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Processo n.º 671/07
 
 2ª Secção
 Relator: Conselheiro João Cura Mariano
 
  
 Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
 
 
 Relatório
 A. foi condenado por sentença proferida em 16-11-2006, no processo comum, com 
 tribunal singular, n.º 1536/04.0 PBAVR, pendente no 2.º Juízo do Tribunal 
 Judicial de Albergaria-a-Velha:
 a) pela autoria material de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, 
 na pena de 280 dias de multa, à taxa diária de € 10,00;
 b) pela autoria material de um crime de injúrias, na pena de 90 dias de multa, à 
 taxa diária de € 10,00;
 c) em cúmulo jurídico das referidas penas, na pena única de 330 dias de multa, à 
 taxa diária de € 10,00;
 d) na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período 
 de 5 meses;
 e) e, ainda, no pagamento à demandante B. da indemnização no montante de € 
 
 650,00, acrescida de juros à taxa legal vencidos desde 16 de Junho de 2006 até 
 integral pagamento.
 
  
 Foi interposto recurso da referida decisão pelo arguido, pugnando este pela 
 nulidade da sentença condenatória, com fundamento, para além do mais, na 
 valoração pelo Tribunal de primeira instância de provas nulas, porque obtidas 
 mediante ilegítima intromissão na vida privada.
 
  
 O Tribunal da Relação de Coimbra viria a julgar este recurso totalmente 
 improcedente, por acórdão de 9-5-2007, mantendo assim a sentença recorrida.
 Para tanto, o Tribunal da Relação de Coimbra fundamentou essa decisão da 
 seguinte forma, na parte que ora releva:
 
 “(...) 3.3. Se é ou não (e corolário, neste caso) admissível a valoração como 
 meio de prova do documento junto a fls. 198/203 dos autos (conclusões 9ª a 17ª). 
 
 
 A resposta apresentada pelo recorrido Ministério Público, a propósito, mostra-se 
 pertinente, motivo porque a seguiremos de perto. Assim: 
 A Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro [Lei da Protecção de Dados Pessoais], define 
 como “Dados pessoais”, qualquer informação, de qualquer natureza e 
 independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma 
 pessoa singular, identificada ou identificável (“titular dos dados”), é 
 considerada identificável a pessoa que possa ser identificada directa ou 
 indirectamente, designadamente por referência a um número de identificação ou a 
 um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, 
 psíquica, económica, cultural ou social. 
 O tratamento de tais “dados pessoais” mostra-se, todavia, submetido a diversas 
 medidas tendentes a acautelar a respectiva segurança e confidencialidade. 
 Na verdade, em especial, o seu artigo 17.º, n.º 1 disciplina que os responsáveis 
 do tratamento de dados pessoais, bem como as pessoas que, no exercício das suas 
 funções, tenham conhecimento dos dados pessoais tratados, ficam obrigados a 
 sigilo profissional mesmo após o termo das suas funções. 
 Vale por dizer no caso concreto, que a responsável pelo tratamento de tais dados 
 
 – C., S.A. –, bem como o seu pessoal, se encontravam obrigados ao dever de 
 sigilo profissional – o qual, é consabido, se traduz na proibição de revelar 
 factos ou acontecimentos de que se teve conhecimento ou que foram confiados no 
 exercício ou em razão de uma actividade profissional. 
 Este dever, correspondente ao intuito de evitar a devassa à reserva da vida 
 privada alheia, não é, porém, absoluto. 
 Norma nuclear respeitante ao regime constitucionalmente fixado para os direitos, 
 liberdades e garantias é a constante do artigo 18.º da CRP, e em cujos termos se 
 mostra admissível a restrição de certos direitos fundamentais, para garantir a 
 salvaguarda de outros com igual arrimo legal. Princípios norteadores são os de 
 que tais restrições se limitem ao estritamente necessário para alcançar os 
 objectivos, apontando-se como critério aferidor o de uma proporcionalidade entre 
 os meios legais restritivos e os fins obtidos. Isto é, em outras palavras, 
 respigadas da dita resposta, “a limitação dos direitos deverá mostrar-se 
 necessária e ser imposta com fundamento em motivo social relevante, num justo 
 equilíbrio entre o interesse público e a vida privada do cidadão.” 
 O artigo 35.º, n.º 4 da CRP concretiza esta orientação, exigindo que seja a lei 
 a estabelecer as condições de acesso a dados pessoais de terceiros. 
 O fundamento da discórdia do recorrente traduz-se em que não existe como 
 legalmente tipificado um qualquer regime que permita o acesso aos dados pessoais 
 constantes dos documentos juntos a fls. 199 a 203, em especial, à listagem das 
 passagens registadas pelo identificador “via verde”, associado ao automóvel 
 
 ..-..-... 
 Quid iuris?
 
  Pelo contrário, adiantamos, o regime penal adjectivo contém normas expressas 
 relativas à problemática da quebra de sigilo. 
 Ao que ora releva, o decorrente do artigo 182.º, n.º 1, em cujos termos as 
 pessoas obrigadas ao dever de sigilo (indicadas nos artigos 135.º e 137.º), 
 apresentam à autoridade judiciária, quando esta o ordenar, os documentos ou 
 quaisquer objectos que tiverem em sua posse ou devam ser apreendidos, salvo se 
 invocarem, por escrito, segredo profissional ou segredo de Estado. 
 Isto é, não se antolha aqui algo mais do que a possibilidade de a autoridade 
 judiciária poder ordenar por despacho a requisição de documentos dos quais 
 constem dados pessoais. 
 Na situação presente, a listagem de fls. 200, e demais documentação que a 
 antecede e o recorrente impugna, foi junta aos autos na sequência de um despacho 
 do Ministério Público (cfr. fls. 153 e 154). 
 Ou seja, mostrava-se possível ao Tribunal a quo, atento ademais o disposto pelo 
 artigo 125.º do CPP, valorar, como o fez, os questionados documentos (...)”.
 
  
 O Arguido interpôs então recurso da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra 
 para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do 
 artigo 70.º, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal 
 Constitucional (LTC), em que, após convite para corrigir o requerimento inicial, 
 suscitou a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 125.º e 126.º, 
 n.º 3, e, por extensão do artigo 374.º, n.º 2 “in fine”, todos do Código de 
 Processo Penal (C.P.P.), quando interpretadas no sentido de ser permitida a 
 admissão e valoração de provas documentais relativas a dados pessoais do arguido 
 respeitantes à sua vida privada retirados de uma base informatizada, sem o 
 respectivo consentimento, por violação do disposto nos artigos 17.º, 18.º, n.º 1 
 a 3, 32.º, n.º 8, e 35.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa 
 
 (C.R.P.). 
 
  
 Concluiu, do seguinte modo, as suas alegações:
 
 “1º O presente recurso vem do douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 
 
 2007.05.09, que por sua vez confirmou a também douta sentença proferida pelo 
 Tribunal Judicial da Comarca de Albergaria-a-Velha, de fls. 236 a 248 dos autos, 
 pela qual o ora Recorrente foi condenado nos termos nela expressos que por 
 economia se dão por reproduzidos nesta sede; 
 
 2º O julgamento da questão-de-facto constante da douta sentença de 1ª Instância, 
 entretanto confirmada pela Relação “a quo”, fundou-se no conjunto da prova 
 produzida em audiência, e designadamente nos documentos de fls. 165 (CRC do 
 arguido), e de fls. 8, 13, 60 e 198-203 dos autos; 
 
 3º O documento de fls. 198 a 203, requisitado por despacho do Ministério Público 
 a C., SA, inclui dados informáticos ou informatizados relativos ao identificador 
 
 “via verde” emitido para e em nome da dita firma “D., LDA.”, designadamente 
 concernentes ao trajecto percorrido por uma das suas viaturas na data dos factos 
 
 – 2004.08.08, eventualmente o veículo automóvel ligeiro 64-11-XB, dado como 
 conduzido pelo aqui Recorrente; 
 
 4º A questão arguida por esse Venerando Tribunal Constitucional reconduz-se à 
 admissibilidade do documento de fls. 198-203 por inconstitucionalidade e logo 
 também por ilegalidade, que foi essencial à convicção do Digno Tribunal que 
 julgou a questão-de-facto, e logo para a condenação do arguido; 
 
 5º A questão da (in)constitucionalidade foi desde logo levantada em sede da 
 motivação do recurso oportunamente interposto para a indicada Veneranda Relação, 
 designadamente concretamente na respectiva 15ª conclusão; 
 
 6º A Veneranda Relação “a quo”, admitindo a legalidade e constitucionalidade da 
 requisição do documento em causa desde que requisitada por autoridade judiciária 
 
 (no caso em apreço, o Ministério Público, fls. 153 e 154 dos autos), dando por 
 adquirido a existência de lei ordinária procedente que o admite, reconduziu a 
 questão em apreço à extensão do dever de sigilo profissional prevista no art. 
 
 17º, nº 1 da Lei nº 67/98, de 26 de Outubro (Lei de Protecção de Dados 
 Pessoais), no caso concreto da sociedade comercial “C., SA.” e seus agentes, 
 assumindo a respectiva quebra como viável à luz do nº 2 do art. 18º da CRP 
 enquanto “limitação de direitos” imposta por motivo social relevante, visando o 
 equilíbrio entre o interesse público e a tutela da vida privada do cidadão; 
 
 7º O Digno Tribunal “a quo” defendeu ainda que o regime penal adjectivo 
 contém(inha) normas expressas relativas à quebra do sigilo, desde logo o art. 
 
 182º, nº 1, aplicável às pessoas indicadas nos artigos 135º a 137º, todos do 
 CPP, e concluiu pela admissibilidade da prova documental em causa e respectiva 
 valoração ao abrigo do artigo 125º do mesmo diploma legal; 
 
 8º Mais afirmando, que a bondade dessa orientação é acolhida no nº 4 do art. 35º 
 da CRP, ao relegar para a lei ordinária as condições de acesso aos dados 
 pessoais de terceiro; 
 
 9º O recorrente, à luz do conteúdo gramatical do preceito constitucional ora 
 indicado, é terceiro para com o Estado, e logo os tribunais que o integram; 
 
 10º À norma em causa é extensível o regime dos direitos liberdades e garantias, 
 sendo directamente aplicáveis e obrigando entidades públicas e privadas – arts. 
 
 17º e 18º, nº 1 da CRP; 
 
 11º Os direitos, liberdades e garantias expressamente previstos na CRP só podem 
 ser restringidos pela lei ordinárias nos casos expressamente naquela admitidos, 
 e sempre na proporção indispensável a salvaguardar outros direitos, liberdades e 
 garantias, sem que daí possa advir diminuição da extensão e do alcance do 
 conteúdo essencial dos preceitos constitucionais – art. 18º, nºs 2 e 3 da CRP; 
 
 12º O Digno Tribunal “a quo” ao considerar que as disposições em causa, 
 designadamente os arts. 135º e 182º, nº 1 do CPP, a par do art. 17º, nº 1 da Lei 
 de Protecção de Dados Pessoais, são aquelas que equivalem à derrogação 
 excepcional do princípio constitucional de proibição de acesso a base de dados 
 pessoais de terceiros, designadamente para os fins do caso em apreço, recorreu a 
 normas jurídicas cujo escopo visa regular o exercício do sigilo profissional por 
 parte de membros de corporações sujeitos a especial regulamentação legal, 
 estatutária e deontológica dos respectivos deveres nesta matéria (caso de 
 sacerdotes, médicos, advogados, jornalistas, etc.), salvo melhor opinião ausente 
 ou pelo menos insuficiente no caso em apreço; 
 
 13º A ser assim, não se respeita o requisito da excepcionalidade da derrogação 
 da proibição de acesso a dados pessoais de terceiro contido no nº 4 do art. 35º 
 da CRP, logo encontrando-se ferida de inconstitucionalidade material a 
 interpretação e aplicação que a Veneranda Relação fez das evidenciadas normas de 
 direito ordinário; 
 
 14º Excluindo-se as ditas normas da lei ordinária do âmbito ou do escopo do art. 
 
 35º, nº 4 “2ª parte” da CRP, também não colhe respeitado o recurso ao princípio 
 da proporcionalidade contido no artigo 18º, nº 2 “2ª parte” da CRP, dado que, 
 data venia, este expediente fica vedado no caso em apreço por força do disposto 
 na sua 1ª parte, em conjugação com o preceituado nos arts. 17º e 18º, nºs 1 e 3 
 da CRP; 
 
 15º E, sem prescindir, mesmo que assim não se entenda e sob pena de violação do 
 artigo 18º, nº 2 da CRP, será desproporcionado e não conforme com o dito 
 princípio da proporcionalidade, relegar o critério da devassa da vida privada 
 dos cidadãos a entidades que não se encontram imbuídas e submetidas a objectivos 
 e rigorosos critérios deontológicos, com inexistente ou pelo menos insuficiente 
 tutela disciplinar; 
 
 16º Logo, também não é sustentável considerar que o contrário queda admitido por 
 efeito do art. 125º do CPP, já que aquela não preenche a noção de legalidade de 
 que depende a sua procedência; 
 
 17º E, à míngua como no caso em apreço de consentimento do titular do direito, 
 não estando a sua admissibilidade ressalvada por lei, não é pertinente qualquer 
 hermenêutica do art. 126º, nº 3 do CPP que não considere a prova em discussão 
 neste recurso como nula por abusiva intromissão na vida privada; 
 
 18º Aliás, em conformidade com o ordenado pelo nº 8 do artigo 32º da CRP, que de 
 modo contrário também resulta(ria) violado, pois prevê a nulidade de toda a 
 prova obtida em processo criminal com intromissão abusiva na vida privada; 
 
 19º Os artigos 125º e 126º, nº 3 do CPP não têm como escopo dirimir 
 especificamente a questão do acesso excepcional a base de dados pessoais tal 
 como nos é posto no art. 35º, nº 4 da CRP, que por sua vez concretiza 
 especialmente o estatuído em normas como os 17º, 18º, nºs 1 a 3, 32º, nº 8 da 
 CRP; 
 
 20º E se assim é, o douto acórdão sob crítica também admitiu o insuficiente 
 exame crítico das provas antes operado pela 1ª Instância, logo consentindo em 
 interpretação do artigo 374º, nº 2 do CPP em contravenção com os referenciados 
 artigos 17º, 18º, nºs 1 a 3, 32º, nº 8 e 35º, nº4 da CRP; 
 
 21º Termos em que se conclui a inexistência de regime legal tipificado que 
 permita o acesso a essas bases de dados, pelo menos em harmonia com o 
 determinado constitucionalmente, mantendo-se pois o imperativo constitucional de 
 lhes não aceder; 
 
 22º E em consequência, com o devido respeito, a Veneranda Relação de Coimbra, na 
 sequência de posição prévia de igual teor tomada pela Digna 1ª Instância, ao 
 considerar que os artigos arts. 125º e 126º, nº 3, e por extensão do art. 374º, 
 nº 2 “in fine”, e, atento o teor da fundamentação do douto acordo sob crítica, 
 os indicados arts. 135º e 182º, nº 1, todos do CPP e até o artigo 17º, nº 1 da 
 Lei de Protecção de Dados Pessoais, aprovado pela Lei nº 67/98, de 26 de 
 Outubro, permitem(iam), em vez de excluir, como seria mister, a admissão e 
 valoração de provas documentais relativas a dados pessoais do Recorrente, 
 terceiro para o efeito, retiradas de uma base informatizada sem o consentimento 
 do próprio, caso do documento de fls. 198 e 203, impediu não só a directa 
 aplicação do regime próprio dos direitos, liberdades e garantias, mas também 
 acolheu interpretação que pressupõe intromissão abusiva na vida privada do 
 Recorrente, e logo a violação por inconstitucionalidade material dos artigos 
 
 17º, 18º, nºs 1 a 3, 32º, nº 8 e 35º, nº 4 da CRP. 
 Termos em que e pelo que doutamente for suprido deve-se dar provimento ao 
 presente recurso, declarando-se a inconstitucionalidade dos artigos arts. 125º e 
 
 126º, nº 3, e por extensão do art. 374º, nº 2 “in fine”, bem como dos indicados 
 arts. 135º e 182º, nº 1, todos do CPP, e do art. 17º, nº 1 da Lei nº 67/98, de 
 
 26 de Outubro, atenta a aplicação e interpretação dos mesmos perfilhada pela 
 Veneranda Relação “a quo”, por violação material dos preceitos constitucionais 
 acolhidos designadamente nos artigos 17º, 18º, nºs 1 a 3, 32º, nº 8 e 35º, nº 4 
 da CRP, revogando-se em consequência o douto acórdão recorrido, e ordenando-se a 
 baixa dos autos à competente instância a fim desta proceder à prolação de novo 
 douto aresto em harmonia com o determinado por esse Tribunal Superior de 
 apreciação da (in)constitucionalidade em sede do também seu douto acórdão a 
 proferir, com as legais consequências.”
 
  
 O Ministério Público concluiu do seguinte modo as suas contra-alegações:
 
 “Não é inconstitucional a interpretação normativa dos artigos 125.º, 126.º, n.º 
 
 3 e 374.º, nº 2, todos do Código de Processo Penal, no sentido de poderem ser 
 valorados como prova documentos referentes a dados pessoais, solicitados pela 
 autoridade judiciária, ao abrigo do disposto nos artigos 135.º e 182.º, nº 1, do 
 mesmo diploma legal.
 
  
 A assistente Elisabete Peralta não apresentou contra-alegações.                  
 
                                   
 
                                                       *                      
 Fundamentação
 
 1. Do objecto do recurso
 O recorrente pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a questão 
 da constitucionalidade das normas contidas nos artigos 125.º e 126.º, n.º 3, e, 
 por extensão, no artigo 374.º, n.º 2, “in fine”, todos do C.P.P., quando 
 interpretadas no sentido de ser permitida a admissão e valoração de provas 
 documentais relativas a dados pessoais do arguido respeitantes à sua vida 
 privada, retirados de uma base informatizada sem o respectivo consentimento, por 
 violação do disposto nos artigos 17.º, 18.º, n.º 1 a 3, 32.º, nº 8, e 35.º, n.º 
 
 4, da C.R.P.. 
 Nos termos do disposto no artigo 280.º, nº 1, alínea b), da C.R.P., e no artigo 
 
 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das 
 decisões dos tribunais que 'apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido 
 suscitada durante o processo'.
 Sucede que a decisão recorrida não aplicou todas as normas processuais penais 
 identificadas pelo recorrente, nem as aplicou com a concreta interpretação que 
 lhe foi assacada em sede de requerimento de interposição do presente recurso.
 Para o efeito que aqui releva, e por referência às normas invocadas pelo 
 recorrente, resulta claramente da decisão recorrida – acima transcrita – que o 
 tribunal a quo se limitou a aplicar o art. 125.º, do C.P.P., na interpretação 
 segundo a qual é permitida a admissão e valoração de provas documentais 
 relativas a listagens de passagens de um veículo automóvel nas portagens das 
 auto-estradas, que foram registadas pelo sistema de identificador da “VIA 
 VERDE”, armazenadas numa base de dados informatizada e ulteriormente juntas ao 
 processo criminal, sem o consentimento do arguido e por determinação do 
 Ministério Público.
 O objecto do recurso deve assim restringir-se à aludida questão da 
 constitucionalidade da interpretação normativa do art. 125.º, do C.P.P., acima 
 enunciada.
 
  
 
 2. Da questão da constitucionalidade da interpretação normativa do artigo 125.º, 
 do Código de Processo Penal de 1987
 O presente recurso versa a temática delicada das proibições de prova em processo 
 penal, tendo como pano de fundo a alegada violação da protecção constitucional 
 dos dados pessoais informatizados e da reserva da intimidade da vida privada.
 A norma infraconstitucional em que se apoia a decisão recorrida dispõe que “são 
 admissíveis as provas que não forem proibidas por lei” (artigo 125.º, do 
 C.P.P.).
 Recuperemos, em síntese, os contornos do caso concreto que suscitaram a 
 interposição do presente recurso de constitucionalidade.
 Em sede de primeira instância, o tribunal deu como provado, para além do mais, 
 que o arguido – e ora recorrente – conduziu o veículo automóvel de matrícula 
 
 64-11-XB, pertencente à empresa “D., Lda.”, nas circunstâncias de modo, tempo e 
 espaço descritas na acusação, o que conduziu à condenação do recorrente como 
 autor de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário e de um crime de 
 injúrias.
 O tribunal de comarca motivou expressamente o julgamento positivo da referida 
 factualidade com a valoração do conteúdo do documento constante de fls. 198 a 
 
 203 dos autos, o qual corresponde à listagem de passagens do aludido veículo nas 
 portagens da auto-estrada que foram oportunamente registadas pelo identificador 
 
 “Via Verde” instalado nesse veículo e que foram ulteriormente objecto de 
 tratamento informático pela empresa “C., S.A.” no âmbito da relação contratual 
 por si mantida com a sociedade proprietária do veículo automóvel.
 Vejamos em pormenor o teor desses dados:
 Lista de passagens Via Verde
 
             
 
                        Período 8/8/2004 a 10/8/2004
 
  
 
       B. de entradaData de entradaB. de SaídaData de saídaValor
 
       Estarreja8/8/2004 11:21:02IC 24 PV8/8/2004 11:36:46    2,15 €.
 
       Valença8/8/2004 18:53:31Maia PV8/8/2004 19:29:16    7,00 €.
 
       IC 24 PV8/8/2004 19:41:30Albergaria8/8/2004 19:57:04    2,80 €.
 
       Albergaria8/8/2004 20:00:16Estarreja8/8/2004 20:06:03     0,65 €.
 
 
 
  
 Os dados em questão foram disponibilizados pela empresa “VIA VERDE” para 
 comunicação ao procedimento criminal em causa, a solicitação do Ministério 
 Público, sem que tivesse sido excepcionado qualquer obstáculo de ordem jurídica, 
 nomeadamente a existência de qualquer sigilo profissional que obstasse ao 
 fornecimento da referida informação. 
 O tribunal a quo entendeu que qualquer autoridade judiciária, nomeadamente o 
 Ministério Público, podia ordenar a requisição daqueles meios de prova para 
 efeito de junção ao processo e ulterior valoração em sede de julgamento da 
 matéria de facto, desde que o fizesse ao abrigo do disposto no art. 182.º, n.º 
 
 1, do C.P.P. e não lhe fosse excepcionado o segredo profissional previsto no 
 artigo 17.º, n.º 1, da L.P.D.P..
 O recorrente pretende que a admissão e a valoração dos referidos meios de prova 
 naqueles precisos termos assentaram numa interpretação das disposições do  
 C.P.P. que violam expressamente o disposto na Constituição.
 
  
 
  
 
 2.1. Da protecção dos dados pessoais
 O primeiro parâmetro constitucional à luz do qual há-de avaliar-se a 
 constitucionalidade da interpretação normativa questionada é o artigo 35.º, da 
 C.R.P., com a redacção vigente desde a Revisão Constitucional de 1997, cujo teor 
 
 é o seguinte na parte que ora releva:
 
 “ 1. Todos os cidadãos têm o direito de acesso aos dados informatizados que lhes 
 digam respeito, podendo exigir a sua rectificação e actualização, e o direito de 
 conhecer a finalidade a que se destinam, nos termos da lei.  
 
 2. A lei define o conceito de dados pessoais, bem como as condições aplicáveis 
 ao seu tratamento automatizado, conexão, transmissão e utilização, e garante a 
 sua protecção, designadamente através de entidade administrativa independente. 
 
 3. A informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a 
 convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé 
 religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso 
 do titular, autorização prevista por lei com garantias de não discriminação ou 
 para processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis.
 
 4. É proibido o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo em casos 
 excepcionais previstos na lei (sublinhado acrescentado).
 
 (…)”.
 O referido preceito consagra a protecção dos cidadãos perante o tratamento de 
 dados pessoais informatizados, tendo vindo a ser objecto de profundas 
 remodelações pelas sucessivas revisões do texto constitucional, com o objectivo 
 de dar resposta às novas questões que o desenvolvimento tecnológico vai 
 suscitando.
 Na verdade, o crescente recurso, nas mais diferentes áreas, a meios hodiernos, 
 como a telemetria, que deixam “pegadas electrónicas”, susceptíveis de serem 
 armazenadas informaticamente, exige a construção de garantias que impeçam que 
 esta realidade possa colocar em causa direitos fundamentais dos cidadãos, como o 
 direito à reserva da intimidade da vida privada (sobre as ameaças das novas 
 tecnologias aos direitos fundamentais e a construção de garantias de protecção, 
 leia-se, por exemplo, SEABRA LOPES, em “A protecção da privacidade e dos dados 
 pessoais na sociedade de informação”, em “Estudos dedicados ao Prof. Doutor 
 Mário Júlio de Almeida Costa”, pág. 779 e seg., ed. de 2002 da Universidade 
 Católica Portuguesa).
 Um desses instrumentos jurídicos de garantia é a proibição contida no acima 
 transcrito n.º 4, do artigo 35.º, da C.R.P., que, como regra, veda o acesso aos 
 dados pessoais de terceiros, de forma a impedir a sua devassa.
 Note-se, contudo, que esta proibição não impede o acesso apenas aos dados 
 
 íntimos duma pessoa, mas a todos os dados a ela relativos, mesmo que em nada 
 afectem a sua privacidade. O que se pretende preservar é a informação individual 
 de uma pessoa, independentemente desta respeitar ou não à sua intimidade, 
 prevenindo-se um potencial risco de violação de direitos fundamentais do 
 cidadão, nomeadamente o direito à reserva da intimidade da vida privada (vide, 
 neste sentido HELENA MONIZ, em “Notas sobre a protecção de dados pessoais 
 perante a informática”, na R.P.C.C., Ano 7, n.º 2, pág. 250-251).
 Protege-se o chamado direito à autodeterminação informacional, o qual tem um 
 círculo de aplicação, apenas parcialmente coincidente com o círculo de aplicação 
 do direito à reserva da intimidade da vida privada, e que funciona como direito 
 de garantia deste.
 O legislador ordinário, utilizando a liberdade de conformação legislativa 
 concedida no n.º 2, do artigo 35.º, da C.R.P., veio a definir o conceito de 
 dados pessoais (inicialmente na Lei n.º 10/91, de 29 de Abril), e fá-lo, 
 actualmente, através da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro, (a L.P.D.P.), em 
 declarada transposição da Directiva n.º 95/46/CE, do Parlamento Europeu e do 
 Conselho, de 24 de Outubro de 1995.
 De acordo com o referido diploma legal, entende-se por dados pessoais “qualquer 
 informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, 
 incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou 
 identificável («titular dos dados»); é considerada identificável a pessoa que 
 possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente por referência 
 a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua 
 identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social” (art. 
 
 3.º, a), da L.P.D.P.).
 A L.P.D.P. “aplica-se ao tratamento de dados pessoais por meios total ou 
 parcialmente automatizados, bem como ao tratamento por meios não automatizados 
 de dados pessoais contidos em ficheiros manuais ou a estes destinados” (art. 
 
 4.º/1).
 Situa-se neste âmbito a listagem de passagens de um veículo automóvel nas 
 portagens da auto-estrada que foram oportunamente registadas pelo identificador 
 
 “Via Verde” instalado nesse veículo e que foram ulteriormente objecto de 
 tratamento informático pela empresa “C., S.A.”, no desenvolvimento da relação 
 contratual por esta empresa mantida com o proprietário daquele veículo 
 automóvel.
 Apesar dessa listagem apenas localizar no espaço e no tempo o trânsito de um 
 determinado veículo automóvel, referenciado pela sua matrícula, sendo este 
 necessariamente conduzido por uma pessoa singular, identificável como seu 
 utilizador habitual, essas informações também se lhe reportam, pelo que é 
 correcto dizer-se que estamos perante dados pessoais, nos termos do artigo 3.º, 
 a), da L.P.D.P., sujeitos às regras estabelecidas no artigo 35.º, da C.R.P. 
 
 (este tipo de informações tem sido objecto de tratamento como dados pessoais 
 para efeitos de aplicação da Lei n.º 67/98, de 16 de Outubro, pela Comissão 
 Nacional de Protecção de Dados, como resulta, por exemplo, na autorização nº 
 
 79/2002, ou da deliberação n.º 1/96, acessíveis em www.cnpd.pt).
 E o facto de no caso sub iudicio o veículo automóvel pertencer a uma pessoa 
 colectiva do tipo societário, como é uma sociedade comercial por quotas 
 unipessoal, e o artigo 3.º, a), da L.P.D.P., apenas integrar no conceito de 
 
 “dados pessoais” os que se referem a pessoas singulares, não é suficiente para 
 excluir aquelas informações da protecção conferida pelo n.º 4, do artigo 35.º, 
 da C.R.P., uma vez que esta também abrange os dados respeitantes a pessoas 
 colectivas quando deles possa resultar a indicação de dados pessoais 
 concernentes a pessoas singulares. Na verdade, os veículos automóveis são 
 conduzidos por pessoas singulares e, por regra, estão afectos à utilização de 
 uma determinada pessoa em particular, a qual poderá ser identificada através de 
 outros elementos referenciadores.
 Este tipo de dados pessoais, pelas suas características, não se enquadram nos 
 apelidados dados sensíveis (artigo 35.º, n.º 3, da C.R.P.), pertencentes ao 
 núcleo duro dos dados constitucionalmente tutelados, os quais apenas são 
 susceptíveis de tratamento, mediante condições específicas.
 E a proibição contida no artigo 35.º, n.º 4, da C.R.P., como o próprio preceito 
 indica, não é absoluta, admitindo excepções que poderão ser definidas pelo 
 legislador ordinário. Estas excepções constituem restrições ao direito de 
 controlo do registo informático, devendo ser-lhes aplicada o regime das 
 restrições aos direitos, liberdades e garantias dos n.º 2 e 3, do artigo 18.º, 
 da C.R.P. (vide, neste sentido, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, na ob. cit., 
 pág. 555, e HELENA MONIZ, na ob. cit., pág. 247-248).
 
  Uma das excepções que é frequentemente apontada como podendo justificar uma 
 restrição ao referido direito é a da utilização desses dados para fins de 
 investigação criminal, designadamente como meio de prova em processo penal 
 
 (vide, neste sentido, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, na ob. cit., pág. 555, 
 PAULA RIBEIRO FARIA, em “Constituição Portuguesa Anotada” dirigida por Jorge 
 Miranda e Rui Medeiros, tomo 1, pág. 383, da ed. de 2005, da Coimbra Editora, 
 PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, em “Protecção de dados pessoais e direito à 
 privacidade”, em “Direito da sociedade da informação”, vol. I, pág. 252, da ed. 
 de 1999, da Coimbra Editora, e o Parecer n.º 21/2000 da P.G.R., pub. no D.R. II 
 Série, de 28-8-2000).
 Na verdade, o artigo 182º, do C.P.P., admite que “as pessoas indicadas nos 
 artigos 135.º a 137.º apresentam à autoridade judiciária, quando esta o ordenar, 
 os documentos ou quaisquer objectos que tiverem na sua posse e devam ser 
 apreendidos, salvo se invocarem, por escrito, segredo profissional ou de 
 funcionário ou segredo de Estado”. 
 Entre essas pessoas encontram-se os responsáveis do tratamento de dados 
 pessoais, bem como as pessoas que, no exercício das suas funções, tenham 
 conhecimento de dados pessoais tratados, nos termos do artigo 135.º, n.º 1, do 
 C.P.P., e 17.º, da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro.
 O interesse público constitucionalmente protegido da descoberta da verdade 
 material, essencial à administração da justiça penal como pilar de um Estado de 
 direito, pode justificar a quebra da confidencialidade dos dados pessoais, 
 desde que dela não resulte uma restrição intolerável dos direitos fundamentais 
 do cidadão.
 Quando o acesso aos dados pretendidos para a investigação criminal põe em causa 
 direitos fundamentais do cidadão, como o direito à reserva da intimidade da vida 
 privada (artigo 26.º, n.º 1, da C.R.P.), há que tomar em consideração a garantia 
 específica para essa situação, prevista no artigo 32º, n.º 8, da C.R.P..
 
  
 
 2.2. Da proibição de provas obtidas com abusiva intromissão na vida privada
 O recorrente alegou que a questionada interpretação normativa caucionaria a 
 valoração de provas obtidas mediante abusiva intromissão na sua vida privada, o 
 que violaria o disposto no n.º 8, do artigo 32.º, da C.R.P., nos termos do qual 
 
 “são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da 
 integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no 
 domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações” (sublinhado 
 acrescentado).
 Os veículos automóveis são necessariamente conduzidos por pessoas singulares e 
 estas, mercê do princípio da universalidade (artigo 12º, da C.R.P.), gozam todas 
 do direito à reserva da intimidade da vida privada.
 Efectivamente, de acordo com o disposto no n.º 1, do art. 26.º da C.R.P., “a 
 todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal (...) à reserva da 
 intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer 
 formas de discriminação”, acrescentando o n.º 2 que “a lei estabelecerá 
 garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à 
 dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias”.
 Segundo GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (ob. cit., p. 467), “o direito à reserva 
 da intimidade da vida privada e familiar (…) analisa-se principalmente em dois 
 direitos menores: a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informações 
 sobre a vida privada e familiar e b) o direito a que ninguém divulgue as 
 informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem”. 
 Mas a esfera da intimidade da vida privada possui fronteiras pouco nítidas, 
 desde logo porque a Constituição e a lei ordinária não estabelecem 
 expressamente o conteúdo e alcance do direito à reserva da intimidade da vida 
 privada. Daí que a definição positiva deste conceito seja caracterizada na 
 doutrina como obscura e sem um verdadeiro conteúdo preciso, revelando-se, por 
 vezes, tarefa difícil decidir aquilo que pertence à vida pública ou à vida 
 privada de uma pessoa (na procura dos limites do âmbito deste direito vide RITA 
 AMARAL CABRAL, em “O direito à intimidade da vida privada”, em separata dos 
 
 “Estudos em memória do Prof. Dr. Paulo Cunha”, pág. 24-37, 1988, PAULO MOTA 
 PINTO, em “O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, no 
 B.F.D.U.C., vol. LXIX, pág. 524-539, “A protecção da vida privada e a 
 Constituição”, no B.F.D.U.C., vol. LXXVI, pág. 164 e seg., GOMES CANOTILHO e 
 VITAL MOREIRA, na ob. cit., pág. 467-468, PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, em 
 
 “Direito de personalidade”, pág. 79-83, da ed. de 2006, da Almedina, e 
 RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, em “O direito geral de personalidade”, pág. 
 
 316-351, da ed. de 1995, da Coimbra Editora).
 Sem a pretensão de neste local se definir qualquer critério orientador, para se 
 identificar uma situação coberta por este direito de reserva, há que verificar, 
 de acordo com os padrões da vida contemporânea, se, numa apreciação objectiva, é 
 justificado que determinado fragmento ou aspecto da vida de uma pessoa não seja 
 divulgado.
 Neste caso, será de entender que o conteúdo das listagens de passagens de 
 veículos nas portagens das auto-estradas também integra o conceito de reserva da 
 intimidade da vida privada ?
 As listagens em questão apenas permitem, para além do conhecimento da identidade 
 do titular do identificador “via verde”, o acesso às “passagens” do veículo 
 automóvel X por determinada portagem de certa auto-estrada, mais concretamente 
 
 às “horas” e “dias” a que ocorreram essas passagens.
 A circunstância das portagens estarem localizadas na via pública e, portanto, 
 sob os olhos de todos que nelas se encontrem ou transitem, não conduz 
 necessariamente à negação de atribuição da característica da privacidade aos 
 referidos dados, uma vez que o critério do lugar não é determinante para esse 
 efeito. Factos respeitantes à vida privada podem, perfeitamente, ocorrer em 
 locais públicos, desde que praticados de forma anónima (vide PAULO MOTA PINTO, 
 em “O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, no B.F.D.U.C., vol. 
 LXIX, pág. 526, e em “A protecção da vida privada e a Constituição”, no 
 B.F.D.U.C., vol. LXXVI, pág. 165, e RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, ob. cit, pág. 
 
 327).
 Por outro lado, a circunstância de estar em causa um identificador “via verde” 
 registado em nome de uma pessoa colectiva também não afasta a privacidade desses 
 dados na medida em que, conforme já foi sublinhado, os veículos automóveis são 
 conduzidos por pessoas singulares e, por regra, estão afectos à utilização de 
 uma determinada pessoa em particular, a qual poderá ser identificada através de 
 outros elementos referenciadores.
 A movimentação duma pessoa, nomeadamente a sua deslocação em veículo automóvel, 
 pelas diferentes vias públicas, apesar de ocorrer em locais acessíveis a outras 
 pessoas, é efectuada de forma tendencialmente anónima, pelo que a divulgação de 
 informações sobre essas concretas deslocações automóveis a terceiros (local, 
 dia e hora) poderá comprometer o direito à reserva da intimidade da vida privada 
 do seu condutor.
 Mas isso não significa que o acesso a essas listagens, para fins probatórios em 
 processo penal, se traduza numa inadmissível intromissão na vida privada do 
 condutor do veículo em causa.
 Na verdade, as provas obtidas por intromissão na vida privada só são proibidas 
 quando essa intromissão se revelar “abusiva”, pelo que esta proibição é relativa 
 
 (vide, neste sentido, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, na ob. cit., pág. 524, e 
 PAULO DE SOUSA MENDES, em “As proibições de prova em processo penal”, em 
 
 “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 137, da ed. 
 de 2004, da Almedina).
 Como defende PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, a polaridade entre o público e o privado 
 corresponde a uma escala progressiva e gradual, sem quebras de continuidade nem 
 saltos bruscos, entre aquilo que é mais íntimo e o que se partilha com toda a 
 gente (em “Direito de personalidade”, pág. 81, da ed. de 2006, da Almedina), ou 
 como refere RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, a amplidão da tutela da vida privada 
 desdobra-se em círculos concêntricos de reserva, dotados de maior ou menor 
 eficácia jurídica, particularmente de garantias mais ou menos profundas (na ob. 
 cit., pág. 326-327).
 Quando a situação em causa, embora sujeita a reserva, decorre em espaços que 
 permitem a sua observação por qualquer pessoa, nomeadamente vias públicas, a 
 intensidade da tutela é menor, podendo esta ter de ceder, para salvaguardar 
 interesses superiores (vide, neste sentido, RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, na ob. 
 cit., pág. 327).
 E o interesse público constitucional da realização da justiça penal justifica a 
 afectação da privacidade em zonas distantes do seu núcleo mais íntimo (vide, 
 neste sentido PAULO MOTA PINTO, em “O direito à reserva sobre a intimidade da 
 vida privada”, no B.F.D.U.C., vol. LXIX, pág. 566, e em “A protecção da vida 
 privada e a Constituição”, no Boletim da Faculdade de Direito da Universidade 
 de Coimbra, vol. LXXVI, pág. 196, e MARIA FERNANDA PALMA, em “Tutela da vida 
 privada e Processo Penal”, em “Estudos em memória do Conselheiro Luís Nunes de 
 Almeida”, pág. 657, da ed. de 2007, da Coimbra Editora).
 Ora, situando-se o tipo de intromissão sub iudicio numa zona já afastada do 
 núcleo mais íntimo da vida privada, justifica-se plenamente que prevaleça o 
 interesse superior da obtenção da verdade material na realização da justiça 
 penal, o qual legitima o conhecimento e a valoração probatória judicial das 
 mencionadas listagens, não se mostrando violados os direitos constitucionais 
 consagrados nos artigos 35.º, n.º 4, e 32.º, n.º 8, da C.R.P..
 
  
 
 2.3. Da necessidade de intervenção de um juiz
 Na concreta dimensão normativa aqui posta em crise é reconhecida competência ao 
 Ministério Público para ordenar a apresentação das listagens das passagens do 
 veículo automóvel nas portagens das auto-estradas, as quais serão fornecidas 
 sem qualquer intervenção judicial, se a entidade responsável pelo armazenamento 
 destes dados não invocar sigilo profissional (artigo 182.º, n.º 1, do C.P.P.).
 Apesar do recorrente não ter indicado este parâmetro constitucional, é 
 pertinente colocar-se a questão da compatibilização desta atribuição de 
 competência com o disposto no n.º 4, do art. 32.º, da C.R.P., nos termos do qual 
 
 “toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, 
 delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que não se prendam 
 directamente com os direitos fundamentais”.
 A respeito desta norma, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/90 
 
 (publicado na 2.ª série do Diário da República, de 4 de Julho de 1990) precisou 
 que:
 
 “2.2 — No fundo, a dicotomia investigação criminal — instrução do processo 
 criminal (...) funde-se em interdependência e complementaridade: a fase prévia 
 serve para criar a convicção da entidade titular da acção penal, a subsequente 
 destina-se a moldar a convicção do julgador. A garantia da natureza judicial 
 desta última expande-se aos actos praticados na primeira sempre que equacionados 
 os direitos fundamentais do arguido, implicando a intervenção do juiz-garante. 
 
 (...)
 Por outras palavras e no concreto caso, o n.º 4 do artigo 32.º da CRP prossegue 
 a tutela de defesa dos direitos do cidadão no processo criminal e, nessa exacta 
 medida, determina o monopólio pelo juiz da instrução, juiz-garante dos direitos 
 fundamentais dos cidadãos («reserva do juiz»).
 Intervenção do juiz que vale — e só vale — no âmbito do núcleo da garantia 
 constitucional.
 Assim ocorre em toda a fase de inquérito ao Ministério Público confiada pelo 
 CPP actual, compreendendo o conjunto de diligências que visam investigar a 
 existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles, 
 descobrir e recolher provas em ordem à decisão sobre a acusação (artigo 262.º, 
 n.º 1), justificando-se a intervenção do juiz-garante sempre que afectado aquele 
 núcleo — consoante o elenco de situações descritas nos artigos 268.º e 269.º.”
 Apesar de se admitir que o inquérito criminal possa ser dirigido pelo Ministério 
 Público e não por um juiz, quando nesta fase haja que praticar actos 
 instrutórios que possam restringir severamente direitos fundamentais, deve ser 
 um juiz a decidir a sua realização, na sua veste de “juiz das liberdades” (PAULO 
 SOUSA MENDES, na ob. cit., pág. 139).
 A independência da magistratura judicial e o seu maior distanciamento da 
 actividade investigatória, confere-lhe uma maior disponibilidade funcional e 
 psicológica para, com objectividade, decidir os limites toleráveis do sacrifício 
 dos direitos fundamentais em favor do interesse da realização da justiça penal.
 Daí que, para a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade, bem como 
 para a ingerência na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de 
 comunicação, o legislador ordinário tenha rodeado essas intromissões de 
 especiais cautelas, ao fazer intervir um magistrado judicial a montante ou a 
 jusante do procedimento de obtenção de meios de prova, reservando-lhe em 
 exclusivo a competência para ordenar, autorizar ou validar as referidas 
 diligências intrusivas na intimidade da vida privada dos suspeitos da prática 
 das infracções criminais (vide artigos 177.º, 179.º e 187.º do C.P.P.).
 Contudo, como tem realçado a mais recente jurisprudência constitucional, apenas 
 os actos que contendem, de forma relevante, com direitos, liberdades e garantias 
 fundamentais do arguido, no decurso da fase de inquérito, dependem da prévia 
 autorização do juiz de instrução (vide Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 
 
 42/2007, 155/2007 e 228/2007, publicados na 2.º Série do Diário da República, de 
 
 11 de Maio, 10 de Abril e de 23 de Maio de 2007, respectivamente). 
 Ora, como já acima se realçou, a intromissão na vida privada do condutor do 
 veículo automóvel a que respeitam as listagens requisitadas pelo Ministério 
 Público, situa-se numa zona muito distante do núcleo sensível da intimidade 
 pessoal, pelo que não é constitucionalmente exigível que o respectivo acto seja 
 ordenado ou validado por um juiz, encontrando-se o direito restringido 
 suficientemente garantido com a intervenção de um Magistrado do Ministério 
 Público, cuja acção é norteada por deveres de isenção, objectividade e 
 legalidade.
 
  
 
  2.4. Conclusão
 Do raciocínio apresentado resulta que a interpretação contida na decisão 
 recorrida, segundo a qual é permitida a admissão e valoração de provas 
 documentais relativas a listagens de passagens de um veículo automóvel nas 
 portagens das auto-estradas, que foram registadas pelo sistema de identificador 
 da “VIA VERDE”, armazenadas numa base de dados informatizada e ulteriormente 
 juntas ao processo criminal, sem o consentimento do arguido e por mera 
 determinação do Ministério Público, não viola qualquer parâmetro constitucional, 
 nomeadamente o disposto nos artigos 35.º, nº 4, e 32.º, n.º 4 e 8, da C.R.P., 
 pelo que o recurso deve ser julgado improcedente.
 
  
 
                                                       *
 Decisão
 Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto por A. do 
 acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido nestes autos em 9 de Maio de 
 
 2007.
 
  
 
                                                       *
 Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, 
 ponderados os critérios enunciados no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 
 
 303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, da C.R.P.).
 
  
 
                                                       *
 
  
 Lisboa, 2 de Abril de 2008
 João Cura Mariano
 Joaquim de Sousa Ribeiro
 Mário José de Araújo Torres
 Benjamim Rodrigues
 Rui Manuel Moura Ramos