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Processo nº 997/2006
 
 3ª Secção
 Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
 
 
 
 
 Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
 
  
 
  
 I
 Relatório
 
  
 
 1.  A., melhor identificada nos autos, interpôs recurso para o Tribunal 
 Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da 
 Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), do acórdão do 
 Tribunal da Relação do Porto (3.ª Secção), de 28 de Setembro de 2006, 
 
 “considerando o n.º 2, do art.º 1682.º, e o n.º 2 do art.º 1696.º, do Cód. 
 Civil, inconstitucionais, quando permitam a penhora em salário do executado, e 
 se prove em embargos de terceiro movidos pelo cônjuge, casado em comunhão de 
 adquiridos, que este sempre trabalhou, exercendo profissão remunerada, 
 destinando o produto do seu trabalho a despesas da vida familiar e a aquisição 
 de bens que constituem o recheio da habitação em que reside com o executado, por 
 violação dos art.ºs 2.º, 62.º, 36.º, n.ºs 1 e 3, e dos princípios neles 
 consignados, da Constituição da República Portuguesa”, nos termos da resposta ao 
 despacho/convite de aperfeiçoamento do requerimento de recurso proferido no 
 tribunal a quo.
 Pode ler-se no acórdão recorrido:
 
  
 
 (…)
 Restringe-se o âmbito do recurso à parte da sentença que julgou da improcedência 
 dos embargos, isto é, relativamente à requerida penhora pela exequente, em 
 
 16.3.2004 (fls. 140), do direito de crédito, correspondente a 1/3 do vencimento 
 que o executado B. aufere como trabalhador por conta da empresa Expresso-carga …
 Ora, não vem posta em causa a matéria de facto tida “a quo” por demonstrada nos 
 autos. 
 E, com suficiência, por demonstrada neles estar, também se lhe adita – “ut” art. 
 
 712°-1, 1ª parte CPrC – sendo que, aqui em precedência ela foi também elencada, 
 o seguinte: 
 A nomeação à penhora do requerido direito a que se restringe o recurso (1/3 do 
 vencimento do cônjuge executado) foi ordenada na execução, por despacho de 
 
 29.3.2004 (fls. 141), até perfazer o montante de € 8.705,70, como a notificação 
 do legal representante da entidade patronal (art. 856º, ibidem) – a fls. 142; 
 sendo certo, porém, que ulteriormente, por decisão de 24.2.2006 (a fls. 150), se 
 determinou que a execução permanecesse suspensa – “ut” art. 359°-2, ib – quanto 
 
 à efectivação de tal diligência relativa ao direito da exequente “sub judice”.
 Perante tal quadro circunstancial fáctico “provado” cabe ajuizar da conformidade 
 com a lei da decisão da 1ª instância ora impugnada. 
 Então, “hic et nunc”, questão é tão só a de saber se é, ou não, admissível a 
 penhora de 1/3 do salário do executado (marido da embargante), pese embora ele, 
 uma vez recebido por este, seu titular, se (poder, caso o não gastasse ou 
 onerasse, por ser de sua administração pessoal) integrar no património comum do 
 casal. 
 Na falta de convenção antenupcial, como no caso, o casamento da embargante com o 
 executado considera-se celebrado sob o regime de bens de comunhão de adquiridos 
 
 – art. 1717°, CC. 
 Nele, então, faz parte da comunhão o produto do trabalho dos cônjuges – art. 
 
 1724°, a) ibidem; embora seja administrado pelo respectivo cônjuge seu titular – 
 art. 1678°-2 a) ib. 
 O casamento baseia-se na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges – art. 
 
 1671°-l; sendo que cada um dos cônjuges pode exercer qualquer profissão ou 
 actividade sem consentimento do outro – art. 1677°-D. 
 Repete-se, não obstante o mais dito, que cada um dos cônjuges tem a 
 administração dos proventos que receba pelo seu trabalho; tendo legitimidade 
 para os alienar ou onerar, por acto entre vivos – art. 1682°-2 – sem embargo de 
 o poder de administração e até de livre disposição conferidos ao titular dos 
 proventos de trabalho não apagarem a natureza de bens comuns que tenham “ex 
 lege”; e, sendo caso disso, eles estarão sujeitos, por conseguinte, à 
 compensação fixada no n° 4 deste último normativo, e devem ser partilhados na 
 altura em que cessem as relações patrimoniais entre os cônjuges (Assim, A. 
 Varela, Família, 1987, 363, nota 2). 
 Não se poderá esquecer, porém, que, no caso, demonstrado ficou que a dívida 
 exequenda respeita a parte do valor do preço de equipamentos que a 
 embargada/exequente forneceu ao cônjuge (executado) da embargante, os quais se 
 destinaram a ser instalados num estabelecimento comercial, explorado pelo casal, 
 constituído por aquele e pela embargante. 
 Articulado este facto, e demonstrado, pela parte embargada/exequente não o 
 poderá nem deverá o aplicador do Direito olvidar ... (art.s 659°-2 e 664°, 
 CPrC). 
 Daí, porém, expressamente se retirou a recorrente/embargante nas suas alegações 
 do recurso (seguramente, por dele as suas consequências jurídicas lhe não serem 
 favoráveis). 
 Situemo-nos, então, no âmbito do recurso. 
 O meio processual onde ajuizamos de embargos de terceiro é o meio específico de 
 reacção contra a penhora por parte do cônjuge do executado, aqui terceiro – art. 
 
 352°, CPrC. 
 Aceite a natureza comum do bem indicado à penhora: 1/3 do vencimento do cônjuge 
 executado, não pode o cônjuge deste embargar «dado que este bem, ainda que 
 comum, responde AO MESMO TEMPO que os bens próprios» – art. 1696°-2 b) 1ª parte, 
 CC (cfr. J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, à luz do Código revisto, 2ª 
 edição, 1997, 238). 
 Bem de diz, então, que, pese embora o produto do trabalho do cônjuge seja um bem 
 integrado na comunhão do casal, neste regime de bens, verdade é também que “ex 
 lege” o mesmo responde A PAR dos bens próprios do cônjuge devedor e NOS MESMOS 
 MOLDES em que tais bens respondem pelas dívidas da sua exclusiva 
 responsabilidade. 
 Assim é que, por isso, certo é, e bem se dirá, que não obstante tais bens serem 
 bens comuns, não seguem o regime geral da responsabilidade pelas dívidas desses 
 bens, mas excepcionalmente o regime da responsabilidade dos bens próprios. 
 Nestes parâmetros fáctico-legais, para além do mais que ora não vem equacionado 
 e por isso não tem que ser ajuizado, os credores do cônjuge executado têm o 
 direito de fazer penhorar os bens próprios do cônjuge devedor e, TAL QUAL, o 
 salário deste, sem que o cônjuge do executado, dele não titular, possa opor que 
 de tal produto de trabalho, por virtude do regime de bens, também comunga. 
 A protecção do património colectivo de afectação especial do casal não pode 
 servir para furtar o cônjuge devedor remisso às suas responsabilidades para com 
 terceiros. 
 Bem se ajuizou e decidiu, como no caso dos autos, que a credora/exequente podia 
 penhorar parte (1/3) do produto do trabalho do devedor executado, que é um bem 
 comum móvel, mas de que este podia dispor por si só e, consequentemente, podendo 
 ser objecto da execução imediata (por aplicação do princípio de que podem ser 
 executados todos os bens que podem ser alienados), sem requerer a citação da sua 
 mulher, por não ser permitido a esta embargar de terceiro, no tocante à penhora 
 requerida de 1/3 do salário do cônjuge executado (Ac. Rel. Lx, de l4.5.1975, BMJ 
 
 248, 460; de 14.2.1978, CJ, III, 1°. 100; Ac. STJ, de 30.10.1984, BMJ 340, 343). 
 
 
 Estando sob apreciação prévia ao fim e ao cabo a validade da decisão que ordenou 
 a penhora de 1/3 do vencimento do executado marido, e nada obstando à sua 
 legalidade, esta decisão terá de ser mantida; o que implicará, apodicticamente, 
 a improcedência destes embargos, no que a tal bem respeita. 
 Bem se decidiu “a quo” pela sua improcedência e consequente prosseguimento da 
 execução quanto ao mesmo, por ser ele susceptível de penhora pela exequente, ao 
 abrigo dos normativos legais citados, conjugados entre si, e hermenêutica deles 
 feita no caso. 
 Assim, estando aqui precludido o direito de embargar, quanto ao bem penhorado, 
 nos termos em que foi exercido. 
 Não vemos, por isso portanto, que qualquer das normas invocadas e consideradas, 
 nomeadamente os normativos dos art.s 1682°-2 e 1696°-1, CC, enfermem ou padeçam 
 de qualquer inconstitucionalidade ou afrontem os art.s 2°, 36°-1 e 3 e 62°-2, 
 CRP. 
 Atento o regime de bens ora em causa, o da comunhão de adquiridos, diremos em 
 síntese e em geral, que são “grosso modo’ próprios os bens indicados nos artigos 
 
 1722°, CC, os subrogados no lugar desses (art. 1723°) e os adquiridos por 
 virtude da titularidade de bens próprios (art. 1728°); ao passo que são comuns 
 os bens a que se refere o art. 1724°. 
 E são dívidas comuns as indicadas nos art.s 1691°, 1693°-2 e 1694°-1; e 
 próprias, as que constam dos artigos 1692°, 1693°-1 e 1694°-2. 
 Ora: 
 
 –  pelas dívidas que são da responsabilidade de ambos os cônjuges respondem os 
 bens comuns do casal e só na sua falta ou insuficiência é que respondem, 
 solidariamente (ou conjuntamente, se o regime for o da separação de bens) os 
 bens próprios de qualquer dos cônjuges (art. 1695°);
 
 –  pelas dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges respondem os 
 bens próprios do devedor (e, com eles, os bens comuns a que se refere o art. 
 
 1696°-2) e só na sua falta ou insuficiência é que responde a meação dele nos 
 bens comuns (art. 1696°- 1; e adiante-se, que entre estes se inclui o salário do 
 cônjuge não executado, “ut” Ac. Rel. Porto, de 25.5.2006, Gonçalo Silvano, in 
 proc. n° 2864.3.2006, in http://www.dgsi.pt/jtrp). 
 Neste quadro legal ordinário, a paridade e simetria de ambos os cônjuges do 
 casal está vincada, sem supremacia de um em relação ao outro, em pé de igualdade 
 se lhes aplicando o respectivo regime legal e sem prejuízo do apuramento 
 ulterior de contas entre os cônjuges (art. 1697°-1 e 2, CC). 
 Consagrada está aqui a ideia de que cada um dos cônjuges deve ser compensado de 
 tudo quanto tenha sido pago à custa dos seus bens, além do que rigorosamente lhe 
 cumpria subscrever no plano das relações internas; como ainda, deste modo, em 
 certa medida, a ocorrência à necessidade de defesa do interesse dos credores 
 respectivos dos cônjuges. 
 Não temos, pelo exposto, por minimamente beliscados, no “statu quo” factual dos 
 autos e Direito aplicado – art.s 1682°-2 e 1696°-2, CC: permissibilidade e 
 efectivação de penhora em 1/3 do vencimento do executado marido, casado com a 
 recorrente/embargante no regime de comunhão de adquiridos, que sempre trabalhou 
 remuneradamente e destinando o dinheiro assim obtido às despesas familiares e 
 aquisição de bens do recheio da casa de morada com o executado – os princípios 
 fundamentais consagrados nos artigos 2°, 36°-1 e 3 e 62°, CRP. 
 A eventual consideração de que os vencimentos se destinam a ocorrer de forma 
 imediata às necessidades do lar justifica só a impenhorabilidade parcial 
 reconhecida por lei (art. 824°-1 a) CPrC); justifica tal finalidade como 
 suficiente, mas já não autoriza outro obstáculo quanto à parte que a própria lei 
 não furta à execução.
 
  
 A recorrente suscitou tempestivamente a questão, no âmbito das alegações do 
 recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto.
 
  
 
  
 
 2.  Nas suas alegações de recurso, concluiu a recorrente do seguinte modo:
 
  
 Neste sentido se entendendo, no caso concreto, a inconstitucionalidade das 
 normas constantes do n° 2, do art. 1682°, e alínea b), do n° 2, do art. 1696°, 
 do Código Civil, pela interpretação segundo a qual o produto do trabalho do 
 executado, casado em comunhão de adquiridos, pode pelo mesmo ser alienado ou 
 onerado, ou responder por dívida em execução apenas movida contra si, quando a 
 tal se oponha o cônjuge, movendo embargos de terceiro e se prove que a 
 embargante ao longo da sua vida, sempre trabalhou, exercendo profissão 
 remunerada, destinando o produto do seu trabalho a fazer face às despesas da 
 vida familiar e à aquisição dos bens que constituem o recheio da habitação onde 
 reside com o executado, e onde têm o seu centro de vida doméstica, familiar e 
 social, por violação dos art.s 2°, 36°, n° 3, 62°, e dos princípios neles 
 consagrados, da Constituição da República Portuguesa.
 
  
 Por parte da recorrida não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.
 
  
 
  
 Após redistribuição, cumpre apreciar e decidir.
 
  
 
  
 II
 Fundamentos
 
  
 
 3.  A questão de constitucionalidade
 No presente recurso de constitucionalidade estão em juízo duas normas do Código 
 Civil: a contida no nº 2 do artigo 1682º e a contida na alínea b) do nº 2 do 
 artigo 1696º. 
 Dispõe o nº 2 do artigo 1682º: 
 
  
 Cada um dos cônjuges tem legitimidade para alienar ou onerar, por acto entre 
 vivos, os móveis próprios ou comuns de que tenha a administração, nos termos do 
 nº 1 do artigo 1678º e das alíneas a) e f) do nº 2 do mesmo artigo, ressalvado o 
 disposto nos números seguintes.
 
  
 Por seu turno, determina a alínea b) do nº 2 do artigo 1696º, quanto à 
 identificação dos «Bens que respondem pelas dívidas da exclusiva 
 responsabilidade de um dos cônjuges»
 
  
 
 2 – Respondem, todavia, ao mesmo tempo que os bens próprios do cônjuge devedor:
 a)    ….
 b)   O produto do trabalho e os direitos de autor do cônjuge devedor. [itálico 
 nosso]. 
 
  
 
 
 
 
 
  
 Alega a recorrente que estes dois preceitos são inconstitucionais na medida em 
 que podem ser lidos de acordo com a seguinte ‘interpretação’ ou ‘dimensão 
 normativa’.
 Primeiro, na medida em que ambos incidem sobre os proventos ou o produto do 
 trabalho de cada um dos cônjuges. Com efeito, de acordo com o nº 2 do artigo 
 
 1682º – que remete para as alíneas a) a f) do artigo 1678º –, cada um dos 
 cônjuges pode alienar ou onerar, sem o consentimento do outro, os proventos que 
 receba do seu trabalho; e de acordo com a alínea b) do nº 2 do artigo 1696º tais 
 proventos respondem, ao mesmo tempo que os bens próprios do cônjuge devedor, 
 pelas dívidas que sejam da sua exclusiva responsabilidade. É a partir deste 
 ponto – e só a partir dele – que se delimita a questão da constitucionalidade. A 
 recorrente sustenta que é inconstitucional o regime fixado no nº 2 do artigo 
 
 1682º na medida em que confere a cada um dos cônjuges o poder de alienar, sem o 
 consentimento do outro, os proventos que receba do seu trabalho; e que é 
 inconstitucional o regime contido na alínea b) do nº 2 do artigo 1696º na medida 
 em que prevê que tais proventos respondam – ao mesmo tempo que os bens próprios 
 do devedor – pelas dívidas que sejam da exclusiva responsabilidade de um só 
 cônjuge. 
 Sendo este o ‘ponto’ a partir do qual se coloca, ao Tribunal, a questão de 
 constitucionalidade – ou, dizendo de outro modo, o ‘ponto’ a partir do qual se 
 identifica a ‘dimensão normativa’ dos preceitos cuja constitucionalidade se 
 discute – nem tudo  fica por aqui. Alega ainda a recorrente que as referidas 
 normas do Código Civil serão inconstitucionais (na medida acima indicada) sempre 
 que se perfizerem mais dois requisitos essenciais: (i) sempre que, por força do 
 regime matrimonial vigente, for bem comum do casal o produto do trabalho de cada 
 um dos cônjuges (como sucede no caso dos autos); (ii) sempre que se prove (como 
 sucede no caso dos autos) que o cônjuge não devedor «toda a sua vida trabalhou, 
 exercendo profissão remunerada, destinando o produto do seu trabalho a fazer 
 face às despesas da vida familiar e à aquisição de bens que constituem o recheio 
 da habitação onde [residem os cônjuges] e onde têm o seu centro de vida 
 doméstica, familiar e social.» 
 Como as normas constitucionais cuja violação, in casu, se invoca são as 
 constantes dos artigos 2º; 62º e 36º, 3 da CRP, a questão de constitucionalidade 
 que o recurso coloca ao Tribunal pode ser finalmente equacionada do seguinte 
 modo: é constitucionalmente tolerável – face aos princípios do Estado de 
 direito, da garantia da propriedade privada e da igualdade de direitos e deveres 
 entre os cônjuges – que o salário de um dos cônjuges possa ser por ele 
 livremente alienado, e possa responder pelas dívidas da sua exclusiva 
 responsabilidade (ao mesmo tempo que os seus bens próprios) sendo o referido 
 salário bem comum do casal, e tendo o outro cônjuge (o cônjuge não devedor) 
 sempre contribuído para os encargos da vida familiar? 
 A resposta a esta questão só pode vir a ser encontrada se se precisar com mais 
 rigor o sentido das normas impugnadas. Importa analisar mais demoradamente os 
 regimes fixados no nº 2 do artigo 1682º e no nº 2, alínea b) do artigo 1696º do 
 Código Civil: qual o sistema de regulação em que os mesmos regimes se inserem; 
 qual o possível sentido, ou razão de ser, das soluções normativas neles 
 contidas. 
 
  
 
  
 
 4.  As normas sob juízo 
 Tanto o artigo 1682º – que tem por epígrafe «Alienação ou oneração de imóveis»  
 
 – quanto o artigo 1696º – cuja epígrafe é «Bens que respondem pela dívidas da 
 exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges» – se inserem no Capítulo IX do 
 Título II do Livro IV do Código Civil, respeitante aos efeitos do casamento. É 
 bem sabido que foram os efeitos do casamento das matérias reguladas pela lei 
 civil que mais transformações sofreram em virtude da entrada em vigor da 
 Constituição. O facto é notório quanto aos chamados efeitos pessoais do 
 casamento, que tiveram que ser objecto de nova regulação ordinária por imposição 
 do disposto, sobretudo, nos artigos 13º e 36º da CRP; mas não é menos verdadeiro 
 quanto aos seus ditos efeitos patrimoniais – no âmbito dos quais se inserem, 
 evidentemente, as normas em juízo –, dada a difícil dissociação, neste domínio, 
 entre aquilo que releva da esfera do «pessoal» e aquilo que releva da esfera do 
 
 «patrimonial». O Capítulo IX, que inclui os artigos 1682º e 1696º, não distingue 
 aliás entre efeitos pessoais e efeitos patrimoniais: limita-se a consagrar os 
 efeitos do casamento. Assim, tiveram a mesma origem histórica as duas normas 
 cuja constitucionalidade agora se discute. Foi a reforma do Código Civil 
 introduzida pelo Decreto-lei nº 496/77 – e introduzida pois em cumprimento da 
 Constituição – que originou a redacção actual dos dois preceitos, mantida desde 
 então sem alterações (só veio a ser modificado entretanto, e por uma vez, o nº 1 
 do artigo 1696º, o que para o presente caso é irrelevante).  
 A procura da razão de ser do regimes contidos no nº 2 do artigo 1682º e na 
 alínea b) do nº 2 do artigo 1696º – regimes esses que, recorde-se, a recorrente 
 entende serem incompatíveis com a Constituição, por permitirem a alienação (por 
 parte de um só cônjuge) e a execução (por dívidas da responsabilidade de um só 
 cônjuge) de um bem comum do casal – não pode portanto ser desligada desta sua 
 origem histórica. O facto é desde logo bem visível no que diz respeito ao regime 
 fixado no nº 2 do artigo 1682º. 
 O disposto no nº 2 do artigo 1682º deixa‑se resumir da seguinte forma: pode 
 alienar [ou onerar] quem pode administrar (assim mesmo Leonor Beleza, «Os 
 efeitos do casamento», em Reforma do Código Civil, Lisboa, Ordem dos Advogados, 
 
 1982, 
 p. 123). No que aos bens móveis diz respeito (e, evidentemente, os bens móveis 
 comuns, que são só aqueles que agora nos interessam), o legislador adoptou a 
 regra segundo a qual cada cônjuge deve ter o poder de alienar [ou onerar] 
 livremente, e portanto sem o consentimento do outro, o bem móvel comum de que 
 tenha – só ele – a administração. Como, nos termos da alínea a) do artigo 1678º 
 
 – para a qual remete o nº 2 do artigo 1682º – se contam precisamente, entre os 
 bens móveis administrados por um só cônjuge, os proventos do trabalho de cada 
 um, a razão de ser do regime contido no nº 2 do artigo 1682º depende afinal da 
 razão de ser do regime geral da administração dos bens do casal, consagrado no 
 artigo 1678º. Se soubermos por que motivo decidiu o legislador confiar os 
 proventos do trabalho à administração ‘livre’, e singular, do cônjuge que os 
 recebe, saberemos também por que motivo decidiu o legislador permitir que 
 aqueles mesmos proventos – ainda que constituindo bem comum do casal – possam 
 ser livremente alienados pelo cônjuge que os aufere. 
 Ora, e quanto a este ponto, tem sido bem clara a doutrina. 
 Para dar cumprimento ao princípio da igualdade entre os cônjuges, consagrado no 
 artigo 36º nº 3 da CRP, o legislador de 1977 adoptou, em matéria de 
 administração de bens do casal, o princípio geral da administração conjunta, 
 também chamada de administração de mão comum: é o que decorre do nº 3 do artigo 
 
 1678º, segundo o qual os «actos de administração [não ordinária] só podem ser 
 praticados com o consentimento de ambos os cônjuges.». Entende-se, normalmente, 
 que não seria este o único regime compatível com o princípio constitucional da 
 igualdade, podendo o legislador ter escolhido outros (neste sentido, Leonor 
 Beleza, ob. cit., p. 122 e Francisco Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, Curso 
 de Direito da Família, Vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 3ª ed., 2003, p. 409). 
 Mas a verdade é que, ao eleger um sistema normativo assente no princípio geral 
 da distribuição igualitária dos poderes de administração, o legislador fez, 
 neste domínio, uma aplicação inequivocamente leal da Constituição. Tanto mais 
 que atribuiu a esse mesmo «sistema» – e o ponto merece bem ser sublinhado – 
 natureza imperativa (artigo 1699º, nº 1, alínea b), por ter eventualmente 
 receado que «deixando esta matéria à liberdade dos nubentes, muitos seriam 
 tentados a seguir a tradição que confiava ao marido os poderes de administrar os 
 bens do casal, frustrando deste modo o princípio igualitário que a Reforma 
 estava a introduzir no direito civil, na sequência dos princípios 
 constitucionais de 1976» (Assim mesmo, Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, ob. 
 cit., p. 408). 
 Um regime como este, assente no princípio da administração conjunta dos bens 
 comuns do casal, pode no entanto vir a revelar-se limitador das necessidades 
 quotidianas do tráfego jurídico. Exigências óbvias de flexibilidade impõem, por 
 isso, que sejam previstas excepções à regra geral de administração de mão comum. 
 
 
 O legislador da Reforma de 1977 fê-lo no nº 2 do artigo 1678º; e do âmbito da 
 administração conjunta excluiu desde logo «os proventos que [cada cônjuge] 
 receba pelo seu trabalho» (artigo 1678, nº 2, alínea a). 
 A razão por que o fez é clara. Se as exigências decorrentes da celeridade e 
 flexibilidade do tráfego exigem que nem tudo seja administrado conjuntamente, à 
 
 ‘cabeça’ daqueles bens que podem e devem ser destacados para o âmbito permitido 
 da administração disjunta vem naturalmente o produto do trabalho de cada um dos 
 cônjuges, dada a proximidade aqui existente entre o ‘bem’ em causa e a pessoa 
 que o traz para a economia comum do casal (entre outros: Leonor Beleza, ob. 
 cit., p. 123). A razão de ser do regime previsto no nº 2 do artigo 1682º está, 
 portanto, aqui: como o regime de alienação e oneração de bens móveis aí fixado 
 se construiu em torno do princípio segundo o qual pode alienar quem pode 
 administrar, o legislador entendeu que, tendo já confiado os «proventos do 
 trabalho de cada um» à administração singular do cônjuge que os aufere, deveria 
 também conferir a esse mesmo cônjuge a legitimidade para decidir, só, sobre a 
 sua alienação ou oneração. O fundamento que justifica esta opção legislativa é 
 idêntico àquele que explica a solução contida na alínea a) do nº 2 do artigo 
 
 1678º. A ligação especial existente entre o ‘bem’ – que pode ser, como no caso 
 dos autos, um bem comum – e o cônjuge que o ‘adquiriu’ confere razão de ser ao 
 regime previsto no nº 2 do artigo 1682º. 
 Em princípio, o que pode ser alienado pode ser executado. Quer isto dizer que 
 todos os fundamentos que até agora analisámos (e que se prendem, como vimos, com 
 decisões essenciais tomadas pelo legislador em matéria de administração dos bens 
 do casal) são em certa medida extensíveis ao regime estabelecido na alínea a) do 
 nº 2 do artigo 1696º do CC – regime esse que, no caso dos autos, se considera 
 também ser inconstitucional. O raciocínio a estabelecer é simples. Se os 
 
 «proventos do trabalho de cada um» podem ser sempre administrados apenas pelo 
 cônjuge que os aufere; se, por isso, podem também ser por ele (livremente) 
 alienados, então, pelas dívidas que sejam da sua exclusiva responsabilidade, 
 devem tais «proventos» poder responder ao mesmo tempo que «respondem» por elas 
 os bens próprios do cônjuge devedor. O fundamento da regra é ainda o mesmo: a 
 especial ligação existente entre o «bem» em causa e aquele cônjuge que o aufere 
 
 – o cônjuge que administra (artigo 1678º), que aliena (artigo 1682º) e que deve 
 
 (artigo 1696º). 
 
 É claro que semelhante fundamento só em parte explica o regime previsto no nº 2, 
 alínea a) do artigo 1969º. A razão de ser da norma nele contida decorre ainda de 
 um outro – e decisivo – motivo, naturalmente ausente do quadro explicativo das 
 normas que até agora analisámos. Aqui, o legislador quis especialmente assegurar 
 o cumprimento das expectativas dos credores que tenham confiado na solvabilidade 
 do (cônjuge) devedor, tendo em conta porventura os rendimentos provenientes do 
 seu trabalho. (Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, ob. cit., p.466-7). E é por 
 esse motivo – para assegurar, afinal, o cumprimento dos direitos dos credores – 
 que a lei ‘sacrifica’, neste aspecto, o património comum do casal: mesmo que, 
 por força do regime matrimonial vigente, os «proventos do trabalho de cada um» 
 constituam um bem comum, o Código permite que tal bem responda pelas dívidas da 
 exclusiva responsabilidade de apenas um dos cônjuges, ao mesmo tempo que os bens 
 próprios do devedor. Fá-lo em nome de uma coerência sistémica (decorrente de 
 decisões legislativas já tomadas em sede de administração de bens); e fá-lo em 
 nome da protecção dos direitos e expectativas dos credores. 
 Poucos anos após a entrada em vigor deste «sistema»  – cujo sentido e razão de 
 ser procurámos identificar – escreveu-se: 
 
  
 
 É claro que há neste sistema sempre um risco, que é a desprotecção excessiva dos 
 interesses do outro cônjuge. Mas entre os riscos desta desprotecção, e a 
 facilitação do tráfego jurídico, o legislador optou por esta quanto aos tais 
 bens que com um cônjuge mantêm ligações particularmente intensas. (Leonor 
 Beleza, ob. cit., p. 123)
 
  
 Vem agora a recorrente alegar a inconstitucionalidade desta opção do legislador 
 
 – que comporta, de facto, um «risco»  – invocando antes do mais a violação do 
 artigo 2º da Constituição. 
 Vejamos, pois. 
 
  
 
  
 
 5.  Do princípio do Estado de direito
 No artigo 2º da CRP consagra-se essencialmente o princípio do Estado de direito. 
 Trata-se, como bem se sabe, de um princípio compósito, e de conteúdo por isso 
 especialmente vasto. Não especifica a recorrente qual a dimensão do princípio 
 que, no caso, considera ter sido violada. No entanto, e dadas as especificidades 
 dos autos, é de crer que essa dimensão seja aquela mesma que inspirou a 
 jurisprudência do Tribunal que reconheceu a existência de um direito fundamental 
 ao mínimo de sobrevivência condigna.
 Com efeito, nos casos dos Acórdãos nºs 232/91, 349/91, 62/2002 e 509/2002 (inter 
 alia), o Tribunal disse que a ordem constitucional portuguesa reconhecia a 
 existência de um direito (não escrito) a um mínimo de sobrevivência, entendido 
 quer na sua vertente negativa – enquanto direito a não se ser privado do mínimo 
 necessário a uma vida digna – quer na sua vertente positiva – enquanto direito à 
 prestação da comunidade estadual destinada a assegurar o mínimo necessário à 
 sobrevivência (quanto a esta última vertente, Acórdão nº 509/2002).
 Em todos estes casos, e em última análise, estribou‑se a fundamentação do 
 Tribunal no princípio do Estado de direito. Na verdade, o que então se disse foi 
 que o direito ao mínimo de sobrevivência se deduzia do princípio da dignidade da 
 pessoa humana; e que embora este último princípio tivesse inscrição textual no 
 artigo 1º da CRP, a sua sedes materiae se encontraria afinal no artigo 2º, na 
 medida em que a “dignidade humana” se deveria considerar como sendo parte 
 integrante da dimensão material do princípio do Estado de direito.
 
 É por isso de crer que, invocando agora a recorrente a violação (por parte das 
 normas do Código Civil que atrás analisámos) do artigo 2º da Constituição, o 
 fará com fundamento numa possível extensão de toda esta jurisprudência ao caso a 
 julgar no presente recurso, de modo a que também nele se conclua pela regra da 
 impenhorabilidade total do rendimento auferido a título de salário – por 
 imposição de tal direito ao mínimo de sobrevivência decorrente do princípio 
 consagrado no artigo 2º da CRP.
 Mas se assim é – e não se vê por que outro motivo seriam aqui invocadas as 
 exigências decorrentes do princípio do Estado de direito – desde logo se diga 
 que nenhuma razão assiste, quanto a este ponto, à recorrente.
 Com efeito, toda a corrente jurisprudencial a que acima nos referimos partiu de 
 um pressuposto essencial: o de que só estaria em causa o direito a não se ser 
 privado do mínimo necessário à sobrevivência naquelas – e só naquelas – 
 situações em que o montante do rendimento auferido não fosse superior ao do 
 salário mínimo ou ao do rendimento mínimo garantido, consoante os casos. 
 Nada nos autos permite concluir que se repita, in casu, a mesma fattispecie. 
 Assim sendo, não tem razão a recorrente, quando nele invoca a violação do 
 princípio do Estado de direito. 
 
  
 
  
 
 6.  Da garantia constitucional da propriedade privada
 Afirma em seguida a recorrente que, na ‘dimensão interpretativa’ acima 
 identificada (e tal qual aplicada pela sentença recorrida), as normas contidas 
 no nº 2 do artigo 1682º e na alínea a) do nº 2 do artigo 1696ºdo Código Civil 
 lesam a garantia constitucional da propriedade privada, consagrada desde logo no 
 nº 1 do artigo 62º da CRP («A todos é garantido o direito à propriedade privada 
 e à sua transmissão em vida e por morte, nos termos da Constituição.»)
 A afirmação só tem sentido se se considerar que, não obstante o lugar que lhe é 
 atribuído pelo discurso constitucional, o «direito à propriedade» é – pelo menos 
 em certa medida – um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, 
 liberdades e garantias, ou seja, um direito fundamental de defesa. 
 Com efeito, o artigo 62º insere-se no Título III da Parte II da Constituição, 
 que é relativo aos direitos e deveres económicos, sociais e culturais. Mais 
 precisamente, a CRP apresenta a «garantia da propriedade» como sendo um dos 
 direitos [e deveres] económicos, enunciado no Capítulo I daquele Título III. Ora 
 
 – e como bem se sabe – tem sempre dito a jurisprudência e a doutrina que um 
 direito dotado de tal natureza (ou seja, com a estrutura típica dos chamados, 
 por antonomásia, ‘direitos sociais’ ou ‘direitos a prestações’) não pode em 
 princípio ser lesado por acção do próprio legislador. (A admissibilidade de uma 
 tal ‘lesão’ – por acção, que não por ‘omissão’ legislativa – será quando muito 
 pensável nos casos de existência dos chamados ‘direitos derivados a prestações’, 
 e sempre que estiver também em causa a lesão de outros princípios 
 constitucionais, como o princípio da igualdade e o princípio da protecção da 
 confiança: da questão, que é vasta, não cuidaremos agora). 
 As razões por que tal sucede são simples. Tratando-se um direito social de um 
 direito a acções e prestações estaduais, cujo conteúdo não pode ser determinado 
 ao ‘nível’ das opções constitucionais, a sua concretização depende precisamente 
 da acção do legislador ordinário, que constitui afinal o próprio direito. (entre 
 muitos outros: Acórdãos nº 508/99; 131/92; 151/92, e José Carlos Vieira de 
 Andrade, 
 Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, Coimbra, 
 
 3ª ed. 2004, pp. 385 e ss.) 
 Assim, se se considerar que a «garantia da propriedade» é, como indica o seu 
 lugar sistemático, um «direito a prestações», não faz sentido invocar, como se 
 invoca no caso dos autos, a sua lesão por acção do legislador. Já não assim, 
 evidentemente, se se entender que – não obstante a sua inserção no discurso 
 constitucional – o direito contido no artigo 62º é, pelo menos em certa parte, 
 um direito de defesa, ou seja, um direito de estrutura análoga à dos direitos, 
 liberdades e garantias. 
 O Tribunal Constitucional tem sufragado, por diversas vezes, semelhante 
 entendimento. 
 Com efeito, no Acórdão nº 187/2001 – que faz, neste domínio, uma síntese 
 expressiva de toda a orientação jurisprudencial anterior –, o Tribunal disse 
 que, sendo afinal a «propriedade» um pressuposto da autonomia das pessoas, algum 
 
 «núcleo» dela teria que ser entendido como «direito, liberdade e garantia»; e 
 que, dentro deste «núcleo», se contaria seguramente quer o direito a não se ser 
 privado da mesma propriedade (através da consagração constitucional do instituto 
 da expropriação, no nº 2 do artigo 62º), quer, em certa medida, o direito à 
 
 «apropriação» de bens e à sua transmissão por vida ou por morte, cuja sedes 
 materiae se encontraria, precisamente, no nº 1 do artigo 62º. 
 Esta orientação, sufragada pelo Tribunal, coincide aliás com aquela que é 
 seguida por outras ordens constitucionais, próximas da nossa quanto a escolhas 
 fundamentais de valores. A Constituição alemã, por exemplo, (que não conhece 
 aliás os chamados ‘direitos sociais’), consagra a garantia da propriedade no 
 artigo 14º, logo a seguir aos direitos de inviolabilidade de domicílio (artigo 
 
 13º) e à liberdade de escolha da profissão (artigo 12º), que são, evidentemente, 
 típicos ‘direitos de defesa’. Por seu turno, a Constituição espanhola, que 
 também não inclui no seu elenco ‘direitos sociais’ – pois que contém antes, no 
 Capítulo III, princípios informadores da política social e económica – reconhece 
 o «direito à propriedade privada e à herança» no artigo 33º, incluído no 
 capítulo relativo aos «direitos e liberdades». Finalmente, a Constituição 
 italiana consagra o direito no artigo 42º, inserto na Parte I, reservada à 
 consagração dos «direitos e deveres dos cidadãos». 
 Contudo – e é este o ponto que deve agora ser sublinhado – em todas estas ordens 
 jurídicas se diz que, sendo embora o direito de propriedade em certa medida 
 análogo aos clássicos ‘direitos de defesa’, não pode deixar de se ter em conta a 
 
 «especialidade» da sua «natureza» – e, mais precisamente, a «especialidade» da 
 sua relação com a lei ordinária – por contraposição com os demais direitos e 
 
 ‘liberdades’ clássicos. 
 Este dito, que é comum na jurisprudência e doutrina estrangeiras (ver, por 
 exemplo, Stelio Mangiameli, La Proprietà Privata nella Costituzione, Milano, 
 Giuffré Editore, 1986 e Fernando Rey Martinez, La Propiedad Privada en la 
 Constitución Espanõla, Centro de Estúdios Constitucionales, Madrid, 1994) é 
 aliás repetido pelo Tribunal no Acórdão nº 187/2001. Aí se afirma, com efeito (e 
 em consonância com toda a jurisprudência anterior) que «[e]stá tal direito de 
 propriedade, reconhecido e protegido pela Constituição, na verdade, bem afastado 
 da concepção clássica do direito de propriedade, enquanto jus utendi, fruendi et 
 abutendi – ou, na formulação impressiva do Código Civil francês (artigo 544), 
 enquanto direito de usar e dispor das coisas de la manière la plus absolu».  Por 
 isso – diz-se ainda no Acórdão atrás citado – a garantia contida no nº 1 do 
 artigo 62º da CRP deve ser entendida, antes do mais, como garantia de instituto 
 endereçada ao legislador ordinário. Este deve conformar legislativamente a 
 propriedade privada; e deve fazê-lo, não em função de uma qualquer teleologia, 
 mas tendo em conta a finalidade que ela prossegue nos termos da Constituição. 
 Significa isto que, enquanto os demais direitos de defesa – ditos clássicos – se 
 encontram sob reserva de constituição, sendo por isso resistentes à lei, a 
 propriedade, mesmo na sua vertente ‘clássica’ ou ‘defensiva’, é garantida 
 constitucionalmente sob uma especial reserva de lei. O legislador ordinário está 
 especialmente vinculado a conformar o conteúdo deste direito; e a conformação 
 legislativa deve ser feita tendo em conta todo o «sistema de valores» 
 constitucionais. Isso mesmo se depreende do nº 1 do artigo 62º da CRP: «[a] 
 todos é garantido o direito à propriedade privada (…) nos termos da 
 Constituição». Como se depreende o mesmo do artigo 14º da Constituição alemã – « 
 A propriedade e o direito à herança são garantidos. O seu conteúdo e limites são 
 estabelecidos pela lei…o seu uso deve ao mesmo tempo servir o bem da comunidade» 
 
 –; do artigo 33º da Constituição espanhola – « É reconhecido o direito à 
 propriedade privada … a função social deste direito limita o seu conteúdo, em 
 conformidade com a lei.» –, e do artigo 42º da Constituição italiana – « A 
 propriedade privada é reconhecida e garantida pela lei, que determina os seus 
 limites … com o fim de assegurar a sua função social.». 
 Ao alegar que o nº 2 do artigo 1682º e a alínea a) do nº 2 do artigo 1696º da 
 Código Civil violam, na ‘dimensão’ interpretativa atrás identificada, a garantia 
 constitucional da propriedade, a recorrente está portanto a afirmar que, nos que 
 aos regimes de administração de bens do casal e de responsabilidade por dívidas 
 de um dos cônjuges diz respeito, o legislador da Reforma de 1977 não conformou, 
 como devia, o direito reconhecido no artigo 62º da Constituição. Dito por outras 
 palavras: o que a recorrente alega é que a ordem de conformação [da propriedade 
 privada] que é endereçada ao legislador ordinário nos termos do nº 1 do artigo 
 
 62º da CRP não foi, quanto aos regimes em discussão, devidamente cumprida, por 
 se não ter tido neles em conta todos os «valores» e «bens» constitucionalmente 
 tutelados e merecedores, no caso, de protecção. Ou, como diz a Constituição, por 
 não ter sido ‘feita’ - a conformação legislativa – ‘nos seus próprios termos’. 
 Não se vê, porém, como sustentar semelhante entendimento. 
 Por um lado – e vimo-lo atrás – o nº 2 do artigo 1682º do Código Civil contém um 
 regime cujo fundamento último se encontra, justamente, na necessidade de 
 conciliar dois ‘valores’ que integram inquestionavelmente o «sistema» normativo 
 da Constituição: a facilitação do tráfego jurídico, de uma parte – sem a qual, 
 note-se, não pode ser «garantida» a propriedade –, e a igualdade de direitos e 
 deveres entre os cônjuges, decorrente do nº 3 do artigo 36º da CRP.
 Por seu turno – e também o vimos – o regime contido no nº 2, alínea a) do artigo 
 
 1696º serve o propósito de conjugar aquele mesmo princípio constitucional 
 igualitário (que, como se concluiu, fundamenta o regime de administração dos 
 bens do casal), com o necessário cumprimento das expectativas e direitos dos 
 credores quanto a dívidas assumidas por um dos cônjuges – sem o qual repita-se, 
 também não poderia por ser assegurada qualquer garantia [constitucional] da 
 propriedade. 
 Assim sendo, não tem razão a recorrente, quando alega, in casu, a violação do 
 direito consagrado no artigo 62º da Constituição. 
 
  
 
  
 
 7.  Da igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges
 Sustenta finalmente a recorrente que o nº 2 do artigo 1682º e a alínea b) do nº 
 
 2 do artigo 1696º do Código Civil lesam – quando ‘lidos’ de acordo com a 
 
 ‘dimensão interpretativa’ atrás identificada – o princípio constitucional de 
 igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges, consagrado no nº 3 do artigo 
 
 36º da Constituição. 
 Já vimos, porém, que foi precisamente este o princípio constitucional que 
 determinou a Reforma do Código de 1977, introduzida pelo Decreto-lei nº 496/77; 
 que data dessa altura a formulação das duas normas impugnadas; que, quando lida 
 no contexto da regulação em que se insere, tal formulação aparece como sendo uma 
 consequência das escolhas feitas pelo legislador da Reforma em matéria de 
 administração dos bens do casal; que tais escolhas se traduziram na adopção de 
 um regime de administração comum, assente portanto no princípio da distribuição 
 igualitária (entre os dois cônjuges) dos poderes de administração; e que, por 
 isso, se não poderia deixar de ver em tal regime uma aplicação leal da 
 Constituição. 
 
 É esta última conclusão que a recorrente vem agora contestar. Ao dizer que não é 
 constitucionalmente tolerável – face, justamente, ao princípio da igualdade de 
 direitos e deveres consagrado no nº 3 do artigo 36º da CRP – que o salário de um 
 dos cônjuges possa ser por ele livremente alienado, e possa responder pelas 
 dívidas da sua exclusiva responsabilidade ao mesmo tempo que os seus bens 
 próprios, [sempre que o salário for bem comum do casal e sempre que se prove que 
 o cônjuge não devedor cumpriu o seu dever de contribuir para os encargos da vida 
 familiar], está a recorrente a dizer que a Reforma de 77 não fez afinal uma 
 concretização correcta da Constituição, pois que outra e mais intensa deveria 
 ter sido a protecção a dar, nestes casos, ao cônjuge não devedor. 
 Vejamos então. 
 O princípio contido no nº 3 do artigo 36º da CRP é uma especificação do 
 princípio contido no nº 2 do artigo 13º. Garantir que, no seio da família, se 
 não estabeleçam elos de subordinação e de dependência (juridicamente tutelados) 
 de um cônjuge em relação a outro, é uma forma especial de garantir – no plano 
 mais recôndito da vida familiar – a não discriminação em função do sexo. E, como 
 discriminar significa «estabelecer diferenças entre as pessoas com fundamento, 
 não num juízo, mas num pré-juízo sobre aquilo que as distingue e sobre aquilo 
 que forma a sua identidade» (assim mesmo, Lawrence H. Tribe, American 
 Constitutional Law, 2ª ed. Mineola, New York, The Foundation Press, 1988, p. 
 
 1480), a proibição da discriminação em função do sexo – quando aplicada aos 
 efeitos do casamento – contém em si mesma, desde logo, uma injunção positiva: o 
 cônjuge-marido e o cônjuge-mulher devem ter (não podem deixar de ter), face à 
 lei, a mesma dignidade. 
 Foi exactamente assim que a Reforma do Código Civil interpretou, e concretizou, 
 a proibição de discriminação contida no nº 3 do artigo 36º. O princípio da igual 
 dignidade dos cônjuges é, com efeito, o princípio que dá coerência e unidade de 
 sentido a todo o sistema de alterações introduzidas pelo Decreto-lei nº 496/77 
 no que diz respeito à regulação dos efeitos do casamento. Tal é especialmente 
 visível no regime de administração de bens, onde se optou pela distribuição 
 igualitária dos poderes de administração (desistindo-se, por isso, de ‘eleger’ o 
 cônjuge administrador, fosse ele marido ou mulher); mas tal é também visível em 
 muitos outros domínios. Pense-se, por exemplo, no próprio uso linguístico do 
 termo ‘cônjuge’, adoptado pelo Código em substituição permanente do uso dos 
 termos ‘marido’ ou ‘mulher’; e pense-se ainda no facto de terem desaparecido do 
 Código todas as formas de pré-determinação das funções no seio da família. A 
 forma como está regulado o dever de contribuir para os encargos da vida familiar 
 
 – que, diz o artigo 1676º, ‘incumbe a ambos os cônjuges, de harmonia com as 
 possibilidades de cada um’ – é aliás particularmente expressiva desta opção do 
 legislador, de não predeterminar ele próprio quaisquer distribuição de tarefas 
 no interior da família. 
 Reconhecer a mesma dignidade a ambos os cônjuges significa, no entanto, 
 reconhecer também que nenhum deles precisa (por ser ‘marido’, ou ‘mulher’) de 
 uma especial e sistemática protecção em relação ao outro, tanto no domínio 
 pessoal quanto no domínio patrimonial. 
 
 É certo que, no domínio patrimonial, o Código não deixou de considerar certos 
 casos em que se configurava necessária a protecção. Veja-se, por exemplo, o 
 regime previsto no nº 3 do artigo 1676º, relativo ao direito de exigir do outro 
 a contribuição devida para os encargos da vida familiar; ou o regime previsto no 
 nº 1 do artigo 1681º, relativo à responsabilidade [de um dos cônjuges] por actos 
 de administração praticados em prejuízo do casal; ou o regime contido no nº 2 do 
 artigo 1682º, relativo à especial protecção da casa da morada de família. Em 
 todos estes casos, porém, a protecção é concedida, indiferenciadamente, a 
 qualquer um dos cônjuges, em nome do interesse comum do casal. A ideia segundo a 
 qual um dos cônjuges precisaria sempre de especial protecção contra o outro (por 
 ser naturalmente enfraquecida a sua condição, fosse ela a de cônjuge-marido ou 
 de cônjuge-mulher) está logicamente ausente do Código. Nem de outro modo poderia 
 ser: é, que no seu cerne, tal ideia – de necessidade de sistemática e especial 
 protecção de um em relação ao outro – seria sempre contrária ao princípio da 
 igual dignidade dos cônjuges. 
 Decorrendo este princípio da proibição de discriminação contida no nº 3 do 
 artigo 36º da Constituição, não se vê como é que, justamente em nome dessa mesma 
 proibição de discriminação, se vem agora sustentar – como sustenta a recorrente 
 
 – que é deficitária – e inconstitucionalmente deficitária – a lei civil, ao não 
 
 ‘proteger’ especialmente, perante o previsto no nº 2 do artigo 1682º e na alínea 
 b) do nº 2 do artigo 1696º do Código, o cônjuge que «toda a sua vida trabalhou, 
 exercendo profissão remunerada, destinando o produto do seu trabalho a fazer 
 face às despesas da vida familiar e à aquisição de bens que constituem o recheio 
 da habitação onde [residem os cônjuges] e onde têm o seu centro de vida 
 doméstica, familiar e social.»
 Não está dentro das capacidades do direito, seja ele constitucional ou legal, a 
 transformação substancial das relações no interior da família. 
 
  
 
  
 III
 Decisão
 Pelos fundamentos expostos, decide-se não conceder provimento ao recurso.
 
  
 Custas pela recorrente, fixadas em  25  u.c. a taxa de justiça.
 
  
 Lisboa, 19 de Dezembro de 2007
 Maria Lúcia Amaral
 Vítor Gomes
 Carlos Fernandes Cadilha
 Ana Maria Guerra Martins
 Gil Galvão