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Processo n.º 62/07
 
 3ª Secção
 Relator: Conselheiro Vítor Gomes
 
  
 
                Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
 
  
 
  
 I - Relatório
 
  
 
 1. O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao 
 abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, 
 do despacho de 19 de Setembro de 2006, proferido pelo juiz do Tribunal Judicial 
 de Abrantes (3.º Juízo), no decurso da audiência de julgamento, em processo 
 comum (tribunal singular), do Processo n.º 53/05.5GCABT, do seguinte teor:
 
  
 
 “A testemunha A. esta validamente convocada para comparecer nesta audiência de 
 julgamento. Porém, faltou e não comunicou sequer ao Tribunal qualquer motivo 
 impeditivo dessa comparência. Por isso, à luz do artº 117º do C.P. Penal tem tal 
 falta de se considerar injustificada.
 Esta situação reúne os pressupostos formais de aplicação da norma plasmada no 
 artº 116º, nº 1 do C.P. Penal, de onde resultaria que a testemunha faltosa teria 
 de ser condenada no pagamento de uma soma entre 2 a 10 UCs.
 Contudo a testemunha faltosa foi arrolada pelo arguido e este prescindiu da 
 respectiva inquirição. Não se vislumbra qualquer necessidade, para o bom 
 julgamento da causa, em proceder à inquirição oficiosa dessa testemunha.
 Sendo assim, a interpretação do artº 116º, nº 1 do C.P.P., no sentido de que tem 
 o juiz obrigatoriamente de sancionar a testemunha faltosa no pagamento de soma 
 não inferior a 2 UCs, constitui uma interpretação normativa não consentida pela 
 Constituição da República Portuguesa, por violação do princípio da 
 proporcionalidade acolhido no artºs. 2º e 18º da Constituição. De resto, este 
 mesmo entendimento foi sufragado pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 
 
 184/06 de 8/3 do corrente ano, proferido no processo 559/05 da 2ª secção desse 
 Alto Tribunal.
 Pelo exposto, decido julgar validamente prescindida a inquirição da testemunha 
 A. e não a condenar no pagamento de qualquer soma prevista no n.º 1 do artº 116º 
 do C. P. Penal, por a norma aí contida ser inconstitucional por violação do 
 referido princípio da proporcionalidade quando interpretada no sentido de impor 
 ao juiz a condenação obrigatória do faltoso, cuja inquirição foi prescindida 
 validamente, no pagamento da soma entre 2 e 10 Ucs.”
 
  
 
  
 
 2. Ordenada a notificação para alegações, o Ministério Público alegou no sentido 
 da inconstitucionalidade da norma como foi interpretada, mas salientando ser 
 lícito questionar se, tendo presente o disposto no n.º 6 do artigo 651.º do 
 Código de Processo Civil, não bastaria proceder a uma “decisão interpretativa” 
 que fixasse à norma um sentido em causa em conformidade com a Constituição, 
 concluindo do seguinte modo:
 
  
 
 “1 – A norma constante do artigo 116° do Código de Processo Penal deve ser 
 interpretada em conformidade com a Constituição, não comportando o 
 sancionamento, com multa processual, da testemunha faltosa que foi válida e 
 regularmente prescindida pela parte ou sujeito processual que a arrolou, sem que 
 o juiz haja determinado a sua comparência para inquirição oficiosa.
 
 2 – Na verdade, neste caso seria desproporcionada a imposição de multa a quem, 
 com a sua falta, nenhum prejuízo determinou para o andamento do processo, 
 constituindo “justificação” da falta a própria declaração de renúncia à 
 inquirição.”
 
  
 
  
 
                   A testemunha condenada em multa, cuja notificação para alegar 
 o relator ordenou por considerá-la directamente interessada no recurso de 
 constitucionalidade, nada disse.
 
  
 
  
 II- Fundamentos
 
  
 
 3. Dispõe o artigo 116.º do Código de Processo Penal:
 
  
 
 “Artigo 116.º
 
 (Falta injustificada de comparecimento)
 
  
 
 1. Em caso de falta injustificada de comparecimento de pessoa regulamentarmente 
 convocada ou notificada, no dia, hora e local designados, o juiz condena o 
 faltoso ao pagamento de uma soma entre duas e dez UCs.
 
 2. Sem prejuízo do disposto no número anterior, o juiz pode ordenar, 
 oficiosamente ou a requerimento, a detenção de quem tiver faltado 
 injustificadamente pelo tempo indispensável à realização da diligência e, bem 
 assim, condenar o faltoso ao pagamento das despesas ocasionadas pela sua não 
 comparência, nomeadamente das relacionadas com notificações, expediente e 
 deslocação de pessoas. Tratando-se do arguido, pode anda ser-lhe aplicada medida 
 de prisão preventiva, se esta for legalmente admissível.
 
 3. Se a falta for cometida pelo Ministério Público ou por advogado constituído 
 ou nomeado no processo, dela é dado conhecimento, respectivamente, ao superior 
 hierárquico ou à Ordem dos Advogados.
 
 4. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 68.º, n.º 5.”
 
  
 
                   Sobre a justificação versa o artigo seguinte do Código que 
 preceitua:
 
  
 
 “Artigo 117º
 
 (Justificação da falta de comparecimento)
 
  
 
 1. Considera-se justificada a falta motivada por facto não imputável ao faltoso 
 que o impeça de comparecer no acto processual para que foi convocado ou 
 notificado.
 
 2. A impossibilidade de comparecimento deve ser comunicada com cinco dias de 
 antecedência, se for previsível, e no dia e hora designados para a prática do 
 acto, se for imprevisível. Da comunicação consta, sob pena de não justificação 
 da falta, a indicação do respectivo motivo, do local onde o faltoso pode ser 
 encontrado e da duração previsível do impedimento.
 
 3. Os elementos de prova da impossibilidade de comparecimento devem ser 
 apresentados com a comunicação referida no número anterior, salvo tratando-se de 
 impedimento imprevisível comunicado no próprio dia e hora, caso em que, por 
 motivo justificado, podem ser apresentados até ao 3.º dia útil seguinte. Não 
 podem ser indicadas mais de três testemunhas.
 
 4. Se for alegada doença, o faltoso apresenta atestado médico especificando a 
 impossibilidade ou grave inconveniência no comparecimento e o tempo provável de 
 duração do impedimento. A autoridade judiciária pode ordenar o comparecimento do 
 médico que subscreveu o atestado e fazer verificar por outro médico a veracidade 
 da alegação da doença.
 
 5. Se for impossível obter atestado médico, é admissível qualquer outro meio de 
 prova.
 
 6. Havendo impossibilidade de comparecimento, mas não de prestação de 
 declarações ou de depoimento, esta realizar-se-á no dia, hora e local que a 
 autoridade judiciária designar, ouvido o médico assistente, se necessário.
 
 7. A falsidade da justificação é punida, consoante os casos, nos termos dos 
 artigos 260.º e 360.º do Código Penal.”
 
                   
 
  
 
 4. O despacho recorrido recusou aplicação à norma do n.º 1 do artigo 116.º, com 
 fundamento em violação do princípio constitucional da proporcionalidade, “quando 
 interpretada no sentido de impor ao juiz a condenação obrigatória do faltoso 
 cuja inquirição foi prescindida validamente”. Nas alegações que apresentou neste 
 Tribunal (cfr. conclusão 1ª), o Ministério Público introduziu um elemento mais 
 na hipótese normativa, o que, primo conspectu, tem o efeito de restringir o 
 
 âmbito (a extensão) da norma que é objecto de censura de inconstitucionalidade. 
 A censura de desproporcionalidade é referida a uma hipótese integrada por duas 
 condições de verificação cumulativa: (i) ter o sujeito processual que arrolou a 
 testemunha prescindido da sua inquirição e (ii) não ter o juiz determinado 
 oficiosamente essa inquirição. Nesta formulação, a desnecessidade de comparência 
 da testemunha para os fins processuais, de onde se parte para o juízo de 
 desproporcionalidade da aplicação da sanção pela falta injustificada, não é o 
 resultado, apenas, da opção do sujeito processual que arrolou a testemunha e 
 agora prescinda dela, mas da concorrência deste acto da “parte” com um juízo do 
 tribunal, que também entende não ser necessário tomar depoimento à testemunha ao 
 abrigo do poder de ordenar oficiosamente todos os meios de prova cujo 
 conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão 
 da causa (cfr. artigo 340.º do Código de Processo Penal). 
 Sucede que esta divergência entre o sentido normativo que o despacho recorrido 
 enuncia e aquele que o Ministério Público propõe como objecto do recurso é 
 meramente aparente. Na verdade, o despacho recorrido recusou aplicação ao n.º 1 
 do artigo 116.º do CPP  numa situação definida por aqueles mesmos dois 
 elementos: ter quem indicou a testemunha prescindido da inquirição e não se 
 vislumbrar “ qualquer necessidade, para o bom julgamento da causa, em proceder à 
 inquirição oficiosa dessa testemunha”.
 Deste modo, considera-se que o objecto do recurso é a norma do n.º 1 do 
 artigo116.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a 
 testemunha que não justifique a falta tem de ser sancionada, mesmo que o sujeito 
 processual que a arrolou prescinda do respectivo depoimento e o juiz não 
 determine oficiosamente a inquirição.
 
  
 
  
 
 5. Como a decisão recorrida e as alegações do Ministério Público dão notícia, a 
 questão que no presente recurso se discute foi objecto de apreciação pelo 
 Tribunal Constitucional no acórdão n.º 184/2006, publicado no Diário da 
 República, II Série, de 17 de Abril de 2006, que concluiu pela 
 inconstitucionalidade da norma em causa. 
 Entendeu-se, então, que não seria aceitável uma solução que implicasse a 
 aplicação necessária de uma sanção a uma testemunha faltosa, mas da qual o 
 sujeito processual que a indicou prescindiu e cujo depoimento o Tribunal não 
 considerou necessário à descoberta da verdade. Traduzir-se-ia, tal 
 interpretação, numa violação do princípio da proporcionalidade ínsito no 
 princípio do Estado de direito, e colidiria ainda com os princípios de 
 celeridade, de economia processual e de proibição da prática de actos inúteis, 
 já que levaria a comparecer em audiência um interveniente cuja participação no 
 processo nenhuma razão justifica. E conclui-se “pela inconstitucionalidade do 
 artigo 116º, nº 1, do Código de Processo Penal, por violação do princípio da 
 proporcionalidade resultante dos artigos 2º e 18º da Constituição, interpretado 
 no sentido de determinar a aplicação obrigatória de uma sanção processual à 
 testemunha faltosa da qual o sujeito processual que a apresentou veio a 
 prescindir”.
 
  
 Afigura-se, porém, necessário reponderar a questão.
 
  
 
  
 
 6. Começa por reconhecer-se que se apresenta muito sustentável a interpretação 
 do regime de justificação das faltas de testemunhas em processo penal proposto 
 pelo Ministério Público e também admitido no acórdão n.º 184/2006 – embora se 
 tenha terminado por uma decisão positiva de inconstitucionalidade e não por uma 
 
 “interpretação conforme” susceptível d se impor ao tribunal da causa ao abrigo 
 do n.º 3 do artigo 80.º da LTC –, que procede à integração desse regime com 
 recurso às normas que, em situações semelhantes no processo civil, dispensam a 
 justificação da falta e, consequentemente, afastam o sancionamento do faltoso 
 independentemente da prova da razão justificativa da não comparência (cfr. n.º 6 
 do artigo 651.º e n.º 5 do artigo 629.º do Código de Processo Civil).
 
                   Todavia, para que o Tribunal adoptasse tal interpretação ou 
 integração do direito ordinário, num recurso de fiscalização concreta de 
 constitucionalidade, em termos de poder impor-se ao tribunal da causa na reforma 
 da decisão (artigo 80.º, n.º 3, da LTC), mais a mais não podendo a leitura que o 
 tribunal a quo fez da norma considerar-se jurisprudencialmente desgarrada (cfr. 
 p. ex. ac. da Relação de Évora, de 4 de Setembro de 2000, Colectânea de 
 Jurisprudência, Ano XXV, Tomo IV, págs. 277 e segs.), necessário seria que tal 
 sentido, ainda comportável pelos demais elementos de interpretação, se impusesse 
 para evitar a inconstitucionalidade da norma na interpretação sujeita a 
 apreciação.
 
  
 
  
 
 7. A “soma “ referida no n.º 1 do artigo 116.º do CPP, embora as finalidades 
 próprias do direito processual penal possam influir no respectivo regime, 
 designadamente quanto aos termos da justificação da falta para que é cominada e 
 ao seu montante, é uma sanção pecuniária com a mesma natureza das demais multas 
 processuais. 
 A propósito deste tipo de sanções pecuniárias disse o Tribunal no acórdão n.º 
 
 315/92, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23.º vol., pág. 323 (cfr. tb. o 
 acórdão n.º 680/2004, in www.tribunalconstitucional. pt):
 
  
 
 “Se a doutrina processual civil se refere a elas (às multas processuais), por 
 vezes, como «penas», é porque utiliza esta expressão amplamente, em sinonímia 
 com «sanções punitivas» (assim, Manuel de Andrade, Noções Elementares de 
 Processo Civil, com a colaboração de Antunes Varela, edição revista e 
 actualizada por Herculano Esteves, 1976, p.354, e Alberto dos Reis, Código de 
 Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª ed., reimpressão, 1981, p.261)
 As sanções processuais são cominadas para ilícitos praticados no processo, cujo 
 adequado desenvolvimento visam promover. Com a sua estatuição, pretende-se, 
 conforme os casos, obter a cooperação dos particulares com os serviços 
 judiciais, impor aos litigantes uma conduta que não prejudique a acção da 
 justiça ou ainda assegurar o respeito pelos Tribunais.
 
 (...)
 Mas as multas processuais (...) constituem sanções indiscutivelmente estranhas 
 ao direito disciplinar e ao direito de mera ordenação social.
 O direito disciplinar caracteriza-se pela existência de um poder hierárquico que 
 o tribunal não possui, evidentemente, quando aplica multas processuais às partes 
 ou a outros intervenientes no processo. Tão pouco o direito de mera ordenação 
 social, que se distingue do direito penal, tendencialmente, «... pela natureza 
 dos respectivos bens jurídicos...(e) ... pela desigual ressonância ética» e, 
 decisivamente, através da qualificação feita pelo próprio legislador (cfr. o 
 preâmbulo do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro), pode abranger as multas 
 processuais - sanções historicamente anteriores e não filiadas no direito 
 penal.”
 
  
 
  
 Todavia, sob esta designação comum, abrigam-se sanções pecuniárias com 
 finalidades e pressupostos muito diversos. Assim, as multas destinadas a 
 garantir o cumprimento do dever geral de colaboração para a descoberta da 
 verdade, designadamente por parte daqueles que devam prestar elementos de prova 
 ou sujeitar‑se aos meios da sua obtenção, distinguem-se claramente daquelas que 
 são aplicadas às partes para garantir a boa ordenação do processo, de que são 
 exemplo a multa pela prática de actos fora do prazo normal (n.º 5 do artigo 
 
 145.º do CPC) e a multa pela apresentação tardia de documentos (n.º 2 do artigo 
 
 523.º do CPC). A cominação de multas para factos do primeiro tipo previne e 
 reprime o não acatamento injustificado do dever de colaboração com os tribunais, 
 encontrando uma justificação que não se confina à frustração imediata dos fins 
 para que, naquele processo concreto, é solicitada a colaboração. As multas 
 cominadas para situações do segundo tipo são um modo de suavizar o efeito do 
 incumprimento dos prazos para a prática de actos que se traduzem em verdadeiros 
 
 ónus processuais, nisso se esgotando a sua finalidade.
 
  
 
  
 
                   8. A soma cujo pagamento é imposto ao abrigo do n.º 1 do 
 artigo 116.º do CPP para a falta injustificada de comparecimento de pessoa 
 regularmente notificada ou convocada para acto do processo penal sanciona um 
 comportamento que, em extremo rigor, poderia integrar crime de desobediência, 
 mas ao qual a lei tradicionalmente confere tratamento privilegiado, 
 sancionando-o expeditamente com uma multa processual, aplicável mediante um 
 incidente simplificado (Cfr., a propósito de mecanismo sancionatório semelhante 
 que já constava do artigo 91.º do Código de Processo Penal de 1929, o Parecer 
 n.º 98/78, da Procuradoria-Geral da República, publicado no Boletim do 
 Ministério da Justiça, n.º 284, págs. 30 e segs.).
 
  
 
                   O fim imediato desta sanção é reprimir o incumprimento do 
 dever de colaboração para que o agente é solicitado no âmbito de um concreto 
 processo. Dever esse a cujo cumprimento o faltoso pode, aliás, ser judicialmente 
 coagido (n.º 2 do artigo 116.º do CPP e alínea f) do n.º 3 do artigo 27.º da 
 CRP; cfr., quanto ao processo civil, n.º 2 do artigo 519.º do CPC). 
 Mas a sanção cumpre também um fim de prevenção geral, intimidando os potenciais 
 infractores e contribuindo para instilar na comunidade a consciência da 
 efectividade desse dever, minorando a perniciosa repercussão da generalização de 
 uma atitude de desrespeito pelas convocatórias dos tribunais na tarefa 
 fundamental do Estado de administrar justiça. Esta preocupação em atacar o que 
 era identificado como um dos pontos críticos da morosidade da justiça penal 
 tornou-se evidente com as novas regras de justificação das faltas em processo 
 penal, introduzidas no artigo 117.º do CPP pela Lei n.º 55/98, de 25 de Agosto. 
 Avulta neste regime a imposição de que a falta seja comunicada com cinco dias de 
 antecedência, se for previsível, ou no dia e hora designados para a prática do 
 acto, se imprevisível, e não em momento posterior à falta, como era tradicional 
 
 (Outro aspecto em que se verificou inovação, para o presente recurso 
 irrelevante, consiste em ter deixado de se fazer referência aos critérios de 
 justificação da falta por remissão para o regime substantivo de exclusão da 
 ilicitude e da culpa, o que pode ser interpretado como alargando a margem de 
 apreciação judicial das razões justificativas da não comparência).
 
  
 
                   É neste contexto que se há-de ver se o sancionamento da 
 testemunha regularmente convocada e que não justifica a falta, mas cujo 
 depoimento é considerado prescindível tanto pelo sujeito processual que a 
 arrolou como pelo tribunal, viola o princípio da proibição do excesso, 
 concretizador do princípio do Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da 
 Constituição.
 
  
 
  
 
                   9. A colaboração dos cidadãos na administração justiça, que se 
 desdobra nos deveres de testemunhar, de intervir como perito, de participar no 
 tribunal do júri e intervenções ocasionais semelhantes (com ressalva dos casos 
 de recusa legítima), corresponde a um dever fundamental dos cidadãos para com o 
 Estado, de conteúdo cívico-político. Afigura-se lícito extrair essa 
 fundamentalidade da expressa autorização constitucional para impor o cumprimento 
 coercivo de tal dever (rectius, da imposição coactiva de um dever prodrómico 
 desse dever de colaboração, que é o dever de comparência perante as autoridades 
 judiciárias quando a pessoa é regularmente convocada – alínea f) do n.º 3 do 
 artigo 27.º da CRP), o que pressupõe o seu implícito reconhecimento 
 constitucional. De todo modo, mesmo quem assim não entenda não negará carácter 
 de dever legal fundamental ao dever de colaborar na administração da justiça 
 
 (Parece ser esta a opinião de Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria 
 da Constituição, 7.ª ed., pág. 534 e de José Casalta Nabais, O Dever Fundamental 
 de Pagar Impostos, pág. 94). 
 Efectivamente, quanto à finalidade imediata de alguns modos de colaboração (v. 
 gr., como perito, depositário e semelhantes), ainda seria teoricamente 
 conjecturável uma organização pública ou contratualizada de serviços que 
 permitisse à administração da justiça funcionar sem recurso a esses modos de 
 colaboração ocasional do cidadão. Mas isso seria absolutamente impossível 
 relativamente à modalidade de colaboração que é a prestação de depoimento como 
 testemunha (artigo 131.º do CPP). Pode reduzir-se a onerosidade da intervenção 
 na qualidade de testemunha (v. gr., mediante a prestação de depoimento por 
 vídeo-conferência ou outros modos que não exijam a presença no tribunal da 
 causa), mas não pode eliminar‑se o dever porque não pode cumprir-se a tarefa 
 constitucional dos tribunais sem o respectivo reconhecimento. A disciplina 
 jurídica e os aspectos organizacionais que se dirijam a obviar ou reduzir as 
 causas de adiamento das diligências – por exemplo, o maior rigor quanto aos 
 termos de justificação das faltas – serão mesmo um instrumento para tornar 
 globalmente menos oneroso o dever de colaboração. Mas não se concebe que possa 
 prescindir-se da imposição de comparência perante as autoridades judiciárias por 
 parte de quem deva prestar depoimento, porque esse é um meio de prova sem o qual 
 a instrução e o julgamento das causas é, geralmente, impossível. E não pode 
 deixar de estabelecer-se o adequado e expedito sancionamento dos faltosos, pois 
 de outro modo a imposição do dever não teria eficácia. 
 
  
 
  
 
 10. Reentrando no caso, é exacto que, numa situação em que esteja adquirido que 
 nenhum dos sujeitos processuais – nem aquele que a indicou, nem o tribunal por 
 sua iniciativa – consideram necessário inquirir a testemunha arrolada, a sua 
 falta de comparência na audiência de julgamento, apesar de regularmente 
 convocada, não se repercute na descoberta da verdade, na boa decisão da causa, 
 ou na marcha do processo. Se a testemunha tivesse comparecido, seria mandada 
 embora sem prestar depoimento, pelo que a deslocação ao tribunal teria 
 constituído um sacrifício (pelo menos de tempo ou de disponibilidade pessoal) 
 sem qualquer utilidade para os fins endo-processuais Nestas circunstâncias, a 
 sanção para a falta injustificada de comparência não pode encontrar fundamento 
 na necessidade de assegurar o cumprimento do dever de colaboração com os 
 tribunais, como testemunha, na administração da justiça penal (artigo 131.º do 
 Código de Processo Penal: dever de testemunhar) porque essa colaboração é, em 
 concreto e por definição, desnecessária. Assim, se identificarmos o bem jurídico 
 tutelado mediante a cominação da multa para a falta injustificada apenas com a 
 utilidade da comparência para os fins processuais em função da qual foi 
 concretamente ordenada, é compreensível que se considere a imposição dessa 
 sanção, na hipótese considerada, como violando o princípio da proporcionalidade. 
 
 
 
                   Com efeito, o princípio da proibição do excesso postula que, 
 entre o conteúdo da decisão estadual (a norma que manda sancionar a testemunha 
 que não justificou a falta) e o fim que ela prossegue haja sempre um equilíbrio, 
 uma ponderação e uma justa medida. As vantagens (obtidas por todos) através da 
 medida estadual devem ser proporcionais às desvantagens que tal medida tenha 
 eventualmente causado a alguns membros da comunidade jurídica, de tal modo que o 
 peso da decisão pública nunca venha a exceder o quantum requerido pela 
 prossecução do seu fim (maria lúcia amaral, A Forma da República, pág 186). 
 Deste modo, se o fim específico da imposição do pagamento de uma soma entre duas 
 e dez UCs fosse exclusivamente assegurar a satisfação da necessidade de 
 comparência da testemunha no concreto processo para que foi indicada, obrigá-la 
 a justificar a falta a um acto para que a sua presença teria sido inútil – 
 portanto, retrospectivamente, a convocatória objectivamente injustificada – e 
 impor-lhe uma sanção por não ter comparecido nem justificado a falta, seria 
 impor-lhe um encargo desnecessário, incompatível com o princípio geral de 
 limitação do poder público que se ancora no princípio do Estado de direito 
 
 (artigo 2.º da CRP).
 
  
 
  
 
                   11. Todavia, a norma que manda impor ao faltoso o pagamento de 
 uma “soma” não se destina, ou não se destina apenas, a reprimir a falta em 
 função do resultado concreto, mas a sancionar a desobediência à ordem de 
 comparência, enquanto conduta potencialmente lesiva da boa administração da 
 justiça, que transcende esse resultado ou o perigo concreto. 
 Pretende-se, por um lado, mediante a imposição do dever de comunicação 
 antecipada da causa impeditiva de comparência previsível, habilitar o tribunal 
 
 (ou a autoridade judiciária) com informação atempada que lhe permita reorganizar 
 o serviço e reduzir, até onde for possível, as consequências negativas da falta, 
 seja para o serviço em geral, seja para os restantes intervenientes processuais. 
 E visa-se, concomitantemente, criar na comunidade em geral a convicção na 
 efectividade da norma que estabelece o dever de testemunhar e, para tanto, de 
 comparecer no local e na data determinados pela autoridade que dirige o 
 processo.
 Perante esta plurifuncionalidade do dever de justificação das faltas e da 
 correspondente imposição do pagamento da “soma” prevista no n.º 1 do artigo 
 
 116.º do CPP, quando a testemunha não comparece nem justifica a falta ao acto 
 para que foi regularmente convocada, não pode afirmar-se que a norma em causa 
 viole o princípio da proporcionalidade. A exigência de justificação para a não 
 comparência e a correspondente sanção pecuniária quando a testemunha falta sem 
 justificação, mesmo que, em concreto, a falta não tenha tido reflexos na prática 
 do acto, reafirma comunitariamente a norma que estabelece o dever de comparecer 
 perante a autoridade judiciária para prestar depoimento. 
 
  
 Embora a regra essencial seja  a de que só devem existir os deveres necessários 
 e na medida necessária para a salvaguarda dos direitos fundamentais ou de 
 interesses constitucionalmente protegidos, encontrado um interesse 
 constitucional que ainda suporta a imposição do dever de comparência ou 
 justificação da ausência e para cujo incumprimento a sanção pecuniária se 
 apresenta adequada e não excessiva, cabe na discricionariedade legislativa optar 
 por exigir sempre a justificação por parte do interessado ou dispensá-la quando 
 a falta não tenha repercussão no acto processual, consoante a maior ou menor 
 prevalência que o legislador dê à necessidade de prevenção geral e a avaliação 
 que faça sobre as vantagens e desvantagens para os cidadãos e para o próprio 
 funcionamento dos tribunais (a celeridade, a economia processual, a relação 
 custo-benefício ) na imposição desse ónus de justificação. 
 A cominação da sanção pecuniária mesmo nas circunstâncias da hipótese normativa 
 em apreciação – a adequação e a proporcionalidade da medida em sentido estrito 
 não estão em dúvida – traduz uma opção do legislador por um modelo de 
 relacionamento entre as autoridades judiciárias e os intervenientes acidentais 
 de pendor mais autoritário ou de maior rigor dogmático (todo o cidadão convocado 
 deve comparecer ou justificar a falta, sob pena de sanção), em contraposição a 
 um modelo mais pragmático adoptado em processo civil (não tem utilidade 
 justificar a falta, se esta não teve consequências), que não é manifestamente 
 desrazoável face aos fins próprios do processo penal e que não cabe ao juiz 
 constitucional censurar. Isto na pressuposição, relembra-se, da bondade da 
 interpretação adoptada, que é domínio exclusivo do tribunal da causa.
 
  
 Em conclusão, não pode considerar-se que a norma do n.º 1 do artigo 116.º do 
 Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a testemunha que 
 não justifique a falta tem de ser condenada ao pagamento de uma soma entre duas 
 e dez UCs, ainda que o sujeito processual que a arrolou prescinda do respectivo 
 depoimento e o juiz não determine oficiosamente a inquirição, viole o princípio 
 da proibição do excesso, enquanto subprincípio caracterizador do princípio do 
 Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição.
 
  
 
                   12. Decisão
 
  
 
                   Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso e 
 ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o agora decidido 
 sobre a questão de constitucionalidade.
 
                   Sem custas.
 Lisboa, 25 de Setembro de 2007
 Vítor Gomes
 Carlos Fernandes Cadilha
 Maria Lúcia Amaral
 Ana Maria Guerra Martins (Vencida com os fundamentos
 constantes do acórdão n.º 184/06).
 Gil Galvão