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Processo nº 98/08
 
 1ª Secção
 Relatora: Conselheira Maria João Antunes
 
  
 Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
 
  
 I. Relatório
 
 1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal de Pequena Instância Criminal do 
 Porto, em que é reclamante o Ministério Público e reclamado A., foi proferida 
 decisão de não admissão do recurso interposto para o Tribunal Constitucional, em 
 
 12 de Novembro de 2007.
 
  
 
 2. Por despacho, de 29 de Outubro de 2007, foi decidido “remeter os autos para 
 outra forma processual”, com a seguinte fundamentação:
 
  
 
 «Do auto de notícia elaborado pela autoridade policial resulta que o arguido foi 
 detido em flagrante delito e depois restituído à liberdade, tendo sido 
 notificado para comparecer perante o M.P. junto do Tribunal de turno. 
 Resulta também dos autos, que não foi deduzida verdadeira acusação escrita 
 contra o arguido.
 O M.P. apresentou apenas o expediente ao juiz de turno para os efeitos do art° 
 
 387°, nº 2 ali. a) do C.P.P., pretensão que foi deferida, adiando-se 
 simplesmente o início da audiência de julgamento.
 Aberta vista à Digna Magistrada do M.P., pela mesma foi referido que aguardará o 
 início da audiência, para aí requerer a substituição da apresentação da acusação 
 pela leitura do auto de notícia da autoridade que procedeu à detenção.
 
 É certo que no auto de notícia constam alguns factos.
 Todavia, tais factos, por si só, não constituem qualquer crime. 
 
 É de ter em conta que a consciência e a vontade de praticar tais factos típicos, 
 bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei - o dolo –constitui 
 elemento típico dos ilícitos criminais, e designadamente do perfunctoriamente 
 indiciado no auto de notícia.
 O mesmo sucede quanto à negligência, nos termos do disposto nos art°s.13° e 15° 
 do C.P.
 Tal elemento subjectivo deverá constar da acusação e/ou do auto de notícia – cfr 
 os art°s 243° e 283°, n° 3 ali. b) do C.P.P., e ainda sobre o tema, entre 
 outros, o AC do TRG de 7/04/2003, in CJ, tomo II, pg. 291-294.
 Qualquer acusação em que se omita este facto -falta dos factos integradores do 
 dolo ou da negligência – deve ser rejeitada, por se encontrar manifestamente 
 infundada, com base no art° 311°, n° 3, ali. d) do C.P.P.- quando os demais 
 elementos típicos do crime se encontrarem nela descritos.
 Do expediente ora em análise não consta qualquer um desses elementos (dolo ou 
 negligência). 
 De tal expediente também não se retira a indicação das disposições legais 
 aplicáveis, a chamada qualificação jurídica dos factos, o que é relevante e 
 implica até a rejeição da acusação, nos termos do citado art° 311, n° 3 ali. c) 
 do C.P.P. 
 Dado o teor do auto de notícia, mesmo com a sua leitura em audiência nada mais 
 se acrescenta ao que aí consta.
 
 É condição da realização de julgamento em processo sumário e desta forma de 
 processo especial a existência de um crime concreto e devidamente identificado, 
 com indicação dos respectivos factos integradores (objectivos e subjectivos) e 
 de todas as disposições legais aplicáveis. Só assim se podem apreciar os 
 apertados requisitos de admissibilidade do processo sumário, bem como a 
 competência do tribunal.
 Está em causa a natureza acusatória do processo penal, além das garantias de 
 defesa do arguido e o princípio da vinculação temática do tribunal. 
 Afigura-se-nos, pois, que não se verificam os requisitos que justificam o 
 julgamento em processo sumário, nos termos do disposto no art° 381° do C.P.P., 
 na redacção da lei nº 48/07, de 29/08».
 
  
 
 3. O Ministério Público recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, 
 mediante requerimento, de onde se extrai o seguinte:
 
  
 
 «Tendo sido, nos termos supra expostos, a aplicação da norma em referência, nº. 
 
 2, do ar°. 389°, do CPP, constante de acto legislativo - L. 48/2007, de 29 de 
 Agosto – 15ª. Alteração ao Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 
 n°. 78/87, de 17 de Fevereiro -, recusada, por inconstitucionalidade e/ou 
 ilegalidade - vem o MP, nos termos das disposições conjugadas dos art°.s 280°, 
 n°.s 1, al. a), 2, al. a) e 3, da CRP, 70º, n°. 1, al.s a) e/ou c), 71°, n°. 1, 
 
 72°, n°.s 1, al. a) e 3, 75º, nº, 1, 75°-A, n°. 1-e 78°, n°. 4, da Lei 28/82, de 
 
 15 de Novembro - Organização, funcionamento e processo do Tribunal 
 Constitucional -, ao abrigo das citadas al.s a) e/ou c), do n°. 1, do respectivo 
 art°. 70°, interpôr recurso, obrigatório, para o Tribunal Constitucional, - a 
 subir nos próprios autos e com efeito suspensivo, nos termos do disposto no 
 citado art°. 78°, n°. 4, da Lei em referência -, requerendo a apreciação da 
 constitucionalidade e legalidade da norma constante do n°. 2 do art°. 389°, do 
 CPP».
 
  
 
 4. Por despacho, que constitui o objecto da presente reclamação, o recurso de 
 constitucionalidade não foi admitido, com os seguintes fundamentos:
 
  
 
 «Estabelece o art° 70° da Lei 28/82 de 15 de Novembro: (Decisões de que pode 
 recorrer-se): n° 1 – Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das 
 decisões dos Tribunais;
 
 (…)
 Ora da análise dos preceitos em causa, não se vislumbra que a decisão em causa 
 nos autos, admita recurso para o tribunal Constitucional, atendendo a que não se 
 subsume a qualquer das alíneas supra referidas. Requisito de admissibilidade do 
 recurso, nos termos do art° 70º ali a), é a da existência da recusa de aplicação 
 de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade. Ora, isso não 
 acontece, nem explicita nem implicitamente no despacho em causa nos autos, no 
 mesmo sentido Acórdãos do Tribunal Constitucional disponíveis na página/site do 
 Tribunal Constitucional, com o n° convencional ACTC00000118, ACTC00004871 e 
 ACTC00000019».
 
  
 
 5. Deste despacho vem agora o recorrente reclamar para a conferência, nos termos 
 do consagrado no artigo 76º, nº 4, da Lei da Organização, Funcionamento e 
 Processo do Tribunal Constitucional (LTC), pelas seguintes razões:
 
  
 
 «Alega o/a Mmo/a Juiz a quo no douto despacho ora reclamado, por referência ao 
 anteriormente citado art°. 70°, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, além do mais 
 que infra se analisará “Ora da análise dos preceitos em causa, não se vislumbra 
 que a decisão em causa nos autos, admita recurso para o tribunal Constitucional, 
 atendendo a que não se subsume a qualquer das alíneas supra referidas.” (sic).
 Salvo o devido respeito, conforme aliás expressamente consta do requerimento de 
 interposição de recurso ora indeferido, a situação sub judice subsume-se à 
 previsão das al.s a) e/ou c), do citado art°. 70°, se bem que nas respectivas 
 actuais redacções e não nas citadas pelo/a Mmo/a Juiz a quo, sendo a redacção 
 actual daquela al. c) “Que recusem a aplicação de norma constante de acto 
 legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor 
 reforçado;”. 
 Com efeito, da leitura integral do douto despacho judicial recorrido e da 
 respectiva integração na antecedente tramitação processual que conduziu à 
 prolacção do mesmo, parece-nos inegável que consubstancia este, de facto, a 
 recusa de aplicação da norma constante do n°. 2, do ar°. 389°, do CPP, -  
 constante de acto legislativo (L. 48/2007, de 29 de Agosto – 15ª. Alteração ao 
 Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n°. 78/87, de 17 de 
 Fevereiro) -, por inconstitucionalidade e/ou ilegalidade.
 De facto, tendo o MP, nos termos do douto despacho exarado a fls. 10, 
 verificados que se mostravam os pressupostos dos art°.s 381°, nº. 1, al. a), e 3 
 
 87°, n°. 1, do CPP, determinado, nos termos do disposto na 2ª. parte, do n°. 2, 
 do art°. 382°, do CPP, a apresentação do “…/... expediente, ao M°. Juiz de Turno 
 para os efeitos do art°. 387, n° 2, alínea a) do código de Processo Penal, ... 
 
 /...”(sic) e tendo este - Mmo/a Juiz de turno -, com os fundamentos de facto e 
 de direito que constam do douto despacho judicial de fls. 11 determinado 
 
 “.../... que o arguido seja notificado para comparecer no próximo dia 
 
 29/10/2007, pelas 10 horas, no Tribunal competente afim de aí ser julgado em 
 processo sumário, art. 387 n° 2, alínea a) do C.P.P.” (sic) e tendo ainda o MP, 
 entretanto e atento o despacho judicial de fls. 14 - “Atento a promoção e o 
 despacho meramente formal de adiamento proferido no TIC, (art° 387°, n°2, alínea 
 a) do C.P.P.) vão os autos ao M.P. para os fins tidos por convenientes, 
 respectivamente apresentação da acusação.” (sic) -, nos termos consignados a 
 fls. 15, reservado para o início da audiência de discussão e julgamento, o 
 eventual uso da faculdade prevista no n°. 2, do art°. 389°, do CPP, a decisão 
 judicial entretanto recorrida, ao decidir “.../... , determino a remessa dos 
 presentes autos ao Ministério Público para tramitação sob outra forma 
 processual.” (sic), não só nega a aplicação daquela disposição legal, 
 expressamente invocada pelo MP, (ou antes, a possibilidade do exercício, pelo 
 MP, da faculdade p. na mesma), como fundamenta tal posição, alegando, além do 
 mais que, “É certo que no auto de notícia constam alguns factos. 
 Todavia, tais factos, por si só não constituem qualquer crime, 
 
 … /… - o dolo - constitui elemento típico dos ilícitos criminais, .../… . O 
 mesmo sucede quanto à negligência, ... / … .
 Tal elemento subjectivo deverá constar da acusação e/ou do auto de notícia - 
 
 .../… . 
 Do expediente ora em análise não consta qualquer um desses elementos (dolo ou 
 negligência).
 De tal expediente também não se retira a indicação das disposições legais 
 aplicáveis a chamada qualificação jurídica dos factos, …/… .” (sic), concluindo 
 com a alegação de que “Está em causa a natureza acusatória do processo penal, 
 além das garantias de defesa do arguido e o princípio da vinculação temática do 
 tribunal” (sic).
 Ora, não sendo obviamente de exigir fórmulas sacramentais para afirmar 
 princípios, parece-nos que outra coisa não fez o/a Mmo/a Juiz a quo que não 
 tenha sido recusar a aplicação, in casu, da norma legal expressamente invocada 
 pelo MP, (n°. 2, do art°. 389°, do CPP), por entender que tal aplicação, 
 faltando no auto de notícia, “o elemento subjectivo” e “a chamada qualificação 
 jurídica dos factos”, seria inconstitucional, por violação dos, aliás 
 expressamente citados e assim invocados, princípios constitucionais da 
 estrutura/natureza acusatória do processo penal e das garantias de defesa do 
 arguido - art°. 32°, n°.s 1 e 5, da CRP - e/ou ilegal, por violação do, 
 igualmente expressamente citado e invocado, princípio da vinculação temática do 
 tribunal - art°.s 358°, 359° e 379°, n°. 1, al. b), do CPP.
 Mais alega o/a Mmo/a Juiz a quo no douto despacho ora reclamado, “Requisito de 
 admissibilidade do recurso, nos termos do art° 70º ali a), é a da existência da 
 recusa de aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade. 
 Ora, isso não acontece, nem explicita nem implicitamente no despacho em causa 
 nos autos, .../... .”
 De facto, nos termos da citada al.a), do n°. 1, do art°. 70°, da Lei 28/82, de 
 
 15 de Novembro, ao abrigo da qual, também, mas não só, foi interposto o recurso 
 ora indeferido, o requisito de admissibilidade do recurso é efectivamente a 
 existência de recusa de aplicação de qualquer norma, com fundamento em 
 inconstitucionalidade.
 Contudo, nos termos da al. c), do n°. 1, do mesmo preceito legal, ao abrigo da 
 qual foi ainda, interposto o recurso em causa, o requisito de admissibilidade do 
 recurso é a existência de recusa de aplicação de norma constante de acto 
 legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor 
 reforçado.
 Ora, a expressa invocação, no despacho recorrido, dos supra referenciados 
 princípios constitucionais da estrutura/natureza acusatória do processo penal e 
 das garantias de defesa do arguido e do princípio legal da vinculação temática 
 do tribunal, resulta inequívoca e inegavelmente do respectivo texto, supra 
 transcrito, mormente do supra citado segmento da respectiva parte final -“Está 
 em causa a natureza acusatória do processo penal, além das garantias de defesa 
 do arguido e o princípio da vinculação temática do tribunal.” (sic, com 
 sublinhado nosso).
 Face ao exposto, não pode naturalmente concordar-se com a, além de 
 infundamentada, estranha conclusão, constante do despacho em reclamação, no 
 sentido de que, no mesmo “não acontece, nem explicita nem implicitamente.../ 
 
 /...” (sic) a recusa de aplicação de uma norma com fundamento na sua 
 inconstitucionalidade, pois que, manifestamente tal acontece, relativamente à 
 norma constante do nº. 2, do art°. 389°, do CPP, com fundamento, aliás 
 explícito, e portanto, claro e inegável, na respectiva inconstitucionalidade 
 e/ou, na respectiva ilegalidade, por violação dos princípios citados, o que, 
 sendo certo que a norma em referência consta de acto legislativo, também pode 
 fundamentar a admissibilidade do recurso, ora indeferido.
 Assim sendo, parece-nos forçoso concluir que a decisão em referência não só 
 admite recurso, para o Tribunal Constitucional, nos termos das supra citadas 
 al.s a) e/ou c), do n°. 1, do art°. 70°, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, corno 
 
 é o mesmo, aliás, para o MP, atento o prescrito no n°. 3, do art°. 72°, da 
 citada Lei, até obrigatório, por a norma cuja aplicação se mostra recusada, 
 constar de acto legislativo (L. 48/2007, de 29 de Agosto, conforme supra já 
 referido).
 Concluindo, o que o/a Mmo/a Juiz fez, no/a douto/a despacho/decisão recorrido/a, 
 ao decidir “.../..., determino a remessa dos presentes autos ao Ministério 
 Público para tramitação sob outra forma processual.” (sic), não realizando o 
 requerido pelo MP, nos termos legais e aliás, anteriormente, judicialmente 
 determinado, - tendo sido o/a arguido/a e o/a/s agente/s autuante/s de tal 
 despacho notificado/a/s (cfr. fls. 12) - julgamento do/a arguido/a, em processo 
 sumário e nem sequer iniciando a audiência, cujo início, note-se, havia sido, 
 oportuna e anteriormente, judicialmente adiado, nos termos do disposto na al.a), 
 do n°. 2, do art°. 387°, do CPP, - sem cuidar aqui sequer da questão da eventual 
 violação do princípio do caso julgado formal, na medida em que se pronunciou o/a 
 Mmo/a juiz a quo, sobre questão já ultrapassada/processualmente precludida e 
 relativamente à qual se encontrava esgotado; o poder jurisdicional com a 
 prolacção do anterior despacho judicial, supra citado, que procedeu ao adiamento 
 do início da audiência de julgamento em processo sumário - foi manifestamente 
 recusar a aplicação da norma constante do n°. 2, do art°. 389°, do CPP, com 
 fundamento em inconstitucionalidade e/ou na sua ilegalidade, por permitir a 
 realização do julgamento em processo sumário, nos casos em que o MP, não tendo 
 deduzido acusação, reserva para o início da audiência, a faculdade de substituir 
 a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que 
 tiver procedido à detenção, quando deste “ não consta qualquer um desses 
 elementos (dolo ou negligência).” (sic) e “.../... não se retira a indicação das 
 disposições legais aplicáveis, a chamada qualificação jurídica dos factos, 
 
 .../…” (sic).
 Face ao exposto, o interposto recurso, requerendo a apreciação da 
 constitucionalidade e legalidade da norma constante do n°. 2 do art°. 389°,do 
 CPP, deveria ter sido admitido, pelo que, não o tendo sido, o MP apresenta a 
 presente reclamação, sendo as ora expostas, as razões que justificam a admissão 
 daquele».
 
  
 
 6. Neste Tribunal, os autos foram com vista ao Ministério Público, que se 
 pronunciou no sentido do indeferimento da reclamação, pelas seguintes razões:
 
  
 
 «Importa notar liminarmente que – sendo o recurso, interposto pelo Ministério 
 Público e rejeitado no Tribunal “a quo”, – exclusivamente fundado na alínea a) 
 do n° 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, apenas poderá reportar-se à recusa de 
 aplicação da norma identificada no respectivo requerimento de interposição – e 
 não a quaisquer outros preceitos legais, eventualmente aplicados no despacho 
 reclamado, já que tal implicaria a ampliação do respectivo objecto de modo a 
 incluir estes últimos, bem como a invocação, como base recursória, da alínea b) 
 daquele artigo 70.°, n.º 1, o que se afigura inviável face à regra de que a 
 delimitação do objecto do recurso decorre irremediavelmente (no que se refere ao 
 seu máximo âmbito) do teor daquele requerimento.
 A sorte da presente reclamação dependerá, deste modo, da determinação da 
 existência de uma “verdadeira” recusa de aplicação normativa, reportada ao 
 artigo 389.°, n.º 2 , do Código de Processo Penal fundada em violação dos 
 princípios constitucionais da estrutura acusatória do processo penal e das 
 garantias de defesa.
 Qual a interpretação normativa feita pelo juiz “a quo” de tal preceito legal?
 A nosso ver, considerou-se ser inviável a substituição da apresentação de 
 acusação pelo Ministério Público em processo sumário pela simples leitura do 
 auto de notícia, no início da audiência, sem qualquer “aditamento”, num caso em 
 que o referido auto omitiria elementos essenciais a qualquer acusação, nos 
 planos fáctico (estruturantes do elemento subjectivo do crime imputado ao 
 arguido), da qualificação jurídica (especificação das disposições legais 
 aplicáveis) e probatório (indicação das provas que fundamentam tal imputação ao 
 arguido).
 
 É feita, no despacho reclamado, a seguinte leitura da norma constante do artigo 
 
 389.°, n.° 2, do Código de Processo Penal:
 Em processo sumário, pode o Ministério Público substituir a apresentação da 
 acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à 
 detenção, salvo se de tal auto não constarem todos os elementos – fácticos, de 
 qualificação jurídica e probatório – que obrigatoriamente – por força das 
 disposições gerais – devem constar de qualquer acusação.
 Ou seja: não se considerou inviável, de modo genérico, a actuação processual ali 
 consentida ao Ministério Público, procedendo-se antes a uma leitura conjugada de 
 tal preceito legal com as disposições que regulam os requisitos da acusação, só 
 consentindo a “substituição” da acusação pela leitura do auto quando este 
 satisfaça minimamente tais requisitos gerais.
 Procedeu, deste modo, o despacho recorrido a uma leitura conjugada da norma que 
 integra o objecto do presente recurso (a do artigo 389.°, n.° 2, do Código de 
 Processo Penal) com outras disposições que regem sobre os requisitos da acusação 
 
 (artigo 283.°, n.° 3, e 311.º, n.° 2 e 3 do Código de Processo Penal) para 
 concluir que a possibilidade de mera leitura do auto de notícia, no início da 
 audiência, pressupõe a suficiência deste, na óptica das exigências formuladas 
 por aqueles preceitos legais.
 Sendo duvidosa a definição da precisa “linha de fronteira” entre a verdadeira 
 
 “recusa de aplicação” normativa, enquadrável na alínea a) do n.° 1 do artigo 
 
 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, e a mera interpretação de preceitos 
 legais “em conformidade com a Constituição” (cf., v.g., os Acórdãos nos 170/85, 
 
 425/89, 137/89, 636/94 e 1020/96) afigura-se que – no caso dos autos – o juízo 
 de inaplicabilidade de certa interpretação que – a ser feito – violaria 
 determinados princípios constitucionais se não fundou “única ou primacialmente” 
 
 (para utilizar a expressão de Rui Medeiros – A Decisão de Inconstitucionalidade, 
 pg. 331 e segs) no princípio da interpretação conforme à Lei Fundamental, mas 
 não desempenhando “o apelo à Constituição (princípio do acusatório e das 
 garantias de defesa) em sede hermenêutica, uma função de apoio ou de confirmação 
 de um sentido da norma já sugerido pelos restantes elementos de interpretação” 
 
 (cf. ainda o Acórdão n.° 285/02)
 Assim, por se afigurar que o Tribunal “a quo”, no despacho recorrido, se limitou 
 a proceder a uma leitura conjugada de diversos regimes processuais penais, 
 referentes aos requisitos da acusação, articulando-os com a possibilidade de 
 mera “leitura” pelo Ministério Público do auto de notícia no início da audiência 
 em processo sumário, não será a circunstância de se considerar que a 
 imperatividade de tal aplicação conjugada dos regimes legais decorre dos 
 princípios constitucionais do acusatório e das garantias de defesa que traduz a 
 ocorrência de uma verdadeira “recusa de aplicação normativa”, enquadrável no 
 tipo recursório previsto na alínea a) do n° 1 do artigo 70.º da Lei 28/82».
 
  
 Cumpre apreciar e decidir.
 
  
 II. Fundamentação
 A presente reclamação tem como objecto o despacho que não admitiu o recurso 
 interposto, por a decisão recorrida não admitir recurso para o Tribunal 
 Constitucional. O Ministério Público havia recorrido ao abrigo das alíneas a) 
 e/ou c) do nº 1 do artigo 70º da LTC. 
 Com efeito, a decisão recorrida não recusou a aplicação do 389º, nº 2, do Código 
 de Processo Penal com fundamento em inconstitucionalidade (em abono desta 
 conclusão cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 8/2008 e 49/2008, 
 disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), nem tão-pouco recusou a aplicação 
 de norma constante de acto legislativo, com fundamento na sua ilegalidade por 
 violação de lei com valor reforçado.
 Por outro lado, como este Tribunal tem vindo a entender que lhe cabe verificar 
 os requisitos do artigo 75º-A da LTC, ainda que a reclamação tenha 
 exclusivamente como objecto os concretos fundamentos da não admissão do recurso 
 
 (Acórdão nº 480/2006, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), importa 
 concluir que o recorrente não satisfez o ónus da indicação da alínea do nº 1 do 
 artigo 70º ao abrigo da qual o recurso era interposto (artigo 75º-A, nº 1, 1ª 
 parte, da LTC). Referiu sempre – quer no requerimento de interposição de recurso 
 quer na reclamação da decisão que não o admitiu – as alíneas a) e c) do nº 1 do 
 artigo 70º de forma cumulativa ou em alternativa, o que equivale a não ter 
 indicado a alínea ao abrigo da qual o recurso era interposto (no mesmo sentido 
 cf. Acórdão nº 49/2008).
 Este Tribunal tem entendido, de forma reiterada, que “o cumprimento destes ónus 
 
 [os decorrentes dos nºs 1, 2, 3 e 4 deste artigo] não representa simples 
 observância do dever de colaboração das partes com o Tribunal; constitui, antes, 
 o preenchimento de requisitos formais essenciais ao conhecimento do objecto do 
 recurso” (Acórdão nº 200/97, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Pelo 
 que, também por esta razão, há que confirmar o despacho reclamado.
 
  
 III. Decisão
 Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
 Sem custas.
 Lisboa, 20 de Fevereiro de 2008
 Maria João Antunes
 Carlos Pamplona de Oliveira
 Gil Galvão