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Processo n.º 223/09
 
 2.ª Secção
 Relator: Conselheiro João Cura Mariano
 
 
 
       Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
 
  
 Relatório
 No processo n.º 4066/07.4TBCSC – C, do Tribunal de Família e Menores do Tribunal 
 de Cascais, em 2-2-2009, foi proferido o seguinte despacho:
 
 “Já tivemos oportunidade de referir a nossa opinião acerca da utilização da 
 aplicação informática Citius no que diz respeito aos Magistrados Judiciais 
 seguindo, em anexo, essa nossa exposição, da qual se pode ler que entendemos 
 que a tramitação dos processos através do Citius não pode ser imposta aos 
 Juízes, e porque consideramos que o Citius é ilegal e insegura não a 
 aplicaremos. 
 A questão que ora nos é suscitada tem a ver com a utilização do Citius pelos 
 senhores advogados. 
 A portaria nº 114/2008 de 06-02, alterada pelas portarias nºs 457/2008 de 20-06 
 e 1538/2008 de 30-12 impõe aos senhores advogados, tal como faz aos Juízes, a 
 utilização da aplicação informática Citius. 
 Em nosso modesto entendimento tal imposição é também inconstitucional uma vez 
 que bule directamente com o disposto nos artºs 20ºe 13º da Constituição da 
 República Portuguesa (CRP). 
 Vejamos. 
 O artº 20º da CRP visa assegurar o acesso dos cidadãos à justiça e à resolução 
 das suas causas por um órgão especificamente destinado a tal: os Tribunais. 
 Esse acesso não pode ser, de forma alguma, limitado nem sequer por motivos 
 económicos sendo que se trata de um direito fundamental que, por isso mesmo, 
 beneficia de uma protecção constitucional directa – o que já não sucede com as 
 normas constitucionais programáticas – e é exequível obrigando o Estado a 
 assegurar esse acesso. 
 Ora, ao obrigar os senhores advogados a utilizarem unicamente uma aplicação 
 informática da envergadura do Citius para o envio das peças processuais e todos 
 os requerimentos – que, como já referimos não oferece qualquer segurança 
 permitindo ao poder político um acesso directo ao que se passa em cada processo 
 
 – sem lhes permitir o uso de outros meios, tais como o fax, o correio 
 electrónico ou simplesmente os correios normais, está-se a coarctar, na 
 verdade, a limitar o acesso à justiça uma vez que não se pode impor que cada 
 advogado tenha um computador, acesso à internet e que seja obrigado a ceder a 
 sua assinatura para que a mesma passe a ser electrónica face aos graves perigos 
 que tal cedência implica. 
 Aliás, sendo a assinatura pessoal e intransmissível, estando tutelada pelos 
 direitos da personalidade, nomeadamente pelo artº 72º do Código Civil (CC), como 
 se pode obrigar um cidadão, advogado ou não, a ceder contra a sua vontade ou com 
 reserva a sua assinatura? 
 E perguntamos quando é que os faxes foram abolidos? 
 Qual a lei ou decreto que acabou com a actividade dos CTT’s? 
 Não pode um advogado enviar uma peça manuscrita ao tribunal? Porquê? 
 E se a luz falha e o advogado não consegue aceder em tempo útil ao Citius 
 correndo o risco de não poder cumprir com o prazo e ver precludida a 
 possibilidade de praticar o acto? 
 Quem é que aí responde perante o respectivo cliente que mandatou esse advogado? 
 E quem é que paga a multa do artº 145º CPC nas situações em que o advogado, por 
 falta de possibilidade técnica porque o computador falhou, porque as linhas da 
 net estão sobrelotadas ou porque perdeu o cartão que lhe dá acesso ao Citius ou 
 porque este não é correctamente lido pelo sistema, não consegue cumprir um prazo 
 legal enviando a peça ou requerimento já fora de tal prazo? 
 Não se pode, em nosso entender, impor um único meio de enviar peças ou 
 requerimentos processuais, quando na prática existem tantos outros, sob pena de 
 se limitar tremendamente o exercício de um direito fundamental cuja tutela não 
 admite essa limitação. 
 E os cidadãos comuns que recorrem ao Tribunal sem a necessidade de constituírem 
 mandatários como acontece na grande maioria das acções que tramitamos neste 
 Tribunal de Família e Menores, também eles, alguns dos quais analfabetos, são 
 obrigados a possuir um computador? 
 E são obrigados a ter gastos com a internet quando em tantas situações estamos 
 a lidar com pessoas que estão abaixo do limiar da pobreza e os que não estão mal 
 conseguem alimentar os filhos quanto mais pagar uma conta de internet? 
 Mas se se admite que as portarias em apreço não abrangem o cidadão comum, como 
 parece ser, então aí as mesmas infringem também o disposto no artº 13º da CRP 
 porquanto obrigam certos intervenientes a utilizar um sistema informático e 
 outros não, violando, assim, o princípio constitucional da igualdade, sem 
 existir um fundamento para esse tratamento diferenciado. 
 Ora, sendo, em nosso modesto entendimento1’, as referidas portarias 
 inconstitucionais também em relação aos Juízes por violação directa do disposto 
 no artº 203º CRP, devendo estes se recusar a aplicar qualquer instrumento 
 normativo que viole os princípios constitucionais conforme manda o artº 204º 
 CRP, não pode a juiz signatária deste despacho impor aos senhores advogados algo 
 que, no seu entender, é inconstitucional. 
 E não pode impor aquilo que a própria não pretende seja aplicável a si mesma. 
 Aliás, as referidas portarias, parecem esquecer o disposto no artº 150º do CPC, 
 cuja redacção foi dada ao mesmo tempo que a criação do artº 138º-A CPC (onde as 
 portarias encontram a sua aparente legitimação) pelo DL nº 303/2007 de 24-08. 
 Diz o artº 150º CPC o seguinte: 
 
 “1. Os actos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes são 
 apresentados a juízo preferencialmente por transmissão electrónica de dados, nos 
 termos definidos na portaria prevista no nº 1 do artigo 138º-A, valendo como 
 data da prática do acto processual a da respectiva expedição. 
 
 2. Os actos processuais referidos no número anterior também podem ser 
 apresentados a juízo por uma das seguintes formas: 
 a) Entrega na secretaria judicial, valendo como data da prática do acto 
 processual a da respectiva entrega; 
 b) Remessa pelo correio, sob registo, valendo como data da prática do acto 
 processual a da efectivação do respectivo registo postal; 
 c) Envio através de telecópia, valendo como data da prática do acto processual a 
 da expedição. 
 
 3. (…) 
 
 4. (…) 
 
 5. (...) 
 
 6. (...) 
 
 7. (…) 
 
 8. (...) 
 
 9. (...)“ negrito e sublinhado nossos. 
 Ora, não pode uma portaria sobrepor-se a uma lei pelo que as mesmas também 
 padecem de ilegalidade, podendo os senhores advogados entregar peças processuais 
 e outros requerimentos pelas formas já previstas no citado artº 150º CPC nº 2, 
 cabendo à secretaria, nos termos do nº 9 do mesmo artº 150º CPC, a digitalização 
 das respectivas peças. 
 Em caso algum se vislumbra que a entrega por parte dos senhores advogados de 
 peças processuais ou requerimentos fora do Citius e de acordo com o disposto no 
 nº 2 do artº 150º CPC seja motivo de indeferimento ou não recebimento das 
 mesmas peças. 
 Assim, em face de todo o acima exposto considero correctamente entregue o fax e 
 original a que se reporta a presente conclusão avulsa, e determino a respectiva 
 autuação por apenso como providência cautelar de arrolamento na qual se inclui 
 esta conclusão avulsa e este despacho”.
 
  
 O Ministério Público interpôs recurso desta decisão, nos seguintes termos:
 O Magistrado do MºPº, notificado da douta decisão proferida e respectivo 
 documento anexo, que, invocando a inconstitucionalidade da portaria nº 114/2008 
 de 6/2, alterada pelas portarias 457/2008 de 20/6 e 1538/08 de 30/12, recusou a 
 sua aplicação e, em consequência, admitiu a autuação, por apenso, como 
 providência cautelar de arrolamento, de um requerimento entregue via fax, vem, 
 nos termos das disposições conjugadas dos artº 70 nº 1 al. a), 72 nº 1 al. a), 
 
 75 75-A, nº 1 e 76, todos da Lei do Tribunal Constitucional, interpor recurso 
 para o Tribunal Constitucional. 
 
  
 Apresentou alegações, com as seguintes conclusões 
 
 “…A norma constante dos artigos 1º, 4º e 5º da Portaria nº 114/08, interpretada 
 em termos de terem de ser obrigatoriamente praticados por via informática, 
 através do sistema CITIUS, os actos processuais das partes, no âmbito de acções 
 cíveis, não constitui limitação ou restrição ao direito de acesso aos tribunais, 
 mas - mero condicionamento ou regulamentação de tal direito fundamental, no que 
 respeita à forma dos actos. 
 Não afectando as normas regulamentares em questão os princípios fundamentais ou 
 estruturantes do processo civil, tal como se mostram enunciados na lei, está 
 assegurada a possibilidade de – através da utilização dos poderes do juiz na 
 condução do processo, do princípio da cooperação e do direito à invocabilidade 
 do “justo impedimento”; a remoção adequada de quaisquer obstáculos ou 
 dificuldades, anormais ou excepcionais, no acesso à justiça, decorrentes da 
 opção pelo processo electrónico. 
 Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
 
  
 Não foram apresentadas contra-alegações.
 
  
 
                                         *
 Fundamentação
 
 1. Da delimitação do objecto do recurso
 O Ministério Público veio interpor recurso da recusa pela decisão recorrida de 
 aplicação da Portaria n.° 114/2008, de 6 de Fevereiro, com as alterações 
 introduzidas pelas Portarias n.° 457/2008, de 20 de Junho, e n.º 1538/2008, de 
 
 30 de Dezembro.
 Nas alegações apresentadas restringiu o objecto do recurso à interpretação dos 
 artigos 1.º, 4.º e 5.º, da referida Portaria, com o sentido dos actos dos 
 mandatários judiciais em processo civil terem obrigatoriamente de ser praticados 
 através do sistema informático CITIUS, sob pena de irrelevância processual, 
 devendo ser esta a dimensão normativa cuja constitucionalidade cumpre verificar.
 
  
 
 2. Do mérito do recurso
 O artigo 138.°- A, do Código de Processo Civil, introduzido neste diploma pelo 
 artigo 2.º, da Lei n.º 14/2006, com a redacção resultante do Decreto-lei n.º 
 
 303/2007, de 24 de Agosto, passou a dispor no seu n.º 1, que “a tramitação dos 
 processos é efectuada electronicamente em termos a definir por portaria do 
 Ministro da Justiça”.
 Este novo dispositivo consagrou uma importante mudança na forma de registo dos 
 actos praticados em processo civil, preterindo-se o suporte em papel, em favor 
 de um sistema informático, denominado CITIUS, no prosseguimento duma política 
 visando uma progressiva desmaterialização dos processos judiciais.
 Conforme se explicou no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, 
 
 “…estabelece ainda o Programa do XVII Governo Constitucional, enquanto 
 objectivo fundamental, a inovação tecnológica da justiça, para a qual é 
 essencial a adopção decisiva dos novos meios tecnológicos. No âmbito da promoção 
 desta «utilização intensiva das novas tecnologias nos serviços de justiça, como 
 forma de assegurar serviços mais rápidos e eficazes», define-se como objectivo 
 
 «a progressiva desmaterialização dos processos judiciais» e o desenvolvimento 
 
 «do portal da justiça na Internet, permitindo-se o acesso ao processo judicial 
 digital». Assim, as alterações acolhidas nesta matéria visam permitir a prática 
 de actos processuais através de meios electrónicos, dispensando-se a sua 
 reprodução em papel e promovendo a celeridade e eficácia dos processos.”
 No seguimento do disposto no artigo 138.º - A, do C.P.C., veio a ser aprovada a 
 Portaria n.° 114/2008, de 6 de Fevereiro - entretanto, já alterada pelas 
 Portarias n.° 457/2008, de 20 de Junho, e n.º 1538/2008, de 30 de Dezembro -, a 
 qual veio dispor sobre várias matérias atinentes à tramitação electrónica dos 
 processos civis, nomeadamente: apresentação de peças processuais e documentos 
 por transmissão electrónica de dados (artigos 3.° a 14.° - C); distribuição por 
 meios electrónicos (artigos 15.° e 16°); actos processuais de magistrados e 
 funcionários em suporte informático (artigos 17.° a 21.º); notificações 
 
 (artigos 21.º - A a 21.º - C); consulta electrónica de processos (artigo 22.°); 
 organização do processo (artigo 23.º); e comunicações entre tribunais (artigos 
 
 24.° e 25.°).
 A decisão recorrida recusou a aplicação desta Portaria, quando interpretada no 
 sentido de impor aos mandatários judiciais a apresentação de peças processuais 
 em processo civil por transmissão electrónica, através do sistema informático 
 CITIUS.
 Como fundamento desta recusa invocou a violação do direito ao acesso aos 
 tribunais (artigo 20.º, da C.R.P.), por criar dificuldades aos mandatários 
 judiciais na defesa dos direitos dos seus constituintes, e do princípio da 
 igualdade (artigo 13.º, da C.R.P.), uma vez que os cidadãos não representados 
 por advogado podem intervir nos processos sem estarem obrigados à utilização 
 daquele sistema informático, segundo a interpretação da decisão recorrida.
 Não competindo ao Tribunal Constitucional controlar a correcção da interpretação 
 acolhida pela decisão recorrida, resta verificar se a mesma viola os parâmetros 
 constitucionais indicados.
 Estamos perante uma interpretação de normas regulamentares impositiva da prática 
 pelos mandatários judiciais dos actos em processo civil, por transmissão 
 electrónica, através de um determinado sistema informático.
 Se é verdade que essa imposição se traduz num condicionamento à intervenção das 
 partes, representadas por mandatários, no processo civil, uma vez que estes não 
 terão possibilidade de escolha entre os diferentes meios possíveis de 
 apresentação em juízo das peças processuais da sua autoria, considerando que o 
 meio de comunicação imposto apenas exige um acesso à Internet e o registo prévio 
 do mandatário junto da entidade responsável pela gestão dos acessos ao sistema 
 informático (artigo 4.º, da Portaria n.º 114/2008, de 6 de Fevereiro), não se 
 pode dizer que esse condicionamento se traduz numa afectação do direito de 
 acesso aos tribunais, dado que essas exigências poderão ser facilmente cumpridas 
 por qualquer profissional do foro.
 E se a imposição de um único meio de apresentação pelos mandatários judiciais 
 das peças processuais pode determinar, nalgumas situações, a impossibilidade de 
 cumprimento dos prazos legais por deficiências do funcionamento prático da 
 transmissão electrónica, essas situações poderão ser solucionadas através da 
 invocação da figura do justo impedimento, prevista no artigo 146.º, do Código de 
 Processo Civil, o que impedirá que as partes não possam defender os seus 
 direitos em tribunal por causa da obrigatoriedade da utilização exclusiva 
 daquele meio de intervenção processual. 
 Relativamente à invocada violação do princípio da igualdade, por comparação com 
 a liberdade de escolha do meio de apresentação de peças processuais de que gozam 
 as partes não representadas por advogados, é manifesto que a existência de 
 patrocínio judiciário confere à parte representada por advogado uma maior 
 facilidade de intervenção processual, resultante dos especiais conhecimentos e 
 experiência do seu representante, que não permite equiparar as duas situações 
 para efeitos de aplicação do princípio da igualdade.
 Sendo diferente a situação em que se encontra a parte não representada por 
 advogado, daquela que usufrui dessa representação, pela maior facilidade que 
 esta tem em intervir no processo, justifica-se, atenta aquela distinção, que a 
 imposição da utilização do CITIUS para a apresentação de peças processuais só 
 abranja os actos praticados por mandatário judicial.
 Não se constatando que a interpretação recusada viole qualquer parâmetro 
 constitucional, deve o recurso ser julgado procedente.
 
  
 
                                                     *
 Decisão
 Pelo exposto, decide-se:
 a) não julgar inconstitucional a interpretação dos artigos 1.º, 4.º e 5.º, da 
 Portaria n.º 114/2008, de 6 de Fevereiro, com o sentido dos actos dos 
 mandatários judiciais em processo civil terem obrigatoriamente de ser praticados 
 através do sistema informático CITIUS, sob pena da sua irrelevância processual.
 e, em consequência, 
 b) julgar procedente o recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida, 
 em conformidade com o presente julgamento.
 
  
 
                                                     *
 Sem custas.
 
  
 Lisboa, 8 de Julho de 2009
 
  
 João Cura Mariano
 Benjamim Rodrigues
 Mário Torres
 Joaquim de Sousa Ribeiro
 Rui Manuel Moura Ramos
 
 
 
 1 Pelos motivos que constam do despacho que segue em anexo.