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Processo 379/08
 
 3ª Secção
 Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
 
 
 Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional 
 
 
 I – RELATÓRIO
 
 
 
 1. Nos presentes autos em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., 
 foi interposto recurso de acórdão proferido pela 2ª Secção, em conferência, do 
 Tribunal da Relação de Guimarães, em 10 de Março de 2008 (fls. 35 e 36) para 
 apreciação da constitucionalidade da norma contida no “art.º 219.º, n.º 1 do 
 C.P.Penal, na redacção da Lei 48/200[7], de 29 de Agosto, no segmento em que 
 veda ao M.º P.º a possibilidade de interpor recurso em prejuízo do arguido 
 
 (violação dos princípios da legalidade e da objectividade – a questão foi 
 suscitada durante o processo – v. fls. 23)” (fls. 40).
 
  
 
 2. Ainda que determinando o prosseguimento dos autos para alegação, a Relatora 
 proferiu despacho no sentido de notificar o recorrente “da possibilidade de não 
 conhecimento do objecto do recurso, por a inconstitucionalidade não ter sido 
 suscitada nas motivações de recurso perante o tribunal de primeira instância, 
 mas apenas pelo Procurador-Geral Adjunto em funções no Tribunal da Relação de 
 Guimarães, em sede de vista” (fls. 46).
 
  
 
 3. Notificado para tal pela Relatora, o recorrente produziu alegações, das quais 
 constam as seguintes conclusões:
 
  
 
 «1. Do recurso interposto. 
 
  
 Não se conformando com o decidido pelo Tribunal de Relação de Guimarães, o 
 Ministério Público interpôs o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo 
 do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70° da Lei nº 28/82, de 15 de 
 Novembro, circunscrito à apreciação da conformidade à Lei Fundamental da norma 
 do artigo 219°, nº 1 do Código de Processo Penal, no segmento em que veda ao 
 Ministério Público a possibilidade de interpor recurso em prejuízo do arguido, 
 estando em causa a substituição de medida coactiva por outra menos grave. 
 
  
 
 2. Do eventual não conhecimento do objecto do recurso. 
 
  
 A questão de constitucionalidade não foi efectivamente suscitada na motivação do 
 recurso perante o Tribunal de primeira instância, mas apenas pelo representante 
 do Ministério Público na Relação de Guimarães, em sede e aquando do visto nos 
 autos, tendo, posteriormente, sido cumprido o disposto no artigo 4 17°, nº 2 do 
 Código de Processo Penal. 
 Esta circunstância não implica a ausência de qualquer requisito ou pressuposto 
 que impeça o conhecimento do resumo. 
 Com efeito, verifica-se que a questão de inconstitucionalidade foi suscitada de 
 forma atempada e de modo processualmente adequado perante o tribunal que 
 proferiu a decisão recorrida — a Relação de Guimarães e não o Tribunal de 
 primeira instância — em termos de estar obrigado a dela conhecer, em 
 conformidade com o comando estabelecido pelo nº 2 do artigo 72° da Lei do 
 Tribunal Constitucional. 
 A jurisprudência do Tribunal Constitucional vai no sentido do que se acaba de 
 afirmar, como resulta, designadamente, do seu recente Acórdão nº 145/2008, que 
 cita aliás, em seu apoio, o igualmente constante nos Acórdãos nºs 397/97, 230/03 
 e 637/96, e bem assim do Acórdão nº 542/07, disponíveis em 
 
 www.tribunalconstitucional.pt
 
  
 Aí, admite-se, efectivamente, que a suscitação da questão de 
 inconstitucionalidade não tenha que ocorrer aquando das motivações de recurso 
 perante o Tribunal de primeira instância, podendo ter lugar, inclusivamente, 
 através de requerimento autónomo ou em sede de alegações orais (ainda que 
 consignadas em acta), num e noutro caso já perante o Tribunal de recurso que vai 
 proferir a decisão recorrida. 
 Deverá, pois, conhecer-se do objecto de recurso. 
 
  
 
 3. Da questão de constitucionalidade suscitada.
 
  
 Dispõe o n° 1 do artigo 219° do Código de Processo Penal que: 
 
  
 
 “Só o arguido e o Ministério Público em benefício do arguido podem interpor 
 recurso da decisão que aplicar, mantiver ou substituir medidas previstas no 
 presente título “. 
 
  
 Esta redacção inovadora foi introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto e 
 veio retirar ao Ministério Público legitimidade para recorrer, desde que o não 
 faça em benefício do arguido. 
 O retirar ao Ministério Público a possibilidade de recorrer em prejuízo do 
 arguido, em sede de medidas coactivas aplicadas em processo penal, colide com o 
 seu estatuto constitucionalmente consagrado, violando ainda, e designadamente, 
 princípios da Lei Fundamental como são o caso dos princípios da legalidade, do 
 acesso ao direito e do Estado de direito democrático. 
 O Ministério Público é concebido como uma magistratura autónoma (artigo 219°, nº 
 
 2 da Constituição), sendo o “dominus” do inquérito na primeira das fases 
 preliminares do processo penal e actuando sempre na pendência deste (seja no 
 inquérito, na instrução, no julgamento ou na fase do recurso) como um sujeito 
 isento e objectivo — cf., entre outros, os Acórdãos nos 6 10/96 e 2 16/99 do 
 Tribunal Constitucional. 
 Compete-lhe nos termos do nº 1 do citado artigo 219° da Constituição e 
 titularidade do exercício da acção penal orientada pelo princípio da legalidade 
 e da defesa de legalidade democrática. 
 As medidas de coacção só podem ser aplicadas no âmbito de um concreto processo 
 penal instaurado contra um determinado arguido já constituído como tal, estando 
 sujeitas a um princípio da legalidade nos termos do artigo 191° do Código de 
 Processo Penal, que surge como uma das concretizações na legislação ordinária do 
 princípio constitucional de legalidade do processo penal, que se extrai do 
 artigo 32° conjugado com o artigo 165°, nº 1, alínea e) da Constituição. 
 Ao assinalado recorte constitucional do Ministério Público actuando, para o que 
 agora nos interessa no processo penal, não pode escapar o controlo da legalidade 
 da medida de coacção concretamente aplicada, como ocorreu no caso que é objecto 
 de recurso. 
 Uma das formas de exercer esse controlo não pode deixar de ser o recurso, sempre 
 que entenda que em função das exigências processuais de natureza cautelar 
 
 (artigo 19 1°, nº 1 do Código de Processo Penal e artigo 27°, nº 3 da 
 Constituição) que cumpra observar, não foi judicialmente aplicada a adequada e 
 correspondente medida de coacção que ao caso cabia. 
 Reputamos pertinente e perfeitamente adaptável ao objecto do presente recurso 
 citar, ainda que parcialmente, o teor da declaração de voto da Sra. Conselheira 
 Fernanda Palma, vencida no Acórdão nº 530/01 do Tribunal Constitucional quando 
 referiu: 
 
  
 
 “(...) Com efeito, o Ministério Público, no exercício das suas funções de 
 titular do exercício da acção penal e de defensor da legalidade democrática 
 
 (artigo 219° da Constituição) tem o poder e o dever de recorrer sempre que, em 
 face dos critérios legais, o considerar necessário. O recurso é essencial ao 
 controlo das decisões judiciais num estado de direito e quaisquer restrições 
 injustificadas afectam essa importantíssima função de controlo da correcta 
 fundamentação das sentenças bem como a inerente preservação da legalidade 
 democrática;(..). 
 
  
 
 (..)finalmente, não me parece aceitável que restrições da possibilidade de 
 recorrer desta ordem (em que são as condições lógicas da fundamentação do 
 recurso que são postas em causa) não sejam toleráveis na perspectiva das 
 garantias de defesa — que aqui não estarão em causa — e já o sejam para um 
 sentido colectivo de realização da justiça que cabe ao Ministério Público 
 prosseguir.”
 
  
 Também no caso em apreço e pela mesma ordem de razões o vedar a possibilidade de 
 recurso por parte do Ministério Público, contende com o seu estatuto (artigo 
 
 219° da Constituição) com o Estado de Direito (artigo 2° da Constituição), com o 
 acesso ao direito por parte do Ministério Público enquanto representante do 
 Estado — comunidade (artigo 200, nº 1 da Constituição) e com o princípio da 
 legalidade (artigos 32° e 165°, nº 1, alínea c) da Constituição). 
 Numa perspectiva ainda mais critica à solução preconizada pelo artigo 219°, nº 1 
 do Código de Processo Penal, cite-se a propósito parte da anotação de Paulo 
 Pinto de Albuquerque no “Comentário do Código de Processo Penal, à luz da 
 Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”. pág. 
 
 580 e 581:
 
  
 
 “A proibição do Ministério Público interpor recurso da decisão que modifique, 
 não aplique, revogue ou declare extinta medida de coação, ou interpor recurso em 
 prejuízo do arguido de decisão que aplique, mantenha ou substitua medida de 
 coacção ou de decisão que aplique medida menos gravosa do que a proposta pelo 
 Ministério Público, viola o principio da legalidade das medidas de coacção 
 
 (artigo 191°, n° 1, do CPP), que é uma decorrência do princípio constitucional 
 da legalidade do processo penal (artigo 32°, conjugado com o artigo 165°, n°1, 
 ai. C), da CRP), como viola o princípio da igualdade (artigo 13° da CRP) e a 
 função constitucional do Ministério Público de defensor da legalidade 
 democrática (artigo 219°, n°1, da CRP). 
 A decisão sobre medidas de coacção, seja no sentido favorável ao arguido seja no 
 sentido inverso, está subordinada ao princípio da legalidade e não da 
 discricionariedade. Os pressupostos de aplicação, revogação, alteração e 
 extinção das medidas de coacção estão contidos em lei, por força de imperativo 
 constitucional (artigo 165°, n°1, al. C), da CRP). Por outro lado, a igualdade 
 de armas não é um benefício do arguido, mas uma característica estrutural do 
 processo penal Português, que beneficia quer o arguido quer os outros sujeitos 
 que nele intervêm. O mesmo se diga da função constitucional do MP: ela não visa 
 apenas a função do MP de defensor de legalidade quando exercida à decharge do 
 arguido, mas também aquela função quando exercida à charge do arguido.” 
 
  
 Surge, pois, a irrecorribilidade estabelecida no artigo 219°, n° 1 do Código de 
 Processo Penal, como materialmente inconstitucional, pelas razões apontadas 
 
  
 
 2. Conclusão 
 
  
 Nesta conformidade e face ao exposto, conclui-se: 
 
  
 
 1. A norma do nº 1 do artigo 219° do Código de Processo Penal, no segmento em 
 que veda ao Ministério Público a possibilidade de recorrer, em prejuízo do 
 arguido, de decisão judicial que substituiu medida de coacção por outra menos 
 grave é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 2°, 13°, 200, 
 nº 1, 32°, 165°, nº 1, alínea c) e 219° da Constituição. 
 
  
 
 2. Termos em que deverá proceder o presente recurso.» (fls. 47 a 52)
 
  
 
 4. Ainda que notificado para tal, o recorrido não respondeu às alegações do 
 Ministério Público, dentro do prazo legalmente fixado.
 
  
 
 5. No decurso da sessão de julgamento realizada, em 26 de Novembro de 2008, foi 
 suscitada a eventual inadequação da suscitação da inconstitucionalidade de norma 
 constante do n.º 1 do artigo 219º do CPP, perante o Tribunal da Relação de 
 Guimarães. Em face da eventualidade de não conhecimento do objecto do recurso, a 
 Relatora notificou, de novo, o recorrente para que se pronunciasse, caso assim 
 pretendesse (fls. 57).
 
  
 Decorrido o prazo para tal, o recorrente não se pronunciou sobre a questão.
 
  
 Assim sendo, cumpre apreciar e decidir.
 
  
 
  
 II – FUNDAMENTAÇÃO
 
  
 
 6. Importa começar por apreciar a admissibilidade de conhecimento do objecto do 
 recurso, avaliando se pode dar-se por verificada, nos autos recorridos, uma 
 suscitação processualmente adequada de uma questão de inconstitucionalidade 
 normativa.
 
  
 Analisando a motivação e as respectivas conclusões de recurso apresentadas pela 
 Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal da Comarca de Celorico de 
 Basto (fls. 217), verifica-se que as mesmas foram apresentadas, em 19 de Julho 
 de 2006, ou seja, em data anterior à entrada em vigor da redacção actual do n.º 
 
 1 do artigo 219º do CPP, introduzida por força da Lei n.º 48/2007, de 29 de 
 Agosto. Daqui decorre que, à data da interposição do recurso, a norma cuja 
 constitucionalidade se pretende ver agora apreciada ainda não vigorava no 
 ordenamento jurídico português, sendo, àquela data, admissível a interposição de 
 recurso.
 
  
 Sucede que aquele recurso apenas subiu ao Tribunal da Relação de Guimarães, em 
 
 16 de Outubro de 2007 (fls. 19), ou seja, em data em que a redacção actual do 
 n.º 1 do artigo 219º do CPP, introduzida por força da Lei n.º 48/2007, de 29 de 
 Agosto, já vigorava plenamente.
 
  
 Mediante vista de 26 de Novembro de 2007, o Procurador-Geral Adjunto a exercer 
 funções no Tribunal da Relação de Guimarães, pugna pela admissibilidade do 
 referido recurso, nos seguintes termos:
 
  
 
 “E nem se diga que, em face da agora vigente redacção do n.º 1, do art. 219.º do 
 CPP (redacção da L 48/2007, de 29 de Agosto) – o CPP reformado entrou em vigor 
 já depois da interposição do presente recurso -, o MP não tem legitimidade, no 
 caso presente para recorrer.
 Tal norma, além de não ser compatível com outras normas do CPP, que definem os 
 poderes genéricos do MP no domínio processual penal [v.g. arts. 53.º e 401.º, 
 n.º 1, alínea a)], ofende o estatuto, as funções e os princípios (v.g. da 
 legalidade, objectividade) que orientam a acção de tal magistratura, definidos 
 no EMP (arts. 1.º, 2.º e 3.º da L 60/98, de 27 de Agosto) e na CRP (n.º 1 do 
 art. 219.º).” (fls. 23)
 
  
 
             Desde logo se levantam dúvidas quanto à adequada suscitação 
 processual de uma questão de inconstitucionalidade normativa. Da leitura do 
 excerto supra, constata-se que apenas foi traçada uma relação de contradição 
 entre o “estatuto, as funções e os princípios (…) que orientam a acção de tal 
 magistratura” e não uma relação de contradição entre uma norma ordinária e uma 
 norma ou princípio constitucional. A alusão na parte final do referido excerto 
 ao n.º 1 do artigo 219º da Constituição surge como um mero argumento de apoio à 
 tese de que o estatuto do Ministério Público encontra consagração 
 constitucional. O que não sucede, porém, é uma manifesta alegação de 
 inconstitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 219º do CPP com o 
 n.º 1 do artigo 219º do CRP. Tanto assim é que a decisão recorrida nem sequer 
 aborda tal incidente de inconstitucionalidade, eventualmente por não ter 
 considerado que a tal estava obrigada.
 
  
 
             Encontrando-nos perante um recurso interposto ao abrigo da alínea b) 
 do n.º 1 do artigo 70º da LTC, mais não resta do que aplicar a jurisprudência 
 constante deste Tribunal no sentido de que, não tendo sido formulada – de modo 
 claro e preciso – uma questão de contradição entre norma de valor ordinário e 
 norma de valor constitucional, não se verifica uma suscitação adequada de 
 questão de inconstitucionalidade normativa.
 
  
 
             Em suma, conclui-se não ter sido adequadamente suscitada qualquer 
 questão de inconstitucionalidade normativa por parte do recorrente, pelo que, 
 por força do n.º 2 do artigo 72º da LTC, não pode este Tribunal conhecer do 
 objecto do presente recurso.
 
  
 
  
 III – DECISÃO
 
  
 Pelos fundamentos expostos, decide-se não conhecer do objecto do presente 
 recurso.
 
  
 Sem custas, por não serem legalmente devidas.
 Lisboa, 14 de Janeiro de 2009
 Ana Maria Guerra Martins
 Maria Lúcia Amaral
 Vítor Gomes
 Carlos Fernandes Cadilha
 Gil Galvão