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Processo n.º 62/07
 Plenário
 Relator: Conselheiro Vítor Gomes
 
                            
 
  
 
             Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional                     
 
 
 I. Relatório
 
  
 
  
 
             1. O Ministério Público interpôs recurso para o Plenário, ao abrigo 
 do artigo 79.º-D da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, do acórdão n.º 458/2007 
 
 (3.ª Secção) que conclui pela não inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do 
 artigo 116.º do CPP quando interpretada no sentido de que a testemunha que não 
 compareça a acto processual para que tenha sido convocada ou notificada e não 
 justifique a falta tem de ser sancionada, mesmo que o sujeito processual que a 
 arrolou prescinda do seu depoimento e o tribunal não determine oficiosamente a 
 inquirição. Invoca oposição com o acórdão n.º 184/06 (2.ª Secção), em que o 
 Tribunal julgou a mesma norma inconstitucional por violação do princípio da 
 proporcionalidade resultante dos artigos 2.º e 18.º da Constituição.
 
  
 
  
 
 2. O recurso foi admitido, sendo notificado para alegar o Ministério Público e a 
 testemunha faltosa A..
 
  
 Apenas o Ministério Público apresentou alegações, nas quais sustentou a doutrina 
 do acórdão fundamento e concluiu nos seguintes termos:
 
  
 
  
 
  
 
 “1º
 
 É inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, a 
 interpretação normativa do artigo 116.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, 
 segundo o qual deve ser aplicada sanção processual à testemunha faltosa, apesar 
 de a mesma ter sido prescindida por quem a arrolou, e sem que o tribunal haja 
 determinado a respectiva comparência, para efeito de inquirição oficiosa.
 
 2º
 Não encontra suporte no texto da Lei Fundamental a interpretação segundo a qual 
 
 é devida pelos cidadãos uma “cega obediência” ao conteúdo das notificações 
 processuais, devendo a falta ser sancionada com multa, mesmo nos casos em que a 
 realidade processual superveniente implique manifesta inutilidade na comparência 
 em juízo, por não ter lugar a prestação do depoimento que justificava a 
 originária notificação para comparência.
 
 3º
 Termos em que deverá adaptar-se o entendimento subjacente ao decidido no Acórdão 
 nº 184/06.”
 
  
 
             3. Concluída a discussão, tendo por base o acórdão recorrido e 
 memorando apresentado pelo relator, cumpre formular a decisão em conformidade 
 com o vencimento apurado.
 
  
 II. Fundamentos
 
  
 
 4. Verificam-se os pressupostos do recurso para o Plenário ao abrigo do artigo 
 
 79-º-D da LTC, designadamente, o julgamento da questão de constitucionalidade em 
 sentido divergente do anteriormente adoptado pelo Tribunal quanto à mesma norma.
 Com efeito, os acórdãos de secção em confronto decidiram em sentido oposto a 
 questão da constitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 116.º do Código de 
 Processo Penal (na versão do Código anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, 
 sendo que este preceito não sofreu alteração), quando interpretado no sentido de 
 que a testemunha que, em processo penal, falte a acto processual para que tenha 
 sido convocada ou notificada e não justifique a falta incorre no pagamento da 
 soma prevista nesse preceito legal, ainda que o sujeito processual que a arrolou 
 prescinda do seu depoimento e o tribunal não determine oficiosamente a 
 inquirição.  
 
             Aliás, o acórdão recorrido dá nota dessa divergência.
 
  
 
             5.  A solução encontrada para a questão da constitucionalidade em 
 apreciação surge assim justificada no acórdão recorrido:
 
  
 
 “7. A “soma “ referida no n.º 1 do artigo 116.º do CPP, embora as finalidades 
 próprias do direito processual penal possam influir no respectivo regime, 
 designadamente quanto aos termos da justificação da falta para que é cominada e 
 ao seu montante, é uma sanção pecuniária com a mesma natureza das demais multas 
 processuais. 
 A propósito deste tipo de sanções pecuniárias disse o Tribunal no acórdão n.º 
 
 315/92, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23.º vol., pág. 323 (cfr. tb. o 
 acórdão n.º 680/2004, in www.tribunalconstitucional. pt):
 
  
 
 “Se a doutrina processual civil se refere a elas (às multas processuais), por 
 vezes, como «penas», é porque utiliza esta expressão amplamente, em sinonímia 
 com «sanções punitivas» (assim, Manuel de Andrade, Noções Elementares de 
 Processo Civil, com a colaboração de Antunes Varela, edição revista e 
 actualizada por Herculano Esteves, 1976, p.354, e Alberto dos Reis, Código de 
 Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª ed., reimpressão, 1981, p.261)
 As sanções processuais são cominadas para ilícitos praticados no processo, cujo 
 adequado desenvolvimento visam promover. Com a sua estatuição, pretende-se, 
 conforme os casos, obter a cooperação dos particulares com os serviços 
 judiciais, impor aos litigantes uma conduta que não prejudique a acção da 
 justiça ou ainda assegurar o respeito pelos Tribunais.
 
 (...)
 Mas as multas processuais (...) constituem sanções indiscutivelmente estranhas 
 ao direito disciplinar e ao direito de mera ordenação social.
 O direito disciplinar caracteriza-se pela existência de um poder hierárquico que 
 o tribunal não possui, evidentemente, quando aplica multas processuais às partes 
 ou a outros intervenientes no processo. Tão pouco o direito de mera ordenação 
 social, que se distingue do direito penal, tendencialmente, «... pela natureza 
 dos respectivos bens jurídicos...(e) ... pela desigual ressonância ética» e, 
 decisivamente, através da qualificação feita pelo próprio legislador (cfr. o 
 preâmbulo do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro), pode abranger as multas 
 processuais - sanções historicamente anteriores e não filiadas no direito 
 penal.”
 
  
 
 8. A soma cujo pagamento é imposto ao abrigo do n.º 1 do artigo 116.º do CPP 
 para a falta injustificada de comparecimento de pessoa regularmente notificada 
 ou convocada para acto do processo penal sanciona um comportamento que, em 
 extremo rigor, poderia integrar crime de desobediência, mas ao qual a lei 
 tradicionalmente confere tratamento privilegiado, sancionando-o expeditamente 
 com uma multa processual, aplicável mediante um incidente simplificado (Cfr., a 
 propósito de mecanismo sancionatório semelhante que já constava do artigo 91.º 
 do Código de Processo Penal de 1929, o Parecer n.º 98/78, da Procuradoria-Geral 
 da República, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 284, págs. 30 e 
 segs.).
 O fim imediato desta sanção é reprimir o incumprimento do dever de colaboração 
 para que o agente é solicitado no âmbito de um concreto processo. Dever esse a 
 cujo cumprimento o faltoso pode, aliás, ser judicialmente coagido (n.º 2 do 
 artigo 116.º do CPP e alínea f) do n.º 3 do artigo 27.º da CRP; cfr., quanto ao 
 processo civil, n.º 2 do artigo 519.º do CPC). 
 Mas a sanção cumpre também um fim de prevenção geral, intimidando os potenciais 
 infractores e contribuindo para instilar na comunidade a consciência da 
 efectividade desse dever, minorando a perniciosa repercussão da generalização de 
 uma atitude de desrespeito pelas convocatórias dos tribunais na tarefa 
 fundamental do Estado de administrar justiça. Esta preocupação em atacar o que 
 era identificado como um dos pontos críticos da morosidade da justiça penal 
 tornou-se evidente com as novas regras de justificação das faltas em processo 
 penal, introduzidas no artigo 117.º do CPP pela Lei n.º 55/98, de 25 de Agosto. 
 Avulta neste regime a imposição de que a falta seja comunicada com cinco dias de 
 antecedência, se for previsível, ou no dia e hora designados para a prática do 
 acto, se imprevisível, e não em momento posterior à falta, como era tradicional 
 
 (Outro aspecto em que se verificou inovação, para o presente recurso 
 irrelevante, consiste em ter deixado de se fazer referência aos critérios de 
 justificação da falta por remissão para o regime substantivo de exclusão da 
 ilicitude e da culpa, o que pode ser interpretado como alargando a margem de 
 apreciação judicial das razões justificativas da não comparência).
 
 É neste contexto que se há-de ver se o sancionamento da testemunha regularmente 
 convocada e que não justifica a falta, mas cujo depoimento é considerado 
 prescindível tanto pelo sujeito processual que a arrolou como pelo tribunal, 
 viola o princípio da proibição do excesso, concretizador do princípio do Estado 
 de direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição.
 
 9. A colaboração dos cidadãos na administração justiça, que se desdobra nos 
 deveres de testemunhar, de intervir como perito, de participar no tribunal do 
 júri e intervenções ocasionais semelhantes (com ressalva dos casos de recusa 
 legítima), corresponde a um dever fundamental dos cidadãos para com o Estado, de 
 conteúdo cívico-político. Afigura-se lícito extrair essa fundamentalidade da 
 expressa autorização constitucional para impor o cumprimento coercivo de tal 
 dever (rectius, da imposição coactiva de um dever prodrómico desse dever de 
 colaboração, que é o dever de comparência perante as autoridades judiciárias 
 quando a pessoa é regularmente convocada – alínea f) do n.º 3 do artigo 27.º da 
 CRP), o que pressupõe o seu implícito reconhecimento constitucional. De todo 
 modo, mesmo quem assim não entenda não negará carácter de dever legal 
 fundamental ao dever de colaborar na administração da justiça (Parece ser esta a 
 opinião de Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª 
 ed., pág. 534 e de José Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, 
 pág. 94). 
 Efectivamente, quanto à finalidade imediata de alguns modos de colaboração (v. 
 gr., como perito, depositário e semelhantes), ainda seria teoricamente 
 conjecturável uma organização pública ou contratualizada de serviços que 
 permitisse à administração da justiça funcionar sem recurso a esses modos de 
 colaboração ocasional do cidadão. Mas isso seria absolutamente impossível 
 relativamente à modalidade de colaboração que é a prestação de depoimento como 
 testemunha (artigo 131.º do CPP). Pode reduzir-se a onerosidade da intervenção 
 na qualidade de testemunha (v. gr., mediante a prestação de depoimento por 
 vídeo-conferência ou outros modos que não exijam a presença no tribunal da 
 causa), mas não pode eliminar‑se o dever porque não pode cumprir-se a tarefa 
 constitucional dos tribunais sem o respectivo reconhecimento. A disciplina 
 jurídica e os aspectos organizacionais que se dirijam a obviar ou reduzir as 
 causas de adiamento das diligências – por exemplo, o maior rigor quanto aos 
 termos de justificação das faltas – serão mesmo um instrumento para tornar 
 globalmente menos oneroso o dever de colaboração. Mas não se concebe que possa 
 prescindir-se da imposição de comparência perante as autoridades judiciárias por 
 parte de quem deva prestar depoimento, porque esse é um meio de prova sem o qual 
 a instrução e o julgamento das causas é, geralmente, impossível. E não pode 
 deixar de estabelecer-se o adequado e expedito sancionamento dos faltosos, pois 
 de outro modo a imposição do dever não teria eficácia. 
 
 10. Reentrando no caso, é exacto que, numa situação em que esteja adquirido que 
 nenhum dos sujeitos processuais – nem aquele que a indicou, nem o tribunal por 
 sua iniciativa – consideram necessário inquirir a testemunha arrolada, a sua 
 falta de comparência na audiência de julgamento, apesar de regularmente 
 convocada, não se repercute na descoberta da verdade, na boa decisão da causa, 
 ou na marcha do processo. Se a testemunha tivesse comparecido, seria mandada 
 embora sem prestar depoimento, pelo que a deslocação ao tribunal teria 
 constituído um sacrifício (pelo menos de tempo ou de disponibilidade pessoal) 
 sem qualquer utilidade para os fins endo-processuais Nestas circunstâncias, a 
 sanção para a falta injustificada de comparência não pode encontrar fundamento 
 na necessidade de assegurar o cumprimento do dever de colaboração com os 
 tribunais, como testemunha, na administração da justiça penal (artigo 131.º do 
 Código de Processo Penal: dever de testemunhar) porque essa colaboração é, em 
 concreto e por definição, desnecessária. Assim, se identificarmos o bem jurídico 
 tutelado mediante a cominação da multa para a falta injustificada, apenas, com a 
 utilidade da comparência para os fins processuais em função da qual foi 
 concretamente ordenada, é compreensível que se considere a imposição dessa 
 sanção, na hipótese considerada, como violando o princípio da proporcionalidade. 
 
 
 Com efeito, o princípio da proibição do excesso postula que, entre o conteúdo da 
 decisão estadual (a norma que manda sancionar a testemunha que não justificou a 
 falta) e o fim que ela prossegue, haja sempre um equilíbrio, uma ponderação e 
 uma justa medida. As vantagens (obtidas por todos) através da medida estadual 
 devem ser proporcionais às desvantagens que tal medida tenha eventualmente 
 causado a alguns membros da comunidade jurídica, de tal modo que o peso da 
 decisão pública nunca venha a exceder o quantum requerido pela prossecução do 
 seu fim (maria lúcia amaral, A Forma da República, pág.186). Deste modo, se o 
 fim específico da imposição do pagamento de uma soma entre duas e dez UCs fosse 
 exclusivamente assegurar a satisfação da necessidade de comparência da 
 testemunha no concreto processo para que foi indicada, obrigá-la a justificar a 
 falta a um acto para que a sua presença teria sido inútil – portanto, 
 retrospectivamente, a convocatória objectivamente injustificada – e impor-lhe 
 uma sanção por não ter comparecido nem justificado a falta, seria impor-lhe um 
 encargo desnecessário, incompatível com o princípio geral de limitação do poder 
 público que se ancora no princípio do Estado de direito (artigo 2.º da CRP).
 
  11. Todavia, a norma que manda impor ao faltoso o pagamento de uma “soma” não 
 se destina, ou não se destina apenas, a reprimir a falta em função do resultado 
 concreto, mas a sancionar a desobediência à ordem de comparência, enquanto 
 conduta potencialmente lesiva da boa administração da justiça, que transcende 
 esse resultado ou o perigo concreto. 
 Pretende-se, por um lado, mediante a imposição do dever de comunicação 
 antecipada da causa impeditiva de comparência previsível, habilitar o tribunal 
 
 (ou a autoridade judiciária) com informação atempada que lhe permita reorganizar 
 o serviço e reduzir, até onde for possível, as consequências negativas da falta, 
 seja para o serviço em geral, seja para os restantes intervenientes processuais. 
 E visa-se, concomitantemente, criar na comunidade em geral a convicção na 
 efectividade da norma que estabelece o dever de testemunhar e, para tanto, de 
 comparecer no local e na data determinados pela autoridade que dirige o 
 processo.
 Perante esta plurifuncionalidade do dever de justificação das faltas e da 
 correspondente imposição do pagamento da “soma” prevista no n.º 1 do artigo 
 
 116.º do CPP, quando a testemunha não comparece nem justifica a falta ao acto 
 para que foi regularmente convocada, não pode afirmar-se que a norma em causa 
 viole o princípio da proporcionalidade. A exigência de justificação para a não 
 comparência e a correspondente sanção pecuniária quando a testemunha falta sem 
 justificação, mesmo que, em concreto, a falta não tenha tido reflexos na prática 
 do acto, reafirma comunitariamente a norma que estabelece o dever de comparecer 
 perante a autoridade judiciária para prestar depoimento. 
 Embora a regra essencial seja a de que só devem existir os deveres necessários e 
 na medida necessária para a salvaguarda dos direitos fundamentais ou de 
 interesses constitucionalmente protegidos, encontrado um interesse 
 constitucional que ainda suporta a imposição do dever de comparência ou 
 justificação da ausência e para cujo incumprimento a sanção pecuniária se 
 apresenta adequada e não excessiva, cabe na discricionariedade legislativa optar 
 por exigir sempre a justificação por parte do interessado ou dispensá-la quando 
 a falta não tenha repercussão no acto processual, consoante a maior ou menor 
 prevalência que o legislador dê à necessidade de prevenção geral e a avaliação 
 que faça sobre as vantagens e desvantagens para os cidadãos e para o próprio 
 funcionamento dos tribunais (a celeridade, a economia processual, a relação 
 custo-benefício) na imposição desse ónus de justificação. 
 A cominação da sanção pecuniária mesmo nas circunstâncias da hipótese normativa 
 em apreciação – a adequação e a proporcionalidade da medida em sentido estrito 
 não estão em dúvida – traduz uma opção do legislador por um modelo de 
 relacionamento entre as autoridades judiciárias e os intervenientes acidentais 
 de pendor mais autoritário ou de maior rigor dogmático (todo o cidadão convocado 
 deve comparecer ou justificar a falta, sob pena de sanção), em contraposição a 
 um modelo mais pragmático adoptado em processo civil (não tem utilidade 
 justificar a falta, se esta não teve consequências), que não é manifestamente 
 desrazoável face aos fins próprios do processo penal e que não cabe ao juiz 
 constitucional censurar. Isto na pressuposição, relembra-se, da bondade da 
 interpretação adoptada, que é domínio exclusivo do tribunal da causa.
 Em conclusão, não pode considerar-se que a norma do n.º 1 do artigo 116.º do 
 Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a testemunha que 
 não justifique a falta tem de ser condenada ao pagamento de uma soma entre duas 
 e dez UCs, ainda que o sujeito processual que a arrolou prescinda do respectivo 
 depoimento e o juiz não determine oficiosamente a inquirição, viole o princípio 
 da proibição do excesso, enquanto subprincípio caracterizador do princípio do 
 Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição.”
 
  
 
             6.  Acompanha-se este entendimento, remetendo-se para a 
 fundamentação do acórdão recorrido, ao abrigo do disposto no n.º 6 do artigo 
 
 79.º-D da LTC, uma vez que nada foi trazido à discussão que, no essencial, não 
 tenha já sido objecto de ponderação (cfr., sobretudo, os n.ºs 10 e 11 do acórdão 
 recorrido).
 
  
 Apenas se acrescenta que não é exacto que isso signifique perfilhar o critério 
 de que é devida pelos cidadãos uma “cega obediência” ao conteúdo das 
 notificações para comparecimento emanadas dos tribunais ou das autoridades 
 judiciárias. O que o acórdão recorrido considerou e, agora, se acompanha é que a 
 norma tutela um bem jurídico que transcende a utilidade que, em “prognose 
 póstuma”, seja possível atribuir à convocatória para os fins da concreta 
 diligência para que a comparência foi determinada e que é susceptível de 
 justificar constitucionalmente o sancionamento da testemunha que, em processo 
 penal, não cumpra o dever de comparecer e não apresente justificação para a 
 falta nos termos dos artigos 116.º e 117.º do CPP. Há o dever de comparecer e o 
 dever de justificar a não comparência, tendo as alterações introduzidas pela Lei 
 n.º 55/98 tornado mais apertadas as exigências desta, em particular quanto ao 
 momento da apresentação da justificação, em ordem a permitir a reprogramação do 
 serviço e, paralelamente, desmotivar a apresentação de justificações falsas ou 
 inconsistentes. Este objectivo é susceptível de ser posto em risco por condutas, 
 como a sancionada pela norma em apreciação, de desinteresse pela apresentação de 
 qualquer justificação para a não comparência.
 
  
 Por outro lado, salienta-se que o que está em causa é a conformidade 
 constitucional da aplicação da sanção à testemunha que não compareça nem 
 apresente qualquer justificação e não a questão de saber se deveria 
 considerar-se justificada uma falta de comparência cujo pedido de justificação, 
 porventura, se fundasse no conhecimento antecipado (v. gr., por informação sobre 
 a disposição do sujeito processual que indicou a testemunha de vir a dispensar o 
 seu depoimento) de factos que tornariam objectivamente inútil a comparência (ou, 
 perspectivando a questão como de constitucionalidade normativa, a interpretação 
 em que se fundasse a resposta negativa a um pedido de justificação da falta 
 assim construído). 
 
  
 
  
 III. Decisão
 
  
 Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido.
 
             Sem custas.
 
                    Lisboa, 22 de Abril de 2008
 Vítor Gomes
 José Borges Soeiro
 Carlos Fernandes Cadilha
 Maria Lúcia Amaral
 Maria João Antunes
 Carlos Pamplona de Oliveira
 João Cura Mariano
 
                                             Ana Maria Guerra Martins (vencida, 
 pelas razões  constantes de declaração do Exmo. Senhor Conselheiro Mário Torres 
 e pelos 
 
        fundamentos constantes do acórdão 184/06).
 
                                          Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, 
 pelos fundamentos constantes do Acórdão n.º 184/2006 e pelas razões constantes 
 da declaração de voto do Exmo. Senhor Conselheiro Mário Torres)
 
                                            Mário José de Araújo Torres (vencido, 
 nos termos da declaração de voto junta)
 
                                           Rui Manuel Moura Ramos. Vencido, pelas 
 razões constantes do acórdão n.º 184/2006, que subscrevi, e acompanhando a 
 declaração de voto do Senhor Conselheiro Mário Torres.
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 
  
 
                         Votei vencido, por continuar a entender que, tal como 
 decidido no Acórdão n.º 184/2006, da 2.ª Secção, que subscrevi, a norma do 
 artigo 116.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), interpretada no sentido 
 de que tribunal é obrigado a sancionar a testemunha faltosa, apesar de a mesma 
 ter sido prescindida pelo sujeito processual que a apresentou e de o tribunal 
 não ter oficiosamente determinado a sua inquirição, é inconstitucional, por 
 violação do princípio da proporcionalidade, resultante dos artigos 2.º e 18.º da 
 Constituição da República Portuguesa.
 
                         O Acórdão n.º 458/2007, da 3.ª Secção, agora confirmado, 
 reconheceu que na situação em causa, isto é, “numa situação em que esteja 
 adquirido que nenhum dos sujeitos processuais – nem aquele que a indicou, nem o 
 tribunal por sua iniciativa – consideram necessário inquirir a testemunha 
 arrolada, a sua falta de comparência na audiência de julgamento, apesar de 
 regularmente convocada, não se repercute na descoberta da verdade, na boa 
 decisão da causa, ou na marcha do processo”, já que “se a testemunha tivesse 
 comparecido, seria mandada embora sem prestar depoimento, pelo que a deslocação 
 ao tribunal teria constituído um sacrifício (pelo menos de tempo ou de 
 disponibilidade pessoal) sem qualquer utilidade para os fins endo‑processuais”. 
 
 “Nestas circunstâncias – prossegue o citado acórdão –, a sanção para a falta 
 injustificada de comparência não pode encontrar fundamento na necessidade de 
 assegurar o cumprimento do dever de colaboração com os tribunais, como 
 testemunha, na administração da justiça penal (artigo 131.º do Código de 
 Processo Penal: dever de testemunhar)”. E, por isso, conclui o mesmo acórdão 
 que, “se identificarmos o bem jurídico tutelado mediante a cominação da multa 
 para a falta injustificada, apenas, com a utilidade da comparência para os fins 
 processuais em função da qual foi concretamente ordenada, é compreensível que se 
 considere a imposição dessa sanção, na hipótese considerada, como violando o 
 princípio da proporcionalidade”. Como é óbvio, concordo inteiramente com esta 
 constatação.
 
                         No entanto, o referido Acórdão n.º 458/2007, cuja 
 doutrina foi agora maioritariamente confirmada, acabou por entender não ocorrer 
 violação do princípio da proporcionalidade, por a norma em causa se destinar 
 também “a sancionar a desobediência à ordem de comparência, enquanto conduta 
 potencialmente lesiva da boa administração da justiça”, de acordo com dois 
 vectores: por um lado, pretender‑se‑ia, “mediante a imposição do dever de 
 comunicação antecipada da causa impeditiva de comparência previsível, habilitar 
 o tribunal (ou a autoridade judiciária) com informação atempada que lhe permita 
 reorganizar o serviço e reduzir, até onde for possível, as consequência 
 negativas da falta, seja para o serviço em geral, seja para os restantes 
 intervenientes processuais”; e, por outro lado, visar‑se‑ia, “concomitantemente, 
 criar na comunidade em geral a convicção na efectividade da norma que estabelece 
 o dever de testemunhar e, para tanto, de comparecer no local e na data 
 determinados pela autoridade que dirige o processo”.
 
                         É deste entendimento que divirjo.
 
                         A primeira perspectiva invocada é, salvo o devido 
 respeito, manifestamente improcedente: a prévia comunicação da não comparência 
 sempre seria irrelevante para a eficiência do serviço, pois a dimensão 
 normativa em causa pressupõe justamente que a falta da testemunha, porque o seu 
 depoimento foi considerado inútil não só pela parte que a ofereceu como também 
 pelo tribunal, em nada afectou a descoberta da verdade nem foi, ela mesma, causa 
 de qualquer adiamento processual.
 
                         Resta, assim, a última razão, que se reconduz, no fundo, 
 ao relevo dado a considerações de “prevenção geral”, “intimidando os potenciais 
 infractores e contribuindo para instilar na comunidade a consciência da 
 efectividade desse dever [dever de colaboração com os tribunais], minorando a 
 perniciosa repercussão da generalização de uma atitude de desrespeito pelas 
 convocatórias dos tribunais na tarefa fundamental do Estado de administrar 
 justiça”.
 
                         Entendo, no entanto, que estas preocupações, sem dúvida 
 legítimas, não exigem que o tribunal seja sempre obrigado a sancionar a 
 testemunha faltosa, podendo ser inteiramente garantidas com a atribuição ao 
 tribunal da faculdade de sancionar, ou não, a testemunha de acordo com as 
 especificidades do caso concreto.
 
                         Recorde‑se que, em processo civil, o artigo 629.º do CPC 
 não prevê a aplicação de sanção à testemunha faltosa que tenha sido prescindida 
 pela parte que a ofereceu e, mesmo quando não seja prescindida, o n.º 5 desse 
 preceito isenta de sanção a testemunha faltosa quando o julgamento tenha sido 
 adiado por razão diversa da respectiva falta, desde que a parte se comprometa a 
 apresentá‑la no dia designado para a realização da audiência. A especificidade 
 do processo penal em relação ao processo civil, por naquele incumbir ao tribunal 
 oficiosamente a busca da verdade material e este estar sujeito ao princípio 
 dispositivo, justifica que – na tese que defendo e que fora a seguida nas 
 decisões recorridas –, para além de ser prescindida pela parte, se exija, para 
 não tornar obrigatória a aplicação da sanção, que o próprio tribunal tenha 
 considerado dispensável o depoimento da testemunha. Mas, fora essa diferença, 
 não se me afigura que as razões ligadas à afirmação da autoridade dos tribunais 
 sejam menos válidas em processo civil do que em processo penal.
 
                         Constitui um dado da experiência comum que, muitas 
 vezes, os mandatários das partes sabem seguramente que, por diversos motivos, 
 ligados ora ao próprio tribunal, ora às partes, determinada diligência 
 processual, designadamente audiências de julgamento, não se irão realizar na 
 data marcada e disso avisam as respectivas testemunhas. Nestas condições, a não 
 comparência dessas testemunhas na data designada, para além de, como a própria 
 posição maioritária reconheceu, em nada afectar a eficiência da administração 
 da justiça, também não revelará, na generalidade dos casos, qualquer atitude de 
 desrespeito perante uma ordem de comparência emitida por um tribunal. Nesse 
 contexto, a única solução constitucionalmente conforme ao princípio da 
 proporcionalidade será conferir ao tribunal a faculdade de, atentas as 
 circunstâncias do caso, sancionar ou não essa falta.
 
                         Nem se diga, como o faz o precedente acórdão, que “o que 
 está em causa é a conformidade constitucional da aplicação da sanção à 
 testemunha que não compareça nem apresente qualquer justificação e não a questão 
 de saber se deveria considerar‑se justificada uma falta de comparência cujo 
 pedido de justificação, porventura, se fundasse no conhecimento antecipado (v. 
 g., por informação sobre a disposição do sujeito processual que indicou a 
 testemunha de vir a dispensar o seu depoimento) de factos que tornariam 
 objectivamente inútil a comparência (ou, perspectivando a questão como de 
 constitucionalidade normativa, a interpretação em que se fundasse a resposta 
 negativa a um pedido de justificação da falta assim construído)”. É que a norma 
 em causa neste recurso – sendo obviamente a que torna obrigatória a aplicação de 
 sanção à testemunha faltosa – tem de ser apreciada em si e na sua circunstância, 
 e desta “circunstância” faz parte, como um dado da questão, a restrição legal de 
 justificação das faltas aos casos em que a falta foi motivada “por facto não 
 imputável ao faltoso que o impeça de comparecer no acto processual para que foi 
 convocado ou notificado” (artigo 117.º, n.º 1, do CPP), sendo manifesto que o 
 aviso da alta probabilidade ou mesmo certeza da não realização da diligência ou 
 do propósito da dispensa do depoimento da testemunha não impediam esta de 
 comparecer.
 
                         Por último, importa salientar que a obrigação da 
 deslocação de testemunhas a tribunal, sendo obviamente uma decorrência 
 perfeitamente aceitável do dever cívico de colaboração dos cidadãos na tarefa 
 fundamental do Estado de administrar a justiça, envolve custos, desde logo pela 
 restrição da liberdade das pessoas convocadas, com constrangimento do modo de 
 organização da sua actividade pessoal, e também custos económicos, quer a nível 
 individual, quer da colectividade.
 
                         A imposição, sob a ameaça de inarredável sancionamento, 
 de comparência das testemunhas a actos processuais quando antecipadamente se 
 conhece a desnecessidade ou inutilidade dessa comparência, representa, assim, 
 uma solução desproporcionada, pois, como se tentou demonstrar, a protecção do 
 
 único bem constitucionalmente relevante que se concluiu estar causa (após o 
 afastamento, reconhecido pela própria maioria que fez vencimento, da 
 consideração da necessidade de assegurar o cumprimento do dever de colaboração 
 com os tribunais), a saber, o incremento de uma atitude de respeito perante as 
 convocatórias dos tribunais), não exigia que aos tribunais fosse legalmente 
 imposta a obrigação de aplicação da sanção, retirando‑lhe a possibilidade de 
 avaliar, em concreto, a respectiva justificação.
 
  (Mário José de Araújo Torres)