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Processo nº 666/08
 
 1ª Secção
 Relatora: Conselheira Maria João Antunes
 
  
 Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional
 
 
 I. Relatório
 
 1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Comarca de Guimarães, em que é 
 recorrente o Ministério Público e recorrida A., foi interposto recurso para o 
 Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei da 
 Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da 
 decisão daquele Tribunal de 31 de Março de 2008.
 
  
 
 2. O tribunal recorrido decidiu qualificar a insolvência de B., Lda. como 
 culposa; determinar que a qualificação da insolvência afectasse a gerente da 
 insolvente, A.; e declarar a gerente da insolvente inibida para o exercício do 
 comércio durante um período de 3 anos, bem como para a ocupação de qualquer 
 cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou 
 fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa. O 
 Tribunal da Comarca de Guimarães não decretou, porém, a inabilitação da gerente 
 da insolvente, uma vez que recusou a aplicação da alínea b) do nº 2 do artigo 
 
 189º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, com fundamento em 
 inconstitucionalidade material. Sustentou esta recusa nos seguintes fundamentos: 
 
 
 
  
 
 «Importa, contudo, apreciar da conformidade constitucional do artº, 189°, n.° 2, 
 al. b), do C.I.R.E., que estabelece, como consequência da qualificação da 
 insolvência como culposa, a inabilitação das pessoas afectadas por um período de 
 
 2 a 10 anos.
 Estabelece o art.° 26°, da Constituição da República Portuguesa, nos seus 
 números 1 e 4, directamente pertinentes para a apreciação da questão em apreço, 
 que:
 
 “1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao 
 desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e 
 reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e 
 familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.
 
 (...)
 
 4. A privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem 
 efectuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento 
 motivos políticos”.
 O direito à capacidade civil consiste essencialmente no direito de ser pessoa 
 jurídica, sujeito de relações jurídicas.
 A Constituição admite restrições à capacidade civil apenas nos casos previstos 
 na lei e nos termos nela definidos, não podendo nunca fundar-se em motivos 
 políticos.
 Como esclarecem J. J. Canotilho e Vital Moreira – op. cit., pág. 465 -, “Fica 
 assim de todo em todo vedado: a privação ou restrição originária da capacidade 
 civil, a privação total ou restrição originária da capacidade civil; a privação 
 total ou «morte civil»; a capitis diminutio arbitrária. Seguro é que: (a) os 
 casos de restrição devem estar tipificados na lei, não podendo ficar à 
 disposição das autoridades públicas; (b) os motivos de restrição devem ser 
 pertinentes e relevantes sob o ponto de vista da capacidade da pessoa; (c) a 
 restrição da capacidade civil não pode servir de pena ou efeito de pena”.
 Assente que a inabilitação consequente da qualificação da insolvência como 
 culposa se traduz numa limitação à capacidade civil, importa, deste modo, 
 questionar a sua conformidade constitucional.
 Recentemente proferimos decisão – vide, proc. n.° 1348/07.9D, pendente neste 
 Juízo – em que concluímos pela inexistência de inconstitucionalidade 
 relativamente ao art.° 189°, n.° 2, al. b), do C.I.R.E. Contudo, foi entretanto 
 publicado – in Diário da República, 2 série, n.° 31, de 13 de Fevereiro de 2008 
 
 - o Ac. do Tribunal Constitucional, n.º 564/2007, onde se decidiu em sentido 
 inverso. É do nosso conhecimento, por outro lado, que o mesmo Tribunal se 
 pronunciou pela inconstitucionalidade no âmbito do proc. n.° 5269/06.4, do 5° 
 Juízo Cível desta Comarca.
 Devem, por isso, ser ponderados os argumentos desenvolvidos nos acórdãos 
 citados, verificando se o mesmos impõem a conclusão pela inconstitucionalidade 
 do preceito em causa.
 No primeiro dos arestos citados, enunciam-se como premissas - às quais aderimos 
 
 -, que:
 
 (…)
 Aplicando tais premissas ao caso em análise, conclui-se que nenhuma das 
 condições que legitimam a restrição da capacidade civil está verificada.
 
 (…)
 Por outro lado, diz-se no citado acórdão, tal restrição não é justificada pela 
 tutela dos interesses dos credores ou dos interesses gerais do tráfego, 
 resguardando a posição de eventuais credores futuros do inabilitado.
 
 (…)
 Deste modo, conclui-se que a inabilitação prevista na alínea b) do n.° 2 do 
 artigo 189.° do C.I.R.E. só pode ter um alcance punitivo, traduzindo-se numa 
 verdadeira pena para o comportamento ilícito e culposo do sujeito atingido, 
 consequência que se afigura inadequada e excessiva.
 Tudo visto, cumpre dizer que concordamos inteiramente com a argumentação 
 expendida pelo Tribunal Constitucional.
 Na verdade, estabelece o art.° 18.°, n.° 2, da Constituição da República 
 Portuguesa, que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias 
 nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições 
 limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses 
 constitucionalmente protegidos”.
 Ora, não se vislumbrando qualquer interesse constitucionalmente protegido cuja 
 tutela imponha a inabilitação prevista no art.° 189°, n.° 2, al. b), do 
 C.I.R.E., impõe-se concluir pela sua inconstitucionalidade».
 
  
 
 3. Desta decisão foi interposto o presente recurso para apreciação da norma cuja 
 aplicação foi recusada.
 Notificado para alegar, o Ministério Público concluiu pela confirmação do juízo 
 de inconstitucionalidade formulado pela decisão recorrida, sustentando que:
 
  
 
 «É materialmente inconstitucional, por violação desproporcionada ao artigo 26° 
 da Constituição, na parte em que consagra o direito à capacidade civil, a norma 
 constante do artigo 189°, n° 2, alínea b) do Código da Insolvência e da 
 Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n° 53/2004, de 18/03, ao 
 impor ao juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, que 
 decrete a inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada 
 insolvente».
 
  
 
 4. Notificada para o efeito, a recorrida não contra-alegou.
 
  
 Cumpre apreciar e decidir.
 
  
 II. Fundamentação
 
 1. O recorrente requer a apreciação da alínea b) do nº 2 do artigo 189º do 
 Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, cuja redacção é a seguinte:
 
  
 
 «Artigo 189.º
 Sentença de qualificação
 
 1 — (…)
 
 2 — Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
 a) (…);
 b) Decretar a inabilitação das pessoas afectadas por um período de 2 a 10 anos;
 c) (…);
 d) (…).
 
 3 — (…)».
 
             
 
 2. O tribunal recorrido recusou a aplicação da norma que é objecto deste recurso 
 aderindo, expressamente, aos fundamentos do Acórdão do Tribunal Constitucional 
 nº 564/2007 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), que julgou 
 inconstitucional a norma do artigo 189º, nº 2, alínea b), do Código da 
 Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, 
 de 18 de Março, por ofensa do artigo 26º, conjugado com o artigo 18º, da 
 Constituição da República, no segmento em que consagra o direito à capacidade 
 civil.
 Neste Acórdão do Tribunal Constitucional lê-se o seguinte:
 
  
 
 «(…) Ora, o reconhecimento constitucional da capacidade civil, como decorrência 
 imediata da personalidade e da subjectividade jurídicas, cobre, tanto a 
 capacidade de gozo, como a capacidade de exercício ou de agir. É certo que, 
 contrariamente à personalidade jurídica, a capacidade, em qualquer das suas duas 
 variantes, é algo de quantificável, um posse susceptível de gradações, de 
 detenção em maior ou menor medida. Mas a sua privação ou restrição, quando 
 afecte sujeitos que atingiram a maioridade, será sempre uma medida de carácter 
 excepcional, só justificada, pelo menos em primeira linha, pela protecção da 
 personalidade do incapaz. É “em homenagem aos interesses da própria pessoa 
 profunda” (ORLANDO DE CARVALHO, Teoria geral do direito civil, polic., Coimbra, 
 
 1981, 83), quando inabilitada, por razões atinentes à falta de atributos 
 pessoais, para uma autodeterminação autêntica na condução de vida e na gestão 
 dos seus interesses, que a incapacidade, em qualquer das suas formas, pode ser 
 decretada.
 Daí que, para além do disposto no n.º 4 do artigo 26.º da Constituição, as 
 restrições à capacidade civil, incluindo a capacidade de agir, só sejam 
 legítimas quando os seus motivos forem “pertinentes e relevantes sob o ponto de 
 vista da capacidade da pessoa”, não podendo também a restrição “servir de pena 
 ou de efeito de pena” (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República 
 Portuguesa anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 465).
 Nenhuma destas duas condições está aqui preenchida. De facto, neste âmbito, a 
 inabilitação não resulta de uma situação de incapacidade natural, de um modo de 
 ser da pessoa que a torne inapta para a gestão autónoma dos seus bens, mas de um 
 estado objectivo de impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas 
 
 (artigo 3.º, n.º 1, do CIRE), imputável a uma actuação culposa do devedor ou dos 
 seus administradores. Forma de conduta que, só por si, não é, evidentemente, 
 indiciadora de qualquer característica pessoal incapacitante.
 
  Em vez de acorrer em tutela de um “sujeito deficitário”, precavendo os seus 
 interesses, a inabilitação é, no quadro da insolvência, uma resultante forçosa 
 de uma dada situação patrimonial, efectivada com total abstracção de 
 características da personalidade do inabilitado, que possam ter conduzido a essa 
 situação.
 
  Que essa correlação inexiste, prova-o, além do mais, o facto de a inabilitação 
 ser decretada por um prazo fixo, sem possibilidade de levantamento, previsto no 
 regime comum, para o caso de desaparecimento das causas de incapacidade natural 
 que, nesse regime, a fundaram.
 E nem se diga que a figura é instrumentalizada para defesa dos interesses dos 
 credores, pois a inabilitação em nada contribui para a consecução da finalidade 
 do processo de insolvência. Este, nos termos do artigo 1.º do CIRE, «é um 
 processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do 
 património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos 
 credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência 
 
 (…).» 
 Para atingir essa finalidade, já existe um mecanismo adequado no processo, 
 tendente à conservação dos bens penhorados. Trata-se da transferência para o 
 administrador da insolvência dos poderes de administração e disposição dos bens 
 integrantes da massa insolvente (artigo 81.º, n.º 1, do CIRE). 
 Mas esta limitação de actuação negocial não pode ser confundida com uma 
 incapacidade, quer pela sua causa e função, quer pelos efeitos dos actos 
 praticados pelo insolvente em contravenção daquela norma: esses actos estão 
 feridos de ineficácia (n.º 6 do artigo 81.º), não de anulabilidade, como seria o 
 caso se fosse a incapacidade a qualificação apropriada. Assim se protege, na 
 justa medida, os interesses dos credores.
 Foi por reconhecer que a situação não pode ser qualificada de incapacidade que o 
 Acórdão n.º 414/2002 deste Tribunal se pronunciou pela conformidade 
 constitucional do, entre outros, artigo 147.º do anterior Código dos Processos 
 Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, a que corresponde, no actual 
 Código, o artigo 81.º, n.º 1. Diz-se aí que essa norma não viola o artigo 26.º 
 da CRP porque «tão pouco afecta o seu [do falido] direito à capacidade civil, 
 mesmo entendido o sentido constitucional deste direito de uma forma ampla (há 
 unanimidade na doutrina, no sentido de que não se trata de uma situação de 
 
 “incapacidade”) […]».
 Nada acrescentando à defesa da integridade da massa insolvente, não se vê também 
 que a inovação introduzida pelo artigo 189.º, n.º 2, alínea b), possa contribuir 
 eficazmente para a defesa dos interesses gerais do tráfego, resguardando a 
 posição de eventuais credores futuros do inabilitado. Pois, na verdade, e de 
 acordo com o regime da inabilitação, estes não terão legitimidade para arguir a 
 invalidade dos actos celebrados pelo inabilitado sem o consentimento do curador. 
 Essa legitimidade, por força do disposto no artigo 125.º do Código Civil, 
 aplicável, com as devidas adaptações, por remissão dos artigos 156.º e 139.º do 
 mesmo Código – v., por todos, C. MOTA PINTO, Teoria geral do direito civil, 4.ª 
 ed. por A.PINTO MONTEIRO/P. MOTA PINTO, Coimbra, 2005, 243 – cabe apenas ao 
 curador, ao próprio inabilitado, uma vez readquirida a capacidade plena, e aos 
 seus herdeiros.
 A inabilitação prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE só pode, 
 pois, ter um alcance punitivo, traduzindo-se numa verdadeira pena para o 
 comportamento ilícito e culposo do sujeito atingido. 
 Sintomaticamente, a sua duração é fixada dentro de uma moldura balizada por um 
 mínimo e um máximo, tal como as penas do foro criminal. E os critérios para a 
 sua determinação, em concreto, não andarão longe dos que operam nesta área 
 
 (designadamente, o grau de culpa e a gravidade das consequências lesivas), pois 
 não se vê que outros possam ser utilizados.
 Essa “pena” fere o sujeito sobre quem recai com uma verdadeira capitis 
 diminutio, sujeitando-o à assistência de um curador (artigo 190.º, n.º 1). Ele 
 perde a legitimidade para a livre gestão dos seus bens, mesmo os não apreendidos 
 ou apreensíveis para os fins da execução, situação que se pode prolongar para 
 além do encerramento do processo (artigo 233.º, n.º 1, alínea a)). 
 Consequência que, tendo também presente a globalidade dos efeitos da 
 insolvência, e em particular a inibição para o exercício do comércio, não pode 
 deixar de ser vista como inadequada e excessiva.
 O que tudo leva a concluir pela desconformidade do artigo 189.º, n.º 2, alínea 
 b), do CIRE, com o artigo 26.º, conjugado com o artigo 18.º, da Constituição da 
 República».
 
  
 Reiterando este entendimento, há que negar, pois, provimento ao recurso.
 
  
 III. Decisão
 Em face do exposto, decide-se:
 a) Julgar inconstitucional a norma do artigo 189º, nº 2, alínea b), do Código da 
 Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, 
 de 18 de Março, por ofensa do artigo 26º, conjugado com o artigo 18º, da 
 Constituição da República Portuguesa, no segmento em que consagra o direito à 
 capacidade civil.
 b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que diz 
 respeito ao juízo de inconstitucionalidade.
 Sem custas.
 
  
 Lisboa, 26 de Novembro de 2008
 
  
 Maria João Antunes
 Carlos Pamplona de Oliveira
 Gil Galvão
 José Borges Soeiro
 Rui Manuel Moura Ramos