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Processo n.º 873/08
 
 3ª Secção
 Relator: Conselheiro Vítor Gomes
 
 
 
             Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
 
  
 I - Relatório
 
  
 
 1. Por acórdão de 16 de Setembro de 2008, o Supremo Tribunal Administrativo 
 
 (Secção do Contencioso Tributário), concedendo provimento a recurso interposto 
 por A. Ld.ª, anulou uma impugnação de IVA, com a seguinte fundamentação (na 
 parte que agora releva):
 
  
 
 “Assim, abordar-se-á, de seguida, a questão da inconstitucionalidade. 
 A Circular n.º 19/89 da DGCI Disponível em 
 http://www.dgci.minfinancas.pt/NR/rdonlyres/OF22FB57-lADD-4D699DE3-951458B11A08/O/circular 
 
 19 de 18-12-1989 direccao de serviços do iva.pdf), na parte que interessa para a 
 apreciação do presente recurso jurisdicional, estabelece o seguinte: 
 Conceito de “pequeno valor” e de limite máximo a considerar 
 
 3. Para a conceituação do “pequeno valor” a aplicar às ofertas, que não às 
 amostras, considerar-se-á tal valor como não podendo ultrapassar unitariamente o 
 montante de 3.000$00 (IVA excluído), considerando-se ainda, em termos globais, 
 que o valor anual de tais ofertas não poderá exceder 5%0 (cinco por mil) do 
 volume de negócios, com referência ao ano anterior, sem qualquer limite em 
 termos de valores absolutos. No caso de início de actividade, a permilagem 
 referida aplicar-se-á aos valores esperados, sem prejuízo de rectificação a 
 efectuar na última declaração periódica a apresentar no ano de início, se os 
 valores definitivos forem inferiores aos valores esperados. 
 No caso em apreço, o que está em causa é a constitucionalidade da fixação do 
 valor anual de 5%0 (cinco por mil) do volume de negócios, com referência ao ano 
 anterior. 
 O art. 3.º, n.º 3, e alínea f), do C.I.V.A. estabelece o seguinte: 
 
 3 - Consideram-se ainda transmissões de bens, nos termos do n.º 1 deste artigo: 
 f) Ressalvado o disposto no artigo 25.º, a afectação permanente de bens da 
 empresa, a uso próprio do seu titular, do pessoal, ou em geral a fins alheios à 
 mesma, bem como a sua transmissão gratuita, quando, relativamente a esses bens 
 ou aos elementos que os constituem, tenha havido dedução total ou parcial do 
 imposto. 
 Excluem-se do regime estabelecido por esta alínea as amostras e as ofertas de 
 pequeno valor, em conformidade com os usos comerciais; 
 Esta parte final da alínea f) contém um conceito indeterminado ao fazer 
 referência a «ofertas de pequeno valor, em conformidade com os usos comerciais». 
 
 
 A referência à conformidade com os usos comerciais aponta no sentido de se ter 
 pretendido que o valor das ofertas relevante para preenchimento do conceito de 
 
 «oferta de pequeno valor» fosse determinado não em função de um valor objectivo, 
 mas sim tendo em atenção, relativamente a cada tipo de actividade comercial, a 
 prática corrente em matéria de ofertas. 
 Por outro lado, não havendo qualquer razão para crer (nem sendo alegado nem 
 demonstrado) que em relação a todas as actividades comerciais os usos sejam no 
 sentido de não ser excedido o valor de 5%o do volume de negócios do ano anterior 
 não se encontra qualquer suporte no texto daquela alínea f) para a fixação de 
 tal limite. 
 Aliás, como resulta da matéria de facto, a Impugnante repetidamente vem 
 excedendo o limite referido, mesmo depois de lhe ser imposto o pagamento de IVA 
 na parte excedente, pelo que se indicia que a prática comercial no seu ramo de 
 actividade seja no sentido de efectuar ofertas em valor superior àquele limite, 
 o que, a ser assim, constituirá um «uso comercial» a atender. 
 Por outro lado, nesta matéria, não há qualquer disposição que permita à 
 administração tributária fixar «limites razoáveis», ao contrário do que sucede 
 em matéria de IRC, com as taxas de reintegração e amortização (art. 30.º, n.º 2, 
 do CIRC) E com repartição de custos para efeitos de determinação do lucro 
 tributável imputável a estabelecimento estável de sociedades e outras entidades 
 não residentes (art. 50.º, n.º 2, do CIRC). ( ( ) O Plano Oficial de 
 Contabilidade também não contém qualquer indicação nesse sentido, nomeadamente 
 relacionada com os «Artigos para ofertas»). 
 Assim, é de concluir que a referida Circular n.º 19/89, no ponto em apreço, é 
 material e organicamente inconstitucional, pois contém uma regra de incidência 
 objectiva de IVA que não foi criada por diploma emanado da Assembleia da 
 República, em matéria que se insere na reserva relativa de competência 
 legislativa da desta (arts. 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP, na 
 redacção vidente, a que correspondem os arts. 106.º, n.º 2, e 168.º, n.º 1, 
 alínea i), respectivamente, nas redacções de 1982 e 1989. 
 Consequentemente, a liquidação de IVA impugnada enferma de vício de violação de 
 lei, que justifica a sua anulação (art. 135.º do CPA). 
 Justificando-se a anulação da liquidação impugnada por vício que impede a 
 renovação do acto, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões 
 colocadas no presente recurso jurisdicional.” 
 
             2. O Ministério Público interpôs recurso deste acórdão para o 
 Tribunal Constitucional, com invocação dos artigos 280.º n.º 1 alínea a) da 
 Constituição da República, 70.º, n.º 1, alínea a), 71.º, n.º 1 e 72.º n.ºs 1 
 alínea a) e 3, 78.º, n.º 4 e 79.º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na 
 redacção da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, “por, no mesmo, se ter recusado a 
 aplicação da norma de incidência tributária constante da Circular n.º 18/89, de 
 
 18/12/1989, da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos”.
 
  
 
             3. Prosseguindo o recurso, o Ministério Público alegou, tendo 
 sustentado as seguintes conclusões:
 
  
 
 “1.º
 Não pode inferir-se dos princípios da legalidade e da tipicidade, contidos no 
 princípio constitucional da reserva de lei fiscal, que esteja absolutamente 
 proscrita a utilização, pelas normas delimitadoras da incidência dos impostos, 
 de conceitos indeterminados, estando, em absoluto, vedada qualquer margem de 
 apreciação subjectiva pela Administração Fiscal, na fase de liquidação e 
 apuramento da matéria colectável, a qual teria de decorrer, de forma plena e 
 automática, da própria lei. 
 
 2.º
 A norma constante do artigo 3.º, n.º 3, alínea f) do CIVA ao excluir do regime 
 de “transmissões de bens” as amostras e ofertas de pequeno valor, feitas em 
 conformidade com os usos comerciais – cometendo naturalmente à Administração 
 Fiscal a densificação e concretização dos conceitos indeterminados de que o 
 legislador se socorreu – não representa a outorga à administração de um poder 
 constitutivo e discricionário de determinação da matéria colectável, não 
 afrontando, consequentemente, o princípio da reserva de lei fiscal. 
 
 3.º
 Não viola qualquer princípio constitucional a norma regulamentar, constante da 
 circular n.º 19/89, que – sem vincular naturalmente os tribunais – estabelece um 
 critério interpretativo geral, a seguir pela Administração Fiscal na 
 concretização do conceito de oferta de “pequeno valor”, funcionando como 
 critério de decisão na definição do sentido objectivo emergente da norma fiscal, 
 de modo a obstar a uma inconveniente dispersão e subjectividade dos critérios 
 adoptados pelos funcionários daquela Administração. 
 
 4.º
 Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com o juízo de 
 não inconstitucionalidade da norma que integra o objecto do presente recurso.” 
 
  
 
  
 
             4. A recorrida A. Ldª contra-alegou e concluiu nos termos seguintes:
 
  
 
 “III. CONCLUSÕES 
 A. QUESTÃO PRÉVIA: DA INEXISTÉNCIA DE FUNDAMENTO DO RECURSO: 
 
 1. O artigo 72.º, n.º 3 da LTC invocado pelo Ministério Público para a 
 interposição do presente recurso não é fundamento do mesmo, já que se baseia na 
 inconstitucionalidade da Circular 19/89; 
 
 2. As Circulares não se subsumem a nenhuma das hipóteses previstas no artigo 
 
 72.º, n.º 3 da LTC, pois não se trata de convenção internacional, acto 
 legislativo ou decreto regulamentar; 
 
 3. As Circulares são normas internas e que vinculam apenas os órgãos 
 hierarquicamente inferiores ao órgão autor dos mesmos, pelo que, sendo o 
 Ministério Público uma entidade autónoma, não há qualquer espécie de hierarquia 
 face à Administração Fiscal e, consequentemente, não está obrigado à obediência 
 da Circular 19/89; 
 
 4. Não há nenhum princípio da constitucionalidade das Circulares que imponha o 
 dever do Ministério Público proteger a sua aplicação em cumprimento do seu papel 
 fiscalizador autónomo, pelo que está patente a falta de interesse em agir do 
 Recorrente, visto que a Douta decisão recorrida não afecta o interesse do 
 Recorrente, interesse que é constitucional e organicamente delimitado; 
 
 5. Uma vez que o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais separa as 
 funções do Ministério Público apenas à promoção e defesa da legalidade fiscal da 
 representação da Fazenda Pública, se interesse em agir houvesse este seria da 
 Fazenda Pública, como parte do processo, na defesa dos seus interesses, de como 
 que o Recorrente é, ainda, parte ilegítima para recorrer; 
 
 6. Admitindo, contudo, à cautela e por mero dever legal de prudente patrocínio 
 que o Ministério Público se equivocou na qualificação do recurso, que, ao invés 
 de afigurar-se como obrigatório, é, na verdade, facultativo, ainda assim não 
 deverá ser o mesmo conhecido, pois não obedece aos respectivos pressupostos; 
 
 7. O recurso não indica de forma clara quais as normas cuja questão de 
 constitucionalidade pretende submeter, tão pouco se mostra útil, na medida em 
 que o fundamento do Douto Acórdão recorrido, antes, a ilegalidade da Circular 
 
 19/89, XIII, por violação do disposto no artigo 8.º, n.º 1 da LGT e artigo 3.º, 
 n.º 3, alínea f) Código do IVA o qual pretendeu regular, é ilegal, pela 
 regulação ilegítima que faz da incidência do imposto, pela abusiva transposição 
 de Directiva Comunitária e pela respectiva imposição com eficácia externa 
 vinculativa aos contribuintes, motivo que por si só sustenta a referida decisão; 
 
 
 
 8. Assim, o recurso não deve ser admitido por falta de pressuposto processual, 
 interesse em agir e ilegitimidade da parte, com a sua extinção sem julgamento de 
 mérito, nos termos do artigo 78.º-A da LTC. 
 DA EFECTIVA INCONSTITUCIONALIDADE DA CIRCULAR 19/89: 
 
 9. O Código do IVA, no seu artigo 3.º, n.º 3, alínea f) in fino, dispõe que se 
 encontram excluídas do regime daquela alínea as amostras e as ofertas de pequeno 
 valor, em conformidade com os usos comerciais; 
 
 10. A incidência do imposto tem de ser regulada por Lei ou por Decreto-Lei 
 autorizado. 
 
 11. A Circular 19/89, ao limitar a norma de incidência negativa prevista na 
 alínea f) in fino, do n.º 3, do artigo 3.º do Código do IVA, é inconstitucional 
 por violação do disposto nos artigo 165.º, n.º 1, alínea i) e no artigo 103.º, 
 n.º 2, da CRP, ferindo o princípio da separação dos poderes; 
 
 12. A Administração Fiscal usurpou as funções do legislador; 
 
 13. A Circular 19/89, ao fixar valores e critérios acima dos quais se verifica a 
 incidência do imposto, está, na medida em que é aplicada com eficácia externa, 
 aquando das liquidações correctivas do imposto a quem não aja de acordo com a 
 mesma, em desconformidade com a Lei. 
 
 14. A ora Recorrida está tão-somente adstrita ao cumprimento da Lei, pelo que 
 não está obrigada a obedecer aos critérios administrativos de orientação 
 genérica para os serviços, com eficácia meramente interna para estes, que, para 
 mais, a afectam grandemente no desenvolvimento da sua actividade comercial; 
 
 15. A Circular 19/89, de 18 de Dezembro é inconstitucional, do ponto de vista 
 formal, por violação do princípio da legalidade, previsto nos artigos 165.º, n.º 
 
 1, alínea i), e 103.º, n.º 2 da CRP e, também, no artigo 8.º, n.º 1 da LGT; 
 
 16. E, do ponto de vista material, por violação do princípio da igualdade, 
 previsto no artigo 13.º da CRP; 
 
 17. Deverá pois, concluir-se pela manutenção in totum do Douto Acórdão 
 recorrido, declarando a inconstitucionalidade da Circular 19/89, tal como vem 
 sendo decidido pelo Venerando Supremo Tribunal Administrativo em casos 
 igualmente idênticos ao dos presentes autos.” 
 
  
 
             5. O Ministério Público respondeu que o presente recurso deve 
 entender-se como facultativo, contendo a “Circular” uma norma regulamentar 
 dotada de manifesta “eficácia externa”, a que foi efectivamente recusada 
 aplicação de modo explícito, pelo que “tem o Ministério Público inquestionável 
 legitimidade para interpor o dito recurso, radicando o “interesse em agir” na 
 defesa do ordenamento jurídico objectivo, face à impugnação, constante das 
 conclusões da alegação, tempestivamente apresentadas, em que claramente se pugna 
 pela conformidade à Lei Fundamental da norma que integra o objecto do recurso”.
 
  
 II - Fundamentos
 
  
 
 6. A recorrida começa por contestar a legitimidade ao Ministério Público para o 
 presente recurso, salientando que a “Circular” não corresponde a nenhuma das 
 hipóteses que o n.º 3 do artigo 72.º da LTC prevê como casos de “recurso 
 obrigatório” para o Ministério Público  
 Neste estrito argumento, a recorrente tem razão. O recurso de fiscalização 
 concreta de constitucionalidade é obrigatório para o Ministério Público quando a 
 norma cuja aplicação tiver sido recusada, por inconstitucionalidade (ou 
 ilegalidade, por violação de lei de valor reforçado), conste de convenção 
 internacional, acto legislativo ou decreto regulamentar. A “circular” não 
 integra nenhum destes tipos de acto normativo.
 
  
 Todavia, isso não significa que proceda a excepção invocada. 
 O Ministério Público tem o dever funcional (ex lege) de interpor recurso 
 
 (recurso obrigatório) nas hipóteses enunciadas nos n.ºs 3 e 5 do artigo 280.º da 
 Constituição e no n.º 2 do artigo 72.º da LTC (com as excepções previstas no n.º 
 
 4 do cit. artigo 72.º). Mas, além disso, pode interpor recurso em qualquer caso 
 de desaplicação de normas com fundamento em inconstitucionalidade (recurso 
 facultativo), sem necessidade de invocar a defesa de um interesse específico, 
 patrimonial ou de outra natureza, nem de ter assumido a posição de parte no 
 processo.
 
  Com efeito, a alínea a) do n.º 1 do artigo 72.º da LTC confere ao Ministério 
 Público legitimidade para a interposição de recurso de fiscalização concreta de 
 constitucionalidade. É uma legitimidade conferida em termos amplos, como órgão a 
 que compete defender a legalidade democrática, distinta e autónoma daquela que 
 assiste às pessoas que porventura represente e que, de acordo com a lei 
 reguladora do processo em que a decisão foi proferida, tenham legitimidade para 
 dela interpor recurso (alínea b) do n.º 1 do artigo 72.º da LTC). 
 Esta atribuição de legitimidade tem, desde logo, a limitação que resulta de, 
 quanto às decisões negativas de inconstitucionalidade e ilegalidade (decisões 
 que apliquem normas arguidas de violação da Constituição ou de lei de valor 
 reforçado), a lei restringir, por compreensíveis razões práticas e sistémicas, a 
 legitimidade à parte que haja suscitado a questão de inconstitucionalidade ou 
 ilegalidade (n.º 2 do artigo 72.º). Assim, nos recursos ao abrigo da alíneas b) 
 e f) do n.º1 do artigo 70.º da LTC, o Ministério Público só pode interpor 
 recurso se preencher esses dois requisitos: se tiver a qualidade de “parte” no 
 processo e se tiver suscitado a questão perante o tribunal da causa (cfr. 
 acórdãos n.º 636/94, 171/95 e 368/97, publicados no Diário da República, II 
 Série, de 31 de Janeiro de 1995, 9 de Junho de 1995 e 12 de Julho de 1997, 
 respectivamente).
 
  Mas, relativamente a decisões positivas de inconstitucionalidade (ou 
 ilegalidade) não há qualquer limitação à previsão genérica de legitimidade do 
 Ministério Público constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 72.º da LTC. Daí 
 que, perante decisões de recusa de aplicação de normas – além dos casos de 
 recurso obrigatório, se a norma recusada for uma daquelas a que se refere o n.º 
 
 3 do artigo 72.º –, o Ministério Público possa sempre interpor recurso 
 facultativo, que assume uma finalidade objectiva de defesa da integridade da 
 ordem jurídica, segundo a avaliação autónoma que dela faça enquanto órgão ao 
 qual compete defender a legalidade democrática (artigo 219.º, n.º 1, da 
 Constituição). Nestas circunstâncias, a legitimidade do Ministério Público para 
 interpor recurso não depende da defesa de posição concordante com aquela que a 
 Administração defende ou de coincidência de resultado quanto à prossecução do 
 mesmo interesse público imediato, tanto podendo redundar em benefício como em 
 prejuízo da posição sustentada no litígio pelo ente público que nele seja parte. 
 Destina-se a sustentar o que entenda ser a solução conforme à Constituição, seja 
 em sentido concordante, seja discordante do juízo de desvalor constitucional que 
 levou o tribunal a quo à recusa de aplicação da norma em causa. 
 
  
 Acresce que, mesmo que assim não se entenda e se considere que, fora das 
 hipóteses de recurso obrigatório, a intervenção do Ministério Público está 
 sempre subordinada às regras gerais de legitimidade para recorrer, em processos 
 do contencioso tributário sempre teria de reconhecer-se essa legitimidade do 
 Ministério Público para interpor recurso para o Tribunal Constitucional de 
 decisões de recusa de aplicação de normas com fundamento em 
 inconstitucionalidade. Nesse tipo de processos, atendendo à relevância da 
 prossecução do princípio da legalidade em matéria fiscal (artigo 103.º da CRP), 
 a lei confere ao Ministério Público, amplos poderes de intervenção, 
 designadamente o de interpor recurso de decisões judiciais, em defesa da 
 legalidade ou do interesse público objectivo (cfr. artigos 9.º, 14.º, 113.º, 
 
 121.º, 127.º, 151.º, 278.º, 280.º e 289.º do CPPT).
 
  
 Por outro lado, a circunstância de ter sido invocado o disposto no n.º 3 do 
 artigo 72.º da LTC, isto é, de o magistrado que interpôs o recurso ter 
 porventura considerado que estava a isso imperativamente obrigado, é 
 irrelevante. No Tribunal Constitucional, foram produzidas alegações sem qualquer 
 referência ao carácter obrigatório do recurso, o que torna inequívoca a vontade 
 processual de prosseguir com o recurso como facultativo.
 
  
 
             Improcede, pois, a questão de ilegitimidade do Ministério Público 
 suscitada pelo recorrente.
 
  
 
             7. Igualmente improcede a objecção de que não há efectiva recusa por 
 inconstitucionalidade (ou de que concorre para a decisão um duplo fundamento), 
 na medida em que o fundamento do acórdão recorrido seria a ilegalidade da 
 Circular n.º 18/89, por violação do disposto no artigo 8.º, n.º 1, da Lei Geral 
 Tributária e o artigo 3.º, n.º 3, alínea f) do Código do IVA, que pretendeu 
 regular. 
 
             Embora essa pareça ter sido a orientação que a jurisdição fiscal 
 adoptou noutros casos em que apreciou a mesma questão (cfr., p. ex., acórdão do 
 Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Outubro de 2008, Proc. n.º 470/2008, in 
 
 www.dgsi.pt/jsta), o acórdão recorrido optou por centrar o problema na questão 
 da inconstitucionalidade da “Circular” e decidir a questão da validade da 
 liquidação exclusivamente com fundamento no juízo nessa perspectiva formulado. 
 Do texto que acima se transcreveu resulta claro que o tribunal a quo confinou o 
 problema à questão de constitucionalidade da “Circular” e, atingida a solução 
 desta, julgou prejudicada a apreciação das demais questões.
 
  
 
             Perante isto, é de concluir que houve efectiva recusa de aplicação 
 da “Circular” ou, noutra perspectiva, que não é inútil o conhecimento do recurso 
 por existência de dupla fundamentação.
 
  
 
             8. Há, porém, uma outra questão obstativa que cumpre apreciar e para 
 a qual o recorrente e a recorrida já deram, por antecipação, o seu contributo. É 
 ela a de saber se o conteúdo prescritivo da referida “Circular” constitui 
 objecto idóneo para o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade. 
 O Ministério Público adiantou (cfr. n.º 2.º da resposta a fls. 481), assim 
 tornando desnecessária a notificação para se pronunciar sobre a questão, que “a 
 norma recusada aplicar pelo Supremo Tribunal Administrativo é uma norma 
 regulamentar, dotada de “eficácia externa”, não constante de “decreto 
 regulamentar” – constituindo, pois, objecto idóneo do recurso interposto”. E, 
 neste aspecto da sindicabilidade da “Circular”, parece acompanhado pela 
 recorrente que a subsume ao conceito funcional de norma para efeitos de recurso 
 de fiscalização concreta de constitucionalidade (cfr. n.ºs 15.º e 16.º das 
 contra-alegações, a fls. 434).
 
             Vejamos.
 
             Desde o acórdão n.º 26/85 (publicado no Diário da República, II 
 Série, de 26 de Abril de 1985) que o Tribunal Constitucional, com vista a 
 proceder à identificação do objecto idóneo dos processos de fiscalização de 
 constitucionalidade, vem adoptando um conceito de norma funcionalmente adequado 
 ao sistema de controlo que a Constituição lhe comete. Cabem neste conceito de 
 norma os actos do poder público que contenham uma “regra de conduta” para os 
 particulares ou para a Administração, um “critério de decisão” para esta última 
 ou para o juiz ou, em geral, um “padrão de valoração de comportamentos”. Mas, 
 como é de um conceito de controlo finalisticamente ordenado a assegurar o 
 sistema de protecção jurídica típica do Estado de direito democrático 
 constitucional que se trata, não basta que o instrumento em causa vincule a 
 Administração a adoptar, na prática de actos individuais e concretos de 
 aplicação e enquanto o não alterar, um determinado critério que tenha 
 estabelecido. É necessário que esse critério seja dotado de vinculatividade 
 também para o outro sujeito da relação (heteronomia normativa) e constitua um 
 parâmetro que o juiz não possa deixar de considerar enquanto não fizer sobre ele 
 um juízo instrumental de invalidade. Se o “critério de decisão” é de origem 
 administrativa e só vincula no seio do serviço administrativo de que emana, não 
 há necessidade do tipo de protecção jurídica e de afirmação da supremacia da 
 Constituição que justifica a intervenção do Tribunal Constitucional.
 
  
 
             Ora, um problema frequentemente colocado no direito fiscal é o da 
 relevância normativa das chamadas orientações administrativas. Trata-se, como 
 diz Casalta Nabais, Direito Fiscal, 5.ª ed., pág. 201 (embora afirmando que isso 
 não lhes retira a qualidade de normas jurídicas):  
 
 “[ …] de regulamentos internos que, por terem como destinatário apenas a 
 administração tributária, só esta lhes deve obediência, sendo, pois. 
 obrigatórios apenas para os órgãos situados hierarquicamente abaixo do órgão 
 autor dos mesmos.
 Por isso não são vinculativos nem para os particulares nem para os tribunais. E 
 isto quer sejam regulamentos organizatórios, que definem regras aplicáveis ao 
 funcionamento interno da administração tributária, criando métodos de trabalho 
 ou modos de actuação, quer sejam regulamentos interpretativos, que procedem à 
 interpretação de preceitos legais (ou regulamentares).
 
 É certo que eles densificam, explicitam ou desenvolvem os preceitos legais, 
 definindo previamente o conteúdo dos actos a praticar pela administração 
 tributária aquando da sua aplicação. Mas isso não os converte em padrão de 
 validade dos actos que suportam. Na verdade, a aferição da legalidade dos actos 
 da administração tributária deve ser efectuada através do confronto directo com 
 a correspondente norma legal e não com o regulamento interno, que se interpôs 
 entre a norma e o acto”.
 
  
 
             Esses actos, em que avultam as “circulares”, emanam do poder do 
 poder de auto-organização e do poder hierárquico da Administração. Contêm ordens 
 genéricas de serviço e é por isso e só no respectivo âmbito subjectivo (da 
 relação hierárquica) que têm observância assegurada. Incorporam directrizes de 
 acção futura, transmitidas por escrito a todos os subalternos da autoridade 
 administrativa que as emitiu. São modos de decisão padronizada, assumidos para 
 racionalizar e simplificar o funcionamento dos serviços. Embora indirectamente 
 possam proteger a segurança jurídica dos contribuintes e assegurar igualdade de 
 tratamento mediante aplicação uniforme da lei, não regulam a matéria sobre que 
 versam em confronto com estes, nem constituem regra de decisão para os 
 tribunais. 
 
  
 
             A circunstância de a Administração Tributária ficar vinculada (n.º 1 
 do artigo 68.º-A da Lei Geral Tributária) às orientações genéricas constante de 
 circulares que estiverem em vigor no momento do facto tributário e de ter o 
 dever de proceder à conversão das informações vinculativas ou de outro tipo de 
 entendimento prestado aos contribuintes em circulares administrativas, em 
 determinadas circunstâncias (n.º 3 do artigo 68.º da LGT), não altera esta 
 perspectiva porque não transforma esse conteúdo em norma com eficácia externa. É 
 certo que o administrado pode invocar, no confronto com a administração, o 
 conteúdo da orientação administrativa publicitada e, se for o caso, fazê-lo 
 valer perante os tribunais, mesmo com sacrifício do princípio da legalidade 
 
 (cfr. Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, 
 Lei Geral Tributária, comentada e anotada, 3.ª ed., pág. 344). Mas é ao abrigo 
 do princípio da boa fé e da segurança jurídica, não pelo seu valor normativo, 
 que o conteúdo das circulares prevalece. O administrado só as acata se e 
 enquanto lhe convier, pelas mesmas razões que justificam que possa invocar 
 informações individuais vinculativas que o favoreçam (artigo 59.º, n.º 3, alínea 
 e) e artigo 68.º da LGT).
 
  
 
             Consequentemente, faltando-lhes força vinculativa heterónoma para os 
 particulares e não se impondo ao juiz senão pelo valor doutrinário que 
 porventura possuam, as prescrições contidas nas “circulares” da Administração 
 Tributária não constituem normas para efeitos do sistema de controlo de 
 constitucionalidade da competência do Tribunal Constitucional, designadamente 
 para abrir a via de recurso prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da 
 LTC. 
 
  
 III. Decisão
 
             Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do 
 recurso.
 
             Sem custas.
 Lx. 18/XI/2009
 Vítor Gomes
 Carlos Fernandes Cadilha
 Ana Maria Guerra Martins
 Maria Lúcia Amaral
 Gil Galvão