado por intermédio do Decreto-Lei nº 49.212, de 28 de Agosto de 1969, tendo, após a Revolução operada em 25 de Abril de 1994, sido objecto de alterações pontuais introduzidas pelo Decreto-Lei nº 292/75, de 16 de Junho.
Antes da entrada em vigor da Constituição aprovada em 2 de Abril de
1976, tal regime veio a sofrer uma profunda alteração, ficando a ser regulamentado pelo Decreto-Lei nº 164-A/76, de 28 de Fevereiro, sendo que, das suas disposições (cfr., maxime, o seu artº 4º) não resultava qualquer proibição da inclusão, nos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho, de estabelecimento de benefícios diversos, complementares ou não, dos assegurados pelas instituições de previdência.
Já no domínio da vigência da Constituição, foi editado em 29 de Dezembro o Decreto-Lei nº 887/76 que, introduzindo alterações no Decreto-Lei nº
164-A/76, veio a prescrever, ao conferir nova redacção ao artº 4º deste último diploma [cfr. alínea e) do seu nº 1], que os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho não poderiam '[e]stabelecer e regular benefícios complementares dos assegurados pelas instituições de previdência', prescrição que, de idêntico modo, passou para o articulado constante do Decreto-Lei nº
519-C/79, de 29 de Dezembro, diploma que passou a estatuir sobre o regime jurídico das relações colectivas de trabalho.
2. A questão que se coloca nos presentes autos é, pois, a de saber se uma prescrição com o jaez da transcrita está, ou não, ferida de inconstitucionalidade.
2.1. Deve, em primeiro lugar, anotar-se que, porque a matéria se não inclui nos poderes cognitivos deste Tribunal, não poderá o mesmo avaliar da correcção ou não correcção dos fundamentos utilizados no saneador/sentença ora impugnado na parte em que dele parece resultar que as «prestações complementares» consagradas no E.U.P. são algo que se integra na regulamentação convencional/dispositiva tocante à autonomia colectiva característica do sistema jus-laborístico - o que o mesmo é dizer se são algo que se pode incluir na normação da contratação colectiva - ou, antes, constituem actos jurídicos que, embora ligados ao contrato de trabalho, são distintos do mesmo, consubstanciando apenas uma vinculação unilateral da entidade patronal (cfr., sobre o ponto, o
«parecer» de Bernardo Lobo Xavier junto aos autos).
2.2. Este Tribunal, por intermédio do seu Acórdão nº517/98, tirado em Plenário e publicado na 2ª Série do Diário da República de 10 de Janeiro de
1998, julgou, por maioria, que não era 'inconstitucional a norma constante da versão originária da alínea e) do nº 1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro, com fundamento em violação dos artigos 56º, nºs 3 e 4, 17º e
18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa', mas já a julgou inconstitucional, 'com fundamento em violação da alínea c) do artigo 167º - em conjugação com os artigos 58º, nº 3, e 17º - da Constituição da República Portuguesa – versão originária'.
Ora, na sequência de um tal julgamento, também, no presente caso, haverá que proferir um juízo de desconformidade com a Lei Fundamental tocantemente às normas ora sub iudicio.
3. Não se vá, ainda, sem dizer que o ora recorrente, para sustentar a enfermidade constitucional da(s) norma(s) em apreço, para além dos fundamentos utilizados que tinham sido aduzidos no Acórdão nº 966/96 (publicado na 2ª Série do Diário da República de 31 de Janeiro de 1997), ainda esgrime com um outro.
Na verdade, pode ler-se na alegação pelo mesmo produzida que
'[i]mporta, porém abordar a questão controvertida no presente processo numa outra perspectiva jurídico-constitucional - já que se nos afigura que podem concorrer outras razões determinantes da inconstitucionalidade da norma desaplicada, quando interpretada em termos de implicar imperativamente a nulidade das cláusulas, inseridas em convenções colectivas de trabalho, que atribuam benefícios complementares aos assegurados pelas instituições de previdência'.
E, ao debater essa perspectiva, disse o recorrente, mesmo admitindo uma óptica segundo a qual as normas estatuidoras de «complementos dos benefícios de previdência» aos trabalhadores da então EDP poderiam ser entendidas como não revestindo, 'de um ponto de vista material, a natureza de normas típicas e próprias de uma convenção colectiva':-
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Em suma: as cláusulas inseridas em instrumentos de regulamentação colectiva que, pela sua natureza substancial, se não reportem à disciplina das relações de trabalho e dos 'direitos dos trabalhadores' - versando antes sobre matérias estranhas, 'maxime' o estabelecimento de prestações complementares da segurança social - não podendo produzir os típicos efeitos (e gozar da especial garantia) das convenções colectivas - não deixam, todavia, de poder ser tidas como cláusulas obrigacionais, laterais ou acessórias relativamente às matérias essencialmente reguladas na convenção colectiva, susceptíveis de vincularem as partes ao respectivo cumprimento, estabelecendo, afinal, verdadeiras 'prestações previdenciais privadas'.
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2.3. Ora. assente que os preceitos que outorgaram aos trabalhadores de certa empresa determinados complementos dos benefícios da previdência - ainda que não sejam, de um ponto de vista material, configuráveis como verdadeiras cláusulas de uma convenção colectiva - são, pelo menos, seguramente qualificáveis como estipulações acessórias (relativamente às matérias essencial- mente reguladas na convenção), vinculativas das partes no plano estritamente obrigacional, terá, consequentemente, de ficar a empresa que se obrigou a complementar tais benefícios (como verdadeiras prestações previdenciais privadas) obrigada ao respectivo cumprimento, como decorrência do princípio da autonomia privada e da regra 'pacta sunt servanda'.
E temos como seguro que a interpretação da norma legal a que se reporta o presente recurso, em termos de implicar a imperativa nulidade de tais cláusulas acessórias - permitindo, consequentemente, a unilateral desvinculação das entidades patronais das obrigações livremente assumidas para com os trabalhadores - traduz clara violação do princípio da protecção da confiança, lesando de forma desproporcionada a injustificada as legítimas expectativas dos trabalhadores de que os compromissos assumidos seriam efectivamente respeitados
(...).
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O que dizer de uma tal postura?
3.1. Adianta-se, desde já, que uma argumentação tal como a utilizada pelo recorrente e de que ora se trata não convence o Tribunal.
Efectivamente, sem se entrar na dilucidação das implicações constitucionais decorrentes da protecção da confiança postulada pelo princípio do Estado de direito democrático consagrado no vigente artigo 2º da Constituição e que defluía do preâmbulo da versão originária da Lei Fundamental, e àcerca do qual este Tribunal, por várias vezes, teve ocasião de se pronunciar, o que é certo é que não se pode passar em claro que a normação em análise, entrou em vigor antes do Estatuto Unificado de Pessoal que consagrou os «benefícios complementares previdenciais» (a vigência do regime instituído por tal Estatuto reporta-se a 1 de Janeiro de 1980 - cfr. seu artº 81º).
Ora, assim sendo, é fácil de concluir que, na perspectiva da conceptualização daqueles «benefícios» como representando uma fonte unilateral de obrigações, aquando da sua estipulação era já a mesma fulminada com um vício de nulidade decorrente da proibição imperativa estabelecida pela(s) norma(s) em apreciação.
Daí que não seja cabido afirmar que foi com esta proibição que se alterou, inadmissível, intolerável ou desproporcionadamente algo com que os beneficiários, razoavelmente, poderiam contar.
Antes, e pelo contrário, atenta a proibição legal que já vigorava, era perfeitamente figurável a invalidade das estipulações dos mencionados
«complementos» efectivada posteriormente à vigência daquela proibição, motivo pelo qual dificilmente poderiam os trabalhadores «beneficiários» ter fundadas expectativas na sua manutenção.
No caso, não houve, pois, qualquer superveniência de norma ou dação de eficácia retroactiva que, reflectindo-se em situações jurídicas já consolidadas e com que os cidadãos pudessem razoavelmente contar, fosse alterar essas situações ou efeitos delas decorrentes, em termos de ficar fortemente abalada a expectativa na respectiva manutenção.
De onde se não vislumbrar qualquer frustração digna do manto protector do «princípio da confiança».
III
Em face do exposto, na sequência, como se disse, do decidido pelo Acórdão nº 517/98, decide-se, julgando inconstitucional, por violação da alínea c) do artigo 167º - em conjugação com os artigos 58º, nº 3, e 17º - da versão originária Constituição, a norma constante da alínea e) do nº 1 do artº 6º do Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro, e da alínea e) do nº 1 do artº 4º do Decreto-Lei nº 164-A/76, de 28 de Fevereiro, na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 887/76, de 29 de Dezembro, negar provimento ao recurso. Lisboa, 15 de Dezembro de 1998 Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Beleza Luis Nunes de Almeida