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Processo n.º 242/09
 
 3ª Secção
 Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
 
                                                                            
 
  
 Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
 
 
 
  
 I. Relatório
 
  
 
  
 
 1. Na presente acção emergente de contrato individual de trabalho que A. 
 intentou, no Tribunal de Trabalho de Lisboa, contra a B., S.A., em vista à 
 condenação da ré no pagamento de diversas prestações retributivas, veio a ser 
 declarada  a incompetência, em razão da matéria, do foro laboral e, em 
 consequência, decretada a absolvição da instância, por decisão de primeira 
 instância depois confirmada, em recurso, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, por 
 se ter entendido que eram os tribunais administrativos os competentes para 
 conhecer do pedido.
 
  
 Tendo o autor interposto o recurso previsto no artigo 107º, n.º 2, do Código de 
 Processo Civil para fixação do tribunal competente, o Tribunal de Conflitos, por 
 acórdão de 4 de Novembro de 2008, depois reformado pelo acórdão de 5 de 
 Fevereiro de 2009,  veio declarar materialmente competentes os tribunais 
 administrativos, considerando, além do mais, não ocorrer a invocada 
 inconstitucionalidade, por pretensa violação dos artigos 61º, nº 1, e 86º, nº 2, 
 da Constituição da República, das normas dos artigos 7º do Decreto-Lei n.º 2/94, 
 de 10 de Janeiro, e 25º dos Estatutos da B., SA, aprovados pelo mesmo diploma, 
 na parte em que determinam que os funcionários oriundos da antiga Emissora 
 Nacional continuam a ser funcionários públicos, em regime de provimento 
 definitivo.
 
  
 O autor interpôs então recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do 
 disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, 
 pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade das seguintes normas:
 
  
 a) artigo 7.° do Decreto-Lei n.° 2/94 de 10 de Janeiro, quando interpretado no 
 sentido de considerar que os trabalhadores da B., SA, oriundos da Emissora 
 Nacional continuam a ser funcionários públicos, em regime de provimento 
 definitivo; 
 b) n.°s 2 e 3 do artigo 25.° dos Estatutos da B., SA, publicados em anexo ao 
 Decreto-Lei n.° 2/94 de 10 de Janeiro, quando interpretados no sentido de 
 considerar que os trabalhadores da B., SA, oriundos da Emissora Nacional 
 continuam a ser funcionários públicos, em regime de provimento definitivo; 
 c) n.° 1 do artigo 19 e artigo 3.° dos Estatutos da B., SA, publicados em anexo 
 ao Decreto-Lei n.° 2/94, de 10 de Janeiro, quando interpretados no sentido de 
 que, sendo o Estado o único accionista da B., SA, não pode esta ser considerada 
 uma empresa privada; 
 d) artigos 19º, n.°s 1 e 2, e 5° do Código das Sociedades Comerciais quando 
 interpretados no sentido de que sendo o Estado o único accionista da B., SA, não 
 pode esta ser considerada uma empresa privada.
 
  
 No mesmo requerimento, imputou às duas primeiras interpretações normativas a 
 violação do princípio da liberdade de gestão das empresas privadas face ao 
 Estado, consagrado no artigos 61°, n.° 1, e 86°, n.° 2, da Constituição, e às 
 duas últimas, a violação do  princípio do Estado de direito democrático na 
 vertente de segurança e certeza jurídicas, decorrente dos artigos 2.° e artigo 
 
 3.°, n.° 1, da Constituição.
 
  
 Por despacho do relator o processo prosseguiu para alegações com a indicação de 
 que, no seu parecer, não deveria conhecer-se do objecto do recurso quanto às 
 questões de inconstitucionalidade mencionadas nas alíneas c) e d) do 
 requerimento de interposição de recurso, por incumprimento do ónus de suscitação 
 e, também por não terem elas constituído a ratio decidendi da decisão recorrida.
 
  
 Nas suas alegações, o recorrente veio desistir do recurso quanto às referidas 
 questões de constitucionalidade identificadas nas alíneas c) e d) do 
 requerimento de interposição de recurso, e, quanto ao mais, sustentou, em 
 resumo, o seguinte:
 
  
 
 - os trabalhadores das empresas públicas não mantêm a sua qualidade de 
 funcionários públicos quando tenham transitado para uma nova entidade 
 empregadora, de natureza jurídica diversa, e, designadamente, quando passem a 
 integrar uma pessoa colectiva de direito privado, como é o caso da actual B., 
 SA;
 
 - não pode considerar-se como correspondendo ao “interesse geral”, para efeito 
 da conformação do direito de iniciativa económica privada, tal como previsto no 
 artigo 61º, n.º 1, da Constituição, o simples interesse de um pequeno grupo de 
 funcionários públicos, que pudessem beneficiar com  manutenção do regime 
 estatutário a que estavam anteriormente afectos;
 
 - considerando que uma das componentes da liberdade de gestão da empresa privada 
 respeita à gestão do seu pessoal (admissão, tarefas, horário de trabalho, local 
 de prestação de trabalho, poder disciplinar, etc.), a manutenção de um vínculo 
 de direito público para uma parte do seu pessoal implica que o Estado possa 
 interferir ou intervir na gestão da empresa, em violação do disposto no artigo 
 
 86.º, n.º 2, da Constituição.
 
 - termos em que devem ser declaradas inconstitucionais as normas constantes do 
 artigo 7º do Decreto-Lei n.º 2/94, de 10 de Janeiro, e do artigo 25º dos 
 Estatutos da B., SA, aprovados pelo mesmo diploma, quando interpretadas no 
 sentido de que os funcionários oriundos da Emissora Nacional continuam a ser 
 funcionários públicos, em regime de provimento definitivo, por violação disposto 
 n.º 1 do artigo 61º e n.º 2 do artigo 86º da Constituição.
 
  
 A recorrida B., S.A. contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:
 
  
 A) O Decreto-Lei nº. 2/94, de 10 de Janeiro, e os Estatutos da B., S.A., a ele 
 anexos, cujos arts., respectivamente, 7º. e 25º. o Recorrente pretende ver 
 declarados inconstitucionais, quando interpretados no sentido de os funcionários 
 oriundos da extinta Emissora Nacional continuarem a ser funcionários públicos, 
 em regime de provimento definitivo, foram revogados, com efeito reportados a 1 
 de Janeiro de 2007, pelo art. 13º. da Lei nº. 8/2007, de 14 de Fevereiro, o que 
 torna inútil ou desprovido de objecto o presente recurso; por outro lado,
 B) O que o recorrente questiona não é o facto de os preceitos em apreço lhe 
 terem reconhecido, enquanto trabalhador proveniente da ex-Emissora Nacional, um 
 conjunto de direitos próprios do estatuto de funcionário público, mantendo-lhe 
 assim um regime especial, mas sim a  conclusão que daí extraiu a decisão 
 recorrida em sede de fixação da competência material jurisdicional, atribuindo-a 
 ao foro administrativo e fiscal em detrimento do foro laboral, o mesmo é dizer 
 que a discordância do A. recai sobre a decisão, deixando incólume a conformidade 
 constitucional das normas materiais invocadas, e são estas, e só estas, as 
 susceptíveis de desencadear o pretendido juízo de inconstitucionalidade; aliás,
 C) A manutenção do estatuto especial em apreço, consignado nos sucessivos 
 diplomas por que se regeu a B. desde a sua criação pelo DL nº. 674-C/75 até ao 
 presente, obedece à exigência constitucional da garantia da segurança no emprego 
 firmada no art. 53º. da CRP, a qual, enquanto integrante dos direitos, 
 liberdades e garantias dos trabalhadores, não só é limitativa da liberdade da 
 iniciativa económica privada (art. 61º. n.º1, da CRP), como não representa uma 
 forma de intervenção estadual directa na gestão de empresas privadas, tanto mais 
 que a B., enquanto empresa autónoma, sempre integrou o sector audiovisual, 
 qualidade que mantêm.
 
  
 Notificado para se pronunciar, querendo, sobre as questões prévias suscitadas 
 pela recorrida, o recorrente veio dizer, em síntese, o seguinte:
 
  
 
 - a Lei n.° 8/2007 não é aplicável ao caso sub juditio, visto que entrou em 
 vigor após a cessação da relação laboral que constitui objecto da acção, 
 ocorrida em 21 de Julho de 2003, mantendo por isso plena utilidade a apreciação 
 das normas que regulavam a essa data a situação jurídica do recorrente;
 
 - o recurso foi interposto da decisão do Tribunal de Conflitos na parte em que 
 aplicou as normas dos artigo 7.° do Decreto-Lei n.° 2/94, de 10 de Janeiro, e 
 
 25.°, n.ºs 2 e 3, dos Estatutos da B., SA, que constituiram o fundamento da 
 declaração de competência dos tribunais administrativos para conhecer da acção. 
 
  
 O relator ordenou ainda a notificação do recorrente para se pronunciar quanto à 
 possibilidade de se não conhecer do recurso por falta de legitimidade para 
 recorrer, considerando que os princípios constitucionais invocados como 
 fundamento do recurso de constitucionalidade respeitam à esfera jurídica da 
 recorrida, enquanto entidade empregadora, e não integram uma posição jurídica 
 subjectiva de que o recorrente possa considerar-se titular.
 
  
 O recorrente respondeu, dizendo que tem legitimidade para recorrer por ser parte 
 vencida no processo e que as questões de constitucionalidade suscitadas se 
 repercutem na relação material controvertida, pelo que não há motivo para não 
 conhecer do objecto do recurso.
 
  
 Cabe apreciar e decidir.
 
  
 
  
 II. Fundamentação
 
  
 
  
 
 2. Face aos termos em que foi deduzido o requerimento de interposição de 
 recurso, este tinha por objecto quatro diferentes interpretações normativas 
 atinentes aos artigos 7.° do Decreto-Lei n.° 2/94, de 10 de Janeiro, e 25.°, 
 n.ºs 2 e 3, dos Estatutos da B., SA, e, bem assim, aos artigos 19º, n.º 1, e 3.° 
 destes Estatutos, e 19º, n.°s 1 e 2, e 5° do Código das Sociedades Comerciais.
 
  
 Nas suas alegações, no entanto, o recorrente desistiu do recurso no tocante às 
 duas últimas interpretações normativas, pelo que, sendo a desistência admissível 
 
 (artigo 681º, n.º 4, do Código de Processo Civil), haverá que circunscrever o 
 seu objecto àquelas que se reportam aos artigos 7.° do Decreto-Lei n.° 2/94 e 
 
 25.°, n.ºs 2 e 3, dos Estatutos da B., SA, com a consequência de apenas se 
 poderem considerar, na apreciação do fundo, os parâmetros constitucionais que o 
 recorrente invocou em relação a essas normas.
 
  
 A recorrida sustenta, porém, a inutilidade superveniente da lide por considerar 
 que as normas cuja constitucionalidade constituem objecto do recurso foram 
 entretanto revogadas, por substituição, pela Lei nº. 8/2007, de 14 de Fevereiro, 
 cujos efeitos se reportam, nos termos do seu artigo 14º, a 1 de Janeiro de 2007.
 
  
 Certo é que o referido diploma legal procedeu à reestruturação da concessionária 
 do serviço de rádio e televisão, atribuindo a prestação dos serviços públicos de 
 rádio e de televisão à C., S.A., para a qual se transmitiu a posição jurídica de 
 empregadora que era detida anteriormente pela B., S. A. (artigos 1º, n.º 1, e 
 
 9º, n.º 1).
 
  
 Todavia, estando em consideração uma decisão judicial atributiva de competência 
 contenciosa aos tribunais administrativos para conhecimento do objecto da acção, 
 essa competência deve entender-se como fixada no momento da propositura da 
 causa, como determina o artigo 5º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais 
 Administrativos e Fiscais, sendo irrelevantes as modificações de facto e de 
 direito que ocorram posteriormente.
 
  
 Assim, embora de não ignore que  o n.º 3 do artigo 9º da referida Lei nº. 8/2007 
 manteve o regime de transição que era anteriormente aplicável, por força do 
 disposto nos artigos 7º do Decreto-Lei n.º 2/94, de 10 de Janeiro, e 25º dos 
 Estatutos da B., SA, ao pessoal oriundo da antiga Emissora Nacional - o que 
 mantém intocados os pressupostos em que se moveu a decisão recorrida -, a 
 verdade é  que a invocada modificação do regime legal em matéria de concessão de 
 serviço público de rádio não poderia ter qualquer efeito prático quanto ao 
 julgado relativo à competência contenciosa, sendo que a decisão sobre o mérito 
 da causa que a final venha a ser emitida sempre se repercutirá na esfera 
 jurídica da actual concessionária, que sucedeu na posição jurídica da B., S. A..
 
  
 Não há, pois, motivo para considerar verificada a pretendida inutilidade 
 superveniente da lide.
 
  
 Assim como não procede a alegação de que a discordância do recorrente se refere 
 unicamente à decisão recorrida, no ponto em que esta atribui competência aos 
 tribunais administrativos para conhecer do pedido, e não a qualquer 
 interpretação que o tribunal a quo tenha feito quanto às mencionadas normas dos 
 artigos 7º do Decreto-Lei n.º 2/94 e 25º dos Estatutos da B., SA.
 
  
 Resulta com evidência do requerimento de interposição de recurso que o 
 recorrente pretende ver apreciada a constitucionalidade desses mesmos preceitos 
 legais, tal como foram aplicados, na apreciação do caso concreto, pelo tribunal 
 recorrido.
 
  
 O recorrente cumpriu, por isso, com rigor, o pressuposto processual do recurso 
 de constitucionalidade que decorre do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do 
 Tribunal Constitucional, pelo qual o recurso incide sobre decisões dos tribunais 
 que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o 
 processo.
 
  
 Também é claro que as normas dos artigos 7º do Decreto-Lei n.º 2/94 e 25º dos 
 Estatutos da B., SA, em causa, constituem a ratio decidendi da decisão 
 recorrida, mantendo-se, assim, a plena utilidade da apreciação do recurso de 
 constitucionalidade, em face do seu reconhecido carácter instrumental. Na 
 verdade, embora a decisão seja relativa à competência material para conhecer do 
 objecto do processo, ela tem como necessário pressuposto a interpretação 
 efectuada pelo Tribunal de Conflitos em relação às referidas disposições legais, 
 de tal modo que se vier a ser emitido um juízo de inconstitucionalidade, tal 
 como pretende o recorrente, o tribunal recorrido terá de reapreciar a questão à 
 luz de um outro critério legal.  
 
  
 
 3. Entende o recorrente que as normas constantes do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 
 
 2/94, de 10 de Janeiro, e do artigo 25º dos Estatutos da B., SA, aprovados pelo 
 mesmo diploma, são inconstitucionais, por violação disposto n.º 1 do artigo 61º 
 e n.º 2 do artigo 86º da Constituição, quando interpretadas no sentido de que os 
 funcionários oriundos da antiga Emissora Nacional continuam a manter um vínculo 
 de direito público, apesar de essa entidade ter sido transformada entretanto em 
 empresa pública e, depois, em sociedade anónima de capitais exclusivamente 
 públicos.
 
  
 Estatui o citado artigo 7º, n.º 1, do Decreto-Lei nº. 2/94 (diploma que operou a 
 transformação da Radiodifusão Portuguesa, EP, que sucedeu à Emissora Nacional, 
 em sociedade anónima denominada B., SA), que  “[o]s trabalhadores e pensionistas 
 da B., E.P., mantêm perante a B., S.A., todos os direitos e obrigações, conforme 
 o estatuto que detiverem à data da entrada em vigor do presente diploma”. Por 
 seu lado, o artigo 25º. dos Estatutos da B., SA determina, no seu n.º 2, que “os 
 trabalhadores oriundos da extinta Emissora Nacional de Radiodifusão (…) mantêm a 
 natureza vitalícia do respectivo vínculo à função pública, naquilo que é 
 inerente à natureza do provimento”, acrescentando o n.º 3 que “[a]os 
 trabalhadores referidos no número anterior continuam a ser aplicáveis as normas 
 respeitantes aos funcionários da administração central, no que se refere à 
 extinção ou modificação do seu vínculo jurídico, ao regime disciplinar, ao 
 regime de férias, faltas e licenças, de doença, de acidentes de serviço, de 
 assistência a familiares doentes, da protecção da maternidade e da paternidade, 
 aos benefícios concedidos pela Direcção-Geral de Protecção Social aos 
 Funcionários e Agentes da Administração Pública (ADSE), à aposentação e pensão 
 de sobrevivência e ao abono de família e prestações complementares”.
 
  
 Interpretando estas disposições no sentido de que caracterizam, para os 
 trabalhadores por elas abrangidos, uma relação de emprego público, o tribunal 
 recorrido veio a considerar que a competência material para conhecer do litígio 
 que opõe o recorrente à B., SA, emergente de uma decisão disciplinar de demissão 
 por esta aplicada, pertence aos tribunais administrativos por efeito do critério 
 de repartição da competência jurisdicional que resulta do próprio texto 
 constitucional (artigo 212º, n.º 3).
 
  
 O recorrente sustenta, no entanto, que a referida interpretação normativa viola 
 a liberdade de iniciativa económica privada, decorrente do artigo 61º, n.º 1, da 
 Constituição, bem como a liberdade de gestão da empresa, que resulta do artigo 
 
 86º, n.º 2, isso porque a B., SA, sendo embora uma unidade económica privada, 
 fica limitada na sua liberdade de organização e de gestão por instrumentos 
 jurídicos de regulação da actividade laboral que são próprios das relações 
 jurídicas de direito público, e, especialmente, da relação jurídica de emprego 
 público.
 
  
 O artigo 61º, n.º 1, da Constituição contempla, de facto, o direito de 
 iniciativa privada como um direito constitucional análogo aos direitos, 
 liberdades e garantias, que envolve um duplo sentido: a liberdade de iniciar uma 
 actividade económica (em que se inclui a liberdade de criação de empresa) e a 
 liberdade de organização, gestão e actividade da empresa (traduzida numa 
 liberdade empresarial). No primeiro sentido, trata-se de um direito pessoal (a 
 exercer individual ou colectivamente); no segundo sentido, é um direito 
 institucional, um direito da empresa em si mesma (Gomes Canotilho/Vital Moreira, 
 Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4ª edição, Coimbra, págs. 
 
 789-790).
 
  
 Podendo a lei delimitar negativamente a liberdade de iniciativa económica, como 
 resulta da formulação verbal do próprio artigo 61º, n.º 1 (“[a] iniciativa 
 económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e 
 pela lei e tendo em conta o interesse geral”), uma das restrições que podem ser 
 estabelecidas respeita justamente à liberdade de actividade da empresa (uma das 
 dimensões em que se desdobra o direito de iniciativa privada) e resulta do 
 artigo 82º, n.º 6 - também invocado pelo recorrente -, que prevê a possibilidade 
 de interferência administrativa directa do Estado na vida das empresas (“[o] 
 Estado só pode intervir na gestão de empresas privadas a título transitório, nos 
 casos expressamente previstos na lei e, em regra, mediante prévia decisão 
 judicial”).
 
  
 Independentemente da validade, em tese geral, dos argumentos invocados pelo 
 recorrente – assentes, como vimos, na ideia de que a submissão dos trabalhadores 
 provenientes da antiga Emissora Nacional a um regime de direito público limita a 
 liberdade empresarial -, a questão que desde logo se coloca é que a posição 
 jurídica do recorrente (como a de qualquer trabalhador da empresa nas mesmas 
 condições) não se encontra coberta pelo âmbito de protecção da norma 
 constitucional. Ou seja, o direito de iniciativa económica privada, na vertente 
 de liberdade empresarial – que é a que está aqui especialmente em causa -, 
 enquanto direito fundamental reconhecido constitucionalmente, não se encontra na 
 titularidade do trabalhador da empresa, mas é antes um direito institucional, e, 
 portanto, um direito da própria empresa.
 
  
 Certo é que os trabalhadores de qualquer empresa privada, enquanto sujeitos 
 individuais, poderão eles próprios exercer a liberdade de iniciar a actividade 
 económica; e, nesse ponto, estão igualmente abrangidos pelo âmbito de protecção 
 subjectiva da norma do artigo 61º, n.º 1. O recorrente não invoca, porém, no 
 caso, uma qualquer violação desse direito pessoal, mas antes a violação da 
 liberdade empresarial da própria entidade empregadora, e que resulta, em seu 
 entender, de lhe ser imposta, por determinação legal, a um regime laboral de 
 direito público para parte dos seus trabalhadores.
 
  
 O que está em causa, assim, face aos termos em que a questão de 
 constitucionalidade vem colocada é a eventual violação da liberdade de 
 organização e de gestão da empresa por referência à entidade patronal do 
 recorrente. Ou seja, o recorrente, na acção de contrato de trabalho que o 
 contrapõe à entidade empregadora, que nela figura como ré, pretende reagir 
 contra uma decisão que lhe é desfavorável, invocando direitos constitucionais da 
 empresa que só esta poderia accionar, se fosse do seu interesse processual, em 
 defesa da sua própria posição jurídica subjectiva.
 
  
 A legitimidade para recorrer, em tese geral, constitui uma modalidade de 
 interesse processual e não uma mera concretização, no âmbito dos recursos, da 
 legitimidade processual da parte. Nesse sentido, para interpôr recurso não basta 
 que o recorrente tenha interesse em contraditar a decisão recorrida por lhe ter 
 sido desfavorável, é ainda necessário que demonstre a necessidade da tutela 
 
 (cfr. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, 
 págs. 487 e 493).
 
  
 O recurso para o Tribunal Constitucional com fundamento na alínea b) do n.º 1 do 
 artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, quando se trate de um recurso de 
 partes, pressupõe a defesa de interesses subjectivos, o que justifica que o 
 recurso só possa ser interposto pela parte que haja suscitado, no decurso do 
 processo, a questão de constitucionalidade, como determina o subsequente artigo 
 
 72º, n.º 2 (neste sentido, Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo 
 Civil, 8ª edição, Coimbra, pág. 382).
 
  
 Ainda que os direitos fundamentais possam ter uma dimensão objectiva, e não 
 apenas uma dimensão subjectiva, é suposto que a questão de constitucionalidade 
 apenas possa ser invocada, no âmbito da relação processual, pela parte que fica 
 directamente afectada na sua esfera jurídica pela interpretação normativa que 
 tenha sido ou possa ser adoptada na decisão do caso concreto, por se tratar de 
 interpretação que, em primeira linha, vem restringir ou limitar direitos 
 constitucionais que integram a sua posição jurídica subjectiva.
 
  
 No caso vertente, parece claro que o recorrente não tem interesse processual em 
 recorrer, dado que, em vista a reverter a decisão judicial do caso em seu favor, 
 vem invocar  princípios constitucionais atinentes à actividade empresarial da 
 entidade empregadora, que figura no processo como contraparte, quando esses 
 princípios consagram direitos da empresa em si mesma e esta prescindiu de os 
 utilizar em favor da sua posição processual.
 
  
 Entende-se, nestes termos que o recorrente não dispõe de legitimidade para 
 recorrer, pelo que é de não conhecer do recurso.
 
  
 
  
 III. Decisão
 
  
 Termos em que se decide não conhecer do recurso.
 
  
 Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 UC. 
 
  
 Lisboa, 18 de Novembro de 2009
 
  
 Carlos Fernandes Cadilha
 Ana Maria Guerra Martins
 Vítor Gomes
 Maria Lúcia Amaral (com declaração em anexo)
 Gil Galvão
 
  
 
  
 
  
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 
  
 
  
 Votei a decisão de não conhecimento. Fi-lo, no entanto, pelas razões seguintes: 
 Neste Acórdão, o Tribunal acrescenta um elemento novo ao edifício 
 jurisprudencial que tem concretizado o sistema constitucional e legal dos 
 pressupostos processuais dos recursos de constitucionalidade, particularmente 
 dos interpostos de decisões de aplicação de normas (artigo 280.º, nº 1, alínea 
 b) da Constituição; artigo 70.º, nº 1, alínea b) da Lei do Tribunal 
 Constitucional.)
 De acordo com este elemento novo, não haverá interesse em agir, e, portanto, não 
 haverá legitimidade processual, sempre que o recorrente invoque a violação de 
 uma norma jus-fundamental cujo âmbito de protecção não “cubra” a sua posição 
 jurídica no caso concreto. E isto porque “é suposto que a questão de 
 constitucionalidade apenas possa ser invocada, no âmbito da relação processual, 
 pela parte que fica directamente afectada na sua esfera jurídica pela 
 interpretação que tenha sido ou possa ser adoptada na decisão do caso concreto, 
 por se tratar de interpretação que, em primeira linha, vem restringir ou limitar 
 direitos constitucionais que integram a sua posição jurídica subjectiva.” 
 Quer isto dizer que se entende que os recursos de constitucionalidade 
 
 (interpostos de decisões de aplicação de normas) servem apenas como meio de 
 tutela de direitos [fundamentais] próprios que tenham sido efectivamente lesados 
 pela interpretação normativa adoptada pela decisão de que se interpôs recurso. 
 Entendo que num sistema de controlo de constitucionalidade de normas e só de 
 normas, como é o nosso, este modo de pensar – que é característico dos recursos 
 de amparo, que pressupõem queixas contra actos dos poderes públicos que afectem 
 directamente direitos de que se é titular – só colhe por força da modelação 
 essencialmente subjectiva dos nossos recursos de constitucionalidade, quando 
 interpostos de decisões de aplicação de normas. Com efeito, estes recursos são 
 próximos dos recursos de amparo, tanto na sua estrutura processual quanto nos 
 seus efeitos: só valem, tal como o amparo, para o caso concreto; são 
 interpostos, tal como o amparo, pela “parte afectada”, uma vez esgotados os 
 recursos ordinários que caibam. Natural é, assim, que se impeça que um 
 instrumento processual de índole essencialmente subjectiva venha a ser usado 
 para outros fins que não aqueles para os quais foi pensado. 
 No entanto – e este é, a meu ver, um problema maior – nem por isso o nosso 
 
 “contencioso constitucional” deixa de ser um “contencioso” de normas, e, 
 portanto, de índole essencialmente objectiva. Decidir se uma norma é ou não 
 conforme à Constituição interessa, evidentemente, à comunidade toda, e não 
 apenas a quem, subsidiariamente (depois de esgotados os demais recursos que 
 caibam), pode colocar a questão ao Tribunal Constitucional. Tanto basta para que 
 entenda que este novo elemento, agora acrescentado pelo Tribunal ao edifício já 
 complexo dos pressupostos de admissibilidade dos recursos de decisões de 
 aplicação de normas, careça de particular atenção e cuidado, caso venha a ter 
 eventuais e futuras aplicações.
 
  
 Maria Lúcia Amaral