Imprimir acórdão
Proc. nº 76/97 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - L. D., com os sinais dos autos, intentou acção com processo ordinário emergente de contrato individual de trabalho contra R..,EP pedindo que esta fosse condenada a pagar-lhe as seguintes quantias:
'a) 250.000$00, a título de subsídio de incomodidade; a. 5.262.640$00, de indemnização de antiguidade; b. 164.460$00, a título de proporcionais do subsídio de Natal de 1990 e das férias e subsídio de férias de 1991; c. 2.000.000$00 por danos não patrimoniais; d. também as diferenças salariais anteriores a 1 de Janeiro de 1990, a liquidar em execução de sentença; e. 326.604$00, correspondentes às diferenças salariais entre 1/1/90 e
1/6/90; f. 2.177.360$00, relativos às diferenças de indemnização de antiguidade; g. finalmente, 44.790$00, de diferencial referente aos proporcionais de subsídios e de férias' A acção foi julgada procedente, sendo a Ré condenada a pagar ao A . as quantias de 2.631.960$00, indemnização de antiguidade, 250.000$00 relativa a 'subsídio de incomodidade' e de 109.640.$00, referente aos proporcionais de férias e subsídio de férias, no total de 2.990.960$00, acrescido de juros de mora. A R. interpôs recurso desta sentença para a Relação de Lisboa que, pelo seu acórdão de fls. 1179 e segs., negou provimento ao recurso. De novo inconformada, a R. interpôs recurso para o S.T.J. Nas suas alegações, a então recorrente formulou conclusões que a seguir se transcrevem na parte que interessa:
'A) Para haver justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo trabalhador é necessário que a entidade patronal viole os seus direitos e garantias, designadamente o direito ao salário e à ocupação efectiva, que essa violação seja culposa e que assuma gravidade suficiente, ponderadas todas as circunstâncias do caso, para tornar impossível a continuação da relação laboral.
................................................................................................... H) O trabalhador, titular de um contrato com a Recorrente há 20 anos, rescindiu o contrato de trabalho, no dia 1 de Junho sem antes, fazer qualquer diligência, tomar qualquer iniciativa, perguntar a quem quer que fosse o que se passava.
................................................................................................... J) A inactividade que se verificou, nos termos e pelas razões em que o foi, de molde a, de per si, constituir justa causa. L) O não pagamento do salário, nas condições em que sucedeu, imediatamente seguido da rescisão do contrato também não pode, de per si, aceitar-se como justa causa. M) Duas condutas ou omissões que, cada uma de per si, não é apto a integrar o conceito de justa causa não podem, cumuladas, integrar esse conceito. N) Não pode a decisão a tomar ignorar a grosseira e deliberada – essa sim – omissão pelo trabalhador do dever de boa fé e lealdade ao prevalecer-se duma situação para dela tirar o proveito que desejava.' Em contra-alegações, o A . formulou conclusões que também apenas se transcrevem na parte que interessa:
'..................................................................................................
8º O A . não incumpriu qualquer dos seus deveres laborais e , ao invés, foi a R. quem incumpriu, grave, grosseira, intencional e reiteradamente os seus.
9º A 'tese' do conceito de justa causa propugnado pela recorrente nenhum apoio tem no nosso regime legal, para além de – perante os factos já dados por assentes – ser totalmente irrelevante.
10º A recorrente não pode (por força do art. 722º, nº. 2 e 729º, nº. 2, ambos do C.P.C., aqui alicáveis 'ex vi' do art. 1º, nº. 2 do C.P.T.) pretender submeter à apreciação deste S.T.J. os factos que já pelas instâncias foram dados como já definitivamente assentes.
11º O Acórdão recorrido aplicou correctamente a lei, não merecendo qualquer censura, sendo certo também que, muito significativamente, a Ré continua a não apontar uma única disposição legal alegadamente violada pela decisão recorrida.
.................................................................................................' Convidada a especificar as normas jurídicas violadas, a então recorrente supriu a deficiência nos seguintes termos (transcrição parcial):
'Quanto à justa causa o douto acórdão recorrido faz errada aplicação do disposto no artigo 35º nº. 1 alínea a) do Decreto-Lei nº. 64-A/89 de 27 de Fevereiro conjugado com o disposto no nº. 5 do art. 12º, aplicável ex vi do disposto no nº. 4 do mesmo artigo 35º, e ainda com o disposto no artigo 9º do mesmo diploma legal – Conclusões A), E), F), G), J), L), M) e N) das alegações.' A este aditamento respondeu o A . nos seguintes termos (transcrição igualmente parcial):
' Obviamente que a falta de indicação das normas jurídicas violadas não resultou de qualquer pretenso 'esquecimento' da recorrente, mas apenas e tão só da manifesta ausência de violação de qualquer norma jurídica por parte do Acórdão impugnado e, logo, da óbvia dificuldade em proceder à respectiva discriminação... E assim, e desde logo quanto à justa causa de rescisão por parte do trabalhador,
é meridianamente evidente que os pela R. invocados arts. 12º e 9º do Dec-Lei
64-A/89 (e ademais nem são propriamente os artigos deste decreto-lei mas sim os artigos do regime jurídico da cessação do contrato de trabalho aprovado pelo mesmo decreto-lei!...) nada têm que ver com ela, pois respeitam a uma forma de cessação do contrato inteiramente distinta (a do despedimento individual do trabalhador com justa causa disciplinar), sujeita a uma lógica e princípios
(inclusive constitucionais) inteiramente diversos, e designadamente com utilização de técnicas jurídicas completamente díspares ('cláusula geral', seguida de enumeração exemplificativa no caso do despedimento individual, por parte da entidade patronal, com justa causa; enumeração taxativa no caso de rescisão com justa causa por parte do trabalhador). E inexistindo, como é evidente que inexiste, qualquer lacuna, não há sequer que buscar o recurso a qualquer forma de analogia (que aliás sempre inexistiria por manifesta falta de identidade de razões justificativas de um e outro regime).
..................................................................................................' Em conclusão:
'..................................................................................................
2º Os arts. 9º e 12º do Regime Jurídico aprovado pelo Dec-Lei 64-A/89 claramente nenhuma aplicação têm à questão sub judice.
..................................................................................................' No acórdão ora recorrido, o STJ concedeu, parcialmente, a revista, julgando também a acção improcedente na parte em que a Ré fora condenada a pagar ao Autor a quantia de 2.631.320$00 e correspondentes juros, relativa à indemnização de antiguidade. Para tanto, alicerçou-se nos seguintes fundamentos:
'Assim, é inquestionável que foi por acto unilateral do Autor, a denúncia comunicada por carta de 1 de Junho de 1990, que foi posto termo ao contrato; se com justa causa ou sem ela, é questão que apreciaremos a seguir. Começaremos por referenciar o pormenor de a decisão da 1ª instância ter considerado justificada a rescisão do contrato apenas com fundamento no não pagamento do salário do mês de Maio de 1990, pois que, não deixando embora de ponderar os acontecimentos que antecederam a falta de pagamento daquela retribuição, não viu nesse comportamento da Ré fundamento para uma rescisão com justa causa. Portanto, não foi por não ter dado ocupação efectiva ao seu trabalhador que a Ré viu proceder a acção no que toca à justa causa de rescisão, pelo que nessa parte a decisão transitou em julgado, não servindo um tal fundamento para justificar a denúncia e conferir direito à indemnização de antiguidade. Consequentemente, há que limitar nessa medida o que decidiu o acórdão recorrido, que, sem o dizer de forma explícita, deixa entender que a situação de desocupação do trabalhador também caracteriza a justa causa de rescisão.
É fora de dúvida que a Ré não quis pagar ao seu operador de câmara L. D. o vencimento ou salário de Maio de 1990. Não se sabe de quem partiu a ordem de pagamento e quais a razões dela, mas sabemos que a informação dada à delegada sindical (facto exposto sob o nº. 26) não primou nem pela correcção – alguém tratou o Autor de 'gajo' – nem pela verdade, pois que, ao que resulta dos autos, o Autor não 'estava suspenso para despedimento'... Deste modo, não tem qualquer acolhimento a alegada 'determinação de serviços imprecisos, em situação de confusão, lapso e indefinição' para explicar o não pagamento da retribuição; de resto, nem a Ré cuidou de concretizar o que se passou, refugiando-se na vacuidade da 'confusão, lapso e indefinição' relativamente a uma situação pouco compreensível e nada abonatória. Certo é que a Ré, deliberadamente, não pagou ao Autor, no momento em que se venceu, a retribuição referente a Maio de 1990. Assim, deixou de cumprir a obrigação primeira que recai sobre qualquer empregador, pois desnecessário se torna focar o peso da retribuição na economia do contrato de trabalho e a importância que reveste para o trabalhador o recebimento atempado da contrapartida económica da força laboral por si colocada
à disposição da entidade patronal. Daí que à cabeça do elenco dos comportamentos do empregador enumerados como justificativos da rescisão do contrato pelo trabalhador, com invocação de justa causa, se encontre 'a falta culposa do pagamento pontual da retribuição na forma devida' (art. 35º nº. 1 al. a) da L. Desp.). Só que não é o mero facto do não pagamento culposo, na sua objectividade, sem mais, que legítima o trabalhador a pôr termo ao contrato com justa causa e, consequentemente, a haver da entidade patronal 'uma indemnização correspondente a um mês de remuneração de base por cada ano de antiguidade ou fracção' – arts.
36º e 13º nº. 3 da L. Desp.
É que também no domínio da cessação do contrato de trabalho pelo trabalhador, com justa causa, se entende, e correctamente, que é necessário que, para além do comportamento culposo da entidade patronal, 'se verifique a nota característica básica do conceito de justa causa, ou seja, é preciso que o comportamento da entidade empregadora, pela sua gravidade e consequências, torne prática e imediatamente impossível a manutenção da relação de trabalho' (Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, I, pág. 557). Como se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de 13/4/94, in Colect. Jurisprudência, acórdãos do STJ, II – I / 299, exige-se que 'o comportamento da entidade patronal origine uma situação de imediata impossibilidade de manutenção do vínculo contratual, tornando, por parte do trabalhador, inexigível o continuar ligado à empresa a que está vinculado', requisito que, não vindo expressamente referido na lei, 'acha-se subjacente ao conceito de rescisão com justa causa, tal como vem enunciado no nº. 5 do art. 12º do DL 64-A/89, aplicável ex vi do art. 35º, 4'. Há que dizer que o acórdão recorrido perfilhou a orientação exposta, pois considerou que o comportamento da entidade patronal há-de gerar a imediata impossibilidade de subsistência do contrato, tornando inexigível ao trabalhador a manutenção do vínculo laboral, o que teve por demonstrado no caso e com isso caracterizada a justa causa. E este é o ponto chave da questão, que para o recorrente merece solução contrária à que foi dada.' Definido este regime jurídico, o aresto passa a apreciar os factos provados para concluir:
'Daí que concluamos que o comportamento da Ré não revestiu gravidade nem apresentou consequências que tornassem imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, pelo que, não se caracterizando a justa causa de rescisão do contrato, não é devida pela Ré a indemnização de antiguidade reclamada pelo Autor ao abrigo dos arts. 36º e 13º nº. 3 da L. Desp'. Veio então o ora recorrente pedir a aclaração do aresto nos seguintes termos
(transcrição parcial):
1º
'A fls. 8 do referido Acórdão, refere-se que 'se é grave a conduta do R. ao não pagar ao A . o que lhe devia, a verdade é que tal conduta não aparece na sequência de um comportamento caracterizadamente ofensivo do trabalhador que o atingisse na sua dignidade. Ora,
2º Não se consegue discortinar se aquilo que no Acórdão se pretende consagrar é que apenas os comportamentos, por parte da entidade patronal e que sejam
'caracterizadamente ofensivos e atentatórios da dignidade do trabalhador', é que conferem a este o direito a rescindir com justa causa o respectivo contrato de trabalho, dúvida tanto maior quanto a extensão das diferentes alíneas do art.
35º do R.J.C.C.I.T.. Por outro lado,
3º Também se não alcança com clareza qual a relação existente entre aquela supra-citada conclusão e os factos dados como provados no próprio Acórdão, designadamente sob os nºs. 15º e sobretudo 16º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º,
23º, 24º, 25º, 29º, 30º e 31º - com efeito, se a R. , apesar de saber que tal era demasiado custoso para o trabalhador, e ao invés do que lhe declarara, continuou a distribuir-lhe toda a espécie de trabalho (facto 16º); se tal situação se arrastou até ao momento em que lhe exigiram a mais custosa de todas as tarefas e o trabalhador manifestou então a sua indisponibilidade para ela – que implicava também, como é facto público e notório, a condução no mesmo dia durante cerca de 600 Km !? – (facto 17º e 18º); se a R., perante tal atitude do A ., pediu-lhe que entregasse o material a outro colega e a partir daí, e apesar dos protestos do A ., o deixa em situação de 'completa e total inactividade' durante cerca de 2 meses (factos 20º a 24º), das duas, uma, o que muito importa esclarecer:
4º Ou o douto Acórdão não é isto que considera que não chega a 'constituir um comportamento caracterizadamente ofensivo do trabalhador que o atingiu na sua dignidade' e então importará dilucidar o que é na verdade, ou, se por eventual lapso ou qualquer outra razão, se não atentou na consideração daqueles mesmos factos (o que poderá, até, implicar a nulidade do aresto em causa);
5º Ou então verdadeiramente toda aquela factualidade demonstrada foi tida em conta pelo Acórdão para afinal este considerar demonstrado não constituir o referido
'comportamento caracterizadamente ofensivo do trabalhador que o atingiu na sua dignidade' (com cujo esclarecimento o recorrente poderá então decidir da sua reacção processual, v.g., recurso para o Tribunal Pleno, face àquilo que considera a absoluta violação da lei e o arrepio mais completo da orientação da melhor jurisprudência sobre esta matéria, v.g., Ac. Rel. Lisboa de 18/1/95, C. J. 1995, I, 173, e sobretudo Ac. S.T.J. de 12/2/92, in BMJ, 414º-365º).
6º Finalmente, não alcança o recorrente se o entendimento perfilhado no Acórdão em apreço é o de que onde e quando a lei exige a falta culposa do pagamento da retribuição, quando tal falta é dolosa – como aqui sucede, - cfr. factos nºs.
26º e 27º - o trabalhador tem ainda o dever ou, pelo menos, o ónus de se deslocar à entidade patronal (mesmo quando esta, após uma atitude perfeitamente justificada , o mantém na mais completa inactividade há, pelo menos, dois meses) a pedir explicações, e ainda por cima mesmo quando o seu representante sindical já as procurou, e obteve como resposta textual 'Esse gajo está suspenso para despedimento' e 'Houve um lapso, iamos-lhe pagando o ordenado e só o conseguimos caçar à boca da Tesouraria'.
7º E esta dilucidação é tanto mais importante, quanto, se for este o entendimento consagrado – e que o é pela primeira vez nesta 3ª instância – então os arts.
34º, nº. 1, 35º, nº. 1, al. a), b) e c) e nº. 4 do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho, aprovado pelo Dec. Lei 64-A/89, de 27/2, assim interpretados e aplicados (repita-se pela 1ª vez no processo), hão-de Ter-se por manifestamente inconstitucionais, por violação designadamente dos arts. 1º, 2º, 13º, 56º, nº. 1 e 59º, nº. 1, al. a), b) e c),todos da C.R.P., violação essa que, a ser esse o entendimento do Acórdão, fica desde já aqui arguida para todos os devidos e legais efeitos.
8º Nomeadamente porquanto, assim interpretadas e aplicadas, aquelas supra-citadas disposições normativas, obrigariam o trabalhador a suportar um ónus, senão mesmo um dever, e a sujeitar-se a uma situação manifestamente desproporcionada e injustificada, além de ofensiva dos seus mais elementares direitos, para só depois poder validamente rescindir um contrato cuja manutenção em mínimas condições socialmente dignas fora inviabilizada pela conduta dolosa, precisamente da parte económica e socialmente mais forte do contrato de trabalho!' O pedido de aclaração foi indeferido; do acórdão respectivo transcreve-se o seguinte trecho:
'17. É impertinente, portanto, formal e substancialmente a arguição de inconstitucionalidade que o A . deixa registada 'para todos os devidos e legais efeitos'.
18. É-o formalmente porque, de acordo com a jurisprudência firmada do Tribunal Constitucional, 'é pressuposto da admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº. 1 do art. 280º C.R.P. que a inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, e este requisito só pode ter-se por verificado se a inconstitucionalidade houver sido invocada pelo recorrente antes de se esgotar o poder jurisdicional do tribunal a quo'. Recorre então o A . do acórdão de fls. 1242 e segs. para este Tribunal ao abrigo do artigo 70º nº. 1 alínea b) da Lei nº. 28/82. No requerimento de interposição do recurso, disse:
'.............................................................................................................
As disposições que se têm por inconstitucionais são – tal como foram interpretadas e aplicadas no Acórdão recorrido – as dos arts. 34º, nº. 1, 35º, nº. 1, al. a), b) e c), e nº. 4 do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho aprovado pelo Dec-Lei 64-A/89, de 27/2 e os preceitos e princípios constitucionais que se têm por violados são os dos arts. 1º, 2º, 13º,
56º, nº. 1 e 59º, nº. 1, al. a), b) e c), todos da C.R.P. A peça processual em que a referida questão de inconstitucionalidade foi suscitada foi o requerimento apresentado em 18/10/96 contendo o pedido de aclaração do Acórdão do S.T.J. em que, pela primeira vez, se interpretou e aplicou dessa forma inconstitucional as supra-citadas disposições.' Nas alegações que apresentou formula as seguintes conclusões:
'1º Todo o comportamento, reiterado e intencional da Ré, deve ser – como aliás foi correctamente na 1ª e 2ª instâncias – atendido para a compreensão do significado da falta, ostensivamente dolosa, ao pagamento da retribuição devida ao A ..
2º É completamente fantasiosa e claramente 'contra-legem', e também contra a verdade dos factos, a tese do Acórdão recorrido no sentido de que aquele comportamento derivaria de simples 'equívoco', o qual importaria 'esclarecer' por parte do A ..
3º Além de incumbir à R. a prova de que o cumprimento daquela obrigação não decorreu de culpa sua – prova que não fez – o A . demonstrou não apenas a culpa
(mera negligência) mas o dolo (intencionalidade) do comportamento da R..
4º Por outro lado, e como é óbvio, sempre seria sobre a R. que recairiam as consequências dos comportamentos assumidos, no exercício das suas funções, pelos respectivos funcionários, sendo bastante significativa a imagem de completa bandalheira e irresponsabilidade que a R. pretendeu dar de si própria.
5º O A . não incumpriu qualquer dos seus deveres laborais e, ao invés, foi a R. quem incumpriu, grave, grosseira, intencional e reiteradamente os seus.
6º A 'tese' do conceito de justa causa propugnado pela R. nenhum apoio tem no nosso regime legal, para além de – perante os factos já dados por assentes – ser totalmente irrelevante.
7º O conceito legal de justa causa de rescisão por parte do trabalhador é, naturalmente, mais amplo e menos exigente do que o de justa causa de despedimento pela entidade patronal, até por força da garantia no emprego e da proibição dos despedimentos arbitrários, constitucionalmente consagrados no art.
53º, nº. 1 da C.R.P..
8º Interpretados e aplicados assim os arts. 34º e 35º do R.J.C.C.I.T. violam, além daqueles princípios – que naturalmente proibem também os despedimentos arbitrários indirectos – também o próprio princípio da igualdade do art. 13º da C.R.P., pretendendo tratar igualmente aquilo que é substancialmente desigual.
9º Acresce que a solução consagrada no Acórdão do S.T.J. recorrido entra em completa contradição não apenas com a Lei Fundamental mas também com a própria lógica da jurisprudência do próprio S.T.J..
10º Isto, porquanto consagra que a quebra da relação de confiança no trabalhador ou até a simples sobre a idoneidade da sua futura conduta possam justificar o imediato despedimento com justa causa, mas simultaneamente vem pretender que o trabalhador, para não ser apodado de 'repentista' ou mesmo 'radical', teria previamente de cuidar de desfazer pretensos equívocos ou enganos da empresa e de lhe dar sucessivas oportunidades para os corrigir.
11º Tal tese – à luz do entendimento do 'bonus pater familias' colocado na situação concreta do A . (e consistente na factualidade demonstrada nestes autos e já atrás pormenorizadamente descrita), usando de critérios de objectividade e razoabilidade – conduziria a que o trabalhador, depois de toda a série de violações dos seus direitos e da angústia, do 'stress' e do sofrimento de que já fora vítima, se tinha ainda que sujeitar à (continuação de) uma situação absolutamente indigna, vexatória e socialmente inexigível.
12º Depois de ter sido, ao invés do conselho dos próprios serviços médicos da empresa, mantido precisamente no exercício das funções mais custosas e mais difíceis de suportar; depois de Ter sido colocado em situação de total falta de ocupação efectiva; depois de, ao invés das diversas promessas nesse sentido, a R. nunca o ter nem reclassificado devidamente nem colocado a exercer outras funções mais compatíveis com a sua situação; depois de, contrariamente ao que fez relativamente a todos os outros colegas, não lhe ter pago o subsídio de incomodidade, a R. não apenas não pagou, propositadamente, a remuneração de Maio de 1990 ao A . como ainda por cima assumiu essa conduta como uma actuação propositadamente adoptada contra o A . (procurando depois 'justificá-la' com a desordem e desorganização dos seus próprios serviços).
13º Interpretados e aplicados os invocados arts. 34º, nº. 1 e 35º, nº. 1, al. a), b) e c) e nº. 4 do R.J.C.C.I.T., aprovado pelo Dec-Lei 64-A/89 como não qualificando toda essa situação como justa causa de rescisão por parte do A . – como se faz no Acórdão recorrido – eles padecem de óbvia e múltipla inconstitucionalidade,
14º Desde logo pela violação directa do já anteriormente citado art. 53º, nº. 1
(proibição de despedimentos ilegais) e art. 13º (princípio da igualdade), ambos da C.R.P..
15º Como também pela violação dos princípios elementares caracterizadores do nosso País como república soberana baseada na dignidade humana (art. 1º) e como Estado de direito democrático baseado no respeito e na garantia da efectivação dos direitos e liberdades fundamentais, tendo por objectivo a realização da democracia económica, social e cultural (art. 2º).
16º Mas também e finalmente pela violação dos direitos à retribuição do trabalho de forma a garantir uma existência condigna, à organização do trabalho em condições socialmente dignificantes de forma a facultar a realização pessoal, e
à prestação do trabalho em condições de higiene e segurança, consagrados sucessivamente nas al. a), b) e c) do nº. 1 do art. 59º da C.R.P. Termos em que, Deve o presente recurso ser julgado procedente, declarando-se a inconstitucionalidade dos preceitos dos arts. 34º e 35º do R.J.C.C.I.T. aprovado pelo Dec-Lei 64-A/89, da forma como foram interpretados e aplicados no Acórdão recorrido, e ordenando-se, nos termos do art. 80º da Lei nº. 28/82, a baixa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça para que reforme em conformidade a sua decisão, só assim se fazendo Justiça. Em contra-alegações, a recorrida suscitou a questão prévia do não conhecimento do recurso.
2 - As normas contidas nos artigos 34º nº. 1, 35º nºs. 1 alíneas a), b) e c) e 4 do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho, aprovado pelo DL nº. 64-A/89, de 27 de Fevereiro, na interpretação que lhes teria sido dada pelo acórdão recorrido, que, segundo o recorrente, ofendem o disposto nos artigos 1º, 2º, 13º, 56º nº. 1 e 59º nº. 1, alíneas a), b) e c) da CRP, constituem, de acordo com o requerimento de fls. 1267 o objecto do presente recurso. Sustenta a recorrida que o Tribunal não deve conhecer do objecto do recurso pois a inconstitucionalidade das referidas normas não foi suscitada durante o processo em contrário do disposto no artigo 70º nº. 1 alínea b) da Lei nº.
28/82. Alega, para tanto, que a questão de inconstitucionalidade foi apenas suscitada no requerimento de aclaração do acórdão recorrido, o que só seria admissível se a interpretação da norma tivesse sido de tal forma imprevisível e inesperada que, razoavelmente, o interessado a não pudesse antecipar. Ora a questionada interpretação abona-se na doutrina e mostra-se assente na jurisprudência, pelo que não pode qualificar-se de imprevisível ou inesperada. Contrapõe, o recorrente, em síntese, que a interpretação que tornaria inconstitucionais as normas em causa surgiu pela primeira vez no acórdão recorrido, em contrário da jurisprudência conhecida, não tendo ele, vencedor nas duas primeiras instâncias, sequer legitimidade para suscitar em momento anterior a questão de inconstitucionalidade. Há, pois, que decidir a questão prévia levantada pela recorrida. Reconhece o recorrente que a questão de inconstitucionalidade foi por ele suscitada apenas no pedido de aclaração do acórdão recorrido, como de facto assim é. Aceita, também, que o requisito da suscitação da questão de inconstitucionalidade durante o processo, imposto pelos artigos 70º nº. 1 alínea b) da Lei nº. 28/82 e 280º nº. 4 da CRP, se não preenche, em princípio, quando aquela ocorre no pedido de aclaração do acórdão impugnado. Trata-se de uma orientação jurisprudencial pacífica deste Tribunal (cfr., entre muitos outros, o Acórdão nº. 232/94, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional',
27º vol., p.p. 1119 e segs.) fundada no entendimento de que, perspectivado o requisito num sentido funcional, a invocação da inconstitucionalidade tem de ser feita enquanto o tribunal 'a quo' ainda possa conhecer da questão, ou seja antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a questão respeita; sendo o recurso de constitucionalidade um recurso, impõe-se que o tribunal 'a quo' tenha tido oportunidade de se pronunciar, já que o juízo do Tribunal Constitucional incidirá sobre a decisão nele tomada sobre a questão de constitucionalidade. Mas, como vimos, o recorrente argumenta com a circunstância de a decisão recorrida se revestir de um grau de imprevisibilidade que, desde logo justificaria e tornaria admissível a invocação da inconstitucionalidade na fase em que veio a ocorrer. E seria assim se, com efeito, a decisão (ditada por uma certa interpretação das normas) surgisse de modo inesperado, não plausível, caso em que se aceitaria a suscitação da questão de inconstitucionalidade, mesmo e apenas acontecida no requerimento de interposição do recurso – é, também, jurisprudência pacífica deste Tribunal (cfr. entre outros o Acórdão nº. 1124/96, in DR, II Série, de
6/2/97). No caso, porém, não pode dizer-se que foi proferida, no acórdão impugnado, uma decisão-surpresa. Invocara o recorrente, na acção, justa causa na rescisão do contrato de trabalho que mantinha com a entidade patronal ora recorrida. Os factos alegados integrariam o conceito de justa causa, nos termos do artigo
35º nº. 1 alínea a) do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho aprovado pelo DL nº. 64-A/89. Considerando que os factos provados configuravam uma situação de falta culposa de pagamento pontual da retribuição, na forma devida, constituindo justa causa de rescisão do contrato de trabalho pelo trabalhador, o tribunal de 1ª instância julgou a acção procedente. Da sentença recorreu a Ré, com o fundamento, entre outros, de se não verificar justa causa, alegando, nomeadamente, que o A ., ao rescindir, invocando justa causa, uma relação de trabalho com vinte anos de duração, no mês seguinte àquele a que a retribuição se referia, agira com manifesta má-fé e incumprira os deveres acessórios de esclarecimento e lealdade. Foi, porém, negado provimento ao recurso e confirmada a sentença recorrida. No recurso que interpôs do acórdão da Relação para o STJ, a R. defendeu que para haver justa causa para a rescisão do contrato de trabalho pelo trabalhador é necessário que a entidade patronal viole os seus direitos e garantias, designadamente o direito ao salário e à ocupação efectiva, que essa violação seja culposa 'e que assuma gravidade suficiente, ponderadas todas as circunstâncias do caso, para tornar impossível a continuação da relação laboral'
(conclusão 1ª, com sublinhado nosso).
É esta a tese que o acórdão ora recorrido veio a acolher, muito embora tendo aceite que, objectivamente, se verificava uma situação de não pagamento culposo da retribuição devida. Na verdade, depois de confirmar tal situação, escreveu-se no acórdão recorrido:
'Só que não é o mero facto do não pagamento culposo, na sua objectividade, sem mais, que legitima o trabalhador a pôr termo ao contrato com justa causa (...)
É que também no domínio da cessação do contrato de trabalho pelo trabalhador, com justa causa, se entende, e correctamente, que é necessário que, para além do comportamento culposo da entidade patronal, 'se verifique a nota característica básica do conceito de justa causa, ou seja é preciso que o comportamento da entidade empregadora, pela sua gravidade e consequências, torne prática e imediatamente impossível a manutenção da relação de trabalho' Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, I, pág. 557).' E, em seguida, o mesmo acórdão cita, com idêntica orientação, o acórdão do STJ de 13/4/94, publicado na 'Colectânea de Jurisprudência – acórdãos do STJ', II-I/299. Em bom rigor e como o acórdão recorrido o assinala, esta orientação não deixa de ser também a do acórdão da Relação de Lisboa então impugnado (embora com diferente valoração dos factos), como se retira do seguinte trecho:
'Daí que a Ré não se possa queixar do acto rescisório do Autor, porque o não pagamento atempado do salário, aliado a todo o seu comportamento para com ele, sem dúvida que gerou uma imediata impossibilidade de subsistência do contrato, não sendo exigível ao trabalhador que continuasse ligado à empresa na situação em que se encontrava'. (sublinhado nosso)
Ora é esta interpretação dos preceitos aplicáveis – com a adopção de um conceito unificado de 'justa causa' quer para o despedimento do trabalhador, quer para a rescisão do contrato de trabalho pelo trabalhador, no sentido de que
é sempre necessário verificar-se uma impossibilidade de subsistência do contrato de trabalhador – que, para o ora recorrente, conduz à inconstitucionalidade das normas apontadas.
E não se trata de uma decisão-surpresa.
Demonstra-o o próprio acórdão recorrido com a citação de doutrina e jurisprudência no mesmo sentido, o que desde logo não configura uma situação excepcional, em que se torna inexigível a suscitação da questão de inconstitucionalidade durante o processo; não foi insólita ou anómala a interpretação feita no aresto, devendo o recorrente ter previsto, num juízo de prognose relativo à aplicação das normas em causa, a linha interpretativa que veio a ser seguida.
Aliás, tendo essa interpretação sido já judicialmente adoptada (para além do acórdão citado no acórdão recorrido, cfr. Ac. do STJ de 12/1/94 in
'Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo', nº. 389, p.p. 601 e segs.), aquele juízo era tanto mais exigível quanto a então recorrente, nas suas alegações para o STJ, a sustentava como fundamento da alteração do julgado recorrido.
Invoca, porém e ainda, o recorrente a sua posição de parte vencedora em 1ª e 2ª instância, o que lhe retiraria legitimidade para suscitar a questão de inconstitucionalidade.
Mas sem razão.
Não está aqui em causa a legitimidade para recorrer, onde se justificaria o argumento que o recorrente extrai do vencimento que alcançou com as decisões daquelas instâncias, mas a oportunidade de suscitação da questão de inconstitucionalidade durante o processo, de modo a permitir que o tribunal de recurso se pronunciasse sobre a constitucionalidade das normas aplicáveis, com uma interpretação que se prefigura como plausível.
E essa oportunidade ofereceu-se nas contra-alegações que o então recorrido apresentou no recurso para o STJ, onde desenvolveu argumentação contrária àquela em que a recorrente fundava a sua pretensão de revogação do acórdão da relação; e nem sequer se pode censurar, nestas circunstâncias, a imposição de um ónus de suscitação de inconstitucionalidade, já que ela se reportava a uma interpretação normativa que – repete-se – integrava um dos principais fundamentos da então recorrente para a revogação do acórdão impugnado.
Neste sentido, em caso semelhante, cfr. Acórdão nº. 182/95, publicado in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 30º vol., p.p. 905 e segs.
Procede, pois, a questão prévia suscitada pela recorrida.
3 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pelo recorrente. Taxa de justiça: 8 Ucs. Lisboa, 15 de Dezembro de 1998 Artur Maurício Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa