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Procº nº537/98
1ª Secção Consº Vítor Nunes de Almeida
Acordam no Tribunal Constitucional:
1. - A ASSOCIAÇÃO DE BENEFICÊNCIA DO HOSPITAL k... interpôs recurso do acórdão proferido pelo Tribunal Superior de Justiça de Macau que aplicou a norma do artigo 2º, nº1, da Lei nº 2/94/M, na interpretação que sustenta a não usucapibilidade do domínio útil de terrenos cuja área de logradouro exceda em mais de dez por cento a área ocupada por edifícios nele incorporados.
Com tal recurso para o Tribunal Constitucional, interposto ao abrigo da alínea b) do nº1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendia a entidade recorrente fazer apreciar a constitucionalidade da interpretação que foi feita da referida norma na decisão recorrida.
Tal recurso foi indeferido por se ter entendido que a questão de constitucionalidade não ter sido suscitada no decurso do processo, nos termos legalmente exigidos e também por que não 'se verifica qualquer das situações excepcionais em que o recorrente tenha sido surpreendido por uma interpretação normativa imprevista, pois que constitui jurisprudência constante deste T.S.J. a interpretação que no acórdão invocado foi dada ao artigo 2º, nº1, da Lei nº 2/94/M, de 04 de Julho, e que o recorrente bem conhece.'
2. - É deste despacho que o recorrente reclama, alegando que suscitou a questão de constitucionalidade nas contra-alegações apresentadas no âmbito do recurso de apelação, pelo que se tem de considerar que a questão foi suscitada durante o processo com o sentido que o Tribunal Constitucional tem atribuído a tal expressão. O reclamante concluiu assim o pedido de reclamação:
'1. A exigência, constitucional e legalmente consagrada como pressuposto processual, de que o incidente de constitucionalidade seja suscitado 'no decurso do processo', quando sujeita a uma interpretação estritamente literal, reporta-se a um qualquer momento pregresso dos autos tal como os mesmos forem definidos na respectiva e pertinente regulação processual formal e substantiva.
1. Nos termos do Código de Processo Civil Português em vigor no Território de Macau, as Alegações em recurso de Apelação precedem, necessariamente, a elaboração de Acórdão no mesmo recurso, donde se deverá concluir que, desde logo em esta restrita perspectiva, o incidente in casu suscitado o foi tempestivamente.
1. Quando, numa leitura teleológico-sistemática da norma da alínea b) do nº1 do artigo 280º da Constituição da República Portuguesa, se conclui - em conjugação com o disposto no nº4 daquele mesmo artigo - que por 'no decurso do processo' se deve entender 'até ser produzida a decisão final', ou, em outros termos, a tempo de que o juiz dos autos sobre tal incidente se pronuncie, a conclusão a extrair, no presente caso, é a mesma. Aliás,
1. O Tribunal Superior de Justiça de Macau não só teve a possibilidade de se pronunciar sobre o incidente de inconstitucionalidade como, mais do que isso, efectivamente o fez, produzindo uma decisão negativa de inconstitucionalidade. Daqui resulta que o despacho de não aceitação do recurso para o Tribunal Constitucional, para além de constituir uma violação da Constituição da República e da LOFPTC, denota ainda um autêntico 'venire contra factum proprium' processual.
1. Não são pertinentes quaisquer especulações tendo por objecto um qualquer
'efeito surpresa' que a decisão do Tribunal Superior de Justiça de Macau houvesse podido produzir na parte recorrente, pelo simples facto de que o incidente é efectivamente suscitado antes da elaboração do Acórdão.
2. O facto de que a posição que fez vencimento no Acórdão recorrido represente jurisprudência uniforme do mesmo Tribunal Superior de Justiça de Macau é absolutamente irrelevante para a definição da tempestividade do incidente suscitado: tal jurisprudência nem sequer está constituída em Assento contra o qual as partes nos Autos pudessem - ou devessem - desde o curso dos autos em Primeira Instância, deduzir oposição por inconstitucionalidade.'
O representante do Ministério Público teve vista dos autos e aí exarou o seguinte parecer:
'Tem de considerar-se suscitada 'durante o processo' a questão de inconstitucionalidade normativa levantada pelo A. nas contra-alegações produzidas em recurso de apelação, interposto pelo R. da decisão que, na 1ª instância, fora favorável àquele: na verdade, tal questão, deduzida naquela peça processual, deve considerar-se suscitada de modo tempestivo e processualmente adequado, perante a ordem judicial civil em que se insere o Tribunal que proferiu a decisão recorrida - o qual tinha, aliás, o dever de se pronunciar (e pronunciou-se efectivamente) sobre tal questão de constitucionalidade. Afigura-se, por outro lado, que a questão da inconstitucionalidade de certa interpretação ou dimensão normativa do preceito a que vem o recurso de constitucionalidade interposto - o nº1 do artigo 2º da Lei nº 2/94/M, entendido como prescrevendo a impossibilidade de restringir a área do logradouro respectivo a 10% da área total, com vista a fazer funcionar a usucapião -está suscitada, de modo adequado e satisfatório, naquela peça processual, a fls. 119 e segs. Nestes termos, o único obstáculo à admissão do recurso poderia fundar-se na sua qualificação como 'manifestamente infundado' (cf. as alegações produzidas no p.267/97, 1ª secção). Sucede, porém, que - como este Tribunal vem reiteradamente entendendo - não é possível, em sede de reclamação, convolar do motivo que ditou a não admissão do recurso no tribunal «a quo» para a sua evidente improcedência, antecipando um juízo liminar sobre o respectivo mérito. Deste modo - e por se verificarem os pressupostos de admissibilidade do recurso interposto - somos de parecer que deverá ser deferida a presente reclamação.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
3. - O único fundamento para a não admissão do recurso interposto pela Associação de Beneficência do Hospital K... foi ter-se entendido que a questão de constitucionalidade não fora suscitada durante o processo, pelo que se não podia conhecer do recurso.
Importa verificar se está correcta tal fundamentação.
O recurso em causa foi interposto ao abrigo do preceituado no artigo 70º, nº1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional. De acordo com esta norma - que reproduz o artigo 280º, nº1, alínea b) da Constituição - constituem pressupostos de admissibilidade de tal tipo de recurso, o dever ter sido suscitada durante o processo, pelo recorrente, a inconstitucionalidade de dada norma e de esta norma ter sido aplicada na decisão recorrida como seu fundamento normativo.
Este Tribunal, em jurisprudência reiterada e uniforme, vem entendendo que a locução 'durante o processo' deve ser tomada não num sentido puramente formal - que tornaria possível a suscitação até à extinção da instância - mas com um sentido funcional, de modo que o tribunal recorrido possa ainda conhecer da questão enquanto se não tiver esgotado o seu poder jurisdicional, o que, em princípio ocorre com a prolação da sentença. De facto, na medida em que se está perante um recurso para o Tribunal Constitucional, pressupõe-se a existência de uma decisão anterior do tribunal «a quo» sobre a questão de constitucionalidade que é objecto do recurso.
Esgotando-se o poder jurisdicional com a prolação da sentença ou acórdão e não constituindo a eventual aplicação de norma inconstitucional um erro material nem sendo causa de nulidade da decisão judicial nem a tornando obscura ou ambígua, tem de entender-se que a aclaração da decisão judicial ou a arguição da sua nulidade não são já, por via de regra, momentos idóneos e atempados para suscitar a questão de constitucionalidade (cfr.,por todos, os acórdãos nºs 61/92, 152/93,261/94, 164/95, 1124/96,125/97 e 305/97,estes dois
últimos ainda inéditos e os restantes publicados no 'Diário da República', IIª Série, de 18 de Agosto de 1992,16 de Março de 1993, 26 de Julho de 1994,29 de Dezembro de 1995 e 6 de Fevereiro de 1997, respectivamente).
É certo que o Tribunal vem entendendo que existem casos em que é legítima a dispensa de oportuna suscitação da questão de constitucionalidade, mas, em princípio, tal só é aceitável naqueles casos em que a interpretação dos preceitos acolhidos na decisão recorrida, ou a sua aplicação, forem de tal forma insólitas ou inesperadas que não se considere razoável que o interessado as previsse. Nestes casos, o ónus que recai sobre as partes de considerarem as várias hipóteses interpretativas das normas susceptíveis de serem aplicadas cessa (cfr. o acórdão nº370/94, in 'Diário da República', IIª Série, de 7 de Setembro de 1994).
4. - No caso em apreço, o Tribunal de Competência Genérica de Macau decidiu julgar procedente a acção declarativa com processo ordinário intentada pela Associação de Beneficência do Hospital K.. contra o Ministério Público e interessados incertos. Não se tendo conformado com o assim decidido, o Ministério Público interpôs recurso desta decisão.
Nas contra-alegações da entidade recorrida suscitou esta a questão da constitucionalidade da interpretação da norma do nº1 do artigo 2º da Lei nº 2/94/M, de 4 de Julho defendida pelo Ministério Público, questão tratada no ponto III dessas alegações e levada às respectivas conclusões nos nºs
1 a 4 da alínea A) dessas conclusões.
E, sobre esta matéria, o acórdão do Tribunal Superior de Justiça de Macau acabou por tomar posição ao escrever: 'No que respeita às inconstitucionalidades que o apelado invoca assentes quer no princípio da igualdade (artº13º da C.R.P.), quer no direito à propriedade privada (artº 62º, nº1, do mesmo diploma), é mais do que óbvio que se não quadram ao presente caso'.
Importa, por conseguinte, averiguar se tem ou não de considerar-se verificado o requisito da suscitação durante o processo, pois que não se levantaram dúvidas quanto ao da aplicação da norma questionada.
5. - De acordo com o entendimento funcional que o Tribunal Constitucional tem uniformemente defendido para a expressão «durante o processo» é manifesto que a suscitação da questão de constitucionalidade nas contra-alegações de recurso para o tribunal «ad quem» tem de considerar-se como tendo sido feita atempadamente e 'durante o processo'.
Como se referiu, a finalidade do requisito é o de que o Tribunal «ad quem» se pronuncie sobre a questão atempadamente suscitada, para que o recurso de constitucionalidade seja uma verdadeira reapreciação da questão.
As contra-alegações, em processo ordinário de declaração são parte integrante do conjunto complexo de actos em que se consubstancia o recurso de uma decisão, com vista à obtenção de uma reapreciação do decidido por outro tribunal, de tal forma que este tribunal deve apreciar as questões que sejam suscitadas pelas partes naquelas peças. De facto, o «processo» , na formulação de Gomes Canotilho, tem de ser entendido como 'o complexo de actos juridicamente ordenado de tratamento e obtenção de informação que se estrutura e desenvolve soba responsabilidade de titulares de poderes públicos e serve para a preparação de tomada de decisões' (in 'Tópicos de um Curso de Mestrado Sobre Direitos Fundamentais, Procedimento, Processo e Organização', BFDC, Coimbra; Vol. LXVI, Pág. 163).
As alegações e contra-alegações integram, assim, uma fase do procedimento de recurso, com a finalidade de tomada de uma decisão de natureza jurisdicional, pelo tribunal competente.
Assim sendo, a questão de constitucionalidade suscitada nas contra-alegações foi levantada tempestivamente por forma adequada, não se vislumbrando fundamentos para a recusa de admissão do recurso para o seu conhecimento pelo Tribunal especificamente competente para tal efeito.
Nestes termos, a reclamação apresentada pela Associação de Beneficência do Hospital K..., para admissão do recurso levantado para apreciação da constitucionalidade da norma do nº1 do artigo 2º da Lei nº 2/94/M, de 4 de Julho, na interpretação que sustenta a não usucapibilidade de domínio
útil de terrenos cuja área de logradouro exceda em mais de 10% a área ocupada por edifícios nele incorporados, tem de ser deferida.
6. - Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide deferir a presente reclamação Lisboa, 16 de Dezembro de 1998 Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa