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Processo n.º 759/07
 
 2.ª Secção
 Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
 
 
 Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
 
 
 A – Relatório
 
  
 
             1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto 
 na alínea b) do n.º 1 do art.º 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua 
 actual versão (LTC), do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22 de 
 Fevereiro de 2006, que julgou parcialmente procedentes os recursos interpostos 
 pelo ora recorrente e pelo Ministério Público do acórdão proferido pelo tribunal 
 colectivo da comarca de Marco de Canavezes, pretendendo a apreciação da questão 
 da inconstitucionalidade das seguintes normas:
 
  
 
             - “do artigo 358.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, quando 
 aplicado no sentido de convolar a condenação para crime diverso em preterição do 
 contraditório, por violação dos n.ºs 1 e 5 do art.º 32.º da Constituição”;
 
              - “dos artigos 358.º, n.º 3, e 403.º, n.º 2, alínea b), do Código 
 de Processo Penal, interpretados no sentido de permitir, inexistindo recurso no 
 interesse da acusação, a condenação penal por factos objecto de caso julgado 
 absolutório formado em decisão anterior, por violação do princípio do caso 
 julgado, consagrado no art.º 29.º, n.º 5, da Constituição”;
 
             - “ do artigo 29.º, alínea f), da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, por 
 violação do art.º 30.º, n.º 4 da Constituição, e, ainda, subsidiariamente, da 
 interpretação desse preceito no sentido de que a pena acessória de perda de 
 mandato pode ser aplicada ainda que a pena principal de prisão venha a ser 
 substituída por pena de suspensão de execução da pena de prisão, por violação do 
 art.º 18.º da Constituição”.
 
  
 
             2 – O recurso foi admitido pelo tribunal a quo. No Tribunal 
 Constitucional, o relator proferiu, todavia, despacho em que ordenou a 
 notificação das partes para alegarem e para se pronunciarem, querendo, sobre 
 duas questões prévias, nos termos seguintes:
 
  
 
             “Notifique o recorrente e recorridos para, respectivamente, alegar e 
 contra-alegarem, querendo, no prazo legal, bem como para se pronunciarem, 
 desejando, sobre a possibilidade de não conhecimento do recurso de 
 constitucionalidade relativamente às questões colocadas no requerimento de 
 interposição quanto ao art.º 358.º, n.º 3, do Código de Processo Penal e aos 
 artigos 358.º, n.º 3, e 403.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal 
 
 (pontos 1 e 2 da parte II do requerimento).
 
             Na verdade, no que tange à primeira questão, afigura-se que a 
 concreta dimensão normativa constitucionalmente impugnada não foi aplicada, 
 tendo antes sido, segundo o expressamente afirmado na decisão recorrida (sendo 
 que não cabe ao Tribunal Constitucional sindicar a correcção jurídica deste 
 juízo), a de que a convolação efectuada no tribunal de recurso foi para crime 
 pelo qual o arguido já havia sido pronunciado e sobre cuja matéria exerceu o 
 contraditório (do crime de peculato previsto no art.º 20.º, n.º 1, para o de 
 abuso de poderes, previsto no art.º 26.º, n.º 1, ambos da Lei n.º 34/87, de 16 
 de Julho).
 
             No que importa à segunda questão, afigura-se, igualmente, que a 
 dimensão normativa dos art.ºs 358.º, n.º 3, e 403.º, n.º 2, alínea b), do Código 
 de Processo Penal não constituiu a ratio decidendi da decisão, já que o acórdão 
 nega expressamente a existência de caso julgado absolutório sobre a decisão de 
 
 1.ª instância, por o quadro de facto ao qual o recorrente imputa a formação de 
 caso julgado absolutório (crime de abuso de poderes decorrente da prática de 
 certos e determinados factos) ser diferente do quadro de facto que continua em 
 apreciação, por força dos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo 
 recorrente para a 2.ª instância”.
 
  
 
             3.1 – Notificado deste despacho, o recorrente veio alegar rematando 
 a sua alegação com as seguintes conclusões:
 
  
 
 «1)          Até ao Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22 de Fevereiro 
 de 2006, nenhuma autoridade judiciária qualificou como crime de abuso de poderes 
 os factos que levaram o Tribunal a quo a condenar o recorrente precisamente por 
 crime de abuso de poderes (art. 26.°-1 da Lei n.º 34/87). 
 
  
 
 2)            Factos esses que até aí haviam sempre sido integrados no quadro do 
 crime de peculato (art. 20.°-1 da Lei n.º 34/87) e que só no Acórdão recorrido 
 foram convolados para crime de abuso de poderes (art. 26.°-1 da Lei n.º 34/87). 
 
  
 
 3)            A factualidade que motivou, nos autos, uma acusação e uma 
 pronúncia por abuso de poderes foi a relatada nos nºs 41.° a 45.° da acusação e 
 nos pontos al) a an) da pronúncia, ao passo que a acusação e a pronúncia pelo 
 crime de peculato foram baseadas nos factos descritos nos nºs 1.º a 40.º e nos 
 pontos entre a) e ai, respectivamente, como se explicitou de 25 a 28 destas 
 alegações. 
 
  
 
 4)            Dúvidas não haverá, pois, que a dimensão normativa do art. 358.°, 
 n.º 3, do Código de Processo Penal, aqui constitucionalmente impugnada foi, 
 portanto, aquela que, na realidade, se mostrou concretamente aplicada pelo 
 Tribunal a quo, 
 
  
 
 5)            sendo desajustado o entendimento que o Tribunal a quo expressou no 
 Ac. de 17 de Maio de 2006, pág. 5 e ss., 
 
  
 
 6)            que também assim não foi acompanhado pelo Exm° Procurador 
 Geral-Adjunto, como se vincou acima. 
 
  
 Ultrapassada esta eventual questão prévia de admissibilidade do recurso, 
 dir-se-á que: 
 
  
 
 7)            Dando provimento a argumentação expendida pelo arguido no seu 
 recurso da condenação da 1.ª Instância e ao pedido concomitante, o Tribunal a 
 quo decidiu absolvê-lo do crime continuado de peculato (art. 20.°-1 da Lei n.º 
 
 34/87). 
 
  
 
 8)            Simultaneamente, porém, o Tribunal a quo considerou que a 
 factualidade em causa, embora não susceptível de qualificação no âmbito do crime 
 de peculato, configurava a prática de um crime de abuso de poderes (art. 26.°-1 
 da Lei n.º 34/87), pelo qual o veio a condenar o arguido. 
 
  
 
 9)            Condenação em crime de abuso de poderes que, todavia, não foi 
 precedida da advertência ao arguido de que essa alteração da qualificação 
 jurídica dos factos estaria a ser ponderada pelo Tribunal recorrido. 
 
  
 
 10)          Foi, assim, feita aplicação do art. 358.°, n.º 3, do Código de 
 Processo Penal com absoluta preterição do contraditório.
 
  
 
 11)          Preterição que subsistiu, apesar do alerta do arguido, tendo sido 
 recusado ao recorrente, por duas vezes, a concessão de oportunidade de tomar 
 posição e defender-se em relação à qualificação dos factos provados como crime 
 de abuso de poderes. 
 
  
 
 12)          Ao aplicar o art. 358.°, n.º 3, do Código de Processo Penal, como 
 aplicou, postergando o contraditório, o Tribunal a quo violou o disposto nos 
 n.ºs 1 e 5 do art. 32.º da Constituição (cf. os Acs. do TC nºs 173/92, 279/95, 
 
 16/97, 59/97 e 445/97). 
 
  
 Subsidiariamente, 
 
  
 
 §2
 
  
 
 13)          Se, por se divergir do alegado supra, o recurso de 
 inconstitucionalidade formulado no § 1 não for conhecido, com fundamento na 
 circunstância de que os factos que levaram à condenação por abuso de poderes no 
 Acórdão recorrido foram os mesmos que determinaram uma pronúncia por abuso de 
 poderes, não pode em coerência negar-se o conhecimento desta segunda questão de 
 inconstitucionalidade, que subsidiariamente se invoca. 
 
  
 
 14)          Embora tenha sido pronunciado pelo crime de abuso de poderes (art. 
 
 26.°-1 da Lei n.º 37/84), o certo é que o recorrente foi absolvido desse crime 
 pelo Acórdão proferido pelo Tribunal de 1.ªInstância, nessa parte entretanto 
 transitado em julgado, por inexistência de recurso no interesse da acusação. 
 
  
 
 15)          Se, pois, uma convolação realizada pelo Tribunal a quo que esteve 
 na base da condenação por abuso de poderes tem origem em recurso somente 
 interposto pela defesa, viola-se o corolário da consunção do caso julgado 
 
 (FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, p. 103 e s.), se, absolvido o 
 arguido, se vem, de novo, agora a condenar o mesmo pela prática de um crime de 
 abuso de poderes, p. e p. pelo art. 26.°-1 da Lei n.º 34/87. 
 
  
 
 16)          Há nisto uma aplicação dos arts. 358.°, n.º 3, e 403.°, n.º 2, b), 
 do Código de Processo Penal violadora do art. 29.°, n.º 5, da Constituição. 
 
  
 
 §3
 
  
 
 17)          Tanto o Acórdão condenatório prolatado pelo Tribunal de 1.ª 
 Instância, como o Acórdão recorrido condenaram o recorrente na perda do mandato 
 de Presidente da Câmara Municipal de Marco de Canaveses, por aplicação do 
 disposto no art. 29.°,f)da Lei n.º 34/87, por referência ao art. 3.°-1, i), 
 desse diploma. 
 
  
 
 18)          Esta norma contida no art. 29.°, f), da Lei n.º 34/87 tem uma 
 interpretação unívoca: o simples trânsito em julgado da condenação nos crimes 
 nela previstos determina automática e necessariamente, ope legis, a perda do 
 mandato de que o condenado seja titular. 
 
  
 
 19)          Por ser efectivamente assim, é manifesto que a sanção prevista no 
 art. 29.°, f), da Lei n.º 34/87, colide frontalmente com o disposto no art. 
 
 30.°, nº 4, da Constituição, tal como o mesmo vem sendo, constante e 
 reiteradamente, interpretado há longos anos por este Tribunal Constitucional 
 
 (cf., entre tantos outros, os Acs. nºs 16/84, 284/89, 202/2000, 176/2000, 
 
 19/2004, 304/2003, 562/2003, 154/2004), e melhor se explicitou supra (nºs 99 a 
 
 115). 
 
  
 
 20)          Contra este juízo de inconstitucionalidade não se mostrará acertada 
 nem a invocação do disposto no art. 117.°, n.º 3, da Constituição, nem de uma 
 suposta interpretação conforme à Constituição (vd. supra, n.ºs 123 a 133). 
 
  
 
 É que, 
 
  
 
 21)          se o art. 117.°-3 da Constituição autoriza, em observância do art. 
 
 18.°-2 da Constituição, o legislador a prever a perda do mandato como efeito da 
 condenação por crime de responsabilidade de titular de cargo político, não o 
 autoriza a decretar a perda do mandato como um efeito automático ou necessário 
 de uma tal condenação, em derrogação do n.º 4 do art. 30.° da Constituição (cf. 
 o voto de vencido do Conselheiro Mário de Brito no Ac. do TC n.º 274/90). 
 
  
 Além disso, 
 
  
 
 22)          porque a própria norma em crise não abre espaço para um juízo de 
 valoração ou ponderação, não poderá considerar-se englobada na condição que o 
 Tribunal Constitucional vem estabelecendo como condição necessária para poder 
 formular uma interpretação conforme à Constituição que permita evitar a 
 declaração de inconstitucionalidade da norma legal que preveja a perda de 
 direitos civis, profissionais ou políticos como consequência automática de uma 
 condenação penal (cf. os Acs. do TC n.ºs 363/91, 522/95, 327/99, 422/2001, 
 
 562/2003 e 154/2004; e supra, nº s 134 a 144). 
 
  
 
 23)          Significa isto, em suma, que o art. 29.°, f), da Lei n.º 34/87, não 
 está em condições de ser “salvo” da sua iniludível inconstitucionalidade, 
 determinada por uma violação clara e frontal do estabelecido no n.º 4 do art. 
 
 30.° da Constituição. 
 
  
 Subsidiariamente 
 
  
 
 §4
 
  
 
 24)          Suposta a não inconstitucionalidade de per se do art. 29.°, f), da 
 Lei n.º 34/87 – ideia a que não se adere e só se admite por cautela – sempre 
 deverá concluir-se que, suspensa que foi a pena principal aplicada, deveria 
 igualmente ter sido suspensa a sanção acessória de perda de mandato em que o 
 recorrente foi condenado. 
 
  
 
 25)          Argumentação a que o Tribunal a quo não foi sensível, tendo 
 mantido, como se referiu, a condenação na perda de mandato aplicada ao arguido 
 pelo Tribunal de 1.ª Instância. 
 
  
 
 26)          Dessa forma, incorreu-se em inconstitucionalidade por violação do 
 previsto no art. 18.º da Constituição, designadamente do princípio da 
 proporcionalidade, que, em conformidade, deverá ser aqui declarada. 
 
  
 Nestes termos, e nos melhores de direito que V. Exas. proficientemente suprirão, 
 requer-se a V. Exas. se dignem declarar: 
 
  
 a)      a inconstitucionalidade do art. 358.°, n.º 3, do Código de Processo 
 Penal, quando aplicado no sentido de convolar a condenação para crime diverso em 
 preterição do contraditório, por violação dos nºs 1 e 5 do art. 32.° da 
 Constituição da República Portuguesa; ou, 
 
  
 subsidiariamente, caso improceda a arguição de inconstitucionalidade precedente, 
 
 
 
  
 
           b) a inconstitucionalidade dos arts. 358.°, n.º 3, e 403.°, n.º 2, b), 
 do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de permitir, 
 inexistindo   recurso no interesse da acusação, a condenação penal por factos 
 objecto de caso julgado absolutório formado em decisão anterior, por violação do 
 
        princípio do caso julgado, consagrado no art. 29.°, n.º 5, da 
 Constituição».
 
           
 
           Mais requer a V. Exas se dignem declarar:
 
  
 
           c) a inconstitucionalidade do art.º 29.º, f), da Lei n.º 34/87, de 16 
 de Julho, por violação do art.º 30.º, n.º 4, da Constituição; ou, 
 subsidiariamente, caso improceda a arguição de inconstitucionalidade precedente,
 
  
 
           d) a interpretação do art.º 29.º, f), da Lei n.º 34/87, de 16 de 
 Julho,  no sentido de que a pena acessória de perda de mandato pode ser aplicada 
 ainda que a pena principal de prisão venha a ser substituída por pena de 
 suspensão de execução da pena de prisão, por violação do princípio da 
 proporcionalidade consagrado no art.º 18.º da Constituição».
 
             
 
             3.2 – Por seu lado, o Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal 
 Constitucional, contra-alegou, defendendo, em resumo, o não conhecimento do 
 recurso relativamente às duas primeiras questões colocadas pelo recorrente e 
 pela não procedência da terceira.
 
  
 B – Fundamentação
 
  
 
             4 – Para melhor compreensão das questões a decidir, importa fazer um 
 breve relato do quadro de que as mesmas emergem.
 
             4.1 – O acórdão do Tribunal da Relação do Porto, ora recorrido, de 
 
 22 de Fevereiro de 2006, julgando parcialmente procedentes os recursos 
 interpostos pelo Ministério Público e pelo ora recorrente do acórdão do tribunal 
 colectivo da Comarca de Marco de Canavezes, condenou o recorrente, pela prática, 
 como autor material e na forma consumada, de um crime continuado de abuso de 
 poderes, p. e p. pelo art.º 26.º, n.º 1, com referência ao art.º 3.º, alínea i), 
 da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, na pena de dois anos de prisão, e, pela 
 prática, como autor material e na forma consumada, de um crime continuado de 
 peculato de uso p. e p. pelo art.º 21.º, n.º 1, com referência ao art.º 3.º, 
 alínea i), ambos da Lei n.º 34/87, na pena de dez meses de prisão, e, em cúmulo 
 jurídico, na pena unitária de dois anos e três meses de prisão, mantendo a 
 decisão de 1.ª instância no que importa à suspensão da pena de prisão e à não 
 suspensão da pena da perda de mandato.
 
  
 
             4.2 – Notificado deste acórdão condenatório, o ora recorrente 
 
 “arguiu a sua nulidade e correcção”, argumentando, além do mais, que “foi 
 operada a convolação do crime de peculato, por cuja prática foi condenado em 
 primeira instância, para o de abuso de poderes, com preterição das regras do 
 contraditório, que resulta do facto de não se ter dado cumprimento ao disposto 
 no artigo 358.º, n.º 3, do CPP, uma vez que se trata de questão nova para a 
 defesa, o que acarreta a violação do disposto no art.º 32.º, n.º 5, da CRP”, e 
 que “o acórdão padece do vício de nulidade por violação do “ne bis in idem” e da 
 
 “proibição da reformatio in pejus”, porquanto em recurso interposto apenas por 
 si, o Tribunal reconheceu a razão do mesmo, mas convolou para crime de abuso de 
 poder, defendendo que existe caso julgado absolutório quanto ao crime de abuso 
 de poder, o que, também, constitui a violação do disposto no artigo 29.º, n.º 5, 
 da CRP”.
 
             Apreciando aquela questão, discorreu assim o tribunal a quo:
 
  
 
 «De acordo com o disposto no artigo 358.º, n.º 3, do CPP, no caso de o tribunal 
 alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia 
 deve a mesma ser comunicada ao arguido a quem se concede, se este o requerer, o 
 tempo estritamente necessário para a preparação da defesa. 
 Por outro lado, de acordo com o comando constitucional, ínsito no artigo 32.º, 
 nºs 1 e 5, da CRP, o processo criminal assegura todas as garantias de defesa e 
 subordina-se ao princípio do contraditório. 
 Decorre do disposto no artigo 358.º, n.º 3, do CPP, que se visa obviar a que 
 alguém seja sujeito a uma decisão surpresa uma vez que se exige que a decisão a 
 proferir se enquadre dentro do objecto do processo, definido este (também, por 
 força do que se acha disposto no artigo 339.º, n.º 4, do CPP) pelos factos 
 alegados pela acusação ou constantes da pronúncia; pelos factos alegados pela 
 defesa e pelos factos que resultarem da discussão da causa, considerados estes 
 quer, no plano fáctico ou naturalístico quer no plano normativo, ao pressupor a 
 manutenção da mesma qualificação jurídica. 
 Como refere Castanheira Neves, Sumários ..., pág. 208, o objecto do processo 
 constitui uma verdadeira garantia de defesa, por limitar a extensão da cognição 
 e, reflexamente, os próprios limites da decisão, mas entendido este – objecto do 
 processo – como o caso jurídico concreto trazido pela acusação, ou melhor dito, 
 o problema jurídico-criminal do caso concreto posto ao tribunal e que este terá 
 de resolver (ob. cit., a pág. 259). 
 Já para Frederico Isasca, in Alteração Substancial ..., 2.ª edição (2.ª 
 Reimpressão), Almedina, 1995, a pág. 240 e segs, o objecto do processo penal 
 será o pedaço de vida, o acontecimento histórico, o assunto ou acontecimento 
 vertido na acusação e imputado, como crime, a um certo agente, que obedece a uma 
 dimensão subjectiva e a uma dimensão real, exigindo a primeira que durante todo 
 o iter processuale se mantenham sempre os mesmos arguidos e a segunda impondo a 
 identidade do facto no decurso de todo o processo, sendo que tudo isto se fixa e 
 assume contornos definidos com a acusação ou com a pronúncia. 
 Ora, compulsando os autos, verifica-se que o ora recorrente foi pronunciado pela 
 prática dos seguintes crimes: 
 
 - um crime continuado de peculato de uso, p. e p. pelo artigo 21, n.º 1, da Lei 
 
 34/87; 
 
 - um crime continuado de peculato, p. e p. pelo artigo 20, n.º 1, da mesma Lei; 
 
 - um crime continuado de abuso de poderes, p. e p. pelo artigo 26, da mesma Lei, 
 com referência ao seu artigo 3.°, n.º 1. 
 Em primeira instância, foi tal arguido condenado pela prática dos citados crimes 
 de peculato e de peculato de uso e absolvido da prática do crime de abuso de 
 poderes. 
 Desta decisão recorreu o MP e ora arguido reclamante, A., com objectivos 
 díspares, a saber: o primeiro pela manutenção do julgado e agravamento das penas 
 e o segundo pugnando pela sua absolvição, defendendo que tais factos não 
 constituem a prática de nenhum dos crimes que lhe são imputados. 
 Ao invés, neste Tribunal da Relação, decidiu-se pela absolvição do ora 
 reclamante relativamente ao crime de peculato e a sua condenação pela prática do 
 crime de abuso de poderes, pelo qual já havia sido pronunciado. 
 Daqui decorre que o objecto do presente processo já há muito (desde a 
 pronúncia), que se encontra fixado. 
 Desde sempre que o arguido foi confrontado com essa qualificação jurídica, tendo 
 por referência os factos que já constavam da acusação e posteriormente da 
 pronúncia e que são os mesmos agora considerados. 
 Com base em tais factos e nessa qualificação jurídica, o ora reclamante exerceu 
 os direitos de defesa que entendeu, designadamente requerendo a instrução, 
 intervindo no julgamento e exercendo o direito de recurso, sempre defendendo a 
 sua absolvição por, no seu entender, tais factos não constituírem a prática dos 
 crimes que lhes eram imputados, tendo-se os Tribunais pronunciado (no tocante à 
 qualificação jurídica de modo diferente), mas sempre com respeito pelos factos, 
 sujeitos e qualificação jurídica já constante da pronúncia. 
 Assim, não vemos como possa falar-se em “questão nova” agora colocada ao 
 arguido, com a qualificação que se entendeu dever fazer dos factos trazidos a 
 juízo, pois que, repete-se, a mesma já constava como tal do despacho de 
 pronúncia, em que lhe era imputada a prática do mesmo crime por cuja autoria 
 agora este Tribunal decidiu condená-lo e tendo por referência os mesmos factos. 
 Igualmente e salvo o devido respeito por entendimento contrário, não vemos que 
 com isso se tenham posto em cheque os direitos de defesa e ao contraditório que 
 ao arguido são legal e constitucionalmente conferidos. 
 Reitera-se que, já desde a acusação e da pronúncia, foi o mesmo confrontado com 
 esta qualificação jurídica, dela e dos factos que lhe estão subjacentes se 
 defendendo, como quis e entendeu, pelo que, de modo algum, foi, agora, 
 confrontado com uma decisão surpresa e alheia ao objecto do processo. 
 Consequentemente, por não se tratar de diferente qualificação jurídica dos 
 factos descritos na pronúncia, uma vez que ao arguido já aí fora imputada a 
 prática do crime pelo qual agora foi condenado, não se impõe a aplicação do 
 disposto no n.º 3 do artigo 358.º, do CPP. 
 Nestes termos e com base na fundamentação ora analisada, não se verifica a 
 apontada nulidade». 
 
  
 
  
 
             E conhecendo da segunda, disse a mesma decisão o seguinte:
 
  
 
 «8. Por último, alega o arguido recorrente que o acórdão padece do vício de 
 nulidade por violação do “ne bis in idem” e da “proibição da reformatio in 
 pejus”, porquanto em recurso interposto apenas por si, o Tribunal reconheceu a 
 razão do mesmo, mas convolou para crime de abuso de poder, defendendo que existe 
 caso julgado absolutório quanto ao crime de abuso de poder, o que, também, 
 constitui a violação do disposto no artigo 29.º, n.º 5, da CRP. 
 Respondeu o MP que assim não é porque também pela acusação foi interposto 
 recurso da decisão final, para além de que não se discutiu o crime de abuso de 
 poder por cuja prática o mesmo foi absolvido em primeira instância mas tão 
 somente se considerou que o de peculato, em recurso, deveria ser convolado para 
 o de abuso de poder. 
 A decisão por nós proferida não violou o disposto no artigo 29.º, n.º 5, da CRP, 
 uma vez que se limitou a apreciar ambos os recursos interpostos, tanto pela 
 acusação como pela defesa e foi no estrito cumprimento dessa função que nos está 
 constitucionalmente conferida que foram apreciados os factos atinentes e operada 
 a sua qualificação jurídica, para além de que não pode decorrer de um diferente 
 enquadramento normativo que se está a julgar alguém mais do que uma vez pela 
 prática do mesmo crime. 
 Ao invés, a figura dos recursos só se concebe como remédio jurídico para a 
 apreciação de uma decisão e não como novo julgamento, o que implica a apreciação 
 dos mesmos factos por outro Tribunal e in casu o que se fez foi apreciar se era 
 ou não de manter a decisão condenatória pela prática, por banda dos arguidos, de 
 um crime de peculato. 
 Entendeu-se que a decisão em recurso não era de manter mas devendo enquadrar-se 
 tais factos como integrando a prática de um crime de abuso de poder e sem que 
 daí, no nosso entendimento, resulte a violação de tal preceito constitucional. 
 E de igual forma entendemos que com a decisão por nós proferida não se violou o 
 princípio da proibição da reformatio in pejus, que tem consagração legal, cf. 
 artigo 409.º, do CPP. 
 No caso em apreço o recurso não foi apenas interposto pelo ora arguido, nem pelo 
 MP no seu exclusivo interesse. Ao invés, também o MP recorreu da decisão 
 proferida em primeira instância, visando, essencialmente, obter uma agravação 
 das penas que ao mesmo foram aplicadas, pela prática quer do crime de peculato 
 quer para o de peculato de uso, como bem resulta das suas alegações e conclusões 
 de recurso. 
 Ora, a pretendida agravação das penas não permite uma limitação do recurso 
 interposto pelo MP em termos de afastar a apreciação da questão que lhe é 
 prévia, qual seja a de saber se deve ou não manter-se tal incriminação – cf. 
 artigos 402 e 403, do CPP. 
 Assim, resulta evidente que não se mostra violado o princípio da reformatio in 
 pejus, até porque, desde logo, a incriminação que neste Tribunal lhe foi 
 imputada é menos grave do que aquela de que foi alvo na decisão recorrida. 
 Consequentemente, também com base neste fundamento, inexiste a apontada 
 nulidade».
 
  
 
             5 – Das questões de não conhecimento
 
  
 
             5.1 – Da questão de constitucionalidade “do artigo 358.º, n.º 3, do 
 Código de Processo Penal, quando aplicado no sentido de convolar a condenação 
 para crime diverso em preterição do contraditório, por violação dos n.ºs 1 e 5 
 do art.º 32.º da Constituição”.
 
  
 
             No seu despacho, o relator, no Tribunal Constitucional, alvitrou a 
 possibilidade de não conhecimento do recurso, com o fundamento de a concreta 
 dimensão normativa constitucionalmente impugnada não ter sido aplicada, tendo 
 antes sido, segundo o expressamente afirmado na decisão recorrida, a de que a 
 convolação efectuada no tribunal de recurso fora para crime pelo qual o arguido 
 já havia sido pronunciado e sobre cuja matéria exerceu o contraditório (do crime 
 de peculato previsto no art.º 20.º, n.º 1, para o de abuso de poderes, previsto 
 no art.º 26.º, n.º 1, ambos da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho).
 
             O recorrente, na sua resposta, não nega a correcção do afirmado pelo 
 relator, no Tribunal Constitucional, no que tange à sua correspondência com a 
 fundamentação aduzida na decisão recorrida, constante, aliás, do excerto acima 
 transcrito.
 
              O que o recorrente refuta é a correcção da fundamentação 
 jurídico-factual da própria decisão recorrida, defendendo, em contrário do que 
 na mesma se afirma, que os factos em relação aos quais o tribunal a quo operou a 
 convolação da imputação da responsabilidade penal são diversos daqueles que 
 foram tomados em conta para decidir essa questão            .
 
             Nesse sentido, argumenta, em síntese, o recorrente que o juízo feito 
 pelo acórdão recorrido sobre o acervo factual com base no qual se considerou ter 
 ele cometido, em co-autoria material e na forma consumada e continuada, um crime 
 de abuso de poderes, p. e p. pelo artº 26.º, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 16 de 
 Junho está errado, porquanto “da análise dos autos resulta que os factos pelos 
 quais o arguido foi pronunciado pelo crime de abuso de poderes e absolvido em 
 
 1.ª instância foram outros que não aqueles pelos quais foi inicialmente 
 condenado por peculato pela 1.ª instância e depois condenado por abuso de 
 poderes pelo Tribunal a quo” e que “os factos pelos quais o recorrente foi 
 condenado pelo Tribunal a quo por crime de abuso de poderes (art. 26.º-1 da Lei 
 n.º 34/87) são, portanto, os mesmos que determinaram uma condenação em 1.ª 
 instância por crime de peculato”.
 
             Como, porém, bem diz o Procurador-Geral Adjunto, neste Tribunal 
 Constitucional, “para apurar da correcção do entendimento perfilhado pela 
 Relação, o Tribunal Constitucional, tal como o faz o recorrente nas alegações, 
 teria de sindicar a apreciação da matéria de facto levada a cabo pela Relação, o 
 que manifestamente não cabe no âmbito da sua competência”.
 
             O recurso de fiscalização concreta para o Tribunal Constitucional 
 não tem a natureza de recurso de reexame do juízo de facto ou até do juízo 
 subsuntivo levados a cabo pelos tribunais de instância, mas tão só de apreciação 
 da questão de constitucionalidade das normas que tenham constituído a ratio 
 decidendi do decidido.
 
             Não foi, pois, aplicada a norma cuja apreciação de 
 constitucionalidade se requer, pelo que não se pode conhecer dessa parte do 
 objecto do recurso.
 
             
 
             5.2 – Da questão de constitucionalidade dos artigos “358.º, n.º 3, e 
 
 403.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido 
 de permitir, inexistindo recurso no interesse da acusação, a condenação penal 
 por factos objecto de caso julgado absolutório formado em decisão anterior, por 
 violação do princípio do caso julgado, consagrado no art.º 29.º, n.º 5, da 
 Constituição”.
 
             No despacho do relator, no Tribunal Constitucional, colocou-se a 
 hipótese do não conhecimento desta parte do recurso, por a interpretação 
 constitucionalmente impugnada não ter constituído a “ratio decidendi da decisão, 
 já que o acórdão nega expressamente a existência de caso julgado absolutório 
 sobre a decisão de 1.ª instância, por o quadro de facto ao qual o recorrente 
 imputa a formação de caso julgado absolutório (crime de abuso de poderes 
 decorrente da prática de certos e determinados factos) ser diferente do quadro 
 de facto que continua em apreciação, por força dos recursos interpostos pelo 
 Ministério Público e pelo recorrente para a 2.ª instância”.
 
             E tal é, de facto, o que ressalta da decisão recorrida, cuja parte 
 pertinente à compreensão desta questão se deixou acima reproduzida.
 
             Todavia, defende o recorrente que, pressuposta que seja a identidade 
 entre a realidade factual que levou à pronúncia por crime de abuso de poderes e 
 a matéria factual que conduziu o tribunal de recurso a condenar o recorrente 
 pela prática do crime de abuso de poderes, e tendo, entretanto, ocorrido a 
 absolvição por esse crime, decretada pelo acórdão de 1.ª instância, então não 
 poderia deixar de entender-se que a condenação imposta pelo tribunal a quo, 
 pelos factos abrangidos na absolvição, resultaria de uma aplicação daqueles 
 preceitos, na acepção definida.
 
             Na sua óptica, a aceitação da tese de que a factualidade subjacente 
 
 à qualificação, pelo tribunal de recurso, como crime de abuso continuado de 
 poderes não era distinta daquela materialidade pela qual fora pronunciado por o 
 mesmo tipo legal de crime levaria inelutavelmente à conclusão de se estar a 
 desrespeitar a absolvição decretada na 1.ª instância quanto ao crime de abuso de 
 poder, sob pena de se cair num paradoxo, pois tal “seria afirmar, por um lado, a 
 identidade dos factos para justificar o não conhecimento da questão de 
 inconstitucionalidade invocada no § 1 [item anterior] e ao mesmo tempo, por 
 outro lado, negar a identidade de tais factos para recusar o conhecimento da 
 inconstitucionalidade suscitada neste § 2” [neste ponto].
 
             Mas não é assim. Em primeiro lugar, constata-se que o recorrente 
 constrói a sua argumentação em torno de uma análise dos factos integrantes dos 
 crimes considerados diferente – bem ou mal não importa aqui -  da considerada 
 pela decisão recorrida.
 
              Depois, o recorrente representa as realidades factuais como se a 
 qualificação jurídico-penal operada pela pronúncia (crime continuado de peculato 
 e crime continuado de abuso de poder), que lhes respeita, apenas pudesse ser 
 efectuada relativamente a dois universos factuais estanques que, mútua e 
 forçosamente, se excluam e não possam estar entre si numa qualquer relação de 
 consumpção total ou parcial, real ou aparente. 
 
             Finalmente, porque o recorrente figura uma constituição de caso 
 julgado que  faz assentar sobre uma posição processual do Ministério Público, no 
 recurso, que não corresponde a qualquer dado nela estabelecido: o de que não 
 tenha havido recurso deste órgão.
 
             Como bem nota o Procurador-Geral Adjunto, “o Tribunal da Relação no 
 acórdão que apreciou as nulidades suscitadas pelo recorrente é claro quando 
 afirma que a decisão se limitara a apreciar os recursos interpostos pelo 
 Ministério Público e pelo recorrente, o que implicava necessariamente a 
 apreciação de matéria de facto e a sua qualificação jurídica, não decorrendo de 
 uma diferente qualificação jurídica o julgamento pela prática do mesmo crime” e 
 que “no mesmo sentido afirmou-se, aí, que o que o Tribunal fizera fora decidir 
 se seria ou não de manter a condenação pela prática do crime de peculato e ao 
 entender-se que não, mas que os factos integravam um crime de abuso de poder, 
 foi condenado por este crime”.
 
             A questão de saber se o crime de abuso de poder por cuja autoria, na 
 forma continuada, o recorrente veio a ser condenado em tribunal de recurso, e 
 antes sancionado como crime continuado de peculato, se mostra também abrangido 
 na materalidade considerada como integrando o crime de abuso de poder, por parte 
 da pronúncia, envolve uma análise dos factos, do apuramento da sua relevância 
 jurídico-penal e da interpendência entre os dois tipos de crime que não cabe 
 manifestamente na competência do Tribunal Constitucional.
 
             Como se sabe, o recurso de fiscalização de constitucionalidade 
 apenas tem por objecto apreciar a conformidade constitucional das normas que 
 tenham constituído fundamento normativo da decisão tomada e não a correcção da 
 actividade levada a cabo pelo tribunal relativa à eleição da lei 
 infraconstitucional aplicável ao caso, à fixação dos factos da causa 
 juridicamente relevantes e à determinação do concreto efeito que os mesmos 
 alcançam perante aquela lei.
 
             Temos, portanto, que, também, não se pode tomar conhecimento desta 
 parte do recurso de constitucionalidade.
 
  
 
             6 - Da questão de constitucionalidade “do artigo 29.º, alínea f), da 
 Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, por violação do art.º 30.º, n.º 4 da 
 Constituição, e, ainda, subsidiariamente, da interpretação desse preceito no 
 sentido de que a pena acessória de perda de mandato pode ser aplicada ainda que 
 a pena principal de prisão venha a ser substituída por pena de suspensão de 
 execução da pena de prisão, por violação do art.º 18.º da Constituição”.
 
  
 
             6.1 – Pretende o recorrente, em primeira linha, a apreciação da 
 questão de constitucionalidade do art.º 29.º, alínea f), da Lei n.º 34/87, de 16 
 de Julho, por violação do disposto no art.º 30.º, n.º 4, da Constituição.
 
             Dispõe o preceito sindicado pelo seguinte modo:
 
  
 
             “Implica a perda do respectivo mandato a condenação definitiva por 
 crime de responsabilidade cometido no exercício das suas funções dos seguintes 
 titulares de cargo político:
 
             …
 
             f) Membro de órgão representativo de autarquia local”.
 
  
 
             Argumenta o recorrente, citando diversa jurisprudência do Tribunal 
 Constitucional (Acs. n.ºs 16/84, 284/84, 202/2000, 176/2000, 19/2004, 304/2003, 
 
 562/2003 e 154/2004), que “o sentido do art.º 30.º, n.º 4, da Constituição seria 
 o de negar ao legislador ordinário a possibilidade de criar uma punição 
 complexa, no seio da qual a lei possa fazer corresponder automaticamente à 
 condenação pela prática de determinado crime, e como seu efeito, a perda de 
 direitos” (Ac. do TC n.º 304/2003).
 
  
 
             Verifica-se, todavia, que o acórdão recorrido não fez uma 
 interpretação do referido preceito do art.º 29.º, alínea f), da Lei n.º 34/87, 
 em termos de a sanção nela prevista poder ser aplicada como efeito automático da 
 condenação.
 
             É, na verdade, bem explícita a posição do acórdão no sentido de a 
 aplicação da sanção da perda do mandato autárquico não decorrer, automática e 
 imediatamente, dos crimes.
 
             A este respeito, diz-se nele, ipsis verbis, a propósito da posição 
 tomada no acórdão, aí recorrido, cujo entendimento sufragou por inteiro:
 
  
 
             “Daqui resulta pois que a perda de mandato que foi aplicada ao ora 
 recorrente não decorre, automática e imediatamente da condenação de que o mesmo 
 foi alvo pela prática dos sobreditos crimes.
 
             Não. Ao invés, o que dali decorre é tal medida lhe foi aplicada 
 tendo por fundamento a gravidade concreta e a reiteração continuada da infracção 
 cometida”.
 
  
 
             Temos, assim, que concluir que não procede a primeira perspectiva da 
 questão de constitucionalidade reportada ao art.º 29.º, alínea f), da Lei n.º 
 
 34/87.                
 
             6.2 – Importa, agora, abordar a outra perspectiva da mesma questão 
 de constitucionalidade relativa ao artigo 29.º, alínea f), da Lei n.º 34/87, de 
 
 16 de Julho, consubstanciada na interpretação segundo a qual a pena acessória de 
 perda de mandato pode ser aplicada ainda que a pena principal de prisão venha a 
 ser substituída por pena de suspensão de execução da pena de prisão.
 
             Pretexta o recorrente que tal norma viola o princípio da 
 proporcionalidade constante do art.º 18.º, n.º 2, da Constituição.
 
             Anote-se, antes de mais, que o recorrente não questiona a 
 constitucionalidade da previsão legislativa da perda do mandato autárquico 
 enquanto pena acessória cominada para a prática de ilícitos criminais ocorridos 
 no exercício de funções políticas.
 
             O que o recorrente controverte é que essa pena acessória possa ser 
 aplicada quando a pena principal de prisão seja substituída pela de suspensão da 
 pena de prisão.
 
             Como é evidente, a opção legislativa de cominar com tipos diferentes 
 de penas – pena de prisão e pena de perda de mandato - os ilícitos criminais que 
 estão em causa (crime de peculato de uso e crime de abuso de poder) prende-se 
 com a necessidade de acautelar a protecção de bens jurídicos essenciais da 
 comunidade politicamente organizada, relacionados com o exercício de funções 
 políticas.
 
             Como lapidarmente se afirma no Acórdão n.º 108/99, disponível em 
 
 www.tribunalconstitucional.pt:
 
  
 
             “[…] o juízo sobre a necessidade de lançar mão desta ou daquela 
 reacção penal cabe, obviamente, em primeira linha, ao legislador, em cuja 
 sabedoria tem de confiar-se, reconhecendo-se-lhe uma larga margem de 
 discricionariedade. 
 
             A limitação da liberdade de conformação legislativa, neste domínio, 
 só pode ocorrer, quando a sanção se apresente como manifestamente excessiva (cf. 
 o citado acórdão n.º 83/95 e, bem assim, os acórdãos nºs 634/93 e 480/98, o 
 primeiro, publicado no Diário da República II Série, de 31 de Março de 1994, e o 
 segundo, por publicar em que, tocantemente à decisão criminalização de certas 
 condutas, se afirmou idêntica doutrina).
 
             Quando, pois, se não se esteja em presença de uma situação de 
 excesso - ou, pelo menos, não seja manifesto que tal aconteça - a norma 
 incriminadora não pode ser censurada sub specie constitutionis, em nome do 
 princípio da proporcionalidade.».
 
  
 
             Ora, dada a especificidade dos bens jurídicos que estão em causa e a 
 finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão da pena 
 
 (cf. Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas 
 do Crime, 1993, p. 343), não se vislumbra qualquer razão para considerar como 
 manifestamente desproporcionada a opção legislativa de permitir a aplicação da 
 pena de perda de mandato não obstante a pena principal fique suspensa.
 
             Tal corresponde, exactamente, pelo contrário, a um modo de o 
 legislador poder conferir protecção efectiva a certos bens jurídicos 
 específicos, relacionados com o exercício de funções políticas, quedando a 
 reacção criminal efectiva aos limites do considerado como adequado e de justa 
 medida, não arrastando com a efectividade dessa pena a outra pena igualmente 
 
 (principal) aplicada e desse modo afectando, em menor grau, o direito 
 fundamental de liberdade das pessoas (cf. art. 27.º, n.º 1, da CRP).
 
             Não existe qualquer relação de necessidade entre as duas penas em 
 termos de o efectivo cumprimento de uma dever implicar o cumprimento da outra. 
 
             Ao invés, a ponderação dos bens jurídicos lesados e as finalidades 
 político-criminais da suspensão da pena poderão justificar, em face do próprio 
 princípio da proporcionalidade, a solução legislativa.
 
             Deste modo se conclui pelo não provimento desta parte do recurso.
 
  
 C – Decisão
 
  
 
             7- Destarte atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide 
 não conhecer das duas referidas primeiras questões de constitucionalidade e 
 negar provimento quanto à última.
 
             Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 25 UCs.
 
  
 Lisboa, 28/01/2009
 Benjamim Rodrigues
 Mário José de Araújo Torres 
 João Cura Mariano 
 Rui Manuel Moura Ramos