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Processo n.º 23/10
 
 3ª Secção
 Relatora:  Conselheira Ana Guerra Martins
 
 
 Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
 
  
 
  
 
             1. Nos presentes autos, em que é recorrente Ministério Público e 
 recorrida A., a Relatora proferiu a seguinte decisão sumária:
 
  
 
 «I – RELATÓRIO
 
  
 
 1. Nos presentes autos, em que é recorrente o Ministério Público e recorrida A., 
 o primeiro vem interpor recurso, para si obrigatório, ao abrigo do n.º 3 do 
 artigo 280º da Constituição e da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da LTC, do 
 acórdão proferido pela 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra, em 21 de 
 Outubro de 2009 (fls. 675 a 691) que recusou a aplicação da norma constante do 
 artigo 169º, n.º 1, do Código Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 
 
 59/2007, de 04 de Setembro, com fundamento em inconstitucionalidade material, 
 por violação do princípio da proporcionalidade, na vertente da intervenção 
 mínima do Direito Penal, ínsito no n.º 2 do artigo 18º da CRP.
 
  
 Cumpre apreciar.
 
  
 
  
 II – FUNDAMENTAÇÃO
 
  
 
 2. A questão de inconstitucionalidade que constitui objecto do presente recurso 
 já foi apreciada por este Tribunal diversas vezes, sendo sua jurisprudência 
 constante (assim, ver Acórdãos n.º 144/04, n.º 196/04, n.º 303/04, n.º 170/06, 
 n.º 396/07, n.º 522/07 e n.º 591/07, todos disponíveis in 
 
 www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) que a incriminação do lenocínio não 
 configura uma violação do princípio da subsidiariedade do Direito Penal ou 
 sequer de qualquer um dos direitos fundamentais elencados pelo ora recorrente 
 
 (livre desenvolvimento da personalidade sexual – artigo 26º da CRP –, liberdade 
 de expressão através da sexualidade – artigo 37º da CRP –, liberdade de 
 consciência – artigo 41º da CRP – ou ainda a liberdade de escolha de profissão – 
 artigo 47º da CRP).
 
  
 Logo na primeira oportunidade em que foi chamado a tomar posição sobre esta 
 matéria, através do Acórdão n.º 144/04, este Tribunal entendeu o seguinte:
 
  
 
 “(…) questão prévia a tal problemática e decisiva no presente caso, é a de saber 
 se a norma do artigo 170º, nº 1, do Código Penal apenas protege valores que nada 
 tenham a ver com direitos e bens consagrados constitucionalmente, não 
 susceptíveis de protecção pelo Direito, segundo a Constituição portuguesa.
 Ora, a resposta a esta última questão é negativa, na medida em que subjacente à 
 norma do artigo 170º, nº 1, está inevitavelmente uma perspectiva fundamentada na 
 História, na Cultura e nas análises sobre a Sociedade segundo a qual as 
 situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento 
 económico por terceiros são situações cujo significado é o da exploração da 
 pessoa prostituída (cf. sobre a prostituição, nas suas várias dimensões, mas 
 caracterizando-o como “fenómeno social total” e, depreende-se, um fenómeno de 
 exclusão, José Martins Bravo da Costa, “O crime de lenocínio. Harmonizar o 
 Direito, compatibilizar a Constituição”, em Revista de Ciência Criminal, ano 12, 
 nº 3, 2002, p. 211 e ss.; do mesmo autor e Lurdes Barata Alves, Prostituição 
 
 2001 – O Masculino e o Feminino de Rua, 2001). Tal perspectiva não resulta de 
 preconceitos morais mas do reconhecimento de que uma Ordem Jurídica orientada 
 por valores de Justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser 
 mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de acção, situações e 
 actividades cujo “princípio” seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão 
 
 (seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como 
 puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o 
 artigo 1º da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual dignidade 
 da pessoa humana. E é nesta linha de orientação que Portugal ratificou a 
 Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as 
 Mulheres (Lei nº 23/80, em D.R., I Série, de 26 de Julho de 1980), bem como, em 
 
 1991 a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da 
 Prostituição de Outrem (D.R., I Série, de 10 de Outubro de 1991).
 
 (…)
 Não se concebe, assim, uma mera protecção de sentimentalismos ou de uma ordem 
 moral convencional particular ou mesmo dominante, que não esteja relacionada, 
 intrinsecamente, com os valores da liberdade e da integridade moral das pessoas 
 que se prostituem, valores esses protegidos pelo Direito enquanto aspectos de 
 uma convivência social orientada por deveres de protecção para com pessoas em 
 estado de carência social. A intervenção do Direito Penal neste domínio tem, 
 portanto, um significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma 
 perspectiva moral, sem correspondência necessária com valores essenciais do 
 Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de Direito. O 
 significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da protecção da 
 liberdade e de uma “autonomia para a dignidade” das pessoas que se prostituem. 
 Não está, consequentemente, em causa qualquer aspecto de liberdade de 
 consciência que seja tutelado pelo artigo 41º, nº 1, da Constituição, pois a 
 liberdade de consciência não integra uma dimensão de liberdade de se aproveitar 
 das carências alheias ou de lucrar com a utilização da sexualidade alheia. Por 
 outro lado, nesta perspectiva, é irrelevante que a prostituição não seja 
 proibida. Na realidade, ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num 
 certo sentido, uma expressão da livre disponibilidade da sexualidade individual, 
 o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder 
 exprimir já uma interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os 
 contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se 
 prostitui (colocando-o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de 
 uma dimensão especificamente íntima do outro não para os fins dele próprio, mas 
 para fins de terceiros. Aliás, existem outros casos, na Ordem Jurídica 
 portuguesa, em que o autor de uma conduta não é incriminado e são incriminados 
 os terceiros comparticipantes, como acontece, por exemplo, com o auxílio ao 
 suicídio (artigo 135º do Código Penal) ou com a incriminação da divulgação de 
 pornografia infantil [artigo 172º, nº 3, alínea e), do Código Penal], sempre com 
 fundamento na perspectiva de que a autonomia de uma pessoa ou o seu 
 consentimento em determinados actos não justifica, sem mais, o comportamento do 
 que auxilie, instigue ou facilite esse comportamento. É que relativamente ao 
 relacionamento com os outros há deveres de respeito que ultrapassam o mero não 
 interferir com a sua autonomia, há deveres de respeito e de solidariedade que 
 derivam do princípio da dignidade da pessoa humana.
 
  
 
 7. Por outro lado, que uma certa “actividade profissional” que tenha por objecto 
 a específica negação deste tipo de valores seja proibida (neste caso, 
 incriminada) não ofende, de modo algum, a Constituição. A liberdade de exercício 
 de profissão ou de actividade económica tem obviamente, como limites e 
 enquadramento, valores e direitos directamente associados à protecção da 
 autonomia e da dignidade de outro ser humano (artigos 471º, nº 1 e 61º, nº 1, da 
 Constituição). Por isso estão particularmente condicionadas, como objecto de 
 trabalho ou de empresa, actividades que possam afectar a vida, a saúde e a 
 integridade moral dos cidadãos [artigo 59º, nº 1, alíneas b) e c) ou nº 2, 
 alínea c), da Constituição]. Não está assim, de todo em causa a violação do 
 artigo 47º, nº 1, da Constituição. Nem também tem relevância impeditiva desta 
 conclusão a aceitação de perspectivas como a que aflora no pronunciamento do 
 Tribunal de Justiça das Comunidades (Sentença de 20 de Novembro de 2001, 
 Processo nº 268/99), segundo a qual a prostituição pode ser encarada como 
 actividade económica na qualidade de trabalho autónomo (cf., em sentido crítico, 
 aliás, Massimo Luciani, “Il lavoro autonomo de la prostituta”, em Quaderni 
 Costituzionali, anno XXII, nº 2, Giugno 2002, p. 398 e ss.). Com efeito, aí 
 apenas se considerou que a permissão de actividade das pessoas que se prostituem 
 nos Estados membros da Comunidade impede uma discriminação quanto à autorização 
 de permanência num Estado da União Europeia, daí não decorrendo qualquer 
 consequência para a licitude das actividades de favorecimento à prostituição.”
 
  
 A circunstância de a jurisprudência supra mencionada ter sido proferida a 
 propósito do (então) artigo 170º, n.º 1, do Código Penal não invalida a sua 
 aplicação à norma agora extraída do artigo 169º, n.º 1, do Código Penal (na 
 redacção da Lei n.º 59/2007), na medida em que a interpretação desta última 
 norma – tal como vertida na decisão alvo de recurso – corresponde, no seu 
 sentido normativo – à que já resultava da versão anteriormente vigente. A 
 menção, pela decisão recorrida, da eliminação legislativa da referência aos 
 
 “actos sexuais de relevo” não afecta, de modo algum, a identidade daquelas 
 normas, na medida em que – neste caso concreto – não se curava de saber se a 
 arguida era responsável por fomentar, favorecer ou facilitar a prática de “actos 
 sexuais de relevo”, mas antes de actos qualificáveis como “prostituição”.
 
  
 Em suma, mantém-se a jurisprudência deste Tribunal, no sentido de que a 
 incriminação do lenocínio, mesmo nos casos em que se verifique plena liberdade 
 na formação da vontade do/a prostituto/a, não é inconstitucional, por visar 
 proteger bens jurídicos fundamentais que encontram consagração na Constituição 
 Portuguesa.
 
  
 
  
 III – DECISÃO
 
  
 Nestes termos, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, e pelos fundamentos 
 expostos, decide-se: 
 
  
 a)      Não julgar inconstitucional a norma extraída do artigo 169º, n.º 1, do 
 Código Penal, na redacção conferida pela Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro.
 
  
 b)      Ordenar a remessa dos autos ao tribunal recorrido para que seja 
 reformada a decisão recorrida em conformidade com o presente julgamento de não 
 inconstitucionalidade, conforme previsto no n.º 2 do artigo 80º da LTC.
 
  
 Sem custas, por não serem legalmente devidas.»
 
  
 
  
 
 2. Inconformada com a referida decisão, a recorrida veio reclamar, nos seguintes 
 termos:
 
  
 
 «1. Espalda-se a decisão sumária, ora, posta em crise numa pretensa cadência 
 jurisprudencial sobre o objecto do presente recurso. 
 
 2.         Fazendo uma navegação à cabotagem do decidido no Aresto n.° 144/04 
 
 (do qual se transcreve, o que viria, afinal, a ser o corpo da presente Decisão), 
 a Exma. Sr.ª Juíza Conselheira Relatora, limitou-se a expor a adesão àquele, sem 
 no entanto, diz-se com o devido respeito, a fundamentar essa mesma adesão.
 E esta tarefa, in casu, impunha-se, não se logrando com a súmula no epílogo a 
 pp. 4, laconicamente perfunctória e vaga (..“visar proteger bens jurídicos 
 fundamentais que encontram consagração na Constituição Portuguesa”). 
 Mas que bens jurídicos fundamentais são estes- 
 
 3.         E é precisamente este o nó górdio da presente decisão sumária, atado 
 pela própria Exma. Sr.ª Juíza Conselheira Relatora, sem percepção de tal, 
 dizemos nós, com elevado respeito. Vejamos: 
 
 4.         Após a colagem ao Acórdão nº 144/04, a Exma. Sr. Juíza Conselheira 
 Relatora remata sustentando que “mantém-se a jurisprudência deste Tribunal, no 
 sentido de que a incriminação do lenocínio, mesmo nos casos em que se verifique 
 plena liberdade na formação da vontade do/a prostituto/a, não é 
 inconstitucional. 
 
 5.         Ora, perscrutando minuciosamente tal Acórdão referência para esta 
 decisão sumária, surge com a clareza do relâmpago, que não foi esta a orientação 
 perfilhada. 
 
 6.         Como não podia deixar de ser, para tal Acórdão, a plena liberdade de 
 actuação do prostituto não é irrelevante como sucede para a presente decisão 
 sumária. 
 
 7.         Na verdade, aflora-se aí a existência do elemento típico implícito do 
 crime de lenocínio simples e que tange com a exploração económica e social da 
 vítima prostituta, pois só este elemento lhe confere a legitimidade 
 constitucional. 
 
 8.         E muito nos surpreende esta posição dogmática vazada na presente 
 decisão sumária, que se acha em contra-mão, com a maioria da recente orientação 
 adoptada pela Jurisprudência especializada dos nossos Tribunais superiores, que 
 sem pejo e esclarecidamente viram, o que há muito os maiores criminalistas 
 nacionais (v.g. Figueiredo Dias, Costa Andrade, Mouraz Lopes, Anabela Rodrigues, 
 Maria João Antunes) já descortinavam. 
 
 9.         Isto é: Que “o crime de lenocínio é um crime que tem como objecto da 
 tutela um bem jurídico eminentemente pessoal “a liberdade sexual da pessoa que 
 se dedica à prostituição ou por outras palavras, a liberdade e autodeterminação 
 sexual da pessoa” arredados que foram bens jurídicos de natureza supra 
 individual da comunidade ou do Estado relacionados com concepções de ordem moral 
 enquanto fundamentadoras da incriminação de condutas. 
 
 10.       Assim, o que caracteriza este tipo legal de crime e lhe confere 
 legitimidade constitucional é a normal associação entre as condutas que são 
 designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social das 
 pessoas que se dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de subsistência e 
 por isso deve fazer-se uma interpretação restritiva do tipo no sentido de exigir 
 a prova adicional do elemento típico implícito da “exploração económica e 
 social” da vítima prostituta” Vide Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 
 
 144/2004 e 196/2004”. (Excertos tirados do sumário do Aresto do STJ, 5 Secção, 
 de 1/04/2009). 
 
 11.       Do manadeiro fáctico assente no douto Acórdão na 1ª instância, 
 ressalta, com acuidade, não ter ficado provado qualquer exploração da 
 necessidade económica e social de quem se prostituía. 
 
 12.       Ora, e lançando mão do elemento histórico deste tipo legal de crime, 
 anterior à revisão operada pelo D.L. n.º 48/95 de 15 de Março, constata-se que o 
 bem jurídico protegido era sem dúvida alguma, a liberdade sexual das pessoas, 
 por isso, exigindo para o seu preenchimento material que o agente explorasse 
 situações de abandono ou necessidade económica. 
 
 13.       Ainda assim, vozes na Doutrina se levantaram, pugnando que essa 
 exigência não era suficiente para que o comportamento tipificado merecesse a 
 intervenção do Direito Penal. 
 
 14.       Anabela Rodrigues, in “Comentário Conimbricense”, pp.519 e ss, 
 refere:” Com efeito, não se diga que a verificação destas situações, coloca 
 logo, sem mais, a pessoa sem haver alguma pressão sobre esta, numa situação de 
 dependência que a priva de poder decidir-se livremente pela via da prostituição 
 ou da prática de actos sexuais de relevo (...) de vontade deficiente na decisão 
 não se pode falar logo, só pelo facto de a pessoa estar em situação de abandono 
 ou de necessidade económica”. 
 
 15.       E o Prof. Figueiredo Dias defendeu igual posição, referindo tratar-se 
 de “um problema social e de polícia” não se justificando a intervenção penal, 
 pois, que aqueles comportamentos se ligavam a situações de “miséria e de 
 exclusão social”. 
 
 16.       O fluir histórico veio dar razão àqueles que defendiam a 
 descriminalização deste tipo de comportamentos, por não estar em causa a defesa 
 de bens jurídicos fundamentais, nomeadamente o bem jurídico “liberdade sexual 
 das pessoas”. 
 
 17.       Na verdade, a alteração do Código Penal levada a efeito pelo D.L. n.º 
 
 65/98, de 02 de Setembro, tornou evidente, sem qualquer margem para dúvidas, que 
 a incriminação do comportamento subjacente ao lenocínio, p.p. no n.°1 do artigo 
 
 170º, actualmente, 169°, n.º 1 do CP, prende-se com razões de ordem moral. Ao 
 eliminar o requisito “explorando situações de abandono ou de necessidade 
 económica”, o legislador destapou o fraco véu que ainda permitia considerar 
 estar aqui em causa o bem jurídico “liberdade sexual”. 
 
 18.       Com a reforma do referido normativo, tornou-se apodíctico que o bem 
 jurídico ora tutelado é o “sentimento geral de pudor e de moralidade”, sendo por 
 isso ilegítima a incriminação. 
 
 19.       Na esteira de Figueiredo Dias e Costa Andrade, in Direito Penal — 
 Questões Fundamentais, a doutrina geral do crime (Lições ao 3° ano da Faculdade 
 de Direito da Universidade de Coimbra), pp.17 e ss., pode ler-se quanto à função 
 desempenhada pelo direito penal no nosso ordenamento-jurídico o seguinte: 
 
 “radica na protecção das condições indispensáveis da vida comunitária (e neste 
 sentido, a sua função é em verdade subsidiária, fragmentária e, hoc-sensu. 
 
 “acessória”), cumpre-lhe seleccionar, dentre os comportamentos em geral 
 ilícitos, aqueles que, de uma perspectiva teleológica, representam um ilícito 
 geral digno de uma sanção de natureza criminal. Exacta tarefa de selecção ou 
 eleição não pode ser levada a cabo sem uma valoração ético- social do 
 comportamento...”. 
 
 20.       E secundando Anabela Rodrigues, in “O sistema punitivo português”, 
 
 (SUB JUDICE, Janeiro/Junho, 1996, pp.27 e ss.) “Nega-se por isso, a 
 possibilidade de o direito penal intervir em nome de uma qualquer moral social, 
 ao serviço de finalidades transcendentes”. 
 
 21.       Na verdade, e no que tange ao crime de lenocínio cuja prática é 
 imputada à recorrida, trata-se de um crime sem vítima. Do que ficou provado em 
 sede de audiência, não se descortina qualquer lesão ao bem jurídico “liberdade 
 sexual”. 
 
 22.       Eram, portanto, as mulheres livres para se auto-determinarem em termos 
 de comportamento sexual, não podendo a conduta da recorrida, configurar qualquer 
 tipo de lesão ao bem jurídico protegido. 
 
 23.       Ora, se não se vislumbra qualquer bem jurídico violado pela conduta da 
 recorrida, passível de intervenção criminal, repudiamos de forma frontal a 
 incriminação operada pelo n.º 1 do artigo 169° do CP, baseada em critérios 
 morais ou de falsos puritanismos. É, assim, ilegítima a criminalização, por não 
 caber ao direito penal a defesa de quaisquer concepções morais vigentes na 
 sociedade, muito bem tendo andado o douto Acórdão da Relação de Coimbra que 
 recusou a aplicação do predito normativo por flagrante inconstitucionalidade. 
 
 24.       Não é função do direito penal, nem primária, nem secundária, tutelar a 
 virtude ou a moral. Trate-se da moral estadualmente imposta, da moral dominante, 
 ou da moral específica de um qualquer grupo social. Para isso, não está, pois, o 
 direito penal, - como ordem terrena que tem de respeitar a liberdade de 
 consciência de cada um (vide o próprio artigo 41° da CRP), e só pode valer como 
 uma “triste” necessidade num mundo de seres imperfeitos que são os homens — de 
 modo algum legitimado. Nem, por outro lado, os instrumentos de que serve para a 
 sua actuação — as penas e as medidas de segurança — se revelam adequados para 
 fazer valer no corpo social as normas da virtude e da moralidade. Nem, ainda por 
 outro lado, para aplicação de um direito com um tal sentido se encontram 
 legitimados os magistrados e os tribunais, por isso que instâncias legitimadas 
 para castigo do pecado e da imoralidade só podem ser, respectivamente a 
 divindade e a consciência individual. 
 
 25.       A concepção pluralista do Estado implica, no que ao caso importa, que 
 a liberdade de consciência (artigo 41° da CRP) consista essencialmente na 
 liberdade de opção, de convicções e de valores ou seja, a faculdade de escolher 
 os próprios padrões de valoração ou moral da conduta própria e alheia, 
 estribando-nos em Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República 
 Portuguesa Anotada, pp. 242/243. 
 
 26.       O Carácter pluralista e laico do Estado de Direito contemporâneo, 
 vincula-o, a que só utilize os seus meios punitivos próprios para tutela de bens 
 de relevante importância da pessoa e da comunidade e nunca para instauração ou 
 reforço de ordens axiológicas transcendentes de carácter religioso, moral, 
 político, social ou cultural. 
 
 27.       Enfim, o CP visa a protecção de bens jurídicos fundamentais. 
 
 28.       E na esteira das palavras eloquentes dos insignes Prof. Figueiredo 
 Dias e Costa Andrade (in ob. Citada), as puras violações morais não conformam a 
 lesão de um autêntico bem jurídico e não podem, por isso, integrar o conceito 
 material de crime. A evolução do direito penal sexual constitui exemplo 
 paradigmático desta asserção: ele deixou de ser um direito tutelar da 
 
 “honestidade” dos “costumes”, ou dos “bons costumes” — e onde por isso caberia a 
 punibilidade de práticas sexuais que, à luz dos sentimentos gerais de moralidade 
 sexual, devessem ser considerados “desviadas” “anormais”, “viciosas”, ou “contra 
 a natureza”: numa palavra “imorais (a homossexualidade e a prostituição 
 incluídas) — para se tornar num direito de um bem jurídico perfeitamente 
 definido e que reentra, de pleno direito, no capítulo dos crimes contra as 
 pessoas: o bem jurídico da liberdade e autodeterminação da pessoa na esfera 
 sexual”. 
 
 29.       Assim, e à guisa de conclusão a norma do artigo 169°, n. °1 do CP é 
 inconstitucional, porquanto, como toda a criminalização pressupõe a restrição do 
 direito à liberdade (consagrado no artigo 27°, n.°1 da CRP), temos que a norma 
 correspondente ao n.º 1 do artigo em apreço, ao incriminar aquela específica 
 conduta, sem que se verifique a lesão de qualquer bem jurídico digno de tutela 
 
 (seja porque in casu a conduta da recorrente não viola o bem jurídico “liberdade 
 sexual” das pessoas, seja porque a violação de sentimentos morais, não configura 
 lesão de um autêntico bem jurídico, está ferida de inconstitucionalidade, por 
 violação do direito à liberdade (artigo 27°, n. °1 da CRP) e direito à liberdade 
 de consciência (artigo 41°, n. °1 da CRP), violando de forma idêntica o plasmado 
 no n.º 2 do artigo 18° da CRP. 
 
  
 
 30.       Os direitos constitucionalmente consagrados nos artigos 27°, n. °1 e 
 
 41°, n.°1 decorrem do respeito pela dignidade da pessoa humana, consagrado no 
 artigo 1° da Lei Fundamental, pelo que também este normativo constitucional se 
 mostra violado com a incriminação operada pela norma em causa. 
 
  
 
 31.       Porque a tutela de sentimentos gerais de moralidade, é ilegítima face 
 ao princípio do Estado de Direito democrático com matriz pluralista consagrado 
 no artigo 2° da CRP, resta concluir ainda, pela violação deste princípio 
 fundamental. 
 
  
 
 32.       A norma do n.º 1 do artigo 169° do CP, com a redacção que lhe foi dada 
 pelo DL n.º 65/98, de 02 de Setembro, é inconstitucional por violação do 
 disposto nos artigos 1°, 2°, 18°,n. °2, 27°, n.°1 e 41°, n.°1 todos da CRP.» 
 
 (fls. 734 a 742)
 
  
 
 3. Após notificação para efeitos de resposta, o recorrente alegou o seguinte:
 
  
 
 «1º
 Na decisão recorrida, o acórdão da Relação de Coimbra, recusou-se a aplicação, 
 com fundamento em inconstitucionalidade, da norma do artigo 169.º, n.º 1, do 
 Código Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de 
 Setembro, onde se prevê e pune o crime de lenocínio.
 
 2º
 Como sobre tal questão o Tribunal Constitucional já se pronunciou em diversos 
 acórdãos, todos no sentido da não inconstitucionalidade, ela foi considerada 
 simples, tendo sido proferida Decisão Sumária a negar provimento ao recurso.
 
 3.º
 Quer a decisão recorrida, quer o arguido, não adiantam quaisquer argumentos que 
 possam levar a que o Tribunal Constitucional inflicta ou sequer altere o 
 entendimento que tem vindo a perfilhar
 
 4.º
 A questão da constitucionalidade da norma em causa tem a ver, exclusivamente, 
 com o facto de, com a reforma operada pela Lei n.º 55/98, de 2 de Setembro, 
 deixar de constar do tipo legal, a exigência de exploração de situação de 
 abandono ou de necessidade da pessoa que se prostitui.
 
 5.º
 Assim, dada a configuração do tipo legal do crime, não foi produzida, nem sequer 
 tinha que ser apresentada, qualquer prova que se destinasse a apurar se ocorreu 
 aquela exploração.
 
 6.º
 Nestas circunstâncias, não assume qualquer relevância a afirmação constante do 
 acórdão recorrido de que, “face à matéria de facto, não é clara a eventual 
 existência de exploração da necessidade económica” (fls. 690).
 
 7.º
 Neste campo e ainda no que respeita aos factos, convém, no entanto, dizer que 
 foi dado como provado que “as mulheres (…) de cuja actividade de prostituição a 
 arguida retirava proventos eram, em regra, pessoas com dificuldades económicas, 
 sem recursos financeiros e sem qualificações profissionais” (fls. 681).
 
 8.º
 Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
 
  
 Cumpre agora apreciar e decidir.
 
  
 
  
 II – FUNDAMENTAÇÃO
 
  
 
  
 
 4. Antes de mais, deve notar-se que a presente reclamação perfilha um 
 entendimento contrário à jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional – 
 
 à qual a decisão reclamada aderiu – acerca da concepção do tipo de crime 
 
 “lenocínio”. É certo que uma parte da doutrina – invocada pela reclamante em 
 abono da sua posição – sustenta aquela tese, mas a verdade é que a propósito da 
 concepção do referido tipo de crime como crime de perigo abstracto ou de perigo 
 concreto, este Tribunal não confirma a tese esgrimida pela ora reclamante.
 
  
 E nem se diga que a decisão sumária não respeita o espírito do Acórdão n.º 
 
 144/04, que lhe serviu de fundamento, pois isso não corresponde à verdade. 
 
  
 O Acórdão n.º 144/04 admitiu que, mesmo que a actividade de prostituição não 
 seja penalmente incriminada (ou sequer proibida) – o que demonstra o 
 reconhecimento pela liberdade sexual do/a prostituto/a –, seria sempre 
 constitucionalmente admissível incriminar a exploração daquela actividade por 
 terceiros, ainda que consentida pelo/a prostituto/a, em homenagem ao princípio 
 da dignidade da pessoa humana.
 
  
 Ora, do próprio excerto transcrito pela decisão sumária resulta clara a adesão 
 ao referido Acórdão. Senão vejamos:
 
  
 
 «(…) ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma 
 expressão da livre disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o 
 aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma 
 interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da 
 prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (…)».
 
             
 
             Em conclusão, a decisão sumária limitou-se a aplicar jurisprudência 
 anterior, conforme é permitido pelo artigo 78º-A da LTC. Como tal, mantendo esta 
 conferência a adesão à supra referida jurisprudência consolidada, não subsiste 
 qualquer fundamento para reformar a decisão reclamada.
 
  
 
  
 III – DECISÃO
 
  
 Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo 
 
 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei 
 n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
 Custas devidas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos 
 termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro, sem prejuízo da 
 dispensa do respectivo pagamento, por força do benefício de apoio judiciário de 
 que goza a reclamante.
 
  
 Lisboa, 14 de Abril de 2010
 Ana Maria Guerra Martins
 Vítor Gomes
 Gil Galvão