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Proc. nº 17/97 
 2ª Secção Relator: Cons.º Luís Nunes de Almeida 
 Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: 
 I - RELATÓRIO 
 
 1. Por despacho de 14 de Maio de 1996 o Juiz do Tribunal Judicial de Coimbra rejeitou a acusação particular deduzida pela assistente M. M., e determinou o arquivamento dos autos. 
 Inconformada, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo como fundamento «a apreciação da conformidade constitucional do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 311º do Código de Processo Penal , tal como o M.mo Juiz a quo interpretou o referido normativo, ou seja, à luz da doutrina do Acórdão para fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/93, de 17 de Fevereiro de 1993». 
 Na sua resposta, bem como no seu parecer na Relação, o Ministério Público pronunciou-se pela não inconstitucionalidade da norma em causa e consequente não provimento do recurso. 
 
 2. Por acórdão de 4 de Dezembro de 1996, o Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento ao recurso. 
 É dessa decisão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, «ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 2 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro», para apreciação da «constitucionalidade da norma da alínea a) do nº 2 do artigo 311º do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação que lhe foi dada pelo Acórdão para fixação de jurisprudência nº 
 4/93, de 17 de Fevereiro de 1993, do Supremo Tribunal de Justiça». 
 Já neste Tribunal, a recorrente concluiu as suas alegações pela forma seguinte: 
 1. Nos termos do nº 5 do artigo 32º da Constituição da República, o processo penal português tem 'estrutura acusatória'. 
 [...] 
 3. Os momentos fundantes de um processo penal de estrutura acusatória consistem, por um lado, no reconhecimento sem reservas da distinção material entre o órgão que investiga e o que julga, e, por outro, no reconhecimento da participação constitutiva e tendencialmente igualitária do ministério público e do arguido na declaração do direito. 
 Posto isto, 
 4. Parece poder afirmar-se, sem resto, que a interpretação sufragada pelo M.mo Juiz a quo do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 311º do Código de Processo Penal – aquela consagrada nos presentes autos – segundo a qual o juiz pode controlar a suficiência dos indícios resultantes do inquérito, após a dedução de acusação pelo sujeito processual legitimado para o efeito e fazer um juízo sobre tal suficiência coenvolve violação do disposto no nº 5 do artigo 32º da Constituição da República. 
 5. Do mesmo juízo de inconstitucionalidade sendo credor o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para fixação de jurisprudência nº 4/93, de 17 de Fevereiro de 1993. 
 Nas suas contra-alegações, o Ministério Público concluiu que a norma em causa, «na interpretação que lhe foi dada pelo acórdão para uniformização de jurisprudência nº 4/93, de 17 de Fevereiro de 1993, do Supremo Tribunal de Justiça, não viola a estrutura acusatória do processo criminal, consagrada no nº 
 5 do artigo 32º da Constituição». 
 Corridos os vistos legais, cumpre decidir. 
 II – FUNDAMENTOS 
 
 3. A norma cuja inconstitucionalidade a recorrente pretende ver apreciada é a constante da alínea a) do nº 2 do artigo 311º do Código de Processo Penal de 1987, com o seguinte teor: Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; 
     (...) 
 A recorrente entende que «a mera possibilidade de o Juiz não aceitar a acusação, baseando-se, para o efeito, nos dados constantes do inquérito, coenvolve necessariamente a possibilidade da formação de pré-juízos, ou pré-conceitos,» o que teria como consequência a inconstitucionalidade da norma 
 «por acarretar consigo o perigo concreto de o próprio Juiz do julgamento ter formado já uma convicção com base na consulta do inquérito [...] tomando conhecimento de provas de que lhe está ou pode estar vedado conhecer, como resulta do disposto no artigo 356º do diploma penal adjectivo». Ou seja, «os poderes que a lei confere ao Juiz em sede da alínea a) do nº 2 do artigo 311º do Código de Processo Penal restringem-se à matéria de direito [...], decorrência necessária dos corolários componentes do axioma 'processo criminal de estrutura acusatória'». 
 A questão de inconstitucionalidade suscitada pela recorrente é, pois, a da violação da estrutura acusatória do processo penal – artigo 32º, nº 
 5, da CRP – na medida em que a norma constante da alínea a) do nº 2 do artigo 
 311º do CPP permite ao juiz do julgamento a apreciação das provas indiciárias para efeitos de rejeição da acusação com fundamento na manifesta insuficiência daquelas provas. Entende a recorrente que tal rejeição apenas pode ter por fundamento matéria de direito. 
 Esta questão da eventual violação do princípio do acusatório recorta-se em dois aspectos: 
 a) a possibilidade de rejeição da acusação; 
 b) a competência do juiz de julgamento para rejeitar a acusação. 
 
 4. Quanto ao primeiro aspecto, é evidente que não se descortina qualquer violação da estrutura acusatória do processo penal, consagrada no número 5 do artigo 32º da Constituição. Este princípio «significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um 
 órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento», nas palavras de J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, págs. 205-206, que acrescentam ainda: 
 Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. 
 A «densificação» semântica da estrutura acusatória faz-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânico-subjectiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjectivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador. 
 Não decorre deste princípio, ao contrário do que entende a recorrente, a obrigatoriedade da submissão a julgamento daquele que é acusado, ou seja, a obrigatoriedade da aceitação da acusação pelo juiz do julgamento, em qualquer caso. 
 Pelo contrário, tal mecanismo de rejeição liminar da acusação, quando esta se mostre manifestamente infundada, insere-se nas garantias de defesa do arguido, consagradas no nº 1 do artigo 32º da Constituição 
 (nomeadamente a de não sujeitar o arguido a julgamento quando não se verifiquem indícios suficientes para consistirem numa razoável convicção de que tenha praticado o crime). E não se compreende que devessem estas garantias de defesa ceder perante o interesse particular e individualizado do assistente em acusar, em qualquer caso. 
 Continuando a citar J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., 
 «o princípio da acusação não dispensa, antes exige, o controlo judicial da acusação de modo a evitar acusações gratuitas, manifestamente inconsistentes, visto que a sujeição a julgamento penal é, já de si, um incómodo muitas vezes oneroso e não raras vezes em vexame. Logicamente, o princípio acusatório impõe a separação entre o juiz que controla a acusação e o juiz de julgamento». 
 O que se consagra, assim, na norma em causa, é, pois, esse controlo judicial da acusação, e não o contrário. 
 
 5. Quanto ao segundo aspecto, também decorrente da estrutura acusatória do processo penal, ou seja, a separação entre o juiz de instrução e o juiz de julgamento, entende a recorrente que tal separação resulta violada pelo facto de o juiz de julgamento efectuar uma apreciação daqueles elementos probatórios recolhidos no inquérito, assim formando a sua convicção antes do julgamento, «tomando conhecimento de provas de que lhe está ou pode estar vedado conhecer, como resulta do disposto no artº 356º do CPP». 
 Ora, a recorrente está assim a «transpor» para a posição do assistente em processo penal aquela do arguido, com os respectivos mecanismos e processos de garantias de defesa já referidos. Mas o que está em causa não é a posição do arguido, e sim a da assistente que pretende deduzir acusação e submeter o arguido a julgamento. 
 Esta questão da eventual valoração das provas recolhidas no inquérito só poderia relevar para efeitos da defesa e protecção do arguido, no caso de submissão deste a julgamento, para garantir que o espírito do julgador se não encontrasse eivado de convicções ou pré-julgamentos. Ora, independentemente da resposta a dar a tal questão, ela não é susceptível de ser 
 «transportada» para o lado do assistente, ainda que enquanto eventual ofendido, para lhe ver, destarte, reconhecido um direito a prosseguir com a acusação em qualquer circunstância, ou seja, - e ao contrário do que resulta e é exigido pelo princípio do acusatório -, um «direito» a não ver a «sua acusação» sujeita ao respectivo controlo judicial. III – DECISÃO 
 
 6. Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no tocante ao nela decidido quanto ao julgamento da questão de inconstitucionalidade. Lisboa, 15 de Dezembro de 1998 Luis Nunes de Almeida Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Beleza José Manuel Cardoso da Costa