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Processo n.º 1005/04
 
 2.ª Secção
 Relator: Conselheiro Mário Torres
 
  
 
  
 
  
 
                         Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
 
  
 
  
 
                         1. Relatório
 
                         Em processo de execução instaurado por A., contra B., 
 foi determinada, por despacho de 2 de Abril de 2004 do Juiz do Tribunal Judicial 
 da Comarca de Vila Nova de Famalicão, a penhora de 1/3 do vencimento da 
 executada, até ao montante da quantia exequenda e legais acréscimos.
 
                         A executada veio deduzir oposição à penhora, aduzindo 
 ser o seu agregado familiar constituído por si e por seu filho menor e não ter 
 outros rendimentos ou bens além do seu salário mensal líquido de € 387,91, com o 
 qual tem de alimentar-se, vestir-se e tratar-se, quer na saúde quer na doença, e 
 tem de alimentar, vestir, educar e tratar, quer na saúde quer na doença, o seu 
 filho menor, que está a seu cargo. Por isso, a penhora de qualquer quantia 
 daquele salário põe em causa a sua subsistência e do seu agregado familiar, 
 ficando no limiar da pobreza, e ofende o princípio da dignidade humana, ínsito 
 no princípio do Estado de direito, consagrado no artigo 1.º da Constituição da 
 República Portuguesa (CRP), sendo o artigo 824.º, n.º 3 [sic], do Código de 
 Processo Civil (CPC) inconstitucional, na interpretação dada pelo tribunal, por 
 ofender aquele princípio constitucional e ainda os artigos 59.º, n.º 2, alínea 
 a), e 63.º, n.ºs 1 e 3, da CRP, invocando o decidido no Acórdão n.º 62/2002 do 
 Tribunal Constitucional.
 
                         A oposição foi indeferida por despacho de 7 de Junho de 
 
 2004, com a seguinte fundamentação:
 
  
 
             “Dispõe o artigo 863.°-A do CPC [aditado pelo Decreto-Lei n.º 
 
 329-A/95, de 12 de Dezembro, e na redacção anterior à que lhe foi dada pelo 
 Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março] que: «Sendo penhorados bens 
 pertencentes ao executado, pode este opor-se à penhora e requerer o seu 
 levantamento, suscitando questões que não hajam sido expressamente apreciadas e 
 decididas no despacho que a ordenou e que obstem: a) À admissibilidade de 
 penhora dos bens concretamente apreendidos ou à extensão com que ela foi 
 realizada; (...)».
 
             Por seu turno, estatui o artigo 824.°, n.° [1], alínea [a)], do 
 citado diploma legal [na redacção do Decreto-Lei n.º 329-A/95] que: «Não podem 
 ser penhorados: a) Dois terços dos vencimentos ou salários auferidos pela 
 executado.»
 
             E no n.º 2 do citado artigo [na redacção do Decreto-Lei n.º 180/96, 
 de 25 de Setembro] diz-se que: «A parte penhorável dos rendimentos no número 
 anterior é fixada pelo juiz entre um terço e um sexto, segundo o seu prudente 
 arbítrio, tendo em atenção a natureza da dívida exequenda e as condições 
 económicas do executado».
 
             Compulsados os autos, verifica-se que a executada invoca na sua 
 oposição a ausência de um salário que lhe permita a si e ao seu agregado 
 familiar viver com dignidade.
 
             Salvo melhor opinião, e reconhecendo que a executada não viverá, 
 seguramente, numa situação desafogada, o certo é que a mesma tem um salário 
 mensal superior ao salário mínimo nacional, sendo certo, ainda, que a mesma não 
 demonstrou, documentalmente, que vive com o filho menor.
 
             Destarte, e sem necessidade de outras considerações, indefere-se a 
 requerida oposição.”
 
  
 
                         Notificada deste despacho, veio dele a executada 
 interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 
 
 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do 
 Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e 
 alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), 
 pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 1.º, 
 
 59.º, n.º 2, alínea a), e 63.º, n.ºs 1 e 3, da CRP, da norma do artigo 824.º, 
 n.ºs 3 e 4 [sic], do CPC.
 
                         Neste Tribunal, a recorrente apresentou alegações, que 
 terminam com a formulação das seguintes conclusões:
 
  
 
             “1.ª – O valor sobre que incide a penhora do salário mensal, que o 
 artigo 824.º, n.º 1, alínea a), do CPC permite, é aquele que vai para além da 
 quantia mensal que permite a uma pessoa viver com o mínimo de dignidade, ou 
 seja, que não retire salário sem o qual não pode alimentar-se e vestir-se.
 
             2.ª – A executada necessita do seu salário mensal para ela e seu 
 filho menor se alimentarem, vestirem-se, cuidar do seu aspecto higiénico, da 
 saúde e tratar-se na doença.
 
             3.ª – O Tribunal, ao ordenar e manter a penhora de 1/3 do salário 
 mensal que a executada aufere, deixou-a sem possibilidades económicas de manter 
 a si e ao seu filho o mínimo de dignidade.
 
             4.ª – Daí que a norma do artigo 824.º, n.º 1, alínea a), do CPC seja 
 inconstitucional, na interpretação que lhe foi dada pelo Tribunal, ao permitir 
 que a executada fique privada de salário mensal sem o qual não pode, ela e o seu 
 filho menor, manter o mínimo de dignidade que o Estado de direito, consagrado 
 no artigo 1.º da CRP, garante a qualquer cidadão.
 
             5.ª – É, ainda, inconstitucional, na interpretação dada pelo 
 Tribunal recorrido, por violação dos artigos 59.º, n.º 2, alínea a), e 63.º, 
 n.ºs 1 e 3, ambos da CRP.”
 
  
 
                         A recorrida contra-alegou, preconizando o improvimento 
 do recurso.
 
                         Proferiu então o relator, em 20 de Maio de 2005, 
 despacho no qual, após referir que, “face ao teor das alegações da recorrente, é 
 sustentável que ela, em rigor, suscita, não uma questão de 
 inconstitucionalidade normativa, mas de inconstitucionalidade da própria 
 decisão judicial, em si mesma considerada, o que, como é sabido, não constitui 
 objecto adequado do recurso de constitucionalidade” e que, “por outro lado, 
 também é sustentável que a decisão recorrida não terá feito aplicação da 
 interpretação do artigo 824.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, 
 no sentido de «permitir que a executada fique privada de salário mensal sem o 
 qual não pode, ela e o seu filho menor, manter o mínimo de dignidade que o 
 Estado de direito, consagrado no artigo 1.º da CRP, garante a qualquer 
 cidadão”, determinou a notificação da recorrente “para se pronunciar, 
 querendo, sobre estas questões, eventualmente conducentes ao não conhecimento 
 do objecto do recurso”.
 
                         Notificada deste despacho, a recorrente apresentou 
 resposta no primeiro dia útil subsequente ao termo do respectivo prazo e, apesar 
 de avisada para o efeito, não procedeu ao pagamento da multa prevista no n.º 6 
 ao artigo 145.º do CPC, pelo que aquela resposta não pode ser considerada.
 
                         Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
 
  
 
  
 
                         2. Fundamentação
 
                         Como se referiu no despacho do relator, de 20 de Maio de 
 
 2005, no sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a 
 competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da 
 inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade 
 constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas, 
 hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o 
 sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões 
 de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si 
 mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade 
 
 é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada directamente 
 a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão 
 recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso 
 concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, susceptível de 
 aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a 
 aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do 
 caso concreto.
 
                         Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao 
 abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente 
 caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos 
 de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada “durante o 
 processo”, “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu 
 a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 
 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua 
 ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo 
 recorrente.
 
                         Acresce que, quando o recorrente questiona a 
 conformidade constitucional de uma interpretação alegadamente acolhida pelo 
 tribunal recorrido, deve identificar essa interpretação com o mínimo de 
 precisão, não sendo idóneo, para esse efeito, o uso de fórmulas como “na 
 interpretação dada pela decisão recorrida” ou similares. Com efeito, para usar a 
 formulação do Acórdão n.º 367/94: “Ao suscitar-se a questão de 
 inconstitucionalidade, pode questionar-se todo um preceito legal, apenas parte 
 dele ou tão-só uma interpretação que do mesmo se faça. (...) esse sentido (essa 
 dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma que, no caso de 
 vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão 
 em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do 
 direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o 
 preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, violar a 
 Constituição.”
 
                         Ora, no presente caso – e mesmo não atribuindo 
 relevância à invocação, pela recorrente, como preceito legal a que reportou a 
 interpretação arguida de inconstitucional, do n.º 3 (que respeita à penhora de 
 dinheiro ou de saldo bancário de conta à ordem), quando se afiguraria mais 
 correcta a invocação da alínea a) do n.º 1 (que respeita à penhora de 
 vencimentos e salários) do artigo 824.º do CPC –, não só a recorrente não 
 logrou identificar, com precisão, qual a interpretação normativa, dotada de 
 generalidade e abstracção, que o tribunal teria erigido em critério decisório e 
 a que depois teria subsumido o caso concreto, como a inconstitucionalidade surge 
 directamente imputada à própria decisão judicial, em si mesma considerada e 
 inseparável das especificidades do caso concreto.
 
                         Por outro lado, a decisão recorrida não deu como provado 
 que, com a efectivação da penhora decretada, a recorrente, que tem um salário 
 mensal superior ao salário mínimo nacional, ficasse desprovida de meios para se 
 manter com o mínimo de dignidade, mas tão-só que não viverá numa situação 
 desafogada, e também não deu como provado que ela viva com o seu filho menor. 
 Assim, mesmo que fosse possível descortinar na formulação da 4.ª conclusão da 
 alegação da recorrente a identificação de um critério normativo, ele não teria 
 sido o adoptado pela decisão recorrida, pelo que, também por esta razão, não se 
 poderia conhecer do objecto do presente recurso.
 
  
 
                         3. Decisão
 
                         Em face do exposto, acordam em não conhecer do objecto 
 do presente recurso.
 
                         Custas pela recorrente, que beneficia de apoio 
 judiciário, fixando-se a taxa de justiça em 10 (dez) unidades de conta.
 
  
 Lisboa, 21 de Setembro de 2005
 
  
 Mário José de Araújo Torres
 Benjamim Silva Rodrigues
 Paulo Mota Pinto
 Maria Fernanda Palma
 Rui Manuel Moura Ramos