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Processo nº 244/2008
 
 3ª Secção
 Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
 
 
 Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
 
 
 I Relatório
 
  
 
 1.  A Magistrada do Ministério Público junto do 2.º Juízo do Tribunal de Pequena 
 Instância Criminal do Porto vem reclamar para o Tribunal Constitucional, ao 
 abrigo do artigo 77.º da Lei n.º 28/82, do despacho da Juiz daquele mesmo Juízo 
 datado de 15 de Janeiro de 2008
 Através de tal decisão, indeferira‑se o requerimento de interposição de recurso 
 para o Tribunal Constitucional, que a Magistrada do Ministério Público 
 apresentara, ao abrigo do disposto no artigo “70º, nº 1, alíneas a) e ou c) da 
 Lei do Tribunal Constitucional”, de um outro despacho do mesmo Juiz, desta vez 
 datado de 31 de Dezembro de 2007.
 O indeferimento fundamentou‑se do seguinte modo: “(…) da análise dos preceitos 
 em causa, não se vislumbra que a decisão em causa nos autos admita recurso para 
 o Tribunal Constitucional, atendendo a que não se subsume a qualquer das alíneas 
 supra referidas. Requisito de admissibilidade do recurso, nos termos do art.º 
 
 70.º, al. a), é a da existência de recusa de aplicação de uma norma com 
 fundamento na sua inconstitucionalidade. Ora, isso não acontece, nem explicita 
 nem implicitamente, no despacho em causa nos autos; no mesmo sentido Acórdãos do 
 Tribunal Constitucional disponíveis na página/site do Tribunal Constitucional, 
 com o n.º convencional ACT00000118, ACT00004871 e ACT00000019.” “Requisito de 
 admissibilidade do recurso, nos termos do art.º 70.º, al. c), é a da existência 
 de recusa de aplicação de uma norma com fundamento na sua ilegalidade, por 
 violação de lei com valor reforçado, ora, também neste caso tal não aconteceu.”
 
  
 
  
 
 2.  A decisão (de que se quis interpor recurso) tem o seguinte conteúdo:
 
  
 A acusação deverá fixar o objecto do processo, o Digno Magistrado do M.P. 
 limita-se a remeter para o auto de notícia, nos termos do art°. 382°, n.º 2, do 
 C.P.P. No auto de notícia não existe qualquer referência ao crime de que o 
 arguido vem acusado, faltando assim a respectiva qualificação jurídica e 
 igualmente o elemento subjectivo do tipo.
 Desta feita, entende o tribunal, nos termos do art.º 390º, al. a) do C.P.P., 
 remeter os autos para outra forma processual.
 
  
 Por seu turno, na reclamação agora em apreço expende a recorrente as seguintes 
 razões:
 
  
 Alega o/a Mmo/a Juiz a quo no douto despacho ora reclamado, por referência ao 
 anteriormente citado art°. 70°, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, além do mais 
 que infra se analisará “Ora da análise dos preceitos em causa, não se vislumbra 
 que a decisão em causa nos autos, admita recurso para o tribunal Constitucional, 
 atendendo a que não se subsume a qualquer das alíneas supra referidas.” (sic). 
 Salvo o devido respeito, conforme aliás expressamente consta do requerimento de 
 interposição de recurso ora indeferido, a situação sub judice subsume-se à 
 previsão das al.s a) e/ou c), do citado art°. 70°.
 Com efeito, da leitura integral do douto despacho judicial recorrido e da 
 respectiva integração na antecedente tramitação processual que conduziu à 
 prolacção do mesmo, parece-nos inegável que consubstancia este, de facto, a 
 recusa de aplicação da norma constante do n.º 2, do art°. 389°, do CPP – 
 constante de acto legislativo (L. 48/2007, de 29 de Agosto – 15ª Alteração ao 
 Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n°. 78/87, de 17 de 
 Fevereiro) –, por inconstitucionalidade e/ou ilegalidade. 
 De facto, tendo o MP, nos termos do douto despacho exarado a fls. 10, 
 verificados que se mostravam os pressupostos dos art°.s 381º, n°. 1, al. a), e 
 
 387°, n°. 1, do CPP, determinado, “Nos termos do disposto do n°. 2, 2.ª parte do 
 art°. 382° do Cód. Proc. Penal, …/ …, a imediata apresentação do detido à M.ª 
 Juíza de Turno, para julgamento em processo sumário, nos termos dos art° 381º e 
 ss. do Cód. Proc. Penal..” (sic) e, nessa conformidade, reservado para o início 
 da audiência de discussão e julgamento, o uso da faculdade prevista no n°. 2, do 
 art°. 389°, do CPP, a decisão judicial entretanto recorrida, ao “remeter os 
 autos para outra forma processual” (sic), não só nega a aplicação daquela 
 disposição legal, invocada pelo MP, ao referir os art.ºs 381º e ss. (ou antes, a 
 possibilidade do exercício, pelo MP, da faculdade p. na mesma), como fundamenta 
 tal posição, com a alegação, ainda que sumária, de que, “A acusação deverá fixar 
 o objecto do processo, o Digno Magistrado do M.P. limita-se a remeter para o 
 auto de notícia, nos termos do art°. 382°, n.º 2, do C.P.P. No auto de notícia 
 não existe qualquer referência ao crime de que o arguido vem acusado, faltando 
 assim a respectiva qualificação jurídica e igualmente o elemento subjectivo do 
 tipo.” (sic).
 Ora, não sendo obviamente de exigir fórmulas sacramentais para afirmar 
 princípios, parece-nos que outra coisa não fez o/a Mmo/a Juiz a quo que não 
 tenha sido recusar a aplicação, in casu, da norma legal invocada pelo MP (n°. 2, 
 do art°. 389°, do CPP), por entender que tal aplicação, faltando no auto de 
 notícia, “a respectiva qualificação jurídica” e “o elemento subjectivo do tipo”, 
 seria inconstitucional, por violação dos assim implicitamente invocados, 
 princípios constitucionais das garantias de defesa do arguido e da estrutura 
 acusatória do processo penal – art°. 32º, n°.s 1 e 5, da CRP – e/ou ilegal, por 
 violação do, da mesma forma implícita, mas contudo mais inequívoca, invocado 
 princípio da vinculação temática do tribunal – art°.s 358°, 359° e 379°, n°. 1, 
 al. b), do CPP. 
 Mais alega o/a Mmo/a Juiz a quo no douto despacho ora reclamado, “Requisito de 
 admissibilidade do recurso, nos termos do art° 70° al. a), é a da existência da 
 recusa de aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade. 
 Ora, isso não acontece, nem explicita nem implicitamente no despacho em causa 
 nos autos, …/...”.
 De facto, nos termos da citada al. a), do n°. 1, do art°. 70°, da Lei 28/82, de 
 
 15 de Novembro, ao abrigo da qual, também, mas não só, foi interposto o recurso 
 ora indeferido, o requisito de admissibilidade do recurso é efectivamente a 
 existência de recusa de aplicação de qualquer norma, com fundamento em 
 inconstitucionalidade. 
 Contudo, nos termos da al. c), do nº. 1, do mesmo preceito legal, ao abrigo da 
 qual foi ainda interposto o recurso em causa, o requisito de admissibilidade do 
 recurso é a existência de recusa de aplicação de norma constante de acto 
 legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor 
 reforçado. 
 A este propósito, alega ainda o/a Mmo/a Juiz a quo, no douto despacho ora 
 reclamado, “Requisito de admissibilidade do recurso, nos termos do art.º 70.º, 
 al. c), é a da existência de recusa de aplicação de uma norma com fundamento na 
 sua ilegalidade, por violação de lei com valor reforçado, ora, também neste caso 
 tal não aconteceu.” (sic)
 Ora, se a invocação implícita, no despacho recorrido, dos supra referenciados 
 princípios constitucionais das garantias de defesa do arguido e da estrutura 
 acusatória do processo penal poderá eventualmente, o que contudo se não concede, 
 ser posta em causa, já o evidente, ainda que implícito, apelo ao princípio legal 
 da vinculação temática do tribunal, resulta inegavelmente do respectivo texto, 
 mormente do supra citado segmento da respectiva parte final, quando realça a 
 ausência da “respectiva qualificação jurídica” (cfr. art.º 359.º, n.º 3, do 
 CPP). 
 Face ao exposto, não pode naturalmente concordar-se com as infundamentadas 
 conclusões constantes do despacho em reclamação, no sentido de que, no mesmo 
 
 “.../... não acontece, nem explicita nem implicitamente.../...” (sic) a recusa 
 de aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, nem na 
 sua ilegalidade, pois que, manifestamente tal acontece, relativamente à norma 
 constante do nº. 2, do art°. 389°, do CPP, com fundamento, implícito, mas claro 
 e inegável, na respectiva inconstitucionalidade e/ou, na respectiva ilegalidade, 
 por violação dos princípios citados, o que, sendo certo que a norma em 
 referência consta de acto legislativo, também pode fundamentar a admissibilidade 
 do recurso, ora indeferido. 
 Assim sendo, parece-nos forçoso concluir que a decisão em referência não só 
 admite recurso, para o Tribunal Constitucional, nos termos das supra citadas 
 al.s a) e/ou c), do n°. 1, do art°. 70º, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, como é 
 o mesmo, aliás, para o MP, atento o prescrito no n°. 3, do art°. 72°, da citada 
 Lei, até obrigatório, por a norma cuja aplicação se mostra recusada, constar de 
 acto legislativo (L. 48/2007, de 29 de Agosto, conforme supra já referido). 
 Concluindo, o que o/a Mmo/a Juiz fez, no/a douto/a despacho/decisão recorrido/a, 
 ao decidir “.../... remeter os autos para outra forma processual.” (sic), não 
 realizando o requerido pelo MP, nos termos legais, julgamento do/a arguido/a, em 
 processo sumário e nem sequer iniciando a audiência, foi manifestamente recusar 
 a aplicação da norma constante do n°. 2, do art°. 389°, do CPP, com fundamento 
 em inconstitucionalidade e/ou na sua ilegalidade, por permitir a realização do 
 julgamento em processo sumário, nos casos em que o MP, não tendo deduzido 
 acusação, reserva para o início da audiência a faculdade de substituir a 
 apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver 
 procedido à detenção, quando neste “.../... não consta qualquer referência ao 
 crime de que o arguido vem acusado, faltando assim a respectiva qualificação 
 jurídica e igualmente o elemento subjectivo do tipo.” (sic).
 
  
 Notificado da apresentação desta reclamação, o arguido A. não respondeu.
 Sobre a reclamação pronunciou-se o Magistrado Ministério Público em funções 
 neste Tribunal Constitucional, emitindo o seguinte parecer:
 
  
 Face à reiterada jurisprudência, firmada por este Tribunal em casos 
 perfeitamente idênticos aos dos autos, deverá improceder a presente reclamação.
 
  
 Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
 
  
 
  
 II
 Fundamentos
 
  
 
 3.  Sobre reclamações idênticas à ora em análise recaíram os Acórdãos n.ºs 
 
 8/2008, 12/2008, 15/2008, 16/2008, 31/2008, 48/2008, 49/2008, 56/2008, 58/2008, 
 
 60/2008, 61/2008, 65/2008, 73/2008, 74/2008, 79/2008, 88/2008, 89/2008, 
 
 121/2008, 143/2008, 160/2008 e 178/2008, todos disponíveis no sítio da Internet 
 
 www.tribunalconstitucional.pt. No primeiro aresto referido, o Tribunal 
 Constitucional decidiu manter despacho com argumentação muito próxima do 
 constante dos presentes autos. Pode ler-se nesse aresto:
 
  
 
 2. Face ao teor do requerimento de interposição de recurso, o respectivo objecto 
 era integrado por alegada decisão de recusa de aplicação da norma do artigo 
 
 389.º, n.º 2, do CPP, com fundamento em inconstitucionalidade.
 Tem este Tribunal entendido que a recusa de aplicação de norma com fundamento em 
 inconstitucionalidade, para abrir via ao recurso previsto na alínea a) do n.º 1 
 do artigo 70.º da LTC, tanto pode consistir numa recusa explícita, como numa 
 recusa implícita, e que são equiparáveis a recusas determinadas decisões de 
 aplicação da norma interpretada em conformidade com a Constituição, “sempre que 
 se esteja perante uma clara rejeição de certa interpretação, mormente da 
 interpretação literal ou «natural», com fundamento na sua inconstitucionalidade” 
 
 (José Manuel M. Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 3.ª 
 edição revista e actualizada, Coimbra, 2007, p. 73, nota 93). Necessário é 
 sempre, porém, que o juízo de inconstitucionalidade (ou de desconformidade 
 constitucional) constitua uma verdadeira ratio decidendi, e não um mero obiter 
 dictum, da decisão recorrida.
 No presente caso, resulta da leitura da decisão recorrida que o elemento 
 primordial e determinante do entendimento da inadmissibilidade, no caso, de o 
 Ministério Público “substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto 
 de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção”, prevista no n.º 2 do 
 artigo 389.º do CPP, resultou da leitura conjugada desse preceito com as 
 disposições dos artigos 283.º, n.º 3, alíneas b) a d), e 311.º, n.ºs 2, alínea 
 a), e 3, alíneas b), c) e d), do mesmo Código, que, respectivamente, determinam 
 que a acusação do Ministério Público, sob pena de nulidade, deve conter a 
 narração dos factos, a indicação das disposições legais aplicáveis e a prova, e 
 que o presidente do tribunal, se o processo tiver sido remetido para julgamento, 
 sem ter havido instrução, deve rejeitar a acusação se a considerar 
 manifestamente infundada, sendo tida como tal a acusação que não contenha a 
 narração dos factos, a indicação das disposições legais aplicáveis ou das provas 
 que a fundamentam, ou se os factos não constituírem crime.
 Isto é: foi com base na interpretação do direito ordinário que a decisão 
 recorrida entendeu só ser admissível a substituição da acusação pela leitura do 
 auto de notícia quando este auto contenha todos os elementos legalmente 
 exigíveis para a validade de qualquer acusação.
 A posterior referência a que violaria a estrutura acusatória do processo 
 criminal e poria em causa as garantias de defesa do arguido a realização da 
 audiência, em processo sumário, tendo por acusação apenas o que consta de um 
 auto de notícia, que não possibilitava ao arguido a conhecimento da totalidade 
 dos factos necessários ao preenchimento do tipo legal, a sua qualificação 
 jurídica e a prova, constituiu um mero argumento de conforto da justeza do 
 entendimento a que anteriormente se chegou quanto à interpretação tida por 
 correcta, ao nível da interpretação do direito ordinário aplicável, da 
 possibilidade de substituição da acusação pelo Ministério Público pela leitura 
 do auto de notícia.
 Só existiria recusa de aplicação de norma com fundamento em 
 inconstitucionalidade se o tribunal tivesse interpretado o artigo 389.º, n.º 2, 
 do CPP no sentido de permitir essa substituição mesmo quando o auto de notícia 
 não contivesse os elementos exigidos para a validade da acusação, e, depois, 
 sustentasse que, assim interpretada, tal norma violaria princípios 
 constitucionais. Mas não foi esse, como se evidenciou, o caminho seguido pela 
 decisão recorrida.
 Não encerrando esta, sequer implicitamente, uma recusa de aplicação de norma com 
 fundamento em inconstitucionalidade, o presente recurso surge como inadmissível, 
 sendo de todo irrelevante, para o efeito, a menção a eventual violação de caso 
 julgado.
 
  
 A ser assim – e não havendo razão para divergir desta análise ou acrescentar 
 algo – conclui-se que também no presente caso a decisão de que se quis interpor 
 recurso não desaplicou efectivamente a norma impugnada pelo recorrente, antes 
 tendo procedido a uma interpretação desta em conformidade com outras normas de 
 Direito infra-constitucional, designadamente aquelas que regulam os requisitos 
 da acusação e a tramitação processual sob a forma sumária. Não se encontram por 
 isso preenchidos nem o pressuposto da citada alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º 
 da Lei do Tribunal Constitucional, nem, obviamente, o da alínea c) do mesmo 
 preceito, que exige sempre uma desaplicação de norma com fundamento na sua 
 contraditoriedade com um comando paramétrico constante de lei de valor 
 reforçado.
 
  
 III
 Decisão
 
  
 Nestes termos, decide‑se indeferir a presente reclamação. Sem custas.
 
  
 Lisboa, 21 de Abril de 2008
 Maria Lúcia Amaral
 Carlos Fernandes Cadilha
 Gil Galvão