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Processo n.º 1063/07
 
 3ª Secção
 Relator: Conselheiro Vítor Gomes
 
 
 
 
 I. RELATÓRIO
 
  
 
 1. A., foi condenado pela prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo 
 artigo 181.º do Código Penal, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 
 
 10,00, no total de € 500,00, bem como ao pagamento ao demandante B. da quantia 
 de € 1.500,00, a título de indemnização por danos morais.
 
  
 Desta decisão interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, 
 invocando, além do mais, a inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 
 
 134.º do Código de Processo Penal, por violação do n.º 1 do artigo 32.º da 
 Constituição, quando interpretado no sentido de que a testemunha pode recusar-se 
 a depor, apesar de ter sido o arguido quem a arrolou.
 
  
 O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 19 de Setembro de 2007, decidiu 
 rejeitar o recurso, por manifestamente improcedente.
 
  
 
 2. O arguido interpôs recurso deste acórdão, nos termos de fls. 527/528 e 533, o 
 qual foi admitido para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 
 
 1 do artigo 70.º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, para apreciação da norma do 
 artigo 134.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido que 
 permita a sua aplicação sendo a testemunha arrolada pelo arguido, por violação 
 do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
 
  
 
 3. Nas respectivas alegações, o recorrente sustenta as seguintes conclusões:
 
  
 
 «1. O ora recorrente entende que a norma ínsita no CPP art.134.º, n.º 1. al. a), 
 sempre que interpretada de forma que permita a sua aplicação quando a testemunha 
 
 é arrolada pelo arguido, é inconstitucional por violação do princípio consagrado 
 na CRP art.32.º, n.º 1. 
 
 2. Deste modo, a lei pretende evitar que a testemunha se debata no dilema que se 
 lhe poderia apresentar e que se traduz por este binómio: dever de lealdade à 
 verdade; e dever de lealdade aos afectos. 
 
 3. Simplesmente, esta teleologia, no caso em apreço, e pelas mesmíssimas razões 
 válidas para o quod plerumque accidit, impõe solução diferente. 
 
 4. Uma vez que é propósito do legislador que a testemunha não tenha de escolher 
 entre faltar à verdade para não trair o arguido; ou prejudicar este por amor à 
 verdade, não faz sentido que a testemunha se possa recusar a depor quando é 
 arrolada pelo arguido. 
 
 5. É clara a mensagem do arguido, nestas circunstâncias: as declarações 
 verdadeiras por parte da testemunha só irão beneficiá-lo; e o prejuízo só poderá 
 surgir do silêncio da mesma. 
 
 6. Consentir que a testemunha arrolada pelo arguido se recuse a depor, ao abrigo 
 de uma regalia prevista para o comum dos casos, é o mesmo que autorizá-la a 
 negar-se ao cumprimento do dever geral de testemunhar, o que repugna porque só o 
 arguido sabe o que tem a ganhar com o depoimento da testemunha por ele arrolada. 
 
 
 
 7. Isto permite a completa subversão da ratio legis. 
 
 8. A testemunha não arrolada pelo arguido pode achar-se dividida entre o dever 
 de lealdade à verdade e o dever de lealdade aos afectos. 
 
 9. Mas já a testemunha arrolada pelo arguido não tem de sentir estes escrúpulos 
 porque o arguido é que sabe as razões, que tinha, quando a arrolou. 
 
 10. Nestes casos, deixar a testemunha decidir o que é melhor para o arguido, é 
 pôr o destino deste nas mãos daquela. 
 
 11. Imagine-se esta situação bem possível: A testemunha sabe que um seu 
 depoimento verdadeiro vai beneficiar o arguido. No entanto, não quer isso. Mas 
 também não envereda pela mentira, com temor das sanções penais que possa vir a 
 sofrer. Perdida, acaba por se agarrar à faculdade concedida por lei. 
 
 12. Eis aqui consumada a alegada subversão da finalidade da norma. 
 
 13. Norma que existe para sossego da testemunha dividida entre dois deveres 
 ponderosos e atendíveis, mas nunca como valha couto de um comportamento 
 censurável.»
 
  
 O Ministério Público contra-alegou, concluindo pela não inconstitucionalidade da 
 norma do artigo 134.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando interpretada 
 no sentido de que a sua aplicação não é afastada no caso de a testemunha ter 
 sido indicada pelo arguido, e pela improcedência do recurso. 
 
  
 O assistente B. não contra-alegou.
 
  
 Cumpre decidir:
 
  
 II. FUNDAMENTOS
 
  
 
 4. O artigo 134.º do Código de Processo Penal, na redacção aplicável aos autos 
 
 (anterior à alteração introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 27 de Agosto, que 
 aditou na alínea b)  do  n.º1 a expressão “sendo do mesmo ou de outro sexo”) 
 tinha o seguinte teor:
 
  
 Artigo 134.º
 
 (Recusa de parentes e afins)
 
 1. Podem recusar-se a depor como testemunhas:
 a)              Os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os afins até ao 
 segundo grau, os adoptantes, os adoptados e o cônjuge do arguido;
 b)             Quem tiver sido cônjuge do arguido, ou quem com ele conviver ou 
 tiver convivido em condições análogas às do cônjuge, relativamente a factos 
 ocorridos durante o casamento ou a coabitação.
 
 2. A entidade competente para receber o depoimento adverte, sob pena de 
 nulidade, as pessoas referidas no número anterior da faculdade que lhes assiste 
 de recusarem depoimento.
 
  
 
             Em análise está, apenas, a norma do n.º 1 deste artigo, mais 
 precisamente da respectiva alínea a), enquanto permite a recusa das pessoas nele 
 mencionadas a depor como testemunhas, quando tenham sido arroladas pelo arguido. 
 No caso recusou-se a depor uma irmã do arguido, por este arrolada como 
 testemunha, num processo por crime de injúrias em que é ofendido e assistente um 
 outro seu irmão.
 
  
 
             Entende o recorrente que uma tal faculdade de recusar a prestação de 
 depoimento, que é concedida à testemunha que se debata entre o dever de lealdade 
 
 à verdade e o dever de lealdade aos afectos, não faz sentido quando a mesma é 
 arrolada pelo próprio arguido e viola os seus direitos de defesa em processo 
 penal. Um tal entendimento ancora-se na ideia de que é ao arguido que compete 
 decidir qual a melhor estratégia a seguir na sua defesa e que é ele quem sabe o 
 que tem a ganhar com o depoimento da testemunha por si arrolada.
 
  
 
             Outro foi o entendimento do acórdão recorrido, que concluiu pela não 
 inconstitucionalidade da norma em apreço, considerando estar em causa um direito 
 pessoal da testemunha por esta livremente exercido, estando justificada a 
 restrição ao direito de defesa do arguido pela necessidade de salvaguardar a 
 
 “dignidade da pessoa humana”.
 Neste sentido, escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte:
 
  
 
 «[…]
 
 8 – Sustenta também o arguido que o facto de a sua irmã, C., ter feito uso do 
 direito que lhe era conferido pelo artigo 134º, n.º 1, alínea a), do Código de 
 Processo Penal é ilegal por a testemunha ter sido por si arrolada, defendendo 
 que essa recusa importa uma inadmissível limitação do seu direito de defesa. 
 Entende que uma interpretação daquela norma que confira à testemunha esse 
 direito numa situação como a presente é inconstitucional por violação das 
 garantias de defesa consagradas no artigo 32º, n.º 1, da Lei Fundamental. 
 Salvo o devido respeito, entendemos que o direito conferido à testemunha pela 
 mencionada disposição legal é de natureza pessoal, razão pela qual só à própria 
 compete decidir sobre o seu exercício. Daí que não se justifique qualquer 
 interpretação restritiva da mesma. 
 A limitação ao direito de defesa que daí pode, eventualmente, decorrer é 
 constitucionalmente justificada pela necessidade de salvaguardar a dignidade da 
 pessoa humana (artigo 18º, n.º 2, da Constituição). 
 
  
 Tal norma, na indicada dimensão, não padece, por isso, de qualquer 
 inconstitucionalidade material. 
 
 […]»
 
  
 
 5. O artigo 134.º do Código de Processo Penal de 1987 surgiu na sequência da 
 supressão da distinção entre as figuras de testemunha e de declarante, que 
 existia no direito anterior (cf. artigo 214.º e segs. do Código de Processo 
 Penal de 1929), e do alargamento do princípio geral de que todas as pessoas 
 poderão depor como testemunha, com exclusão dos interditos por anomalia 
 psíquica, nos termos do artigo 131.º, e daqueles que estão legalmente impedidos 
 de prestar testemunho, em função do seu posicionamento processual (os arguidos, 
 assistentes e partes cíveis) ou por estarem sujeitos ao “dever de segredo”. 
 Insere-se num conjunto de situações típicas (cf. artigos 132.º, n.º 2, 134.º e 
 
 135.º) que, em derrogação do dever jurídico de prestar declarações que incumbe 
 
 às testemunhas [cf. artigo 132.º n.º 1, alínea d); dever penalmente censurado no 
 artigo 360º do Código Penal, em caso de falso testemunho], consagram o direito a 
 recusar depoimento (aliás, em algumas das hipóteses a recusa é um dever 
 profissional ou deontológico).
 Essas situações de legitimação da recusa a depor assentam em razões ou 
 fundamentos não inteiramente sobreponíveis, se bem que relativamente próximos. 
 
 «Trata-se, inter alia e fundamentalmente de: prevenir formas larvadas e 
 indirectas de auto-incriminação; preservar a integridade e a confiança nas 
 relações de maior proximidade familiar; proteger o alargado espectro de valores 
 individuais e supra-individuais pertinentes à área de tutela da incriminação da 
 violação de segredo profissional ou de segredos para este efeito equivalentes, 
 como, v. g., o segredo de ministro de religião; poupar as pessoas concretamente 
 envolvidas às situações dilemáticas de conflito de consciência de ter de 
 escolher entre mentir ou ter de contribuir para a condenação de familiares ou de 
 clientes» (M. Costa Andrade, “Bruscamente no verão passado”, a reforma do Código 
 de Processo Penal – Observações críticas sobre uma lei que podia e devia ter 
 sido diferente, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 137º, n.º 3950, 
 pág. 280). 
 A hipótese que agora se contempla, a possibilidade de recusa a prestar 
 depoimento por parte dos familiares, cônjuge e afins do arguido (bem como por 
 parte do ex-cônjuge de quem com ele conviver ou tiver convivido em condições 
 análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento 
 ou a coabitação), tem o propósito imediato de evitar situações em que tais 
 pessoas sejam postas perante a alternativa de mentir ou, dizendo a verdade, 
 contribuírem para a condenação do seu familiar. 
 Entendeu aqui a lei que o interesse público da descoberta da verdade no processo 
 penal deveria ceder face ao interesse da testemunha em não ser constrangida a 
 prestar declarações. Mas, além de pretender poupar a testemunha ao conflito de 
 consciência que resultaria de ter de responder com verdade sobre os factos 
 imputados a um arguido com quem tem parentesco ou afinidade próximos, o 
 legislador quer proteger as “relações de confiança, essenciais à instituição 
 familiar”. Como salienta Medina de Seiça (Comentário ao Acórdão do Supremo 
 Tribunal de Justiça, de 17 de Janeiro de 1996, “Prova Testemunhal. Recusa de 
 Depoimento de Familiar de um dos Arguidos em Caso de Co-Arguição”, na Revista 
 Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 6, Fasc. 3º, pág. 492 e 493):
 
  
 
 «Com o direito de recusa evidencia-se que, e digamo-lo com a conhecida fórmula 
 do Supremo Tribunal Alemão, «não é nenhum princípio da ordenação processual que 
 a verdade deva ser investigada a todo o preço» (…). De facto, embora a 
 descoberta da verdade constitua finalidade essencial de todo o processo penal 
 
 (…) e elemento fundamental para uma correcta administração da justiça, a qual, 
 enquanto vector essencial à manutenção da comunidade juridicamente organizada, 
 representa uma vertente informadora da própria ideia de Estado-de-Direito (…), a 
 eventual perda de prova com possível relevância para a descoberta da verdade 
 será de aceitar nos casos em que a sua aquisição se traduza na lesão de um bem 
 mais valioso. É o que sucede com o privilégio constante do artigo 134.°, n.º 1, 
 do CPP: a lei renuncia ao possível conhecimento probatório da testemunha, ou 
 melhor, renuncia aos meios de constrangimento destinados a obter o depoimento, 
 deixando nas mãos da testemunha a decisão de prestar declarações (… ). E para 
 que tal decisão seja efectivamente fruto de uma escolha livre e esclarecida a 
 lei impõe às entidades competentes para receber o depoimento, uma vez verificado 
 o laço familiar legalmente consignado, a obrigação de advertir a testemunha, 
 
 «sob pena de nulidade, da faculdade que lhes assiste de recusar o depoimento» 
 
 (artigo 134.°, n.º 2 do COO) (…). 
 Com o reconhecimento do direito de recusa pertencente aos familiares, a lei não 
 só pretendeu evitar o conflito de consciência que resultaria para a testemunha 
 caso tivesse de responder com verdade sobre os factos imputados a um familiar 
 seu. Pretendeu, ainda e sobretudo, proteger as “relações de confiança, 
 essenciais à instituição familiar”» 
 
  
 Esta é também a opinião de Costa Andrade que conclui não haver razões para se 
 afastar da teoria tradicional alemã na parte em que adscreve o primado no 
 programa de tutela destas proibições de prova aos interesses pessoais da 
 testemunha individualmente considerada ou na teia das relações de confiança e de 
 solidariedade que a instituição familiar oferece (M. Costa de Andrade, Sobre as 
 Proibições de Prova …, ob. cit. pág. 75 a 78):
 
  
 
 «Não faltam autores a interpretar determinadas proibições de prova como 
 obedecendo ao propósito de excluir meios de prova susceptíveis de pôr em perigo 
 a própria verdade. Neste sentido devem, segundo por exemplo Gössel – e ao 
 arrepio do que vem sendo o entendimento da jurisprudência e a opinião 
 maioritária dos autores – compreender-se proibições de prova como as que 
 resultam dos artigos 132.º, n.º 2 (Deveres gerais das testemunhas) e 134.º 
 
 (Recusa de parentes e afins) do CPP.
 Na Alemanha, e face ao § 55 da Strafprozessordnung (StPO) – de conteúdo 
 sensivelmente idêntico ao disposto no n.º 2 do artigo 132.º do CPP – a 
 jurisprudência e a doutrina dominante inclinam-se para o primado da tutela dos 
 direitos ou posições da própria testemunha. De acordo com o Tribunal Federal, 
 tratar-se-á, em primeira linha, de poupar à testemunha o conflito e o embaraço 
 de ter de depor contra si própria [Por todos, Schäfer, in Löwe/Rosenberg, 
 Einleitung, Cap. 14, Rn.54]. Na mesma linha se tem, em geral, interpretado e 
 aplicado o § 52 da StPO alemã, no fundamental correspondente ao artigo 134.º da 
 lei processual portuguesa e que reconhece à testemunha o direito de recusar 
 depoimento contra parentes ou afins. Para além de poupar à testemunha o conflito 
 de consciência, este preceito visará igualmente salvaguardar as relações de 
 confiança, essenciais à instituição familiar, aqui tratada como autónomo bem 
 jurídico, merecedor de tutela. «O direito de recusa – escreve Schäfer – não é 
 apenas outorgado por causa do conflito de consciência da própria testemunha mas 
 também para protecção da família do acusado. Nesta medida, a esfera jurídica do 
 acusado é directamente atingida quando, por falta do esclarecimento legalmente 
 exigido, uma testemunha sem formação jurídica não pode decidir livremente sobre 
 se deve ou não fazer uso do seu direito ao silêncio» [Schäfer, ob. cit., Rn 51]. 
 Na mesma direcção, acentua Grünwalg que este regime obedece à «ideia de que 
 ninguém deve ver-se obrigado a contribuir para levar os seus familiares à 
 prisão». Acresce a «necessidade que a pessoa tem de confiar nos seus parentes 
 mais próximos, sem ter de recear que o Estado» a obrigue a depor contra eles. 
 
 «Nesta medida – prossegue Grünwald – protege-se também o interesse da comunidade 
 na existência de relações de confiança entre os membros da mesma família» 
 
 [Grünwald, Juristenzeitung 1966, pág. 407]. Na síntese do tribunal Federal 
 
 [Bundesgerichtshof,St 11, 216], o direito da testemunha ao silêncio tem 
 subjacente «a consideração solícita (schonenden Rücksicht) pelos laços 
 familiares que ligam a testemunha e o acusado». Esta interpretação doutrinal e 
 jurisprudencial não deixa de enfatizar ao mesmo tempo o relevo da verdade 
 material. Só que lhe adscreve um plano secundário, reconhecendo-lhe, por isso, 
 uma tutela meramente reflexa. 
 Afastando-se deste entendimento tradicional e dominante, sustenta Gössel que só 
 na perspectiva do primado da verdade material poderá alcançar-se uma 
 interpretação correcta do direito de recusa de depoimento quer contra si próprio 
 quer contra parentes e afins (respectivamente, arts. 132.º, n.º 2, e 134.º do 
 CPP) [Cf., do autor, Neue Juristische Wochenschrift 1981, págs. 653 e 2219; 
 Goltdammer’s Archiv für Strafrecht 1991, págs. 488 e segs., e Bockelmann-Fs., 
 pág. 805. Já antes e no mesmo sentido, Eb. Schmidt, Juristenzeitung 1958, págs. 
 
 599 e segs.]. Tanto num caso como noutro, argumenta Gössel, uma «consideração 
 mais realista» obriga a concluir que estes «preceitos legais só podem ser vistos 
 como preordenados a evitar, no interesse da verdade, depoimentos marcados pelo 
 conflito» Neue Juristische Wochenschrift 1981, pág. 653; no mesmo sentido, 
 Goltdammer’s Archiv für Strafrecht 1991, págs. 489 e segs.].
 Não é nosso propósito assumir nesta sede uma posição definitiva sobre a 
 controvérsia. Sempre declinaremos a nossa convicção quanto ao bem fundado da 
 concepção tradicional na parte em que adscreve o primado no programa de tutela 
 destas proibições de prova aos interesses pessoais da testemunha, 
 individualmente considerada (art. 132.º, n.º 2), ou na teia das relações de 
 confiança e solidariedade que a instituição familiar oferece [Não cremos, em 
 qualquer caso, que possa considerar-se definitivo o argumento de GÖSSEL segundo 
 o qual a doutrina dominante não logra explicar o facto de ao parente ou afim 
 assistir a faculdade de renunciar ao direito de recusa de depoimento, dessa 
 forma atingindo a família ou a esfera jurídica do arguido (Bockelmann-Fs., pág. 
 
 805). O argumento é, pelo menos, neutralizado pela consideração invocada, v. g., 
 por Grünwalg, contra a tese do primado da procura da verdade. «Pois, refere o 
 autor, a verdade é que em caso de depoimento feito livremente, ele não deixa de 
 ser recebido, apesar do seu possivelmente escasso valor probatório» 
 
 (Juristenzeitung 1966, pág. 497). Para uma crítica da ideia da procura da 
 verdade como referente material geral das proibições de prova, Amelung, 
 Informationsbeherrschungsrechte, págs. 14 e segs.]. Uma interpretação cujo texto 
 do direito português se nos afigura claramente reforçado pelo teor dos 
 pertinentes dispositivos legais.»
 
  
 
 6. Aceite a ideia de que a razão de ser da norma é, não só a de obstar ao 
 conflito de consciência que resultaria para a testemunha de ter de responder com 
 verdade sobre os factos imputados a um seu familiar ou afim, mas também e 
 sobretudo proteger as relações de confiança e solidariedade, essenciais à 
 instituição familiar – verdadeiramente, é esta a sua raiz última –, importa 
 agora perguntar se este “direito ao silêncio” concedido à testemunha é 
 compatível com as garantias de defesa do arguido em processo criminal quando é 
 ele quem requer o depoimento da testemunha. De notar que não se trata de um meio 
 de prova que seja rejeitado por razões heurísticas (não se trata de uma situação 
 de incapacidade para testemunhar, de inidoneidade probatória, de uma genérica 
 configuração de tais testemunhos como não credíveis) tanto que, se a testemunha 
 optar por depor, as suas declarações ficam simplesmente sujeitas à regra da 
 livre valoração da prova.  
 
  
 
 6.1. O artigo 134.º do Código de Processo Penal concede, como se referiu, às 
 pessoas mencionadas no seu n.º 1 a faculdade de recusarem o depoimento sem 
 incorrerem em qualquer sanção. 
 
 É uma faculdade que a lei processual penal rodeia de cautelas destinadas a 
 permitir o seu efectivo exercício, impondo à entidade competente para receber o 
 depoimento o dever de advertir tais pessoas dessa faculdade, sob pena de 
 nulidade (cf. n.º 2). Com a imposição desta advertência (à semelhança do que 
 ocorre com dispositivos homólogos de outros ordenamentos: §52 da StPO germânica; 
 art.º 199 do Codice di Procedura Penale, art.º 416 da Ley de Enjuiciamento 
 Criminal) preocupou-se o legislador em assegurar que a opção da testemunha 
 decorra de uma decisão informada, pois só assim fica inteiramente salvaguardada 
 a faculdade – o direito ao silêncio – que, repete-se, lhe é conferida não só por 
 causa do seu íntimo conflito de consciência, mas também para protecção do mesmo 
 círculo familiar a que ela e o acusado pertencem.
 Argumenta o arguido que a ele cabe avaliar a vantagem para a sua defesa na 
 audição do seu familiar ou afim e que, ao ser indicada pelo próprio arguido, não 
 tem a testemunha que sentir-se dividida entre o dever de lealdade à verdade e o 
 dever de lealdade aos afectos.
 Mas as coisas não têm essa simplicidade.
 Sendo embora uma faculdade concedida à testemunha em função da sua relação com o 
 arguido, não é pela circunstância de o arguido “autorizar” o seu familiar ou 
 afim a depor que fica inteiramente afastado o constrangimento da testemunha 
 colocada entre o dever de responder com verdade às perguntas que lhe venham a 
 ser dirigidas (artigo 132.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal) e o 
 impulso afectivo ou o escrúpulo moral ou social em não contribuir para a 
 condenação do seu parente, cônjuge ou afim. Neste domínio prevalecem sentimentos 
 e representações pessoais e só a testemunha sabe o que teme ser chamada a dizer 
 e só ela pode avaliar, nesse plano moral ou sócio-afectivo, o que (ab immo 
 pectore) receia poder resultar do que tiver de dizer contra o arguido e é 
 susceptível de condicionar a sua decisão de prestar ou de recusar o depoimento.
 Pode ainda acrescentar-se que, obrigar a testemunha a prestar depoimento quando 
 
 é indicada pelo arguido, pode reverter numa forma de pressão sobre a testemunha 
 que, não querendo contribuir para a condenação do seu familiar, pode sentir-se 
 compelida a mentir. Uma testemunha particularmente sensível àqueles valores que 
 estão na base do regime de dispensa pode sentir-se coagida a faltar à verdade 
 por não se conseguir libertar do íntimo conflito afectivo ou da pressão 
 familiar, apesar de ser o arguido o sujeito processual que a coloca em tal 
 dilema. 
 
  
 
 6.2. É certo que no outro braço da ponderação está o direito à prova que, em 
 processo penal tem, quanto ao arguido, uma dimensão qualificada, como corolário 
 da imposição constitucional de que o processo assegure todas as garantias de 
 defesa. 
 Efectivamente, o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição contempla a garantia de que 
 
 “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o 
 recurso”, sendo entendimento uniforme da doutrina e da jurisprudência 
 constitucional que esta fórmula condensa não só todas as garantias de defesa que 
 estão contempladas nos demais números do mesmo artigo, como “também serve de 
 cláusula geral englobadora de todas as garantias de defesa que, embora não 
 explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção 
 global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal” (cf. 
 J. J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa 
 Anotada, Volume I, p. 516).  
 Como se disse no Acórdão nº 61/88 (publicado no Diário da República, II Série, 
 de 20 de Agosto e 1988):
 
  
 
 “Esta cláusula constitucional apresenta-se com um cunho «reassuntivo» e 
 
 «residual» - relativamente às concretizações que já recebe nos números seguintes 
 do mesmo artigo - e, na sua abertura, acaba por revestir-se, também ela, de um 
 carácter acentuadamente «programático». Mas, na medida em que se proclama aí o 
 próprio princípio da defesa, e portanto indubitavelmente se apela para um núcleo 
 essencial deste, não deixa a mesma cláusula constitucional de conter «um 
 eminente conteúdo normativo imediato a que se pode recorrer directamente, em 
 casos limite, para inconstitucionalizar certos preceitos da lei ordinária» (cfr. 
 Figueiredo Dias, A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os tribunais, p. 
 
 51; e acórdão nº 164 da Comissão Constitucional, apêndice ao Diário da 
 República, I série, de 31 de Dezembro de 1979).
 A ideia geral que pode formular-se a este respeito - a ideia geral, em suma, por 
 onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do princípio 
 da defesa, para além das consignadas nos nºs 2 e seguintes do artigo 32º - será 
 a de que o processo criminal há-de configurar-se como um due process of law, 
 devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas 
 processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento 
 inadmissível das possibilidades de defesa do arguido (assim, basicamente, cfr. 
 Acórdão nº 337/86, deste Tribunal, Diário da República, I Série, de 30 de 
 Dezembro de 1986)'.
 
  
 
             Tem de reconhecer-se que o direito de a testemunha recusar a 
 prestação de declarações mesmo quando indicada pelo arguido – esta extensão do 
 que podemos designar como segredo familiar – se materializa, em último termo, 
 numa restrição de uma das dimensões ou desdobramentos da garantia de defesa em 
 processo criminal conferida pelo n.º 1 do artigo 32.º da Constituição que é o 
 direito à prova, entendido como o poder de um sujeito processual representar ao 
 juiz a realidade dos factos que lhe é favorável e de exibir os meios 
 representativos desta realidade (Cf. J.J. GOMES CANOTILHO, Estudos Sobre 
 Direitos Fundamentais, 1.ª ed., pág. 170). Será essa limitação 
 constitucionalmente suportável, em homenagem à protecção da dignidade ou da 
 liberdade de conformação da personalidade da testemunha e da tutela da 
 instituição familiar?
 
  
 O direito de defesa do arguido em processo penal, não assume um carácter 
 absoluto. Desde logo, e no que respeita à matéria de prova, o direito de defesa 
 sofre as limitações decorrentes das proibições de prova nos termos do n.º 8 do 
 artigo 32.º da Constituição, que considera nulas as provas obtidas mediante 
 tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva 
 intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas 
 telecomunicações, o que impede a valoração da prova obtida por estes meios, 
 mesmo no interesse do arguido.  
 
             Como já se disse, o fundamento último da legitimidade da recusa a 
 depor por parte das pessoas indicadas no n.º 1 do artigo 134.º do CPP situa-se 
 no interesse da família enquanto elemento fundamental da sociedade e espaço de 
 desenvolvimento da personalidade dos seus membros (n.º1 do artigo 67.º da CRP), 
 cuja importância supera o interesse da punição dos culpados. A possibilidade de 
 um familiar próximo vir a ser constrangido a testemunhar contra outro perturba a 
 confiança, fundada no afecto ou nas projecções sociais sobre o afecto devido, 
 que é o cimento da coesão desse elemento básico da sociedade.
 
             Por este ângulo, o que a regra do n.º 1 do artigo 134.º protege, em 
 
 última linha, é a confiança e a espontaneidade inerentes à relação familiar, 
 prevenindo (enquanto desenho do sistema jurídico relativo a esse ambiente 
 privilegiado no qual as relações e as trocas de informação se devem desenvolver 
 sem receio de aproveitamento por terceiros ou pelo Estado) e evitando (quando, 
 perante um concreto processo, o risco passa de potencial a actual) que sejam 
 perturbadas pela possibilidade de o conhecimento de factos que essa relação 
 facilita ou privilegia vir a ser aproveitado contra um dos membros.         E 
 visa também – aliás, é essa a sua justificação de primeira linha – poupar a 
 testemunha ao angustioso conflito entre responder com verdade e com isso 
 contribuir para a condenação do arguido, ou faltar à verdade e, além de 
 violentar a sua consciência, poder incorrer nas sanções correspondentes. 
 Trata-se de uma forma de protecção dos escrúpulos de consciência e das 
 vinculações sócio-afectivas respeitantes à vida familiar que encontra apoio no 
 n.º 1 do artigo 67.º da Constituição e que outorga ao indivíduo uma faculdade 
 que se compreende no direito (geral) ao desenvolvimento da personalidade, também 
 consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, enquanto materialização do 
 postulado básico da dignidade da pessoa humana (Embora não pareça, como concluiu 
 o acórdão recorrido e afirma alguma doutrina, que possa ancorar-se directamente 
 na tutela da intimidade da vida privada. Os factos podem não ter outra ligação à 
 testemunha senão a circunstância de serem imputados ou interessarem à definição 
 da responsabilidade penal de um seu familiar (lato sensu) e mesmo assim existe 
 direito ao silêncio). 
 
  
 Sucede que, ainda que seja o arguido a indicar o seu familiar, cônjuge ou afim 
 como testemunha, o referido conflito de consciência não deixa de ter a 
 intensidade que justifica a faculdade de recusa a depor para não colocar o 
 sujeito perante exigências contraditórias. E, na generalidade dos casos, o 
 exercício do direito ao silêncio por parte da testemunha indicada, redundando 
 sempre em alguma compressão do direito de defesa do arguido que a tenha 
 arrolado, não atinge esse direito de forma intolerável, desproporcionada ou 
 manifestamente opressiva este direito.  
 Com efeito, no processo penal não impende sobre o arguido qualquer ónus 
 probatório. O arguido goza da presunção de inocência, o que, articulado com o 
 princípio in dubio pro reo, se traduz numa imposição dirigida ao juiz no sentido 
 de se pronunciar de forma favorável à defesa em todas as situações de incerteza 
 quanto a factos determinantes para a decisão da causa. 
 
  
 
 É certo que não pode excluir-se a ocorrência de situações extremas em que só o 
 familiar tenha conhecimento de factos juridicamente relevantes para a 
 inexistência ou atenuação da gravidade do crime, para a não punibilidade do 
 arguido ou para a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis 
 
 (cfr. artigo 129.º do CPP). Porém, a essas situações particulares corresponderá 
 uma dimensão qualificada da norma de que não pode falar-se numa situação como a 
 presente em que a testemunha é apenas mais uma de entre as que foram arroladas 
 pelo arguido e que foram ouvidas, nada se tendo alegado por forma a indiciar que 
 o seu silêncio comprometa inexoravelmente o direito de defesa. 
 
  
 Deste modo, há, pois, que concluir que a norma do artigo 134.º, n.º 1, alínea a) 
 do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de permitir a recusa a 
 depor por parte da irmã do arguido, arrolada por este como testemunha, tem um 
 fundamento razoável, não atingindo, de forma intolerável, desproporcionada ou 
 manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido. Por isso, não havendo 
 um encurtamento inadmissível do direito de defesa do arguido, o Tribunal 
 considera que a norma em causa não viola a garantia de que o processo criminal 
 assegura todas as garantias de defesa, consagrada no n.º 1 do artigo 32.º da 
 Constituição.
 
  
 III. Decisão
 
             
 Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso e 
 condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 25 (vinte e 
 cinco) UCS. 
 
  
 Lisboa, 25/3/2009
 Vítor Gomes
 Carlos Fernandes Cadilha
 Ana Maria Guerra Martins
 Maria Lúcia Amaral
 Gil Galvão