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Processo n.º 1170/07
 
 2.ª Secção
 Relator: Conselheiro Mário Torres
 
 
 
                         Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional.
 
 
 
                         1. Relatório
 
                         A., SA, interpôs recurso para o Tribunal 
 Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de 
 Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, 
 aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela 
 Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra a sentença do Tribunal do 
 Comércio de Lisboa, de 19 de Setembro de 2007, que julgou improcedente o 
 recurso deduzido contra o despacho da Autoridade da Concorrência (AdC), de 28 de 
 Março de 2007, que indeferiu o requerimento de arguição de nulidades 
 apresentado, em 26 de Janeiro de 2007, pela ora recorrente, relativas às buscas 
 e apreensão de documentos que foram efectuadas nas suas instalações, em 16 de 
 Janeiro de 2007, no âmbito do processo de contra‑ordenação em que é arguida.
 
                         De acordo com o requerimento de interposição de recurso, 
 a recorrente pretendia que o Tribunal Constitucional apreciasse a 
 inconstitucionalidade: (i) “da norma que resulta da interpretação do artigo 
 
 17.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Jurídico da Concorrência, aprovado pela Lei n.º 
 
 18/2003, de 11 de Junho, no sentido de conferir competência ao Ministério 
 Público para autorizar buscas à sede e domicílio profissional de pessoas 
 colectivas, por violação dos artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.ºs 1, 2, 3 e 4, da 
 CRP e do princípio da reserva de juiz nele consagrado”; (ii) “da norma que 
 resulta da interpretação conjugada do artigo 17.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 
 
 18/2003, de 11 de Junho, e do artigo 179.º, n.º 1, do Código de Processo Penal 
 
 (CPP), no sentido de conferir competência ao Ministério Público para apreender 
 ou autorizar a apreensão de correspondência, por violação dos artigos 32.º, n.º 
 
 8, e 34.º, n.ºs 1, 2 e 4, da CRP”; e (iii) “da norma que resulta da 
 interpretação do artigo 17.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 18/2003, de 11 de 
 Junho, e do artigo 42.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, no 
 sentido de que a correspondência aberta (circulares, mensagens de correio 
 electrónico e documentos anexos, arquivados em computador ou impressos) pode ser 
 apreendida e utilizada como meio de prova em processo contra‑ordenacional, por 
 violação dos artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.º 4, ambos da CRP”. Estas três 
 questões de inconstitucionalidade teriam sido suscitadas pela recorrente, 
 respectivamente, nos artigos 79.º e 80.º e na conclusão IX, no artigo 67.º e na 
 conclusão VII e nos artigos 82.º, 85.º, 86.º, 90.º, 92.º e 110.º e conclusões 
 XI, XII e XIII da impugnação judicial endereçada ao Tribunal do Comércio de 
 Lisboa.
 
                         No Tribunal Constitucional, o relator proferiu despacho 
 para apresentação de alegações, acrescentando que as partes deveriam 
 pronunciar‑se, querendo, sobre a eventualidade de o Tribunal vir a decidir não 
 conhecer do objecto do recurso: (i) na parte respeitante à segunda questão de 
 inconstitucionalidade identificada no requerimento de interposição de recurso, 
 por a decisão recorrida não ter aplicado, como ratio decidendi, o critério 
 normativo arguido de inconstitucional; e (ii) na parte respeitante à terceira 
 questão de inconstitucionalidade identificada no requerimento de interposição 
 de recurso, por, nos locais indicados aí pela recorrente como sendo aqueles em 
 que suscitou tal questão perante o tribunal recorrido, não ter colocado nenhuma 
 questão de inconstitucionalidade normativa (não reportando a normas de direito 
 ordinário ou a qualquer interpretação dessas normas, devidamente identificada, 
 a violação de normas ou princípios constitucionais), antes imputando 
 directamente à actuação da AdC, em si mesma considerada, a violação de comandos 
 constitucionais.
 
                         A recorrente apresentou alegações, em que, reconhecendo 
 que a decisão recorrida não chegara a aplicar o critério normativo que 
 integrava a referida segunda questão de inconstitucionalidade, abandonou esta 
 questão, mas, ao invés, sustentou a adequada suscitação da terceira questão 
 como uma questão de inconstitucionalidade normativa, tal como viria, aliás, a 
 ser entendida claramente pelo tribunal recorrido e por ele efectivamente 
 apreciada. Circunscrevendo as suas alegações às mencionadas primeira e terceira 
 questões de inconstitucionalidade, a recorrente sintetizou o aí aduzido nas 
 seguintes conclusões:
 
  
 
             “1. No âmbito da aplicação da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, que 
 aprovou o regime jurídico da concorrência, e em sede de processo 
 contra‑ordenacional, a Autoridade da Concorrência realizou em 16 de Janeiro de 
 
 2007, ao abrigo de um mandado emitido por uma magistrada de turno do Ministério 
 Público, diligências de busca na sede e instalações da recorrente, tendo 
 apreendido correspondência diversa (designadamente circulares e mensagens de 
 correio electrónico) no decurso das buscas.
 
             2. O entendimento, subjacente à decisão recorrida, segundo o qual as 
 buscas realizadas pela Autoridade da Concorrência na sede de pessoas 
 colectivas, ao abrigo dos poderes de inquérito que lhe são conferidos pelas 
 normas do artigo 17.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, da Lei n.º 18/2003, de 11 de 
 Junho, não constituem buscas domiciliárias, pelo que a entidade competente para 
 emitir os mandados correspondentes é o Ministério Público, é materialmente 
 inconstitucional por violação do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 34.º da CRP 
 e do princípio da reserva de juiz aí consagrado.
 
             3. A generalidade da doutrina constitucionalista admite que, por si 
 só (imediatamente) ou em conjugação com outros direitos fundamentais (como, 
 nomeadamente, o direito de iniciativa económica, o direito à propriedade ou o 
 direito à tutela do segredo comercial), a garantia de inviolabilidade do 
 domicílio é extensível às pessoas colectivas, designadamente as pessoas 
 colectivas de direito privado, como é o caso da ora recorrente.
 
             4. Para além de considerar que o âmbito de protecção da garantia de 
 inviolabilidade do domicílio consagrada no artigo 34.º da CRP se estende à sede 
 e instalações das pessoas colectivas, a doutrina converge em sentido idêntico 
 no que respeita à titularidade deste direito subjectivo fundamental, 
 considerando que, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 12.º da CRP, a 
 inviolabilidade do domicílio não é indissociável da personalidade humana ou da 
 pessoa física, sendo, portanto, compatível com a específica natureza das 
 pessoas colectivas.
 
             5. As empresas devem beneficiar de uma esfera específica de reserva 
 e sigilo merecedora de tutela equiparável à que é conferida à «habitação» das 
 pessoas físicas, nomeadamente em atenção ao facto de que é na sede e 
 instalações destas pessoas colectivas que se concentram as suas actividades 
 industriais, comerciais ou de investigação; os seus dados de negócio e 
 documentação contabilística e financeira; os haveres pessoais dos seus 
 funcionários, administradores e trabalhadores; informação sobre clientes e 
 fornecedores; planos de negócios e orçamentos; registos de declarações fiscais; 
 documentação bancária e relativa a créditos e financiamentos, etc.
 
             6. O facto de, nos termos do n.º 2 do artigo 12.º da CRP, as pessoas 
 colectivas gozarem dos direitos fundamentais compatíveis com a sua natureza, 
 por direito próprio, corresponde a uma limitação, consensualmente reconhecida, 
 ao princípio do carácter individual destes direitos.
 
             7. A circunstância de ser incriminada, nos termos do artigo 187.º do 
 Código Penal, a violação de bens jurídicos e valores eminentemente pessoais 
 específicos de pessoas colectivas (como o prestígio, a confiança e a 
 credibilidade) reforça o entendimento segundo o qual a garantia de 
 inviolabilidade do domicílio é compatível com a natureza das pessoas jurídicas.
 
             8. Acresce que, nos termos da jurisprudência mais recente do 
 Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, a protecção do domicílio decorrente do 
 artigo 8.º da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das 
 Liberdades Fundamentais estende‑se inequivocamente à «sede e delegações» das 
 empresas (cf. acórdão Colas Est v. França, de 16 de Abril de 2002, que concluiu 
 pelo carácter desproporcionado das disposições de um regime legal de direito 
 francês, aplicáveis a investigações a empresas no âmbito da fiscalização de 
 práticas anti‑concorrenciais, segundo as quais não seria necessária autorização 
 judicial prévia para diligências de busca na sede e instalações de pessoas 
 colectivas).
 
             9. A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem 
 constitui um elemento hermenêutico de enorme importância na densificação, 
 normativa e jurisprudencial, das normas consagradoras de direitos fundamentais, 
 quer a nível nacional quer a nível comunitário (neste segundo plano, o valor das 
 normas da Convenção Europeia e da aludida jurisprudência enquanto padrões de 
 interpretação do direito comunitário foi, inclusivamente, reforçado com a adesão 
 formal da União Europeia àquela Convenção por via do Tratado de Lisboa, de 13 de 
 Dezembro de 2007 – cf. nova redacção dos n.ºs 2 e 3 do artigo 6.º do Tratado da 
 Comunidade Europeia), pelo que não poderá deixar de ser tida em conta na 
 interpretação do disposto no artigo 34.º da CRP.
 
             10. Aplicando‑se a garantia de inviolabilidade do domicílio à sede e 
 instalações das pessoas colectivas, verifica‑se que a realização de buscas e 
 apreensões nas instalações da recorrente é, nos termos do disposto no n.º 2 do 
 artigo 34.º da CRP, um acto sujeito a reserva de juiz (o que é confirmado, na 
 legislação ordinária, pelas disposições do artigo 177.º, n.º 1, e 269.º, n.º 1, 
 alínea a), do Código de Processo Penal, na redacção vigente à data em que foram 
 autorizadas e tiveram lugar aquelas diligências), pelo que a interpretação do 
 artigo 17.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, no 
 sentido de que a «autoridade judiciária» referida nesta última norma não tenha 
 de ser, necessariamente, um magistrado judicial é materialmente 
 inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 4, e 34.º, n.º 
 
 2, da CRP.
 
             11. Acresce não ser possível recorrer subsidiariamente ao conceito 
 de «autoridade judiciária» constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 1.º do CPP 
 porquanto em processo contra‑ordenacional, em especial na fase anterior à 
 aplicação da coima pela autoridade administrativa, nenhuma autoridade 
 judiciária tem competência decisória, pelo que falta à norma contida no n.º 2 
 do artigo 17.º da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, a indispensável definição, em 
 norma expressa habilitante, de qual deva ser a autoridade judiciária competente 
 para efeitos de autorização de buscas e apreensões, inexistindo, ademais, 
 qualquer elemento interpretativo, legal ou constitucional, que aponte para que 
 a referida autoridade possa ser, no âmbito das diligências de investigação 
 reguladas no regime jurídico da concorrência, o Ministério Público.
 
             12. Quanto ao facto de a Autoridade da Concorrência ter apreendido 
 correspondência (mensagens de correio electrónico e circulares, arquivadas em 
 suporte informático em computador pessoal) na sede da recorrente, a decisão 
 recorrida propugnou o entendimento segundo o qual a garantia de inviolabilidade 
 da correspondência apenas vale para correspondência «fechada» (devendo a 
 correspondência já «aberta» seguir o regime aplicável aos documentos em geral).
 
             13. Tal entendimento é materialmente inconstitucional, por violação 
 do disposto no n.º 4 do artigo 34.º da CRP, norma que admite excepcionalmente a 
 ingerência na correspondência apenas nos «casos previstos na lei em matéria de 
 processo criminal».
 
             14. Por conseguinte, em processo contra‑ordenacional vigora uma 
 garantia de inviolabilidade absoluta da correspondência ou telecomunicações – 
 como resulta, a nível da legislação ordinária, do disposto no artigo 42.º, n.º 
 
 1, do regime geral das contra‑ordenações e coimas –, encontrando‑se vedado o 
 recurso a meios de obtenção mais gravosos, como a apreensão de correspondência, 
 apenas possível em sede de investigação criminal nos termos previstos no artigo 
 
 179.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
 
             15. Não existe qualquer motivo justificativo de um tratamento 
 diferenciado entre correspondência «fechada» e correspondência «aberta», pelo 
 que a circunstância de uma mensagem de correio electrónico poder já ter sido 
 lida e arquivada (em versão impressa ou em suporte informático) releva apenas 
 para efeitos do preenchimento do tipo legal de crime previsto e punido no artigo 
 
 194.º do Código Penal (violação de correspondência ou telecomunicações), não 
 tendo utilidade para efeitos de determinação da amplitude da tutela da 
 correspondência em sede de processo contra‑ordenacional.
 
             Nestes termos, deverão ser julgadas inconstitucionais as normas 
 constantes:
 
             a) do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, 
 na interpretação segundo a qual o Ministério Público é competente para 
 autorizar buscas à sede e instalações de pessoas colectivas, por violação dos 
 artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.ºs 1, 2, 3 e 4, da CRP e do princípio da reserva 
 de juiz neles consagrado;
 
             b) dos artigos 17.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 18/2003, de 11 de 
 Junho, e 42.º, n.º 1, do regime geral das contra‑ordenações e coimas, aprovado 
 pelo Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, na interpretação segundo a qual a 
 correspondência aberta (circulares, mensagens de correio electrónico e 
 documentos anexos, arquivados em computador ou impressos) pode ser apreendida e 
 utilizada como meio de prova em processo contra‑ordenacional, por violação dos 
 artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.º 4, da CRP,
 
             revogando‑se, consequentemente, a decisão recorrida e mandando‑se 
 baixar os autos ao Tribunal do Comércio de Lisboa com as consequências legais.”
 
  
 
                         A recorrida AdC apresentou contra‑alegações, 
 manifestando concordância com o não conhecimento das segunda e terceira questões 
 de inconstitucionalidade, e formulando, a final, as seguintes conclusões:
 
  
 
             “A) A recorrente não configurou como inconstitucionalidade normativa 
 a interpretação da norma que resulta da interpretação do artigo 17.º, n.º 1, 
 alínea c), da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, e do artigo 42.º, n.º 1, do 
 RGCO, no sentido de que a correspondência aberta (circulares, mensagens de 
 correio electrónico e documentos anexos, arquivados em computador ou impressos) 
 pode ser apreendida e utilizada como meio de prova em processo 
 contra‑ordenacional, por violação dos artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.º 4, ambos 
 da CRP. Só nesta sede o fazendo.
 
             B) Considerou, e configurou, que a AdC violou a proibição de 
 ingerência na correspondência e nas telecomunicações consagradas no n.º 4 do 
 artigo 34.º da CRP, violando igualmente o disposto no n.º 1 do artigo 42.º do 
 RGCO (artigo 110.º da impugnação), violando também os termos do mandado (artigo 
 
 111.º da impugnação) e as conclusão XII e XIII são igualmente bem 
 esclarecedoras do que defende.
 
             C) Como tal considerou a actuação da AdC como violadora das 
 garantias constitucionais de inviolabilidade de correspondência com a 
 consequente nulidade de obtenção de prova. Não configurando, como ora pretende, 
 uma inconstitucionalidade normativa.
 
             D) Pelo que não deve ser conhecida a inconstitucionalidade ora 
 invocada por ser a primeira vez que o vem fazer.
 
             E) A Autoridade, nos termos dos artigos 1.º e 4.º dos Estatutos da 
 Autoridade da Concorrência aprovados pelo Decreto‑Lei n.º 10/2003, de 18 de 
 Janeiro, e que dele fazem parte integrante, tem como missão assegurar a 
 aplicação das regras da concorrência nacionais e comunitárias, no respeito pelo 
 princípio da economia de mercado e de livre concorrência, com vista ao 
 funcionamento eficiente dos mercados, à repartição eficaz dos recursos e aos 
 interesses dos consumidores.
 
             F) No âmbito do exercício dos seus poderes sancionatórios, cumpre à 
 Autoridade identificar e investigar as práticas susceptíveis de infringir a 
 legislação da concorrência nacional e comunitária, proceder à instrução e 
 decidir sobre os respectivos processos, aplicando, se for caso disso, as sanções 
 previstas na lei, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 7.º dos Estatutos 
 supra mencionados.
 
             G) No caso dos autos, e salvo melhor, não foram efectuadas buscas 
 domiciliárias e, igualmente, não foi apreendida qualquer correspondência, logo 
 o mandado foi emitido pela autoridade judiciária competente.
 
             H) Com efeito, o conceito de domicílio deve ser «dimensionado e 
 moldado a partir da observância do respeito pela dignidade da pessoa humana, na 
 sua vertente de intimidade da vida privada» (Acórdão n.º 67/97, in ATC, 36.º 
 vol., p. 247), não está seguramente essa «intimidade» em causa na sede da 
 empresa, nem este é «aquele espaço fechado e vedado a estranhos onde recatada e 
 livremente se desenvolve toda uma série de condutas e procedimentos 
 característicos da vida privada e familiar» (Acórdão n.º 452/89, in ATC, 13.º 
 vol., tomo I, p. 543).
 
             I) Pelo que toda argumentação da recorrente deve improceder, não 
 existindo qualquer inconstitucionalidade decorrente da inviolabilidade do 
 domicílio das pessoas colectivas e da alegada busca «domiciliária» à «sede» da 
 recorrente, em razão do n.º 2 do artigo 12.º da CRP, que prevê que «as pessoas 
 colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua 
 natureza».
 
             J) Tal preceito não consagra um princípio de equiparação entre 
 pessoas físicas e pessoas colectivas no tocante à titularidade de direitos 
 fundamentais, nem o mesmo é defendido por Gomes Canotilho e Vital Moreira.
 
             K) O Tribunal Constitucional rejeita expressamente uma tal 
 equiparação, sendo a este propósito exemplar o Acórdão n.º 569/98, no proc. n.º 
 
 505/96, de 7 de Outubro de 1998.
 
             L) Da norma do n.º 2 do artigo 12.º decorre uma «limitação»: as 
 pessoas colectivas só têm os direitos compatíveis com a sua natureza, 
 alicerçada na ligação íntima dos direitos fundamentais ao valor supremo da 
 dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP).
 
             M) Disto resulta que o n.º 2 do artigo 12.º da CRP não determina a 
 atribuição directa, por extensão, dos direitos fundamentais às pessoas 
 colectivas, mesmo os seus representantes sendo pessoas singulares, o que obriga 
 a uma análise sempre casuística e sempre temperada com o facto de inexistir um 
 catálogo «prévio» de direitos fundamentais que possam ser invocados pelas 
 pessoas colectivas.
 
             N) O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre o conceito 
 constitucional do domicílio acolhido no artigo 34.º da CRP, entendendo, a esse 
 propósito, no Acórdão n.º 452/898 (in Diário da República, I Série, de 22 de 
 Julho de 1989), e reiterado no Acórdão n.º 67/97, proc. n.º 602/96, de 4 de 
 Fevereiro de 1997.
 
             O) Ou seja, o conceito constitucional de domicílio é dimensionado e 
 moldado a partir da observância do respeito pela dignidade da pessoa humana, na 
 sua vertente de reserva da intimidade da vida familiar, e como tal conjugado com 
 o disposto no n.º 1 do artigo 26.º da CRP.
 
             P) E tanto é igualmente confirmado no douto Parecer n.º 127/2004 do 
 Conselho Consultivo da Procuradoria‑Geral da República, de 17 de Março de 2005.
 
             Q) No mesmo sentido o Parecer da mesma Procuradoria com o n.º 
 
 86/1991, no ponto 7.4, onde se assume que as buscas na sede das pessoas 
 colectivas não configuram buscas domiciliárias, ou seja, «em casa habitada ou 
 numa sua dependência fechada».
 
             R) As buscas efectuadas pela Autoridade da Concorrência nos 
 presentes autos não são enquadráveis no conceito de buscas domiciliárias 
 previsto no artigo 177.º do CPP, não sendo, consequentemente, acto subsumível à 
 previsão da alínea a) do n.º 1 do artigo 269.º do CPP.
 
             S) Assim sendo, e nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 17.º da Lei 
 n.º 18/2003, de 11 de Junho, a Autoridade goza dos mesmos direitos, faculdades e 
 deveres dos órgãos de polícia criminal e tem competência para proceder a buscas 
 nas instalações das empresas, desde que obtenha um despacho da autoridade 
 judiciária competente para a sua realização.
 
             T) Por aplicação subsidiária do CPP, ex vi artigo 19.º da Lei n.º 
 
 18/2003 e do artigo 41.º do RGCO, e porque estas diligências têm lugar na fase 
 de inquérito, a entidade competente para a emissão dos mandados é o Ministério 
 Público, nos termos dos artigos 267.º e 2.º do CPP.
 
             U) Também toda a invocação dos Acórdãos do TEDH não colhe, porque 
 não tem aplicação ao caso concreto e todos os princípios consagrados na Carta 
 dos Direitos do Homem e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem vêm 
 expressamente previstos e sufragados na Constituição da República Portuguesa.
 
             V) Contudo, caso não seja este o entendimento deste douto Tribunal, 
 sempre se dirá que não foi apreendida nenhuma correspondência.
 
             W) Os documentos apreendidos e classificados como correspondência 
 não violam o direito ao sigilo da correspondência, consagrado 
 constitucionalmente como garantia fundamental que encontra sua recriminação, no 
 
 âmbito penal, no artigo 194.º do Código Penal.
 
             X) Decorre, assim, do normativo supra que o legislador ordinário, ao 
 pretender acautelar o bem jurídico constitucionalmente garantido – o direito à 
 privacidade e a garantia da comunicação –, veio proibir, antes de mais, a 
 própria «abertura» de um escrito que «se encontre fechado», e isto 
 independentemente de o seu conteúdo versar ou não sobre matéria privada, ou 
 mesmo de se tomar ou não conhecimento desse mesmo conteúdo. Ou seja, é a própria 
 
 «abertura» que é punida de per se.
 
             Y) Não é abrangida pela proibição prevista naquele normativo – e 
 logo não é considerada violação de correspondência ou de telecomunicações – a 
 visualização ou apreensão de encomenda, carta ou qualquer outro escrito que se 
 encontre aberto, porque, para efeitos da tutela penal e (não obstante o termo 
 literal utilizado), o legislador penal distinguiu entre «correspondência» – a 
 fechada, e respectiva violação – e os restantes «objectos» que, para o efeito, 
 não são correspondência, mas, nomeadamente, documentos, nos termos previstos no 
 artigo 178.º do CPP.
 
             Z) Tal resulta, aliás, expressamente, do mandado emitido pela 
 entidade judiciária competente.
 
             AA) Assim, contrariamente ao que alega a requerente, no âmbito das 
 diligências de busca realizadas, não foi feita qualquer apreensão de 
 
 «correspondência», com violação daquelas disposições.
 
             BB) A protecção legal visada pelo artigo 42.º, n.º 1, do RGCO, tal 
 como o artigo 179.º do CPP, se deve circunscrever, tal como no artigo 34.º, n.º 
 
 1, da CRP, apenas a escritos fechados.
 
             CC) Termos em que, não pertencendo a documentação recolhida pelos 
 funcionários da Autoridade da Concorrência à área da tutela da incriminação nos 
 termos definidos tanto no direito contra‑ordenacional como no direito penal e 
 direito processual penal, não ocorreu, in casu, qualquer violação do artigo 
 
 42.º, n.º 1, do RGCO nem do artigo 179.º do CPP: este, aliás, como é sabido, 
 sendo inaplicável em termos absolutos no processo contra‑ordenacional, dado que 
 o RGCO não admite de todo a apreensão de «correspondência» – quando 
 efectivamente de correspondência se trate – ainda que com mandado do juiz.
 
             DD) O mesmo se dirá quanto à correspondência electrónica, porquanto 
 não existe no ordenamento jurídico português um regime jurídico específico para 
 a apreensão de correspondência sob a forma electrónica.
 
             EE) Também neste caso, toda a «documentação» apreendida pelos 
 funcionários da Autoridade da Concorrência circunscreveu‑se, tão‑só, a 
 documentos já visualizados pela empresa e que se encontravam a circular, por 
 conseguinte, abertos, através de sistemas de correspondência internos, em 
 formato papel ou electrónico, sem que, em qualquer dos casos, se estivesse 
 perante a «intromissão de correspondência» que requeresse especial protecção 
 legal.
 
             FF) Donde carece de fundamento qualquer uma das argumentações da 
 recorrente quanto à obtenção ilegal, nula e inconstitucional de todo e qualquer 
 documento, como a mesma pretende, e que, por razões de defesa, vem invocar como 
 sendo correspondência.
 
             GG) Não existe qualquer violação do disposto nos artigos 17.º, n.ºs 
 
 1 e 2, da Lei n.º 18/2093; artigo 42.º, n.º 1, do RGCO, e ainda, artigos 126.º, 
 n.ºs 1 e 3, 174.º, 178.º e 179.º do CPP e artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.ºs 1, 
 
 2, 3 e 4, da CRP, na delimitação do conceito de correspondência aos documentos 
 fechados.
 
             HH) Há uma efectiva diferença entre o que se entende por 
 correspondência aberta e fechada, sendo que só a primeira se enquadra dentro da 
 previsão constitucional.
 
             Nestes termos, deve julgar‑se improcedente o presente recurso e, em 
 consequência:
 
             – não julgar inconstitucional a norma que resulta da interpretação 
 do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2, do regime jurídico da concorrência, aprovado pela 
 Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, no sentido de conferir competência ao 
 Ministério Público para autorizar buscas à sede e domicílio profissional de 
 pessoas colectivas, por considerar que não existe violação dos artigos 32.º, 
 n.º 8, e 34.º, n.ºs 1, 2, 3 e 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 
 do princípio da reserva de juiz neles consagrado.
 
             E, caso entenda conhecer da terceira inconstitucionalidade invocada, 
 deve igualmente julgar improcedente o recurso neste ponto e, em consequência:
 
             – não julgar inconstitucional a norma que resulta da interpretação 
 do artigo 17.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, e do 
 artigo 42.º, n.º 1, do RGCO, no sentido de que a correspondência aberta 
 
 (circulares, mensagens de correio electrónico e documentos anexos, arquivados 
 em computador ou impressos) pode ser apreendida e utilizada como meio de prova 
 em processo contra‑ordenacional, por considerar que não existe violação dos 
 artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.º 4, ambos da CRP.”
 
  
 
                         Também o representante do Ministério Público no Tribunal 
 Constitucional apresentou contra‑alegações, igualmente preconizando o não 
 conhecimento das segunda e terceira questões de inconstitucionalidade, e 
 concluindo:
 
  
 
             “1.º – A sede e instalações de uma pessoa colectiva não correspondem 
 ao conceito de domicílio para efeitos do artigo 34.º da Constituição da 
 República Portuguesa.
 
             2.º – O conceito de domicílio previsto no artigo 34.º da 
 Constituição não configura a possibilidade de uma equiparação entre domicílio de 
 pessoa (singular) e de pessoa colectiva, nomeadamente para efeitos de 
 intervenção de juiz (reserva de juiz).
 
             3.º – A interpretação do artigo 17.º, n.º 2, da Lei de Concorrência 
 segundo a qual o Ministério Público é competente para autorizar buscas em sede 
 de pessoa colectiva não viola qualquer comando constitucional, nomeadamente o 
 artigo 34.º”
 
  
 
                         Tudo visto, cumpre apreciar e decidir, com exclusão, 
 desde já, da referida “segunda questão de inconstitucionalidade” (reportada à 
 
 “norma que resulta da interpretação conjugada do artigo 17.º, n.º 1, alínea c), 
 da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, e do artigo 179.º, n.º 1, do Código de 
 Processo Penal (CPP), no sentido de conferir competência ao Ministério Público 
 para apreender ou autorizar a apreensão de correspondência, por violação dos 
 artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.ºs 1, 2 e 4, da CRP”9, abandonada pela recorrente 
 nas suas alegações.
 
  
 
                         2. Fundamentação
 
                         2.1. A questão da inconstitucionalidade da norma que 
 resulta da interpretação do artigo 17.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, do Regime 
 Jurídico da Concorrência, aprovado pela Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, no 
 sentido de conferir competência ao Ministério Público para autorizar buscas à 
 sede e domicílio profissional de pessoas colectivas.
 
  
 
                         2.1.1. Na impugnação judicial do despacho da AdC, de 28 
 de Março de 2007, que indeferira requerimento de arguição de nulidades, a 
 recorrente suscitou a presente questão de inconstitucionalidade nos seguintes 
 termos, condensados nas conclusões V a IX dessa peça processual:
 
  
 
             “V – As buscas e apreensões nas instalações da recorrente, a 16 de 
 Janeiro de 2007, foram realizadas ao abrigo de mandado emitido pelo Ministério 
 Público, o que viola o disposto no n.º 2 do artigo 34.º da CRP (garantia de 
 inviolabilidade do domicílio).
 
             VI – Resulta desta norma da Constituição que a realização de buscas 
 e apreensões na sede ou domicílio profissional de pessoas colectivas é um acto 
 sujeito a reserva de juiz, não se admitindo que este tipo de diligências de 
 obtenção de prova possa ser decidido e autorizado por um magistrado do 
 Ministério Público.
 
             VII – Qualquer interpretação do artigo 17.º, n.º 1, alínea c), do 
 regime jurídico da concorrência (aprovado pela Lei n.º 18/2003, de 11 de 
 Junho), bem como do artigo 179.º, n.º 1, do CPP, no sentido de conferir 
 competência ao Ministério Público para apreender ou autorizar a apreensão de 
 correspondência redunda em norma materialmente inconstitucional, por violação 
 dos artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.ºs 1, 2 e 4, da CRP, inconstitucionalidade 
 que se deixa agora alegada.
 
             VIII – Não é aplicável, para efeitos de preenchimento do conceito de 
 
 «autoridade judiciária», referido no n.º 2 do artigo 17.º do regime jurídico da 
 concorrência, a definição de autoridade judiciária constante do n.º 1 do artigo 
 
 1.º do Código de Processo Penal.
 
             IX – Qualquer interpretação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 17.º do regime 
 jurídico da concorrência, no sentido de conferir competência ao Ministério 
 Público para autorizar buscas à sede e domicílio profissional da recorrente 
 redundará em norma materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 
 
 32.º, n.º 8, e 34.º, n.ºs 1, 2, 3 e 4, da CRP, inconstitucionalidade que se 
 deixa agora alegada, como aliás foi desde logo alegada, para os devidos efeitos, 
 no requerimento de 26 de Janeiro de 2007.”
 
  
 
                         2.1.2. Esta questão de inconstitucionalidade foi 
 desatendida pela sentença recorrida com base na seguinte argumentação:
 
  
 
             “Da natureza das buscas e da autoridade judiciária competente para 
 as ordenar.
 
             Para apreciar a questão que aqui se coloca, vamos começar por 
 traçar, em linhas gerais, o direito nacional aplicável para, depois, determinar 
 se a interpretação que do direito nacional se faz colide com o artigo 8.º da 
 CEDH e/ou com alguma interpretação que do mesmo é feita.
 
             A Lei n.º 18/2003 equipara a AdC aos órgãos de polícia criminal, 
 conferindo‑lhe designadamente competência para proceder a buscas nas 
 instalações das empresas (artigo 17.º, n.º 1, alínea c)). Precisa, porém, o n.º 
 
 2 do mesmo preceito que a realização das buscas depende de despacho da 
 autoridade judiciária que autorize a sua realização.
 
             Dado o modo como o legislador regulou esta matéria, há que recorrer 
 ao direito processual penal, aplicável, como se referiu supra, subsidiariamente.
 
             Resulta do artigo 174.º, n.º 2, do Código de Processo Penal que, 
 sempre que haja indícios da prática de uma infracção criminal e de que num 
 determinado local, reservado ou não livremente acessível ao público, se 
 encontram quaisquer objectos relacionados com o crime ou que possam servir de 
 prova, pode ter lugar uma busca, precedida do necessário despacho da autoridade 
 judiciária competente (despacho que pode ser, num primeiro momento e em 
 determinadas situações, dispensado, casos que não vão ser objecto de análise por 
 não relevarem para os autos).
 
             Como regra, as buscas têm lugar no decurso do inquérito, fase 
 processual destinada à prática dos actos de investigação reputados necessários 
 com vista à decisão sobre a acusação (artigo 262.º do Código de Processo Penal). 
 Sendo este o objectivo do inquérito, nele estão compreendidas todas as 
 diligências destinadas a investigar a existência de um crime, a identificar os 
 seus agentes e respectiva responsabilidade e a descobrir e recolher a prova 
 necessária.
 
             O titular da acção penal é o Ministério Público, a ele cabendo a 
 direcção do inquérito (artigo 263.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), ou 
 seja, é ao Ministério Público que cabe seleccionar e recolher a prova, assistido 
 pelos órgãos de polícia criminal. Por conseguinte, quando o artigo 174.º, n.º 2, 
 faz depender as buscas de prévio despacho da autoridade judiciária competente, 
 está‑se a referir ao Ministério Público (cf. artigo 267.º e, quanto à definição 
 de autoridade judiciária, artigo 2.º, ambos do Código de Processo Penal).
 
             Há, porém, determinados actos que, quando praticados na fase de 
 inquérito, dependem de autorização do juiz de instrução. Trata‑se daqueles 
 actos que, em razão da sua natureza e gravidade, contendem directamente com 
 direitos fundamentais (artigo 268.º do Código de Processo Penal).
 
             Dentro do núcleo de actos da competência do juiz de instrução na 
 fase de inquérito incluem‑se as autorizações para realização de buscas 
 domiciliárias: A busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada só pode 
 ser ordenada ou autorizada pelo juiz e efectuada entre as sete e as vinte e uma 
 horas, sob pena de nulidade (artigo 177.º do Código de Processo Penal).
 
             O cerne da questão sub judice é precisamente definir o que se 
 entende por busca domiciliária, sendo certo que, para dar resposta a esta 
 questão, há que interpretar o artigo 34.º da Constituição da República 
 Portuguesa, que consagra como direito fundamental a inviolabilidade do 
 domicílio e da correspondência, e que, por conseguinte, está em estreita 
 conexão com a regra processual em análise.
 
             Dispõe o citado preceito constitucional, nos seus n.ºs 1 e 2, que:
 
  
 
             «1 – O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de 
 comunicação privada são invioláveis.
 
             2 – A entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode 
 ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas 
 previstos na lei.»
 
  
 
             Sobre o conteúdo deste direito, Gomes Canotilho e Vital Moreira 
 ensinam: «A Constituição continua a regular no mesmo preceito, desde a redacção 
 originária, o direito à inviolabilidade de domicílio e o direito à 
 inviolabilidade de correspondência (e outros meios de comunicação privada). A 
 proclamação destes direitos como ‘invioláveis’ e a sua associação para efeitos 
 de positivação normativo‑constitucional justifica‑se por haver, em ambos os 
 direitos, a protecção de bens jurídicos fundamentais comuns (dignidade da 
 pessoa, desenvolvimento da personalidade e, sobretudo, garantia da liberdade 
 individual, autodeterminação existencial, garantia da privacidade, nos termos do 
 artigo 26.º)» (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., vol. 
 I, p. 539).
 
             Os mesmos autores, reconhecendo as dificuldades na definição do 
 objecto da inviolabilidade, acrescentam: «Tendo em conta o sentido 
 constitucional deste direito, tem de entender‑se por domicílio, desde logo, o 
 local onde se habita – a habitação –, seja permanente, seja eventual; seja 
 principal ou secundária. Por isso, ele não pode equivaler ao sentido 
 civilístico, que restringe o domicílio à residência habitual (mas, certamente 
 incluindo também as habitações precárias, como tendas, roulottes, embarcações), 
 abrangendo também a residência ocasional (como o quarto de hotel) ou, ainda, os 
 locais de trabalho (escritórios, etc.). Dada a sua função constitucional, esta 
 garantia deve estender‑se quer ao domicílio voluntário geral, quer ao domicílio 
 profissional (Código Civil, artigos 82.º e 83.º). A protecção do domicílio é 
 também extensível, na medida do que seja equiparável, aos locais de trabalho 
 
 (escritórios, etc.).» (op. cit., p. 540).
 
             O domicílio é, pois, visto como a projecção espacial da pessoa, 
 pretendendo‑se, com a consagração da sua inviolabilidade, assegurar a protecção 
 da dignidade humana, ou seja, a protecção do domicílio radica na personalidade 
 humana e na necessidade de garantir o direito à reserva da intimidade da vida 
 privada e familiar. Em suma, está em causa o direito à liberdade da pessoa.
 
             O Tribunal Constitucional tem definido o domicílio a que se alude 
 neste artigo como «a habitação humana, aquele espaço fechado e vedado a 
 estranhos, onde, recatada e livremente, se desenvolve uma série de condutas e 
 procedimentos característicos da vida privada e familiar» (Acórdão do Tribunal 
 Constitucional n.º 452/89, publicado no Diário da República, I Série, de 22 de 
 Julho de 1989, citado em abundância por outros arestos daquele Tribunal).
 
             Assim configurado o direito em análise, não podemos deixar de acatar 
 o entendimento dos já citados autores de que «Os titulares do direito à 
 inviolabilidade de domicílio são as pessoas físicas que habitam uma residência, 
 independentemente das relações jurídicas subjacentes (ex.: propriedade, 
 arrendamento, posse) e da respectiva nacionalidade. Esta titularidade 
 estende‑se a todos os membros da família e a pessoas com estatuto especial (ex: 
 detidos, internados), devendo as eventuais restrições resultar da lei e serem 
 justificadas pelas razões constantes deste preceito constitucional (matéria de 
 processo criminal).» (op. cit., p. 541).
 
             Aqui chegados, importa agora analisar em que medida este direito é 
 extensível às pessoas colectivas através da equiparação de domicílio à sede 
 social.
 
             É indiscutível que também as pessoas colectivas são titulares de 
 direitos fundamentais. Com efeito, dispõe o artigo 12.º, n.º 2, da Constituição 
 da República Portuguesa que: «As pessoas colectivas gozam dos direitos e estão 
 sujeitas aos deveres compatíveis com sua natureza». Adoptou, pois, a nossa 
 Constituição uma concepção de direitos fundamentais não centrada 
 exclusivamente sobre os indivíduos.
 
             Mas desta atribuição de direitos fundamentais às pessoas colectivas 
 não decorre, directa e necessariamente, que lhes seja aplicável a garantia da 
 inviolabilidade do domicílio, nem o mesmo é defendido por Gomes Canotilho e 
 Vital Moreira na última edição da obra supra citada. A propósito do artigo 12.º, 
 n.º 2, dizem estes autores que «As pessoas colectivas não podem ser titulares 
 de todos os direitos e deveres fundamentais; mas, sim, apenas daqueles que sejam 
 compatíveis com a sua natureza (n.º 2, in fine). Saber quais são eles, eis um 
 problema que só pode resolver‑se casuisticamente. Assim, não serão aplicáveis, 
 por exemplo, o direito à vida e à integridade pessoal, o direito de constituir 
 família; já serão aplicáveis o direito de associação, a inviolabilidade de 
 domicílio (pelo menos em certa medida) (ver nota ao artigo 34.º), o segredo de 
 correspondência, o direito de propriedade. (...) É claro que o ser ou não ser 
 compatível com a natureza das pessoas colectivas depende naturalmente da 
 própria natureza de cada um dos direitos fundamentais, sendo incompatíveis 
 aqueles direitos que não são concebíveis a não ser em conexão com as pessoas 
 físicas, com os indivíduos ...» (op. cit., pp. 330‑331).
 
             Continuando a citar os mesmos constitucionalistas, «Já é muito 
 duvidoso que a protecção da sede das pessoas colectivas (Código Civil, artigo 
 
 159.º) ainda se enquadre no âmbito normativo constitucional da protecção do 
 domicílio, porque, em princípio, não está aqui em causa a esfera da intimidade 
 privada e familiar em que se baseia a inviolabilidade do domicílio. (...) Já 
 quanto às pessoas colectivas, a protecção que é devida às respectivas 
 instalações (designadamente quanto à respectiva sede) contra devassas externas 
 não decorre directamente da protecção do domicílio, de cuja justificação não 
 compartilha, como se viu acima, mas sim do âmbito de protecção do direito de 
 propriedade e de outros direitos que podem ser afectados, como a 1iberdade de 
 empresa (...)» (op. cit., pp. 540‑541).
 
             Tendo em mente a natureza do direito assegurado pela garantia da 
 inviolabilidade do domicílio, não se pode deixar de concluir que o mesmo não é 
 compatível com a natureza das pessoas colectivas. Estando em causa no artigo 
 
 34.º o domicílio visto como a projecção espacial da pessoa e pretendendo‑se com 
 a proibição consagrada assegurar a protecção da dignidade humana e garantir o 
 direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar (ideia que sai ainda 
 mais reforçada se atentarmos no n.º 3 do artigo 34.º), não pode aceitar‑se que a 
 sede de uma pessoa colectiva esteja aqui incluída.
 
             Neste sentido se pronunciou Martins da Fonseca que, depois de 
 aludir à referência que o n.º 2 do artigo 34.º faz ao «domicílio dos cidadãos», 
 e concluir que do mesmo estão forçosamente excluídas as pessoas colectivas, e à 
 referência que o n.º 3 do mesmo artigo faz à «noite», e concluir que do mesmo 
 resulta que se quis proteger a intimidade do cidadão e a sua liberdade 
 individual e familiar, é peremptório ao afirmar que «as sedes das pessoas 
 colectivas não são abrangidas pela garantia prevista na disposição em apreço. De 
 anotar, em relação às pessoas colectivas, que aí nunca se pretende acautelar a 
 privacidade do cidadão. Trata‑se de direito de que uma pessoa colectiva não 
 pode em caso algum ser titular.» («Conceito de domicílio face ao artigo 34.º da 
 Constituição da República», in Revista do Ministério Público, n.º 45, pp. 
 
 62‑63).
 
             Também a Procuradoria‑Geral da República, em parecer emitido a 
 propósito do enquadramento jurídico das buscas a efectuar no domínio do direito 
 da concorrência, adopta este entendimento, patente no seguinte trecho: «As 
 buscas e apreensões não domiciliárias, nomeadamente nas instalações de empresas 
 ou das associações de empresas envolvidas ...» (Parecer n.º 127/2004, p. 52). De 
 igual modo, no parecer da mesma Procuradoria n.º 86/1991 se assume estarem as 
 buscas na sede das pessoas colectivas arredadas da definição de buscas 
 domiciliárias, dado que estas são aí identificadas como as buscas «em casa 
 habitada ou numa sua dependência fechada» (ponto 7.4).
 
             Por todo o supra exposto, a conclusão do Tribunal é a de que, face 
 ao direito nacional, as buscas efectuadas na sede das pessoas colectivas não são 
 buscas domiciliárias.
 
             Ora, se não estão em causa buscas domiciliárias, então a entidade 
 competente para emitir os competentes mandados é o Ministério Público, nos 
 termos do citado artigo 267.º, dado que a intervenção do juiz de instrução nesta 
 sede se restringe às buscas domiciliárias (face ao disposto no artigo 41.º do 
 RGCOC, que remete expressamente para o Código de Processo Penal, não tem que 
 haver uma qualquer norma a atribuir competência expressa ao Ministério Público 
 para ordenar e emitir mandados de busca em processos de contra‑ordenação, sendo 
 de aplicar, subsidiariamente, a norma do Código de Processo Penal que lhe 
 atribui tal competência).
 
             Esta conclusão não é posta em causa pelo disposto no artigo 8.º da 
 CEDH, que dispõe que:
 
  
 
             «1 – Qualquer pessoa tem o direito ao respeito da sua vida privada 
 e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.
 
             2 – Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício 
 deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir 
 uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a 
 segurança nacional, para a segurança pública, para o bem‑estar económico do 
 país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da 
 saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.»
 
  
 
             Os tribunais comunitários mantêm uma jurisprudência constante nesta 
 matéria, sempre ancorada no Ac. Hoescht, de 21 de Outubro de 1989, amiúde citado 
 em jurisprudência mais recente (inclusive nacional, acórdão do Tribunal da 
 Relação de Lisboa, de 16 de Janeiro de 2007, Proc. n.º 807/06), de que se passa 
 a transcrever o seguinte trecho:
 
  
 
             «17 – Tendo a recorrente invocado também as exigências decorrentes 
 do direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, deve referir‑se que, se 
 
 é verdade que o reconhecimento desse direito quanto ao domicílio privado das 
 pessoas singulares se impõe na ordem jurídica comunitária como princípio comum 
 aos direitos dos Estados‑membros, o mesmo não sucede quanto às empresas, uma 
 vez que os sistemas jurídicos dos Estados‑membros apresentam divergências não 
 desprezíveis no que se refere à natureza e grau de protecção das instalações 
 comerciais face às intervenções das autoridades públicas.
 
             18 – Conclusão diversa não pode, aliás, ser retirada do artigo 8.º 
 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, cujo n.º 1 estabelece que 
 
 ‘qualquer pessoa tem o direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do 
 seu domicílio e da sua correspondência’. O objecto de protecção deste artigo é o 
 desenvolvimento da liberdade pessoal do homem, não podendo, por isso, ser 
 alargada às instalações comerciais. (...)
 
             19 – Não é menos verdade, porém, que em todos os sistemas jurídicos 
 dos Estados‑membros as intervenções do poder público na esfera da actividade 
 privada de qualquer pessoa, seja singular ou colectiva, devem ter fundamento 
 legal e justificar‑se por razões previstas na lei, e que esses sistemas 
 estabelecem, em consequência, embora de formas diferentes, uma protecção contra 
 as intervenções arbitrárias ou desproporcionadas. A exigência dessa protecção 
 deve, assim, ser reconhecida como princípio geral do direito comunitário.»
 
  
 
             Esta doutrina tem vindo a ser desenvolvida, designadamente no Ac. 
 Colas, nos termos do qual a protecção do domicílio visada pelo artigo 8.º da 
 CEDH pode ser estendida, em determinadas circunstâncias, a essas instalações.
 
             Sucede que este acórdão não é de todo contraditório com o Ac. 
 Hoescht. É que a hipótese nele configurada não é idêntica à que estava em causa 
 no Ac. Hoescht nem tão‑pouco à que está em causa nestes autos.
 
             Com efeito, no Ac. Colas, estavam em causa buscas realizadas na sede 
 de uma pessoa colectiva, em França, no âmbito de uma legislação nacional que 
 previa a sua realização sem necessidade de qualquer autorização judicial, ou 
 seja, as buscas podiam ser determinadas pelos inspectores que instruíam o 
 processo administrativo de contra‑ordenação, sendo estes quem definia a sua 
 extensão, empresas e locais abrangidos, sem qualquer restrição ou supervisão 
 
 (cf. ponto 22).
 
             Em tal situação, afigura‑se‑me claro que o artigo 8.º da CEDH deverá 
 ser objecto de uma interpretação mais lata de modo a que, por via dele, se 
 garanta minimamente a defesa dos direitos das pessoas colectivas, 
 designadamente à protecção dos seus bens. Isto mesmo resulta do acórdão quando 
 refere que a legislação e a prática nacional deveriam ter acautelado garantias 
 adequadas e efectivas contra abusos (cf. ponto 48), e que por tais garantias 
 inexistirem na legislação nacional havia uma violação ao artigo 8.º em 
 apreciação.
 
             Do exposto resulta que não há qualquer contradição entre o Ac. 
 Hoescht do TJ e o Ac. Colas do TEDH, já que este mais não faz do que consagrar a 
 tese de que deve ser reconhecido como princípio geral do direito comunitário a 
 protecção das pessoas colectivas contra intervenções arbitrárias ou 
 desproporcionadas.
 
             Sucede que não é esta situação face à nossa lei nacional, O nosso 
 regime processual impõe que as buscas sejam sempre autorizadas por uma 
 autoridade judiciária, ou seja, a lei nacional acautela a salvaguarda dos 
 direitos das empresas, garantindo a necessária protecção contra as intervenções 
 arbitrárias ou desproporcionadas. O Ministério Público é uma autoridade 
 judiciária cuja actividade é pautada pela conformidade com a Constituição, por 
 critérios de legalidade e objectividade e não por razões de oportunidade ou 
 conveniência. Consequentemente, o facto de as buscas dependerem de despacho do 
 Ministério Público garante integralmente os direitos que se podem considerar 
 aplicáveis às empresas por via do artigo 8.º da CEDH: o da protecção das 
 pessoas colectivas contra intervenções arbitrárias ou desproporcionadas.
 
             Ora, se assim é no domínio do processo penal, por maioria de razão 
 também o é no domínio do processo contra‑ordenacional, onde os bens jurídicos 
 protegidos auferem de menor dignidade constitucional.
 
             Acresce que, no domínio concreto das contra‑ordenações da 
 concorrência, a AdC, quando solicita a necessária autorização para realizar 
 buscas, fá‑lo através de requerimento fundamentado (artigo 17.º, n.º 2, da Lei 
 n.º 18/2003), o que permite ao Ministério Público aferir da necessidade e 
 proporcionalidade da diligência solicitada, sendo certo que, se não ficar 
 convicto de que há indícios da prática de um ilícito e de que num dado local 
 poderá haver elementos de prova relevantes, não autorizará a diligência.
 
             Face a todo o exposto, entende o tribunal que as buscas às sedes das 
 pessoas colectivas não são equiparadas a buscas domiciliárias e, por 
 conseguinte, a sua realização não depende de autorização do juiz, mas sim do 
 Ministério Público.
 
             Regressando ao caso dos autos, verifica‑se que as buscas assentaram 
 em mandados emitidos no dia 10 de Janeiro de 2007 pelo Ministério Público. 
 Significa isto que, no caso concreto, foram respeitados todos os requisitos 
 formais previstos na lei, não padecendo as buscas de qualquer vício.
 
             Consequentemente, uma vez que no caso dos autos as buscas se 
 realizaram na sequência de despacho e mandados emitidos pelo Ministério 
 Público, é forçoso concluir que não houve violação nem do artigo 177.º do Código 
 de Processo Penal nem dos artigos 32.º, n.º 8, e 34.º da Constituição da 
 República.”
 
  
 
                         2.1.3. Resulta da conjugação dos termos em que a 
 presente questão foi suscitada pela recorrente perante o tribunal recorrido, 
 dos termos em que este a decidiu e dos termos em que aquela a configurou no 
 requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade e nas 
 subsequentes alegações que não estão em causa as alíneas a), b), d) e e) do 
 referido n.º 1 do artigo 17.º da Lei n.º 18/2003 (que conferem aos órgãos e 
 funcionários da AdC poderes de inquirição e de solicitação de documentos e 
 outros elementos de informação, de selagem de locais e de requisição de 
 colaboração a outros serviços da Administração Pública), mas apenas a sua alínea 
 c) – e esta somente no segmento que se reporta às buscas –, pelo que, quanto a 
 esta questão, o objecto do recurso cinge‑se às normas do artigo 17.º, n.ºs 1, 
 alínea c) (na parte que se refere a buscas), e 2, da Lei n.º 18/2003, que 
 dispõem:
 
  
 
 “Artigo 17.º
 Poderes de inquérito e inspecção
 
             1 – No exercício dos poderes sancionatórios e de supervisão, a 
 Autoridade, através dos seus órgãos ou funcionários, goza dos mesmos direitos e 
 faculdades e está submetida aos mesmos deveres dos órgãos de polícia criminal, 
 podendo, designadamente:
 
             (…)
 
             c) Proceder, nas instalações das empresas ou das associações de 
 empresas envolvidas, à busca, exame, recolha e apreensão de cópias ou extractos 
 da escrita e demais documentação, quer se encontre ou não em lugar reservado ou 
 não livremente acessível ao público, sempre que tais diligências se mostrem 
 necessárias à obtenção de prova;
 
             (…)
 
             2 – As diligências previstas na alínea c) do número anterior 
 dependem de despacho da autoridade judiciária que autorize a sua realização, 
 solicitado pela Autoridade, em requerimento devidamente fundamentado, devendo a 
 decisão ser proferida no prazo de quarenta e oito horas.
 
             (…).”
 
  
 
                         A questão da inconstitucionalidade (por alegada violação 
 da exigência de autorização judicial para a efectivação de tais buscas, que 
 derivaria dos artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.ºs 1, 2, 3 e 4, da CRP) do critério 
 normativo, extraído do artigo 17.º, n.ºs 1, alínea c) (na parte que se refere a 
 buscas), e 2, da Lei n.º 18/2003, segundo o qual as buscas realizadas por 
 funcionários da AdC em instalações de uma empresa podem ser autorizadas pelo 
 Ministério Público foi apreciada por esta 2.ª Secção no Acórdão n.º 593/2008, 
 Proc. n.º 397/08, da presente data, que concluiu no sentido da não 
 inconstitucionalidade, com base em fundamentação que se reproduz e inteiramente 
 se subscreve:
 
  
 
             “9. Vem alegado que as normas do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 17.º da 
 Lei n.º 18/2003, interpretadas no sentido de conferirem competência ao 
 Ministério Público para autorizar buscas à sede e domicílio profissional de 
 pessoas colectivas, ofendem o princípio da reserva de juiz.
 
             A alegação põe em confronto directo o disposto no n.º 2 daquele 
 preceito com o direito à inviolabilidade do domicílio (artigo 34.º, n.º 1, da 
 CRP) e as condições legitimantes da sua restrição, fixadas no n.º 2 do mesmo 
 artigo. Na verdade, a norma questionada faz depender a realização das 
 diligências previstas na alínea c) do n.º 1 do artigo 17.º de «despacho da 
 autoridade judiciária» que as autorize, ao passo que, nos termos 
 constitucionais, «a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só 
 pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as 
 formas previstas na lei» (artigo 34.º, n.º 2).
 
             A apreciação do eventual desrespeito desta disposição requer, como 
 questão prévia, a definição rigorosa do objecto da inviolabilidade do 
 domicílio. O que deve entender‑se, para este efeito, por domicílio?
 
             Não é fácil a resposta, até porque o conceito técnico de domicílio, 
 compreendido como a «residência habitual» (artigo 80.º do Código Civil), é aqui 
 imprestável, por demasiado restritivo, atentos o sentido e a função da tutela 
 constitucional. Seguro é apenas que, no âmbito do artigo 34.º da CRP, o 
 conceito vem dotado de maior amplitude, abarcando, sem margem para dúvidas, 
 qualquer local de habitação, seja ela principal, secundária, ocasional, em 
 edifício ou em instalações móveis. Mas já não é consensual a extensão da 
 protecção ao domicílio profissional (em sentido afirmativo, Gomes Canotilho / 
 Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4.ª ed., 
 Coimbra, 2007, 540; contra, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de 
 Processo Penal, Lisboa, 2007, 478-479).
 
             Mas, quando se extravasa da esfera domiciliária das pessoas físicas, 
 entrando no campo de actividade das pessoas colectivas, afigura‑se que saímos 
 também para fora do âmbito normativo de protecção da norma constitucional, pois 
 decai a sua razão de ser.
 
             Como expressam os primeiros Autores a que fizemos referência (ob. 
 cit., 541):
 
             «Já quanto às pessoas colectivas, a protecção que é devida às 
 respectivas instalações (designadamente quanto à respectiva sede) contra 
 devassas externas não decorre directamente da protecção do domicílio, de cuja 
 justificação não compartilha, como se viu acima, mas sim do âmbito de protecção 
 do direito de propriedade e de outros direitos que possam ser afectados, como a 
 liberdade de empresa, no caso das empresas (…).»
 
             Essa conclusão decorre do substrato e das conexões valorativas do 
 direito à inviolabilidade do domicílio, «ainda um direito à liberdade da pessoa 
 pois está relacionado, tal como o direito à inviolabilidade de correspondência, 
 com o direito à inviolabilidade pessoal (esfera privada espacial, previsto no 
 artigo 26.º), considerando‑se o domicílio como projecção espacial da pessoa 
 
 (…)».
 
             O bem protegido com a inviolabilidade do domicílio e o étimo de 
 valor que lhe vai associado têm a ver com a subtracção aos olhares e ao acesso 
 dos outros da esfera espacial onde se desenrola a vivência doméstica e familiar 
 da pessoa, onde ela, no recato de um espaço vedado a estranhos, pode exprimir 
 livremente o seu mais autêntico modo de ser e de agir.
 
             Dando conta desta identificação do domínio protegido com a esfera da 
 intimidade do ente humano, afirmou-se no Acórdão n.º 67/97:
 
             «Parece incontroverso que o conceito constitucional de domicílio 
 deve ser dimensionado e moldado a partir da observância do respeito pela 
 dignidade da pessoa humana, na sua vertente de reserva da intimidade da vida 
 familiar – como tal conjugado com o disposto no n.º 1 do artigo 26.º da CR – 
 assim acautelando um núcleo íntimo onde ninguém deverá penetrar sem 
 consentimento do próprio titular do direito.»
 
             Não se ignora que, nos termos do n.º 2 do artigo 12.º da CRP, as 
 pessoas colectivas podem ser titulares de direitos fundamentais, desde que 
 compatíveis com a sua natureza. E não custa reconhecer que o direito à 
 privacidade não é incompatível, em absoluto, com a natureza própria das pessoas 
 colectivas, pelo que a titularidade desse direito não lhes pode, a priori, e em 
 todas dimensões, ser negada.
 
             Mas, como acentua Jorge Miranda, reportando‑se, em geral, à 
 titularidade «colectiva» de direitos fundamentais, «daí não se segue que a sua 
 aplicabilidade nesse domínio se vá operar exactamente nos mesmos termos e com a 
 mesma amplitude com que decorre relativamente às pessoas singulares» (Jorge 
 Miranda / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, Coimbra, 2005, 
 
 113). É esta uma orientação firme, tanto da doutrina (cf., também, Gomes 
 Canotilho / Vital Moreira, ob. cit., 331, e Vieira de Andrade, Os direitos 
 fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª ed., Coimbra, 2007, 
 
 126-127), como da jurisprudência (cf. os Acórdãos n.ºs 198/85 e 24/98).
 
             A susceptibilidade, em princípio, de extensão da tutela da 
 privacidade às pessoas colectivas não implica, pois, que ela actue, nesse campo, 
 em igual medida e com a mesma extensão com que se afirma na esfera da 
 titularidade individual. Dessa tutela estarão excluídas, forçosamente, as 
 dimensões nucleares da intimidade privada, que pressupõem a personalidade 
 física.
 
             É o que acontece com a inviolabilidade do domicílio, uma 
 manifestação particular e qualificada da tutela da intimidade da vida privada, 
 dirigida, como vimos, à realização da personalidade individual e ao resguardo da 
 dignidade da pessoa humana.
 
             E, não estando em causa uma invasão do domicílio, a autorização 
 prévia do Ministério Público para as buscas é o bastante para excluir, sem 
 margem para dúvidas, estarmos perante uma «abusiva intromissão na vida privada» 
 
 (cf., nesse sentido, o Acórdão n.º 192/2001, citando o Acórdão n.º 7/87).
 
             É neste ponto, na exigência de despacho da autoridade judiciária 
 autorizativo da realização das diligências de busca «nas instalações das 
 empresas», que a lei da concorrência se afasta decisivamente da lei francesa, 
 em relação à qual foi proferido, em 16 de Abril de 2002, o acórdão do Tribunal 
 Europeu dos Direitos do Homem, no Affaire Colas, invocado pela recorrente em 
 defesa da sua tese.
 
             Como resulta da transcrição, no ponto 22, da legislação aplicável ao 
 caso, os agentes da direcção geral do comércio interior e dos preços tinham 
 
 «livre acesso às instalações que não constituam a habitação do comerciante», sem 
 qualquer controlo de uma entidade judiciária independente. Em face desses dados 
 normativos, o tribunal concluiu que a legislação e a prática francesas não 
 ofereciam «garantias adequadas e suficientes contra os abusos» (ponto 48), como 
 o exigia a tutela do domicílio, consagrada no artigo 8.º da CEDH.
 
             Não é essa, como se viu, a situação normativa vigente entre nós, em 
 que a salvaguarda da privacidade das pessoas colectivas está acautelada, na 
 justa medida, pela necessidade de autorização do Ministério Público, entidade a 
 quem cabe, nos termos constitucionais, «defender a legalidade democrática» 
 
 (artigo 219.º, n.º 1, da CRP).
 
             Pode, pois, concluir‑se que a interpretação normativa questionada 
 não viola o disposto nos artigos 34.º, nºs 1, 2, 3 e 4, e 32.º, n.º 8, da CRP.”
 
  
 
                         2.2. A questão da inconstitucionalidade, por violação 
 dos artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.º 4, ambos da CRP, da norma que resulta da 
 interpretação do artigo 17.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 18/2003 e do artigo 
 
 42.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 433/82, no sentido de que a correspondência 
 aberta (circulares, mensagens de correio electrónico e documentos anexos, 
 arquivados em computador ou impressos) pode ser apreendida e utilizada como meio 
 de prova em processo contra‑ordenacional.
 
                         No despacho do relator que determinou a apresentou de 
 alegações foi suscitado o não conhecimento desta questão por, nos locais 
 indicados pela recorrente, no requerimento de interposição de recurso, como 
 sendo aqueles em que teria suscitado tal questão perante o tribunal recorrido 
 
 (artigos 82.º, 85.º, 86.º, 90.º, 92.º e 110.º e conclusões XI, XII e XIII da 
 impugnação judicial endereçada ao Tribunal do Comércio de Lisboa), não ter 
 colocado nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa (não reportando a 
 normas de direito ordinário ou a qualquer interpretação dessas normas, 
 devidamente identificada, a violação de normas ou princípios constitucionais), 
 antes imputando directamente à actuação da AdC, em si mesma considerada, a 
 violação de comandos constitucionais.
 
                         Enquanto, nas alegações apresentadas, quer a AdC quer o 
 Ministério Público manifestam concordância com o não conhecimento desta parte do 
 recurso, pelo fundamento invocado, já a recorrente, admitindo embora não se ter 
 expresso provavelmente do modo mais feliz, sustenta ter suscitado, oportuna e 
 explicitamente, perante o tribunal a quo, a inconstitucionalidade, por violação 
 do artigo 34.º, n.º 4, da CRP, da interpretação de normas legais que identificou 
 
 (artigos 17.º, n.º 1, alínea c), da Lei da Concorrência e 42.º, n.º 1, do 
 Decreto‑Lei n.º 433/82), tendo tal questão de inconstitucionalidade normativa 
 sido entendida claramente pelo tribunal recorrido e por ele efectivamente 
 apreciada.
 
                         Na impugnação judicial do despacho da AdC, de 28 de 
 Março de 2007, que indeferira requerimento de arguição de nulidades, a 
 recorrente, a propósito da questão ora em causa, sintetizou a sua argumentação 
 nas seguintes conclusões (sendo certo que, no teor da impugnação, nada mais de 
 relevante se aduz para efeito da caracterização da questão suscitada como de 
 inconstitucionalidade normativa):
 
  
 
             “XI – Nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 34.º da CRP, a 
 inviolabilidade da correspondência e telecomunicações é, em sede de processos 
 contra‑ordenacionais, absoluta, tendo o legislador ordinário reafirmado a 
 abrangência desta tutela através de idêntica proibição constante do artigo 42.º, 
 n.º 1, do regime geral das contra‑ordenações e coimas aprovado pelo Decreto‑Lei 
 n.º 433/82, de 27 de Outubro.
 
             XII – Em processo contra‑ordenacional é, por conseguinte, proibido o 
 recurso a meios de prova mais gravosos, como a apreensão de correspondência ou a 
 ingerência nas telecomunicações, tendo as diligências de busca e apreensão 
 realizadas pela Autoridade da Concorrência violado o disposto no n.º 4 do artigo 
 
 34.º da CRP e no n.º 1 do artigo 42.º do regime geral das contra‑ordenações e 
 coimas.
 
             XIII – Para efeitos do disposto no n.º 4 do artigo 34.º da CRP e no 
 n.º 1 do artigo 42.º do regime geral das contra‑ordenações e coimas, o conceito 
 de correspondência deve ser interpretado em sentido amplo, abrangendo 
 correspondência «externa» bem como «interna», correspondência pessoal e 
 profissional, independentemente de a mesma se encontrar, ou não, ainda em 
 sobrescrito fechado.
 
             XIV – As buscas e apreensões efectuadas pela Autoridade da 
 Concorrência violam, também, os termos do próprio mandado de busca – na medida 
 em que este incorpora textualmente as limitações decorrentes dos artigos 32.º, 
 n.º 8, e 34.º, n.º 4, da CRP e 42.º do regime geral das contra‑ordenações e 
 coimas – bem como os limites temporais subjacentes à respectiva fundamentação.”
 
  
 
                         Como é patente, a recorrente não suscitou, quanto a este 
 ponto, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, não identificando 
 adequadamente qualquer critério normativo que reputasse violador da 
 Constituição, antes imputando esta violação directamente ao comportamento 
 procedimental da AdC, que desrespeitaria concomitantemente normas legais e 
 normas constitucionais.
 
                         Assim, por falta de adequada suscitação, pela 
 recorrente, perante o tribunal recorrido, da questão de inconstitucionalidade 
 agora em causa – o que constitui um requisito da sua legitimidade para recorrer 
 
 (artigo 72.º, n.º 2, da LTC), pelo que a sua falta é insusceptível de ser 
 considerada suprida pelo eventual conhecimento oficioso da questão na decisão 
 judicial impugnada –, dela não há que conhecer.
 
  
 
  
 
                         3. Decisão
 
                         Em face do exposto, acordam em:
 
                         a) Não julgar inconstitucional a norma que resulta da 
 interpretação do artigo 17.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, do Regime Jurídico da 
 Concorrência, aprovado pela Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, no sentido de 
 conferir competência ao Ministério Público para autorizar buscas à sede e 
 domicílio profissional de pessoas colectivas;
 
                         b) Não conhecer da questão da inconstitucionalidade da 
 norma que resulta da interpretação do artigo 17.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 
 
 18/2003 e do artigo 42.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, no 
 sentido de que a correspondência aberta (circulares, mensagens de correio 
 electrónico e documentos anexos, arquivados em computador ou impressos) pode ser 
 apreendida e utilizada como meio de prova em processo contra‑ordenacional; e, 
 consequentemente,
 
                         c) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão 
 recorrida, na parte impugnada.
 
                         Custas pela recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em 
 
 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
 Lisboa, 10 de Dezembro de 2008.
 Mário José de Araújo Torres 
 Benjamim Silva Rodrigues
 João Cura Mariano
 Joaquim de Sousa Ribeiro
 Rui Manuel Moura Ramos