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Processo n.º 343/09
 
 1ª Secção
 Relator: Conselheiro  Gil Galvão
 
  
 Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
 
  
 I – Relatório
 
  
 
 1. Por decisão da Autoridade Para as Condições do Trabalho, de 21 de Julho de 
 
 2008, foi a ora recorrida, A., LDA, condenada ao pagamento de uma coima no valor 
 de €250.00 (duzentos e cinquenta euros), pela prática de uma contra-ordenação 
 laboral prevista e punida “nos termos do disposto na alínea i) do nº 2 do art. 
 
 9º do DL nº 272/89 de 19.08, em conjugação com o disposto no artigo 15º, nº 7 do 
 Reg. CEE 3821/85”.
 
  
 
 2. Inconformada com esta decisão a arguida recorreu para o Tribunal de Trabalho 
 de Faro, que, por acórdão de 17 de Dezembro de 2008, julgou o recurso 
 procedente. Para assim concluir, ponderou, designadamente, o seguinte:
 
 “No domínio contra-ordenacional valem também os princípios da legalidade, quer 
 das contra-ordenações, quer do processo e, bem assim, da presunção de inocência 
 do arguido (…).
 Do auto de notícia não consta qualquer facto imputando à Recorrente a 
 responsabilidade pelo cometimento da infracção enquanto entidade patronal do 
 condutor daquele veículo. O que, diga-se em abono da verdade, não era exigido 
 pelo precedente regime das contra-ordenações laborais constante da Lei 116/99, 
 de 4 de Agosto, uma vez que, no seu art. 4°, se prescrevia o seguinte: 
 
 «1. São responsáveis pelas contra-ordenações laborais e pelo pagamento das 
 coimas:
 a) A entidade patronal, quer seja pessoa singular ou colectiva, associação sem 
 personalidade jurídica ou comissão especial»; 
 Todavia, conforme refere o Acórdão da Relação de Coimbra, proferido a 04-03-2004 
 
 (…) com a expressa revogação da Lei 116/99, «tem que se entender que o sujeito 
 da referida contra-ordenação é quem a pratica (o motorista), apenas podendo 
 também responder a sua entidade patronal desde que no auto de notícia conste a 
 materialidade fáctica que permita a imputação do ilícito penal à entidade 
 empregadora, quer seja a nível da sua exclusiva autoria, quer como co-autora, 
 quer a titulo de cúmplice (…)» 
 E acrescenta este arresto: 
 
 «Não havendo no auto de notícia factos que permitam a imputação directa do 
 referido ilícito à empregadora, impõe-se a respectiva absolvição em processo 
 contra-ordenacional com base nos citados preceitos».
 
 (…) 
 Daí que também se tenha entendido no acórdão da Relação do Porto, proferido em 
 
 12-07-2004 (…) que «é o condutor-trabalhador, e não a entidade empregadora, o 
 responsável pela infracção traduzida no incumprimento das disposições legais 
 relativas aos tempos de condução e de repouso».
 
 (…)
 Ou seja, a existir qualquer infracção foi ela praticada pelo supra identificado 
 condutor, que é trabalhador da Arguida, pelo que, em consonância com o atrás 
 referido, a responsabilidade pela prática da infracção em causa no presente 
 processo e, consequentemente, pelo pagamento da correspondente coima e das 
 custas do processo, não pode recair sobre aquela. 
 Com efeito, face à entrada em vigor do Código de Trabalho e à consequente 
 revogação da Lei nº 116/99, tem que se entender que o sujeito da referida 
 contra-ordenação é quem a pratica, ou seja, o motorista. Apenas podendo, também 
 responder a entidade patronal desde que o Auto de Notícia conste a materialidade 
 fáctica que permita a imputação do ilícito à entidade empregadora, quer seja a 
 nível da sua exclusiva autoria, quer, como co-autora, quer a título de cúmplice. 
 Não havendo no Auto de Notícia factos que permitam a imputação directa do 
 referido ilícito à entidade empregadora, impõe-se a respectiva absolvição em 
 processo contra-ordenacional (…).
 
 É certo que entretanto entrou em vigor o Decreto-Lei n.º 237/2007, de 19 de 
 Junho de 2007, o qual, no n.º 1 do seu art. 1º esclareceu que «o disposto nos 
 artigos 3° a 9º prevalece sobre as disposições correspondentes do Código do 
 Trabalho». Ora, o n.º 1 do seu art. 8°, veio estipular que «o período de 
 trabalho diário dos trabalhadores de duração não inferior a trinta minutos, se o 
 número de horas de trabalho estiver compreendido entre seis e nove, número de 
 horas for superior a nove» e no n.º 2 que «os trabalhadores móveis não podem 
 prestar mais de seis horas de trabalho consecutivo.» E, por sua vez, o n.º 2 do 
 art. 10° desse diploma estabeleceu que «o empregador é responsável pelas 
 infracções ao disposto no presente decreto-lei». Destarte, aparentemente estaria 
 assim estabelecida nova fonte legal de responsabilização contra-ordenacional 
 para os empregadores cujos trabalhadores fossem motoristas de veículos pesados 
 de mercadorias ou de passageiros que tivessem violado o ali estabelecido sobre 
 os tempos máximos de trabalho/de descanso. Mas vejamos mais cuidadosamente se 
 assim será. 
 Conforme estipula o mencionado diploma legal, «o presente diploma transpõe para 
 a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2002/15/CE, do Parlamento Europeu e do 
 Conselho, de 11 de Março, relativa à organização do tempo de trabalho das 
 pessoas que exercem actividades móveis de transporte rodoviário». Sabemos bem 
 que segundo o n.º 4 do art. 8° da Constituição da República, «as disposições dos 
 tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, 
 no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos 
 termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios 
 fundamentais do Estado de direito democrático.» Ora, sobre essa matéria diz-nos 
 o art. 249° do Tratado da Comunidade Europeia que «a directiva vincula o 
 Estado-membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando no entanto 
 
 às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios.» Daí que 
 importe saber se o que sobre isso dispõe a Constituição da República Portuguesa. 
 Releva, desde logo, o n.º 8 do seu art. 112°, segundo o qual «a transposição de 
 actos jurídicos da União Europeia para a ordem jurídica interna assume a forma 
 de lei, decreto-lei ou, nos termos do disposto no n.º 4, decreto legislativo 
 regional» E também o art. 165°, o qual, no que interessa tem o seguinte 
 conteúdo. 
 
 «1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as 
 seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: (...) 
 d) Regime geral.., dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo 
 processo; 
 Ora, o Governo publicou o citado Decreto-Lei n.º 237/2007, de 19 de Junho de 
 
 2007, desprovido de qualquer autorização legislativa. De resto, nem escondeu que 
 o fazia, uma vez que ali invocou para legitimar a sua tarefa o disposto no art. 
 
 198°, n.º 1, alínea a) da Constituição, o qual, como é de conhecimento 
 generalizado, versa sobre a competência legislativa própria daquele órgão (…). 
 Assim sendo as coisas, afigura-se-nos singelamente claro que aquele diploma é 
 inconstitucional e por isso não pode ser aplicado pelos tribunais, sem ofensa da 
 própria Lei Fundamental (cfr. o seu art.° 204º). O que, não ignoramos, o Acórdão 
 do Tribunal da Relação do Porto, de 18-02-2008, publicado nas Bases 
 Jurídico-Documentais do Ministério da Justiça, em http://www.dgsi.pt, não 
 ponderou, tendo aplicado aquele diploma sem qualquer consideração acerca do 
 regime normativo que atrás referimos. Daí que a solução seja, como atrás se 
 delineou, aplicar o direito em vigor e que mais não é do que o que atrás 
 deixámos referido, tanto bastando para que proceda o recurso”.
 
  
 
 3. É desta decisão que vem interposto pelo Ministério Público, ao abrigo da 
 alínea a) do nº 1 do artigo 70º da LTC, o presente recurso, com fundamento em 
 que a mesma “recusou a aplicação do estatuído no Decreto-Lei nº 237/2007, de 
 
 19.06, por inconstitucional”.
 
  
 
 4. Já neste tribunal foi o Ministério Público, ora recorrente, notificado para 
 alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
 
 “1. Apenas se situa no âmbito da competência legislativa reservada da Assembleia 
 da República o estabelecimento do regime geral do ilícito de mera ordenação 
 social, podendo o Governo legislar em tal matéria, desde que o faça dentro dos 
 limites impostos por esse regime geral.
 
 2. Face à definição de contra-ordenação laboral constante do artigo 614° do 
 Código do Trabalho de 2003 (norma integrada no Regime Geral das 
 Contra-Ordenações Laborais), podem estar incluídos entre os sujeitos 
 responsáveis pela infracção tanto as entidades empregadoras como os 
 trabalhadores. 
 
 3. Dessa forma, e uma vez que é respeitado aquele regime geral, a norma 
 resultante da conjugação dos artigos 1º, nº 3, 4°, nº 3, alínea a) e 10°, nº 2, 
 do Decreto-Lei nº 237/2007, de 19 de Junho, na interpretação que atribui ao 
 empregador a responsabilidade pela contra-ordenação consistente na violação do 
 dever de manter os suportes do registo em condições que permitam a sua leitura 
 pelas entidades com competência fiscalizadora, não viola o artigo 165°, nº 1, 
 alínea d), da Constituição, não sendo, por isso, organicamente inconstitucional. 
 
 
 
 4. Termos em que deverá proceder o presente recurso”. 
 
  
 
  
 II – Fundamentação.
 
  
 
 5. Considerou a decisão recorrida, em suma e para o que agora importa, que o 
 Decreto-Lei nº 237/2007, de 19 de Junho, é organicamente inconstitucional, por 
 alegada violação do artigo 165º, nº 1, alínea d), da Constituição. Fê-lo por 
 entender que, de várias das suas disposições conjugadas [a decisão recorrida 
 refere expressamente os artigos 1º, nº 1, 8º, nºs 1 e 2, e 10º, nº 2], 
 decorreria, inovatoriamente, a responsabilidade contra-ordenacional dos 
 empregadores cujos trabalhadores fossem motoristas de veículos pesados de 
 mercadorias, por factos praticados em violação dos tempos de condução e repouso 
 destes trabalhadores. Sendo certo que, no seu entendimento, no regime anterior – 
 constante da Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto, que aprovou o Código do Trabalho 
 então em vigor, tal como vinha sendo interpretado pela jurisprudência -, apenas 
 o condutor/trabalhador, e não também a entidade patronal, seria responsável pela 
 infracção traduzida no incumprimento das disposições legais relativas aos tempos 
 de condução e de repouso, ao menos quando do auto de notícia não constassem 
 factos que permitissem uma imputação directa da responsabilidade à entidade 
 empregadora. Vejamos.
 
  
 
 6. O artigo 165º, nº 1, alínea d), da Constituição, invocado pela decisão 
 recorrida, reserva à competência exclusiva da Assembleia da República, salvo 
 autorização ao Governo, legislar sobre o regime geral dos actos ilícitos de mera 
 ordenação social e do respectivo processo. O Tribunal Constitucional tem-se 
 debruçado detalhadamente e por várias vezes sobre o sentido normativo 
 fundamental deste artigo 165º, n.º 1, al. d), da Constituição. Fê-lo, pela 
 primeira vez, mais detalhadamente, no Acórdão nº 56/84, (Acórdãos do Tribunal 
 Constitucional, vol. 3º, págs. 153), ao qual se seguiram ao longo dos anos 
 muitos outros. Dessa vasta jurisprudência resulta, em síntese, que apenas é 
 matéria de competência reservada da Assembleia da República, salvo autorização 
 ao Governo, legislar sobre o regime geral do ilícito de mera ordenação social e 
 do respectivo processo; isto é: (i) sobre a definição da natureza do ilícito 
 contra-ordenacional, (ii) a definição do tipo de sanções aplicáveis às 
 contra-ordenações (iii) a fixação dos respectivos limites das coimas e (iv) a 
 definição das linhas gerais da tramitação processual a seguir para a aplicação 
 concreta de tais sanções. Assim e em suma, com observância do regime geral, e 
 dos limites aí definidos, pode o Governo livremente criar contra-ordenações 
 novas, modificar ou eliminar as contra-ordenações já existentes e estabelecer as 
 coimas a elas aplicáveis.
 
  
 Ora, definidos, nestes termos, os quadros gerais em função dos quais se delimita 
 a competência, nesta matéria, dos dois órgãos de soberania, não se vê que o 
 Governo, através da emissão do referido Decreto-Lei nº 237/2007, de 19 de Junho, 
 tenha invadido a competência própria da Assembleia da República. A conclusão 
 contrária a que chega a decisão recorrida parece decorrer, essencialmente, de um 
 pressuposto que não será correcto. Com efeito, apenas cabe na competência 
 própria da Assembleia da República, nos termos já supra descritos, definir o 
 
 “regime geral dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo 
 processo”, e não, como parece pressupor a decisão recorrida, necessariamente, 
 todo o regime dos actos ilícitos de mera ordenação social de um determinado 
 sector. Quer isto dizer que o Governo pode, em princípio, sem necessidade de 
 autorização da Assembleia da República, criar novas contra-ordenações aplicáveis 
 num determinado sector de actividade, em que exista um regime geral sectorial, 
 desde que se contenha dentro dos limites do regime geral das contra-ordenações.
 
  
 
 7. Mas, ainda que assim se não entenda, sempre será legítimo ao Governo criar 
 contra-ordenações num sector de actividade em que a Assembleia da República 
 tenha estabelecido um regime geral sectorial, desde que respeite este regime ou, 
 mais rigorosamente, as regras deste regime sectorial que possam simultaneamente 
 ser concebidas como regras do regime geral das contra-ordenações.
 
  
 Ora, assim sendo e prevendo o regime geral do ilícito de mera ordenação social 
 que as coimas tanto se podem aplicar às pessoas singulares como às pessoas 
 colectivas e prevendo o artigo 614° do Código do Trabalho de 2003 que, nas 
 respectivas contra-ordenações, possa ser responsável “qualquer sujeito no âmbito 
 das relações laborais”, incluindo tanto as entidades empregadoras como os 
 trabalhadores, apenas resta concluir que não se vê que as normas que vêm 
 questionadas invadam o âmbito da reserva legislativa da Assembleia da República. 
 Na verdade, tais normas não se podem, por um lado, incluir na definição da 
 natureza do ilícito de ordenação social, na definição do tipo de sanções 
 aplicáveis às contra-ordenações e muito menos na fixação dos respectivos limites 
 ou na tramitação processual das contra-ordenações; e, por outro, não extravasam 
 os quadros legalmente definidos da responsabilidade de pessoas colectivas ou de 
 entidades empregadoras, não consubstanciando, nem autorizando, qualquer forma de 
 responsabilidade objectiva. Pelo que a sua edição pelo Governo, sem autorização 
 legislativa do Parlamento, não viola a Constituição, não sendo, 
 consequentemente, as mesmas organicamente inconstitucionais. Conclusão análoga, 
 aliás, à que se tirou, por exemplo, no Acórdão nº 359/2001 (disponível em 
 
 www.tribunalconstitucional.pt), em que se julgou “não inconstitucional a norma 
 do artigo 29º com referência ao artigo 27º, nº4, do Decreto-Lei nº 38/99, de 6 
 de Fevereiro”, que considerava responsável a pessoa colectiva ou singular que 
 efectuasse o transporte, pela contra-ordenação consistente em o condutor do 
 veículo se escusar a levar o veículo à pesagem das balanças ao serviço da 
 entidade fiscalizadora.
 
  
 
  
 III – Decisão
 
  
 Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso, determinando a 
 reformulação da decisão recorrida em conformidade com o juízo de 
 constitucionalidade que se acaba de fazer.
 
                             Lisboa, 17 de Novembro de 2009
 Gil Galvão
 José Borges Soeiro
 Maria João Antunes
 Carlos Pamplona de Oliveira
 Rui Manuel Moura Ramos