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Processo n.º 751/08
 
 3 Secção
 Relator: Conselheiro Vítor Gomes
 
 
 
             Acordam, na 3ª Secção, do Tribunal Constitucional
 
 
 
 1. Relatório
 
  
 
 1. O Ministério Público acusou A. Ldª e B., no Tribunal Judicial da Comarca de 
 Caminha, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma 
 continuada, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral das 
 Infracções Tributárias, aprovado pelo artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 15/2001, de 
 
 5 de Junho (RGIT), com base em factos ocorridos em 2001 e 2002.
 
  
 
             Já em fase de julgamento, a requerimento do Ministério Público e com 
 oposição das arguidas, o juiz ordenou que se solicitasse aos serviços da 
 Administração Fiscal a notificação dos arguidos para efeitos do disposto na 
 alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, aditado pela Lei n.º 53-A/2006, de 
 
 29 de Dezembro, que entrara em vigor posteriormente à acusação.
 
             Este despacho foi impugnado pelas arguidas, mas o Tribunal da 
 Relação de Guimarães negou provimento ao recurso.
 
  
 
             Retomado o julgamento, na sentença de 19 de Maio de 2008 (fls. 1004 
 e segs.), o Tribunal Judicial da Comarca de Caminha entendeu dever reapreciar a 
 questão da notificação para cumprimento da obrigação fiscal, e decidiu absolver 
 as arguidas com fundamento na inconstitucionalidade, por violação do artigo 
 
 32.º, n.º5, primeira parte, da Constituição, das normas constantes do “artigo 
 
 105.º, n.º 4, alínea b) do Regime Geral das Infracções Tributárias, na redacção 
 introduzida pelo artigo 95.º da Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro, e do artigo 
 
 2.º, n.º 4 do Código Penal, quando conjugadamente interpretadas” com os 
 seguintes sentidos: - A ausência de resposta por parte do agente à notificação 
 prevista na primeira das normas, feita depois de a acusação se encontrar 
 deduzida e sem que da mesma conste qualquer referência à dia notificação e 
 resposta do agente, pode fundamentar uma condenação penal; - Permitir ou impor 
 ao juiz, que presidir à fase de instrução ou que presidir à fase de julgamento, 
 a iniciativa de mandar proceder à notificação aí prevista”.
 
  
 
             2. O Ministério Público interpôs recurso desta sentença para o 
 Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, 
 com vista à apreciação das normas “julgadas inconstitucionais” na sentença 
 recorrida.
 
             
 
             Neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto concluiu:
 
  
 
 “1. Não são inconstitucionais as normas dos artigos 105.º, n.º 4, alínea b) do 
 Regime Geral das Infracções Tributárias, na redacção introduzida pelo artigo 
 
 95.º, da Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro, e 2º, nº 4 do Código Penal, quando 
 interpretadas no sentido de que a ausência de resposta por parte do agente à 
 notificação prevista na primeira das normas, feita depois da acusação se 
 encontrar deduzida e sem que da mesma conste qualquer referência à dita 
 notificação e resposta do agente, pode fundamentar uma condenação penal e, 
 ainda, no sentido de permitir, ou impor ao juiz, que presidir à fase de 
 instrução ou do julgamento, a iniciativa de mandar proceder à notificação aí 
 prevista.
 
 2. Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
 
  
 
  
 
             Os recorridos não alegaram.
 
  
 
  
 
             II. Fundamentação
 
  
 
 3. No presente recurso está em causa o bloco formado pelas normas da alínea b) 
 do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, de 
 
 29 de Dezembro, e pelo n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal, conjugadamente 
 interpretados, nas duas dimensões aplicativas que a sentença recorrida “julgou 
 inconstitucionais” e no relatório se destacaram.
 Na primeira vertente, averigua-se a conformidade com o princípio acusatório de 
 uma dimensão relativa à relação entre actos processuais, à função da peça 
 acusatória na definição do objecto do processo penal e na delimitação dos 
 poderes cognitivos do tribunal. Na segunda, está em consideração um aspecto 
 relativo à separação entre órgão acusador e órgão de julgamento. Na sua 
 essência, trata-se, em qualquer caso, de manifestações do princípio do 
 acusatório: aspectos procedimentais, quanto à primeira; aspectos 
 orgânico-funcionais quanto à segunda.
 
             
 
             4. É o seguinte o teor do artigo 105º, n.º s 1 e 4 do RGIT, aprovado 
 pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção dada pelo artigo 95º da Lei n.º 
 
 53-A/2006, de 29 de Dezembro:
 
  
 
 “Artigo 105º
 Abuso de confiança
 
  
 
 1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, 
 prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado 
 a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias. 
 
 […]
 
 4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
 a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da 
 prestação; 
 b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente 
 declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima 
 aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito. 
 
 […]”
 
  
 
             No momento em que a acusação foi deduzida, a lei não fazia depender 
 a punibilidade do abuso de confiança fiscal da interpelação suplementar prevista 
 na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT. Bastava a mora pelo período de 90 
 dias. A Lei n.º 53-A/2006 passou o teor dispositivo que até então constava do 
 corpo do n.º 4 para a alínea a) e acrescentou-lhe a alínea b), ficando a punição 
 dependente desse incumprimento qualificado. 
 Na falta de disposição especial transitória, deu a alteração da lei origem a 
 dúvidas nos tribunais, bem espelhada neste processo, acerca da natureza da nova 
 exigência legal e do seu reflexo nos processos pendentes que tivessem 
 ultrapassado a fase de acusação. Designadamente, no aspecto substantivo, se o 
 legislador introduziu um novo elemento do tipo ou uma nova condição de 
 punibilidade e, no aspecto adjectivo embora indissociável daquele, como e a quem 
 compete praticar os actos necessários a assegurar a sua verificação.
 
  
 
             5. O Tribunal Constitucional foi já chamado a pronunciar-se sobre 
 questões de constitucionalidade que a aplicação do novo regime tem suscitado em 
 processos em que esteja ultrapassada a fase de acusação. Foi o que sucedeu nos 
 acórdãos n.ºs 409/08, 506/08 e 531/08, todos disponíveis em 
 
 wwwtribunalconstituciona.pt. No essencial, com variações de formulação, 
 decorrentes da fase em que o processo se encontrava, trata-se sempre do mesmo 
 problema de constitucionalidade que no presente recurso se discute.
 
  
 
             Disse-se no acórdão n.º 531/2008:
 
  
 
 “Questão de inconstitucionalidade semelhante – e não idêntica, na medida em que 
 envolvia a competência, não do tribunal de recurso, mas do tribunal de 
 julgamento, para providenciar pela realização da notificação a que se fez 
 referência - já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 
 
 409/2008, de 31 de Julho, no qual se decidiu não julgar inconstitucional a norma 
 constante do artigo 105º, n.º 4, alínea b), do Regime Geral das Infracções 
 Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção dada pelo 
 artigo 95º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, interpretado no sentido de 
 que pode o tribunal de julgamento determinar a notificação aí prevista.”
 
  
 
 É a seguinte a fundamentação do mencionado Acórdão n.º 409/2008:
 
  
 
 “2.1. Na definição (inalterada) do n.º 1 do artigo 105.º do RGIT, comete o crime 
 de abuso de confiança fiscal quem não entrega à Administração Tributária, total 
 ou parcialmente, prestação tributária (com a extensão que a este conceito é 
 dada nos subsequentes n.ºs 2 e 3) deduzida nos termos da lei e que estava 
 legalmente obrigado a entregar. Na redacção originária do n.º 4 deste preceito, 
 os factos descritos nos números anteriores só eram puníveis se tivessem 
 decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação. 
 O artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro (Orçamento do Estado para 
 
 2007), alterou a redacção desse n.º 4 do artigo 105.º da RGIT, convertendo a 
 condição que constava do corpo desse número em alínea a), e inserindo uma nova 
 alínea b), nos termos da qual os referidos factos também só seriam puníveis se 
 
 “a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente 
 declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima 
 aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito”.
 A introdução desta nova “condição” suscitou divergências doutrinais e 
 jurisprudenciais, tendo, na sequência destas últimas, sido interposto recurso 
 extraordinário para uniformização de jurisprudência, que veio a ser decidido 
 pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008, de 9 de Abril de 2008 
 
 (Diário da República, I Série, n.º 94, de 15 de Maio de 2008, p. 2672), que 
 fixou a jurisprudência nos seguintes termos:
 
 “A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção 
 introduzida pela Lei n.º 53‑A/2006, configura uma nova condição objectiva de 
 punibilidade que, por aplicação do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é 
 aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, 
 e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve o agente ser 
 notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do n.º 
 
 4 do artigo 105.º do RGIT).”
 Esse acórdão de uniformização de jurisprudência começa por assinalar que, na 
 sequência da apontada alteração de redacção do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, 
 surgiram fundamentalmente duas linhas de orientação relativamente à sua 
 interpretação: para uns a inovação consistiu na criação de uma nova condição de 
 punibilidade; para outros, ela acarretou uma despenalização. A primeira 
 orientação – uniformemente adoptada, desde o início, pelo STJ – considera que à 
 anterior condição de punibilidade, agora plasmada na alínea a), foi aditada, na 
 alínea b), uma nova condição, mas com a manutenção do recorte do tipo legal de 
 crime: não obstante a alteração do regime punitivo, o crime de abuso de 
 confiança fiscal consuma‑se com a omissão de entrega, no vencimento do prazo 
 legal, da prestação tributária, nada tendo sido alterado em sede de tipicidade; 
 porém, há que ressalvar a aplicabilidade do disposto no artigo 2.º, n.º 4, do 
 Código Penal, uma vez que o regime actualmente em vigor é mais favorável para o 
 agente, quer sob o prisma da extinção da punibilidade pelo pagamento, quer na 
 
 óptica da punibilidade da conduta (como categoria que acresce à tipicidade, à 
 ilicitude e à culpabilidade). Diversamente, a segunda orientação – defendida 
 por aqueles para quem, no regime anteriormente vigente, o tipo de ilícito se 
 reconduzia a uma mora qualificada no tempo (90 dias), sendo a mora simples 
 punida como contra‑ordenação, ilícito de menor gravidade – entende que o 
 legislador aditou agora, com a referida alteração legal, uma circunstância que, 
 por referir‑se ao agente e não constituindo assim um aliud na punibilidade, se 
 encontra no cerne da conduta proibida: existe algo de novo no recorte operativo 
 do comportamento proibido violador do bem jurídico património fiscal e que se 
 traduz precisamente no facto de a Administração Fiscal entrar em directo 
 confronto com o eventual agente do crime, pelo que, enquanto anteriormente o 
 legislador criminalizava uma mora qualificada relativamente a um objecto 
 material do crime, o imposto, atendendo aos fins deste, agora pretendeu 
 estabelecer como crime uma mora específica e num contexto relacional qualificado 
 
 – concluindo, consequentemente, pela despenalização.
 O citado acórdão uniformizador de jurisprudência consagrou aquela primeira linha 
 de orientação, que, aliás, já fora a adoptada no acórdão ora recorrido. E em 
 ambos se invoca o Relatório do Orçamento Geral de Estado para 2007, no qual o 
 legislador justifica a introdução de distinção entre, por um lado, os casos em 
 que a falta de entrega da prestação tributária está associada ao incumprimento 
 da obrigação de apresentar a declaração de liquidação ou pagamento do imposto 
 e, por outro lado, os casos de não entrega do imposto que foi tempestivamente 
 declarado, entendendo o legislador que no primeiro grupo há uma maior gravidade 
 decorrente da “intenção de ocultação dos factos tributários à Administração 
 Fiscal”, postura esta que já não se verificaria nas situações em que a “dívida” 
 
 é participada à Administração Fiscal, isto é, nas situações em que há o 
 reconhecimento da dívida tributária, ainda que não acompanhado do necessário 
 pagamento. Estando em causa condutas diferentes, portadoras de distintos 
 desvalores de acção e a projectar‑se sobre o património do Fisco com 
 assimétrica danosidade social, elas merecerão, de acordo com o citado Relatório, 
 
 “ser valoradas criminalmente de forma diferente”. E acrescenta‑se: “neste 
 sentido, não deve ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo 
 cumprido as suas obrigações declarativas, regularizem a situação tributária em 
 prazo a conceder, evitando‑se a «proliferação» de inquéritos por crime de abuso 
 de confiança fiscal que, actualmente, acabam por ser arquivados por decisão do 
 Ministério Público na sequência do pagamento do imposto”.
 A consideração destes elementos teleológico e histórico conduziram a que no 
 citado acórdão uniformizador de jurisprudência se concluísse que – perante uma 
 vontade do legislador que, claramente, assume o propósito de manutenção do 
 recorte do ilícito típico, mas o conjuga com a possibilidade de o agente, nos 
 casos em que tenha havido declaração da prestação não acompanhada do pagamento, 
 se eximir da punição pela efectivação do pagamento no novo prazo concedido – 
 nem a letra nem o espírito da lei permitiam a afirmação de que a conduta, que se 
 traduz numa omissão pura, se encontrava descriminalizada. A alteração legal 
 produzida, repercutindo‑se na punibilidade da omissão, é, todavia, algo que é 
 exógeno ao tipo de ilícito, devendo ser qualificada como condição objectiva de 
 punibilidade, que deve ser equacionada na medida em que configure um regime 
 concretamente mais favorável para o agente. Constata, assim, o referido acórdão 
 uniformizador de jurisprudência, que, tendo sido “intenção publicitada do 
 legislador, expressa de forma inequívoca na letra da lei, o objectivo de 
 conceder uma última possibilidade de o agente evitar a punição da sua conduta 
 omissiva”, “a nova lei é mais favorável para o agente pois que lhe proporciona a 
 possibilidade de, por acto dependente exclusivamente da sua vontade, preencher 
 uma condição que provoca o afastamento da punição por desnecessidade de 
 aplicação de uma pena”, pelo que “a conclusão da aplicação da lei nova é 
 iniludível face ao artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal”.
 
 2.2. Delineado o quadro de fundo de que emerge a problemática subjacente ao 
 presente recurso, cumpre, antes de mais, precisar que resulta inequivocamente do 
 requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional que a 
 
 única questão de inconstitucionalidade aí identificada como integrando o seu 
 objecto se reporta à interpretação do artigo 105.º do RGIT, na redacção dada 
 pelo artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, que teria sido aplicada no acórdão 
 recorrido, “consubstanciada na substituição por parte do tribunal de 1.ª 
 instância em relação às atribuições da Administração Fiscal e do Ministério 
 Público” e que, segundo o recorrente, desrespeitaria os “princípios 
 constitucionais da legalidade e da separação dos poderes, ofendendo, assim, os 
 ditames constitucionais consagrados nos artigos 202.º e 219.º da Constituição 
 da República Portuguesa”.
 Aliás, fora essa a única questão de inconstitucionalidade normativa 
 adequadamente suscitada pelo recorrente na motivação do recurso interposto para 
 o Tribunal da Relação (cf. conclusão 26.ª, atrás transcrita).
 Assim sendo, não podem integrar o objecto do presente recurso outras questões de 
 inconstitucionalidade não arguidas perante o tribunal recorrido e nem sequer 
 mencionadas no requerimento de interposição de recurso, que o recorrente veio 
 suscitar, pela primeira vez, nas alegações apresentadas neste Tribunal, como, 
 designadamente, a reportada à pretensa violação dos “princípios da proibição da 
 retroactividade da lei penal, da legalidade e da independência”, derivada da 
 consideração, na sentença, de factos não constantes da acusação. Questão esta 
 que, aliás, nos termos em que é colocada, carece de natureza normativa por se 
 reportar directamente à referida decisão judicial, em si mesma considerada.
 Constitui, assim, objecto do presente recurso, a questão da 
 inconstitucionalidade, por violação dos princípios da legalidade e da separação 
 de poderes, consagrados nos artigos 202.º e 219.º da CRP, da interpretação do 
 n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção dada pelo artigo 95.º da Lei n.º 
 
 53‑A/2006, no sentido de que pode o tribunal de julgamento determinar a 
 notificação aí prevista.
 Os invocados artigos 202.º e 219.º da CRP respeitam, respectivamente, à 
 definição da função jurisdicional e das funções e estatuto do Ministério 
 Público. O primeiro preceito define os tribunais como os órgãos de soberania 
 com competência para administrar a justiça em nome do povo, incumbindo‑lhes, 
 nessa função, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos 
 dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os 
 conflitos de interesses públicos e privados. O segundo comete ao Ministério 
 Público a representação do Estado e a defesa dos interesses que a lei 
 determinar, bem como a participação na execução da política criminal definida 
 pelos órgãos de soberania, o exercício da acção penal orientada pelo princípio 
 da legalidade e a defesa da legalidade democrática.
 O critério adoptado no acórdão recorrido de que competente para determinar a 
 notificação prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT é a entidade 
 titular do procedimento ou do processo (Administração, Ministério Público, 
 tribunal de instrução criminal ou tribunal do julgamento), consoante a fase em 
 que ele se encontre quando surge a necessidade de proceder a essa notificação, 
 em nada colide com os preceitos constitucionais citados, nem mesmo com o 
 princípio da separação de poderes, na perspectiva da constituição de uma reserva 
 da Administração.
 Quando o Ministério Público, na fase do inquérito, determina essa notificação, 
 ele visa, não a prossecução da tarefa de cobrança de receitas típica da 
 Administração Tributária, mas o apuramento, que lhe incumbe enquanto titular da 
 acção penal, da verificação dos requisitos que o habilitem a tomar uma decisão 
 de acusação ou de não acusação. Similarmente, quando o juiz de instrução ou o 
 juiz do julgamento determina idêntica notificação, ambos se limitam a praticar 
 um acto instrumental necessário à comprovação da existência, ou não, de uma 
 condição de punibilidade, que determinará a opção entre pronúncia ou não 
 pronúncia e entre condenação ou absolvição (ou arquivamento). Isto é: em todas 
 essas hipóteses, a determinação da notificação pelo Ministério Público ou por 
 magistrados judiciais insere‑se perfeitamente dentro das atribuições 
 constitucionais dessas magistraturas (exercício da acção penal e administração 
 da justiça, respectivamente), sem qualquer invasão da reserva da Administração, 
 nem, consequentemente, com violação do princípio da separação de poderes, 
 invocado pelo recorrente (quanto à alegada violação do “princípio da 
 legalidade”, torna‑se impossível proceder à sua apreciação, dada a absoluta 
 falta de substanciação das razões por que o recorrente entende ocorrer tal 
 violação, sendo, aliás, incerto o sentido que ele pretende atribuir a tal 
 princípio, neste contexto).
 Improcedem, assim, na totalidade, as alegações do recorrente”.
 
  
 As considerações tecidas no acórdão acabado de citar a propósito da eventual 
 violação do princípio da separação de poderes, consagrado nos artigos 2º, 202º e 
 
 219º da Constituição - violação também invocada pelos ora recorrentes -, são 
 perfeitamente transponíveis para o presente caso, pois que, para a aferição 
 daquela violação, é indiferente que o tribunal competente para a notificação 
 seja um tribunal de 1ª instância ou um tribunal de recurso: ora, como se diz no 
 Acórdão n.º 409/2008, “a determinação da notificação pelo Ministério Público ou 
 por magistrados judiciais insere‑se perfeitamente dentro das atribuições 
 constitucionais dessas magistraturas (exercício da acção penal e administração 
 da justiça, respectivamente), sem qualquer invasão da reserva da Administração, 
 nem, consequentemente, com violação do princípio da separação de poderes”.
 Essas considerações – como logo se entrevê – permitem, do mesmo modo, afastar a 
 pretensa violação dos princípios do acusatório, da plenitude de garantias de 
 defesa dos arguidos e da independência dos tribunais, também chamados à colação 
 pelos recorrentes. 
 Relativamente ao princípio do acusatório - que se extrai da referência à 
 estrutura acusatória do processo penal constante do artigo 32º, n.º 5, da 
 Constituição e que postula a diferenciação entre a entidade que julga e a 
 entidade que acusa ou que intervém em fase do processo anterior à do julgamento 
 
 -, consideram os recorrentes, em síntese, que o mesmo resulta violado pelo 
 disposto no artigo 105º, n.º 4, alínea b), do RGIT, atendendo à circunstância de 
 este preceito permitir que um pressuposto material da punição não esteja 
 preenchido aquando da dedução da acusação e não esteja descrito no libelo 
 acusatório.
 No entanto, como se deixou esclarecido, a exigência resultante da referida 
 disposição, na redacção dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, foi 
 determinada por razões de operacionalidade judiciária, tendo sobretudo o sentido 
 de impedir que possa ser punido pelo crime de abuso de confiança quem entretanto 
 se tenha disposto a reparar o dano infringido à Administração, na sequência da 
 notificação que expressamente lhe tenha sido feita para esse efeito. Não está 
 aqui em causa, como bem se vê, um qualquer novo elemento constitutivo do crime, 
 nem sequer qualquer circunstância que seja susceptível de afastar o carácter de 
 censura ético jurídica da infracção: o que sucede é que, por considerações de 
 política legislativa, se entende ser de dispensar a aplicação da pena quando, 
 apesar de se verificarem todos os pressupostos do tipo legal, o arguido procedeu 
 ainda em tempo útil ao pagamento da prestação em dívida.
 Estamos assim perante uma condição objectiva de punibilidade que é externa ao 
 recorte típico do ilícito penal – consubstanciado na não entrega à administração 
 da prestação tributária – e que, tendo sido introduzida em lei penal posterior 
 ao momento da prática do facto ilícito e da própria dedução da acusação, não 
 poderia deixar de ser considerada pelo julgador segundo o princípio da aplicação 
 retroactiva da lei mais favorável, que emerge do artigo 2º, n.º 4, do Código 
 Penal.
 Não há, por outro lado, aqui uma qualquer violação do princípio do acusatório, 
 visto que não se trata de uma alteração substancial dos factos constantes da 
 acusação – que ao tribunal de julgamento sempre estaria vedado conhecer (artigo 
 
 358º do Código de Processo Penal) -, mas de uma mera verificação da existência 
 de um requisito de procedibilidade sem que o qual o tribunal não pode emitir uma 
 pronúncia condenatória.    
 Sendo de notar, aliás, que o tribunal de julgamento está sujeito a um rigoroso 
 
 ónus de averiguação oficiosa em vista à descoberta da verdade e à boa decisão da 
 causa (artigo 340º, n.º 1, do Código de Processo Penal, também aplicável nos 
 tribunais de recurso por remissão do artigo 423º, n.º 5), que naturalmente 
 abrange a verificação de quaisquer circunstâncias que possam obstar à aplicação 
 ao arguido de uma sanção penal.
 Por outro lado, não estando em causa – como se anotou – a factualidade constante 
 do libelo acusatório, que se mantém na sua integralidade, não ocorreu qualquer 
 violação do princípio das garantias de defesa do arguido, a que alude o artigo 
 
 32º, n.º 1, da CRP. A notificação para o arguido proceder ao pagamento da 
 prestação tributária em falta, nos termos da nova redacção dada à alínea b) do 
 n.º 4 do artigo 105º do RGIT, não constitui um novo facto punível ou um novo 
 elemento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, relativamente ao 
 qual se tornasse exigível que o interessado viesse a deduzir a sua defesa antes 
 ainda de poder ser presente a julgamento. Do que se trata é de uma nova 
 oportunidade que é dada ao arguido para evitar a punição (por factos pelos quais 
 foi acusado em devido tempo e relativamente quais teve possibilidade de se 
 defender), que, traduzindo-se num mero trâmite procedimental, pode ser realizado 
 em qualquer fase do processo (e, por conseguinte, também na própria fase de 
 julgamento), e que não envolve qualquer agravamento da posição processual do 
 arguido (competindo-lhe apenas satisfazer ou não, em função do objectivo 
 previsto na lei, a cominação de pagamento da prestação em dívida dentro de 
 determinado prazo contado a partir da notificação).
 Por tudo o que se expôs, é ainda patente que não se verifica a alegada ofensa do 
 princípio da independência dos tribunais, protegido pelo artigo 203º da 
 Constituição, e que, segundo os recorrentes, resultaria de a norma do artigo 
 
 105º, n.º 4, alínea b), do RGIT vir permitir que o julgador interfira na 
 acusação e assim se substitua a outros órgãos do Estado.
 Como ficou suficientemente demonstrado, a norma em causa, ao possibilitar que o 
 juiz proceda à referida notificação, na fase de julgamento, não compromete a 
 imparcialidade e isenção do julgador nem põe em crise o princípio da separação 
 de poderes. O juiz, na circunstância, não pratica qualquer acto próprio do 
 acusador ou do juiz de instrução, nem acata quaisquer ordens ou instruções que 
 provenham de outros poderes do Estado, mas limita-se a exercer uma competência 
 própria, em sede de julgamento, que é a de praticar uma acto instrumental 
 tendente a verificar a existência de condição de punibilidade que tem relevo 
 para efeito de emitir a decisão final de condenação ou absolvição.”.
 
  
 
  
 
             6. Estas razões são perfeitamente transponíveis para o presente 
 recurso, analisando todos os aspectos de constitucionalidade que conduziram o 
 tribunal a quo a desaplicar as normas em causa. Delas resulta que o julgado não 
 pode manter-se, em qualquer das vertentes em que a decisão recorrida desdobrou a 
 inconstitucionalidade que julgou descortinar na iniciativa do juiz de julgamento 
 de mandar proceder à notificação a que se refere a alínea b) do n.º 4 do artigo 
 
 105.º do RGIT, em processos cuja acusação se encontrasse já deduzida à data da 
 entrada em vigor da Lei n.º 53‑A/2006, que introduziu tal condição de 
 procedibilidade.
 
             Com efeito, embora directamente dirigidas à dimensão 
 orgânico-funcional da questão de constitucionalidade, tais razões são igualmente 
 pertinentes quanto à sua dimensão ou vertente procedimental. O acto acusatório 
 não faz nem podia fazer referência à notificação e à reacção do agente da 
 infracção pela elementar razão de que se trata de factos posteriores. Porém, 
 como o Tribunal tem decidido e agora confirma, dado por assente que o juiz de 
 julgamento pode (ou, até, deve), sem com isso infringir o princípio do 
 acusatório, diligenciar no sentido de assegurar a verificação da condição de 
 procedibilidade introduzida pela lei nova mais favorável ao arguido, a 
 circunstância de a sentença condenatória tomar em consideração o resultado de 
 tal diligência não pode infringir o mesmo princípio. Ao assim proceder o juiz 
 não condena o arguido por factos não constantes da acusação, uma vez que não se 
 trata de factos constitutivos do crime, segundo a interpretação do direito 
 ordinário que não foi posto em causa (Contra esse ponto do acórdão de 
 uniformização de jurisprudência não se insurge a sentença recorrida). O que 
 desse acto não consta nem podia constar são condições de punibilidade que à sua 
 data não eram exigidas e que só se tornou necessário averiguar em benefício do 
 arguido, para assegurar o princípio da aplicação da lei penal mais favorável. A 
 consideração de tais factos não quebra a substancial identidade de objecto do 
 processo entre o acto acusatório e a sentença condenatória. 
 
    
 
 7. Decisão
 
  
 Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
 A) Não julgar inconstitucional a norma resultante da aplicação conjugada da 
 alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º 
 
 53‑A/2006, de 26 de Dezembro, e do n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal, quando 
 interpretados:
 A1) Com o sentido de permitir ou impor ao juiz que presidir à fase de instrução 
 ou julgamento a iniciativa de mandar proceder à notificação aí prevista;
 A2) Com o sentido de que a falta de resposta por parte do agente a essa 
 notificação, feita depois da acusação e sem que esta refira tal notificação e 
 falta de resposta, é susceptível de fundar a condenação penal.
 B) Consequentemente, concedendo provimento ao recurso, ordenar a reforma da 
 decisão recorrida em conformidade com o agora decidido quanto à questão de 
 constitucionalidade. 
 Lisboa, 14 de Janeiro de 2009
 Vítor Gomes
 Carlos Fernandes Cadilha
 Ana Maria Guerra Martins
 Maria Lúcia Amaral
 Gil Galvão