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Processo n.º 796/08
 
 3ª Secção
 Relator: Conselheiro Vítor Gomes
 
 
 
             Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
 
  
 I. Relatório
 
  
 
             1. A. interpôs recurso para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do 
 n.º 1 do artigo 70.º da LTC, do acórdão do Tribunal de Relação de Évora de 29 de 
 Novembro de 2007, que considerou susceptível de resolução em benefício da massa 
 insolvente, ao abrigo do regime jurídico instituído pelo Código da Insolvência e 
 da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 57/2004, de 18 de 
 Março (CIRE), um contrato de compra e venda de (parte de) uma fracção autónoma 
 de um imóvel, celebrado anteriormente à entrada em vigor desse Código entre o 
 recorrente, como comprador, e o insolvente, como vendedor.
 
             Pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da norma resultante 
 do n.º 1 do artigo 120.º do CIRE em conjugação com o n.º 1 do artigo 12.º do 
 Código Civil, interpretada no sentido de que o regime de resolução de actos 
 prejudiciais à massa previsto naquele primeiro preceito legal é aplicável a 
 contratos celebrados anteriormente à sua entrada em vigor.
 
  
 
 2. Tendo o recurso sido admitido e prosseguido, o recorrente apresentou 
 alegações em que sustenta o seguinte:
 
 “(…)
 A interpretação perfilhada no R. acórdão do Tribunal da Relação de Évora, na 
 interpretação que fez de tais normas, permitindo a sua aplicação retroactiva do 
 novo regime legal ao contrato de compra e venda celebrado em 31/07/2003, é 
 inconstitucional:
 a) Porque viola o princípio da confiança que os cidadãos em geral e o recorrente 
 em particular devem depositar nas normas que o Estado cria para vigorar nas 
 relações jurídicas que estabelecem num determinado período temporal em que 
 moldam as suas expectativas e vontades ao abrigo de um determinado quadro 
 jurídico sem que fosse de prever que posteriormente à conclusão de tal negocia 
 viesse a ser alterado radicalmente tal instituto, aplicando-se o mesmo 
 retroactivamente, traindo-se a confiança e segurança jurídica daqueles que 
 confiaram na estabilidade e segurança jurídica de tais normas em vigor à data do 
 negócio jurídico realizado e concluído e sem respeito pelos direitos entretanto 
 adquiridos e que o princípio constitucional do Estado de Direito democrático tem 
 de salvaguardar e preservar.
 b) Bem como o princípio da segurança jurídica contemplado no artigo 2.º da CRP, 
 como subprincípios normativos que o Estado de Direito democrático tem de 
 respeitar;
 
 (,..).”
 
  
 
             A “Massa Insolvente de B.” sustenta que o acto já era impugnável ao 
 abrigo do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de 
 Falência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93 (CPEREF), pelo que a sua 
 resolubilidade ao abrigo do novo regime é insusceptível de afectar aquele mínimo 
 de certeza e segurança na ordem jurídica ou o princípio da confiança que o 
 recorrente diz violados.
 
  
 II- Fundamentos
 
  
 
             3. A situação de facto a que foi aplicada a norma cuja apreciação de 
 constitucionalidade se pretende surge assim caracterizada na decisão recorrida:
 O recorrente celebrou, em 31 de Julho de 2003, um contrato de compra e venda de 
 metade de uma fracção autónoma de um prédio. O vendedor foi declarado insolvente 
 por sentença de 21 de Abril de 2006, em processo instaurado em 30 de Março de 
 
 2006. Em Outubro de 2006, o administrador da insolvência remeteu ao recorrente 
 uma notificação a declarar resolvido esse contrato, invocando como fundamento o 
 n.º 1 do artigo 120.º do CIRE. O recorrente impugnou judicialmente a decisão de 
 resolução do contrato, suscitando, além do mais, a inconstitucionalidade da 
 norma do n.º 1 do artigo 120.º do CIRE em conjugação com o n.º 1 do artigo 12.º 
 do Código Civil, na interpretação de que o novo regime legal se aplica aos 
 contratos celebrados anteriormente à sua entrada em vigor.
 
  
 
             No âmbito dessa impugnação, veio a ser proferido o acórdão recorrido 
 que, quanto a esta questão, decidiu o seguinte:
 
 “Defende ainda o agravante que, celebrado em 31/07/2003 o contrato de compra e 
 venda objecto de resolução, é aplicável a lei à data da celebração do contrato, 
 ou seja, o CPEREF e não o (Dec-Lei 53/2004 de 18 de Março, que entrou em vigor 
 em 18 d Setembro. 
 Com efeito, o Código a Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo 
 Decreto-Lei 57/2004, de 19 de Março, entrou em vigor no dia 15 de Setembro de 
 
 2004, substituindo o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e 
 Falência, aprovado pelo Decreto-Lei 132/93, de 23 de Abril 
 Mas o actual Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas é obviamente 
 aplicável ao caso sub judice, sem que da sua aplicação resulte a 
 inconstitucionalidade alegada. 
 Vejamos. 
 A situação de insolvência de B., foi reconhecida por decisão de 21-04-2006. 
 A lei aplicável ao presente processo e que regula todas as relações jurídicas 
 conexas ou atingidas pela declaração de insolvência é o Código da Insolvência e 
 da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 57/2004, de 19 de 
 Março e republicado pelo Decreto-Lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto em vigor 
 desde 15 de Setembro de 2004. 
 Trata-se do princípio geral de aplicação das leis no tempo consagrado no art.º 
 
 12.º do C. Civil, não se trata de aplicação retroactiva da lei nova.
 Aliás, como expressamente consta da decisão sob censura, que acompanhamos 
 inteiramente, já na lei anterior os artigos 156.º a 160.º do CPEREF, conjugados 
 com os artigos 610.º a 618.º do CC, permitiam atacar actos como aquele que foi 
 resolvido pelo administrador da insolvência. 
 Já no domínio da lei anterior quem praticasse actos que fossem susceptíveis de 
 prejudicar os interesses dos credores sabia, ou tinha obrigação de saber, que 
 esses actos eram atacáveis em benefício dos credores. 
 
 É certo que, de acordo com o artigo 156.º, n.º 1, alínea c) do CPEREF, os actos 
 praticados a título oneroso pelo falido só eram atacáveis se tivessem ocorrido 
 nos seis meses anteriores à data da abertura do processo conducente à falência, 
 mas também é verdade que o art.º 157.º do mesmo diploma salvaguardava sempre a 
 possibilidade de recurso à impugnação pauliana. 
 O que a lei nova fez foi alterar o equilíbrio entre resolução e impugnação 
 pauliana, alargando a possibilidade de resolução e restringindo de necessidade 
 de recurso à impugnação pauliana, com vista a, na globalidade do regime e com 
 maior agilidade, alcança os efeitos que já se pretendia obter antes. 
 Em suma, perante o acervo legislativo anterior não deixava ser expectável que 
 pessoas que praticassem os actos ora previstos nos 120.º e 121.º do CIRE vissem 
 a sua conduta impugnada em benefício do interesse dos credores. 
 Eis por que inexiste qualquer aplicação retroactiva da lei, mostrando-se 
 prejudicada consequentemente a inconstitucionalidade suscitada perante tal 
 pressuposto, além de que se não descortina igualmente qualquer 
 inconstitucionalidade por “violação do principio da segurança jurídica e 
 confiança dos cidadãos na ordem jurídica que os rege”, não vislumbrado sequer da 
 acuidade no caso, dos dispositivos constitucionais referenciados e menos ainda 
 do suscitado abuso de direito.” 
 
  
 
 4. Importa começar por em destaque o preceito de que foi extraída a norma 
 sujeita a apreciação, o artigo 120.º do CIRE, que dispõe o seguinte:
 
  
 
 “Artigo 120.º
 Princípios gerais
 
  
 
 1. Podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos prejudiciais à 
 massa praticados ou omitidos dentro dos quatro anos anteriores à data do início 
 do processo de insolvência.
 
 2. Consideram-se prejudiciais à massa os actos que diminuam, frustrem, 
 dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da 
 insolvência.
 
 3. Presumem-se prejudicais à massa, sem admissão de prova em contrário, os actos 
 de qualquer dos tipos referidos no artigo seguinte, ainda que praticados ou 
 omitidos fora dos prazos aí contemplados.
 
 4. Salvo nos casos a que respeita o artigo seguinte, a resolução pressupõe a má 
 fé do terceiro, a qual se presume quanto a actos cuja prática ou omissão tenha 
 ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e 
 em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente 
 relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa 
 data.
 
 5. Entende-se por má fé o conhecimento, à data do acto, de qualquer das 
 seguintes circunstâncias:
 a) De que o devedor se encontrava em situação de insolvência;
 b) Do carácter prejudicial do acto e de que o devedor se encontrava à data em 
 situação de insolvência iminente;
 c) Do início do processo de insolvência.”
 
  
 Note-se que, no presente recurso de fiscalização concreta, somente está em causa 
 a apreciação da norma do n.º 1 do artigo 120.º do CIRE, em conjugação com o n.º 
 
 1 do artigo 12.º do Código Civil, quando interpretada no sentido de que o regime 
 de resolução de actos prejudiciais à massa aí previsto é aplicável aos contratos 
 onerosos celebrados pelo insolvente em data anterior à entrada em vigor do CIRE. 
 
 
 Não interessa o segmento da norma que respeita a “actos omitidos”, nem a 
 dimensão que abrange os actos gratuitos. É delimitação que se impõe porque o 
 acto questionado é um contrato de compra e venda e porque o carácter gratuito ou 
 oneroso dos actos impugnáveis é um dos factores relevantes na definição dos 
 regimes de impugnabilidade, sendo essa natureza gratuita ou onerosa susceptível 
 de colocar problemas de constitucionalidade distintos, inclusivamente face aos 
 princípios constitucionais invocados. 
 
  
 
             5. A verificação de que os devedores insolventes, ou na iminência da 
 insolvência, frequentemente recorrem a expedientes que podem agravar a situação 
 dos seus credores, mediante a prática de actos que visem ou tenham por efeito a 
 dissipação ou ocultação do seu património ou o privilégio de uns credores em 
 benefício de outros, desde há muito tem levado a que os sistemas jurídicos 
 incluam no regime falimentar instrumentos de conservação da garantia 
 patrimonial, mais simples, mais céleres e mais eficazes do que aqueles que 
 integram o correspondente regime geral, em ordem a permitir aos credores, ou ao 
 liquidatário da massa em benefício destes, obter a tutela da integridade da 
 garantia contra tais actos, quando realizados num “período suspeito” mais ou 
 menos amplo.
 Disso dá notícia João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2ª ed., pg. 309, n. 
 
 665, quando refere:
 
 “A consagração deste tipo de defesa “cega” dos interesses dos credores, em 
 processo de falência, foi logo adoptada pelo legislador do Código Comercial de 
 
 1833, que impôs a “nulidade” de todas as constituições de hipotecas sobre bens 
 do falido e pagamentos de dívidas deste não vencidas, efectuados nos vinte dias 
 anteriores às abertura da falência (art 1133. e 1134.º), assim como de todos os 
 actos gratuitos translativos da propriedade de bens do falido outorgados nos 
 quarenta dias anteriores àquela data (art 1135.º). A mesma política foi retomada 
 pelo Código de Falências, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 25.981, de 26 de Outubro 
 de 1935, que consagrou no art 32.º, a “anulação” de determinados actos aí 
 tipificados. Este regime do Código de Falências de 1935 transitou, com ligeiras 
 alterações, para o Código de Processo Civil de 1939, aprovado pelo Decreto n.º 
 
 29.637, de 28 de Maio, constando do art 1168º, cujo conteúdo não sofreu 
 modificações com a revisão operada pelo Decreto-Lei nº 44.129, de 28 de Dezembro 
 de 1961, passando a integrar o art. 1200.º. O Decreto-Lei n.º 47.690, de 11 de 
 Maio de 1967, que introduziu no C.P.C. as adaptações exigidas pela entrada em 
 vigor do Código Civil de 1966, na redacção do art 1200.º, substitui o termo 
 
 “anular” por “resolver”, o qual se manteve em vigor até à aprovação em 1993do 
 C.P.E.R.E.F. que no art 156.º continuou a permitir a resolução de determinados 
 actos praticados pelo falido no período considerado suspeito, o mesmo sucedendo 
 com o actual C.I.R.E. que conferiu uma nova configuração a este direito de 
 resolução.
 A previsão desta resolução legal, além da impugnação pauliana colectiva, também 
 ocorre em Itália, sob a designação de revocatória fallimentare nos artigos 64.º 
 e 65.º, da Leg. Fall, em França, nos art L621 – 107.º e 108.º, do Code de 
 Commerce, em Espanha, no art 71, nº 2, da Ley Concursal, e no Brasil, nos art 
 
 52.º e 53.º, da Lei de Falências, sob a designação de revogatória falencial.”
 
  
 
             Como se vê, um dos meios a que o legislador falimentar costuma 
 recorrer com essa finalidade de encontrar remédio contra actos do insolvente 
 prejudiciais ou potencialmente prejudiciais aos credores é a figura da resolução 
 em benefício da massa insolvente. Outro, é a impugnação pauliana a favor da 
 massa. Qualquer deles com especialidades relativamente aos correspondentes 
 institutos do direito civil, seja no capítulo dos requisitos e dos efeitos, seja 
 mediante o estabelecimento de presunções de prejuízo ou de má fé, reflectindo 
 normativamente a realidade relativamente à qual se pretende (re)agir.
 
  
 Centrando a atenção nos dois últimos diplomas disciplinadores do regime 
 falimentar – o CPEREF, por ser o que estava em vigor à data do contrato objecto 
 de resolução, e o CIRE, por ter sido o aplicado pela decisão recorrida –, 
 verifica-se que o CIRE alargou o campo de aplicação da figura da resolução, em 
 benefício da massa, de actos praticados pelo insolvente, passando a abranger 
 hipóteses que anteriormente apenas permitiam o recurso à acção de impugnação 
 pauliana pelo liquidatário ou por qualquer credor em benefício comum, a 
 designada “impugnação pauliana colectiva” (artigo 160.º do CPEREF).
 
  
 Com efeito, no âmbito do CIRE podem ser resolvidos pelo administrador, em 
 benefício da massa, mediante carta registada com aviso de recepção, dentro de 
 seis meses sobre o conhecimento do acto mas nunca depois de dois anos sobre a 
 declaração de insolvência, os actos e negócios do insolvente prejudiciais à 
 massa praticados (ou omitidos) dentro dos quatro anos anteriores à data do 
 início do processo, (artigo 120.º, nº 1), considerando‑se acto prejudicial todo 
 aquele que diminua, frustre, dificulte, ponha em perigo ou retarde a satisfação 
 dos interesses dos credores (artigo 120.º, n.º 2).
 A figura da resolução passou a abranger duas modalidades, quanto aos respectivos 
 pressupostos. Por um lado, manteve-se o direito de resolução por parte do 
 liquidatário em benefício da massa, sem necessidade de demonstração de quaisquer 
 requisitos, de actos incluídos num catálogo legal, desde que realizados num 
 período considerado suspeito relativamente ao início do processo de insolvência. 
 
 É a chamada “resolução incondicional” (artigo 121.º do CIRE). A par desses, 
 alargou-se a faculdade de resolução a qualquer acto que tenha os efeitos 
 prejudiciais à massa previstos no n.º 2 do artigo 120.º, desde que praticado 
 dentro dos quatro anos anteriores à data do início do processo de insolvência e 
 o terceiro beneficiário do acto tenha agido de má fé.
 Relativamente a actos onerosos que não correspondam ao catálogo do artigo 121.º 
 
 (casos de “resolução incondicional” na terminologia legal), é pressuposto da 
 resolução a má fé do terceiro adquirente, entendida como o conhecimento de 
 qualquer das seguintes circunstâncias (artigo 120.º, n.º 5): 
 a) De que o devedor se encontrava em situação de insolvência;
 b) Do carácter prejudicial do acto e de que o devedor se encontrava à data em 
 situação de insolvência iminente; 
 c) Do início do processo de insolvência.
 
  
 
             A má fé assume aqui carácter mais objectivo do que no regime geral 
 
 (artigo 612.º do Código Civil), prescindindo-se da prova do conhecimento do 
 carácter prejudicial do acto, perante situações que com toda a probabilidade o 
 revelam.
 
             
 De âmbito mais restrito era o elenco de situações em que CPEREF – recorde-se, 
 vigente à data da celebração do contrato de compra em discussão – permitia ao 
 liquidatário recorrer ao mecanismo da resolução dos actos do insolvente para 
 tutela dos interesses dos credores.
 O artigo 156.º do CPEREF dispunha que eram passíveis de resolução, por 
 iniciativa do liquidatário, os actos prejudiciais à massa desde que celebrados a 
 título gratuito nos dois anos anteriores à abertura do processo [n.º 1, alínea 
 a)], a partilha em determinadas condições, celebrada um ano antes da mesma data 
 de abertura [n.º 1, alínea b)] e, no que directamente interessa ao presente 
 recurso, “os actos a título oneroso realizados pelo falido, nos seis meses 
 anteriores à data da abertura do processo conducente à falência, com sociedades 
 por ele dominadas, directa ou indirectamente, ou, no caso de falência de 
 sociedades ou de pessoa colectiva, com sociedades que dominem, directa ou 
 indirectamente, o capital da sociedade ou pessoa colectiva falida ou por esta 
 dominadas, ou com os seus administradores, gerentes ou directores”.
 Os demais actos, onerosos ou gratuitos, que implicassem prejuízo para a massa 
 ficavam sob alçada da acção de impugnação pauliana. Acção que tanto podia ser 
 instaurada pelo liquidatário como pelos credores e cujo resultado, quando 
 favorável, aproveitava a todos e não somente ao proponente da acção (artigos 
 
 159.º e 160.º). 
 
  
 
              Facilitando a tarefa do liquidatário (ou do credor impugnante), o 
 artigo 158.º estabelecia a presunção de terem sido celebrados de má fé pelas 
 pessoas que neles participaram certos actos, designadamente:
 
  
 
 “(…)
 a) Os actos realizados pelo falido a título oneroso, nos dois anos anteriores à 
 data da abertura do processo conducente à falência, em favor do seu cônjuge, de 
 parente ou afim até ao 4º grau, da pessoa com quem ele vivesse em união de facto 
 ou de pessoas a ele ligadas por um qualquer vínculo de prestação de serviços ou 
 de natureza laboral, bem como de sociedades coligadas ou dominadas por ele;
 
 (…)
 d) Os actos a título oneroso realizados pelo falido dentro dos dois anos 
 anteriores à data da abertura do processo conducente à falência, em que as 
 obrigações por ele assumidas excedem manifestamente as da contraparte;
 
 (…).”
 
  
 Comparando os dois regimes em sucessão, fácil é constatar que o CIRE ampliou 
 substancialmente o campo de aplicação da figura da resolução, permitindo este 
 remédio para situações que até então teriam de ser objecto de “acção pauliana 
 colectiva”. A par dos actos do insolvente que abrangeu no que designa por 
 
 “resolução incondicional” e que corresponde, no essencial, à modalidade 
 tradicional do direito de resolução em benefício da massa (artigo 121.º), o 
 legislador passou a permitir a resolução de qualquer acto, praticado ou omitido 
 dentro dos quatro anos anteriores à data do início do processo de insolvência, 
 que tenha diminuído o património do insolvente ou frustrado, dificultado, posto 
 em perigo ou retardado a satisfação dos seus credores. Mas, importa salientá-lo, 
 desde que o terceiro beneficiário do acto tenha agido de má fé, assim 
 aproximando os requisitos da “resolução condicionada”dos estabelecidos para a 
 impugnação pauliana (artigos 610.º e 612.º do Código Civil).
 
  
 
 6. No litigio em que se enxerta o presente recurso, aprecia-se a resolução 
 extra‑judicial, levada a cabo pelo administrador da massa insolvente, de um 
 contrato de compra e venda de ½ de uma fracção predial, em que o ora recorrente 
 interveio como comprador e o insolvente como vendedor, ocorrido em data anterior 
 
 à do início da vigência do CIRE. 
 Entende o recorrente que a aplicação do CIRE se traduz em aplicação retroactiva 
 do novo regime. E, embora reconheça que a retroactividade da lei não é 
 genericamente proibida pela Constituição, sustenta que, com esse âmbito de 
 aplicação, a norma que permitiria ao liquidatário optar pela resolução, viola o 
 princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança, ínsito no princípio 
 do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição.
 
             Diverso é o entendimento do acórdão recorrido, segundo o qual não há 
 retroactividade ao dar à norma o alcance de facultar a resolução de contratos de 
 compra e venda celebrados em momento anterior à entrada em vigor do novo regime 
 legal, uma vez que se trata de lei que rege directamente sobre o conteúdo da 
 relação jurídica independentemente dos factos que lhe deram origem.
 
  
 
             Efectivamente, a jurisprudência dos tribunais comuns não é uniforme 
 quanto a esta questão.
 
  
 Tem sido sustentado que o regime de resolução em benefício da massa insolvente 
 previsto no CIRE se aplica aos contratos celebrados antes da sua entrada em 
 vigor e que subsistam para além dela porque, ao dispor sobre a resolução de um 
 contrato, está a reger sobre o conteúdo da relação jurídica emergente desse 
 contrato, e não sobre requisitos de validade (substancial ou formal) do mesmo, 
 caindo na previsão da 2ª parte do nº 2 do artigo 12.º do Código Civil (Neste 
 sentido, que é o do acórdão recorrido, decidiu o acórdão de 18/12/2007, P. n. 
 
 2797/07, da mesma Relação).
 Mas outras decisões há no sentido de que as novas disposições da resolução em 
 benefício da massa insolvente, constantes dos artigos 120.º e segs. do CIRE são, 
 inaplicáveis aos actos e contratos do insolvente celebrados anteriormente ao 
 início da vigência deste diploma, porque a regra de sucessões na lei no tempo a 
 aplicar será a do n.º 1 do artigo 12.º do Código Civil. Donde decorre que o CIRE 
 não pode aplicar-se, no que respeita ao regime de resolução aos actos praticados 
 pelo insolvente que sejam anteriores ao início da sua vigência, já que, ao 
 determinar a sua resolubilidade enquanto forma de cessação dos mesmos, está a 
 dispor sobre os seus efeitos e não sobre o conteúdo da relação jurídica surgida 
 entre as partes com abstracção do facto que lhes deu origem (Cf. Acórdão do 
 Supremo Tribunal de Justiça, de 30/9/2008, P. 08A1825).
 
  
 
             Ao Tribunal Constitucional compete apenas, tomando como um dado que 
 o novo regime legal da resolução é aplicável a contratos onerosos celebrados 
 anteriormente à sua entrada em vigor, porque essa foi a ratio decidendi do 
 tribunal da causa, apreciar se uma tal solução normativa viola normas ou 
 princípios constitucionais, designadamente, os princípios da segurança jurídica 
 e da protecção da confiança, ínsitos no artigo 2.º da Constituição. Que tal 
 aplicação da lei nova configure uma situação de retroactividade da lei ou de 
 mera retrospectividade ou retroaactividade inautêntica é distinção que – sendo 
 importante em sede de balanceamento ou ponderação dos interesses 
 constitucionalmente protegidos, uma vez que uma é mais agressiva para esses 
 interesses do que a outra – não é decisiva para, apenas com base nessa 
 qualificação, inclinar definitivamente num ou noutro sentido quanto à violação 
 dos princípios constitucionais invocados, uma vez que estes podem ser tocados, 
 embora em diferente grau, pela aplicação da lei nova a situações jurídicas que, 
 por algum dos seus elementos, se liguem a ocorrências anteriores à sua entrada 
 em vigor.
 
  
 
 7. Como o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, a Constituição 
 não consagra um princípio geral de proibição de leis retroactivas.
 
  O princípio da não retroactividade da lei encontra-se consagrado na 
 Constituição, de modo expresso, unicamente para a matéria penal, desde que a lei 
 nova não seja mais favorável ao arguido (nºs 1 e 4 do artigo 29.º), para as leis 
 restritivas de direitos, liberdades e garantias (nº 3 do artigo 18.º) e para o 
 pagamento de impostos (artigo 103.º, n.º 3). Fora desses domínios não é vedada 
 ao legislador a emissão de normas com eficácia retroactiva. Como se ponderou, 
 por exemplo, no acórdão nº 304/2001 (disponível em 
 
 www.tribunalconstitucional.pt), citando Vieira de Andrade (Os Direitos 
 Fundamentais na Constituição da República Portuguesa, p.309), “entender o 
 contrário representaria, ao fim e ao resto, coarctar a «liberdade constitutiva e 
 a auto-revisibilidade» do legislador, características que são «típicas», «ainda 
 que limitadas», da função legislativa”.
 
  
 Todavia, na sequência de entendimento que vem já da Comissão Constitucional, é 
 também firme na jurisprudência do Tribunal que o princípio do Estado de direito 
 democrático (consagrado no artigo 2º da Constituição) postula “uma ideia de 
 protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na 
 actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito 
 das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas”, razão pela 
 qual “a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária 
 ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a 
 comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de 
 direito democrático terá de ser entendida como não consentida pela lei básica” 
 
 (cf., entre vários outros nesse sentido, o Acórdão nº 303/90, in “Acórdãos do 
 Tribunal Constitucional”, 17º V., pág.65). 
 Em cada caso, haverá que proceder a um justo balanceamento entre a protecção das 
 expectativas dos cidadãos, decorrentes do princípio do Estado de direito 
 democrático, e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, ao qual, 
 inequivocamente, há que reconhecer a legitimidade (senão mesmo o dever) de 
 tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as 
 soluções mais acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam 
 
 «tocadas» relações ou situações que, até então, eram regidas de outra sorte. Um 
 tal equilíbrio, será postergado nos casos em que, ocorrendo mudança de regulação 
 pela lei nova, esta vai implicar uma alteração intolerável, arbitrária, 
 demasiado onerosa e opressiva nas relações e situações jurídicas já 
 constituídas, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam 
 contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do 
 ordenamento jurídico que regia aquelas relações e situações. Em tais casos, a 
 lei viola aquele mínimo de certeza e segurança que as pessoas devem poder 
 depositar na ordem jurídica de um Estado de direito, impondo-se, então, a 
 intervenção do princípio da protecção da confiança e da segurança jurídica que 
 está implícito no princípio do Estado de direito democrático, por forma que a 
 obstar a que nova lei vá desrespeitar os mínimos de certeza e segurança dos 
 destinatários na ordenação da sua vida de acordo com a ordem jurídica vigente.
 
  
 
 8. Por conseguinte, apenas uma retroactividade (ou uma retrospectividade) 
 intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária (é dizer: 
 insuportável) os direitos e expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos, 
 viola o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito 
 democrático.      Ora, nada disto pode afirmar-se relativamente à solução 
 normativa em causa, quer se conceba a aplicação imediata da lei nova a contratos 
 de compra e venda celebrados no domínio de vigência do Código anterior como 
 retroactividade autêntica ou inautêntica.
 
  
 
             Como vimos, no domínio do CPEREF, em vigor à data do contrato em 
 causa, o terceiro que celebrasse com o insolvente contratos desse tipo que 
 diminuíssem a garantia patrimonial dos credores, desde que se verificasse o 
 requisito da má fé por sua parte, ficava sujeito a ver o bem objecto do contrato 
 restituído à massa (pelo menos, na medida do prejuízo causado aos credores; cf. 
 JOÃO CURA MARIANO, op. cit., pg. 312), convertendo-se a sua contraprestação em 
 crédito comum. Portanto, à data da celebração do contrato cuja resolução está em 
 causa (2003), enquanto não decorresse o prazo de 5 anos a contar de tal acto 
 
 (artigo 628.º do Código Civil), de acordo com a lei vigente naquela data, o 
 terceiro hipoteticamente de má fé (obviamente, supondo que a hipótese normativa 
 venha a confirmar-se nos factos provados) não poderia confiar na estabilização 
 da situação jurídica resultante do contrato. Ora, a “resolução condicionada” 
 regulada no CIRE, não diverge substancialmente, quanto aos seus pressupostos e 
 efeitos, da “impugnação pauliana colectiva” prevista no CPEREF. Como atrás se 
 preveniu, fora do elenco constante do art.º 121.º do CIRE, continua a exigir-se 
 a má fé por parte do adquirente para que a resolução possa operar.
 
             É certo que, além da maior objectividade da noção de má fé e de 
 outras divergências de pormenor, a “resolução condicionada” opera por via 
 extrajudicial (foi esta a interpretação adoptada pela decisão recorrida, mesmo 
 quanto à resolução de contratos para cuja celebração a lei exige escritura 
 pública) enquanto que a impugnação pauliana exigiria a propositura de uma acção. 
 Mas o efeito prático-jurídico obtido por qualquer das vias é substancialmente 
 coincidente quanto aos seus pressupostos e efeitos. Num caso com os contornos do 
 presente, o terceiro adquirente, supostamente de má fé, estaria sujeito a ver o 
 efeito primacial do contrato de compra e venda ser posto em crise até 2008, 
 mediante impugnação pauliana colectiva, com a consequente reversão do bem para a 
 massa falida e a transformação da sua contraprestação, ao menos em parte que 
 excedesse o enriquecimento da massa, em crédito comum reclamável no concurso. No 
 mesmo pressuposto de verificação de má fé da sua parte e antes de expirar aquele 
 prazo, vê operar o direito de resolução em benefício da massa insolvente, 
 sofrendo a mesma ablação patrimonial quanto à coisa adquirida e ficando 
 investido em direito de crédito idêntico ao que lhe atribuiria a lei vigente à 
 data da celebração do contrato (cfr. n.ºs 1 e 3 do artigo 159.º do CPEREF e n.ºs 
 
 1, 4 e 5 do artigo 126.º do CIRE).
 
             Perante a similitude de efeitos prático-jurídicos dos regimes em 
 sucessão, a sujeição de situações como aquela que no presente processo foi 
 considerada ao regime da lei nova não merece censura constitucional por 
 desrespeitar aquele mínimo de certeza e segurança dos destinatários na ordenação 
 da sua vida de acordo com a ordem jurídica vigente que constituiu limite à 
 retroactividade ou à retrospectividade da lei, decorrente do princípio da 
 segurança jurídica e da protecção da confiança que se extrai do artigo 2.º da 
 Constituição. 
 
  
 
             Aliás, ainda que à diversidade de institutos correspondesse maior 
 diversidade de pressupostos substantivos e de consequências práticas do que 
 aquela que realmente se verifica, dificilmente poderia triunfar a pretensão de 
 inconstitucionalidade da lei nova, por se aplicar a contratos onerosos já 
 cumpridos, considerando os pressupostos subjectivos e as limitações temporais 
 que estabelece. Com efeito, a inconstitucionalidade da lei por violação deste 
 princípio supõe sempre a existência de expectativas legítimas na continuidade de 
 uma dada situação jurídica. Desde logo, como refere JORGE REIS NOVAIS, Os 
 Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, pág. 267, “não 
 teriam qualquer peso posições dos particulares sustentadas em ilegalidades ou em 
 omissões indevidas do Estado, bem como as correspondentes pretensões a que o 
 Estado não emitisse lei destinada a corrigir tais situações”. De modo que, 
 pressupondo a resolução uma actuação contratual de má fé, no momento do 
 contrato, por parte do adquirente, a tutela dos interesses deste na conservação 
 do acto, no confronto com o interesse de conservação da garantia patrimonial dos 
 credores do insolvente e com a prossecução do interesse geral do crédito que lhe 
 vai co-envolvida, sempre seria menos resistente à retroactividade da lei.
 
  
 
             Em conclusão, não viola o princípio da segurança jurídica e da 
 protecção da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito consagrado no 
 artigo 2.º da Constituição, a norma do n.º 1 do artigo 120.º do CIRE, em 
 conjugação com o n.º 1 do artigo 12.º do Código Civil, quando interpretada no 
 sentido de que o regime de resolução de actos prejudiciais à massa aí previsto é 
 aplicável aos contratos onerosos celebrados pelo insolvente em data anterior à 
 entrada em vigor daquele Código.
 
  
 III- Decisão
 
             
 Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e condenar o recorrente nas 
 custas, fixando a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) UCs.
 
             Lisboa, 28 de Janeiro de 2009
 Vítor Gomes
 Carlos Fernandes Cadilha
 Maria Lúcia Amaral
 Gil Galvão