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Processo n.º 4/08
 
 2.ª Secção
 Relator: Conselheiro João Cura Mariano
 
 
 
    Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
 
 
 Relatório
 O arguido A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães da 
 sentença do 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Esposende, proferida no 
 processo nº 221/02.1TAEPS, que o havia condenado na pena de 240 dias de multa à 
 taxa diária de € 8,00, pela prática de um crime de furto qualificado previsto e 
 punido pelos artigos 202.º, alínea a), 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, alínea a), 
 do Código Penal, bem como no pagamento da importância de € 4.200,00 ao 
 assistente, a título de indemnização por danos patrimoniais.
 
  
 Por acórdão de 29 de Outubro de 2007, o Tribunal da Relação de Guimarães negou 
 provimento ao referido recurso, assim confirmando integralmente a sentença 
 recorrida.
 
                    
 O aludido arguido interpôs então recurso desta decisão para o Tribunal 
 Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da 
 Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), 
 no âmbito do qual requereu:
 a) a fiscalização concreta da constitucionalidade das normas constantes do 
 artigo 412.º, n.º 3, alíneas b) e c), e n.º 4, do Código de Processo Penal,  na 
 interpretação segundo a qual a transcrição da prova gravada compete ao 
 recorrente e de que a respectiva falta de junção aos autos obsta imediatamente 
 ao conhecimento do recurso na parte respeitante à impugnação da decisão sobre 
 matéria de facto, sem qualquer necessidade de formulação de um convite prévio ao 
 recorrente para efeito de junção da transcrição em falta, tudo por violação do 
 disposto nos artigos 1.º, 2.º e 20.º, n.º 1 e n.º 4, da Constituição da 
 República Portuguesa (CRP);
 b) e a fiscalização concreta da constitucionalidade das normas constantes dos 
 artigos 203.º e 204.º do Código Penal, na interpretação segundo a qual o 
 preenchimento da incriminação em questão prescinde do facto do agente ter 
 causado prejuízo patrimonial efectivo ao proprietário dos bens furtados, desta 
 feita por violação do disposto nos artigos 1.º, 2.º e 25.º, n.º 1, da CRP.
 
  
 Em 23-1-2008 foi proferida decisão sumária de não conhecimento do recurso 
 interposto, com a seguinte fundamentação:
 
 “1. Dos requisitos específicos de admissibilidade do recurso de 
 constitucionalidade
 Nos termos do disposto no artigo 280.º, nº 1, alínea b), e do artigo 70.º, n.º 
 
 1, alínea b), da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões 
 dos tribunais que 'apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada 
 durante o processo'.
 Os requisitos do recurso de constitucionalidade têm sido aprofundados e 
 consolidados pela jurisprudência do Tribunal Constitucional ao longo dos anos.
 As decisões jurisdicionais em si mesmas não podem ser objecto de controlo da 
 constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional.
 A fiscalização sucessiva concreta ocorre precisamente a propósito da aplicação 
 jurisdicional de uma norma jurídica.
 A apreciação da questão de inconstitucionalidade está condicionada pela efectiva 
 aplicação (expressa ou implícita) da norma cuja inconstitucionalidade haja sido 
 suscitada durante o processo.
 A norma é efectivamente aplicada quando a mesma constitui uma verdadeira ratio 
 decidendi e não um mero obiter dictum da decisão recorrida.
 Em conformidade com este controlo concreto ou incidental, afirma-se que o 
 recurso de constitucionalidade tem uma função meramente instrumental aferida 
 pela susceptibilidade de repercussão útil no processo concreto de que emerge, 
 não servindo, assim, para dirimir questões meramente teóricas ou académicas.
 
 2. Da interpretação normativa do artigo 412.º, n.º 3, alíneas b) e c), e n.º 4, 
 do Código de Processo Penal
 O recorrente pretende que se aprecie a inconstitucionalidade do artigo 412.º, 
 n.º 3, alíneas b) e c), e n.º 4, do Código de Processo Penal, na interpretação 
 segundo a qual a transcrição da prova gravada compete ao recorrente e de que a 
 respectiva falta de junção aos autos obsta imediatamente ao conhecimento do 
 recurso na parte respeitante à impugnação da decisão sobre matéria de facto, sem 
 qualquer necessidade de formulação de um convite prévio ao recorrente para 
 efeito de junção da transcrição em falta.
 O Tribunal da Relação de Guimarães decidiu não conhecer do recurso na parte 
 respeitante à impugnação da decisão sobre matéria de facto, expendendo para 
 tanto a seguinte fundamentação que se passa a transcrever:
 
 «(…) Analisando as motivações apresentadas pelo recorrente e as respectivas 
 conclusões, verifica-se desde logo que o mesmo não impugna correctamente a 
 matéria de facto, ou seja, não utiliza o meio impugnatório previsto no art. 
 
 412.º, n.ºs 3 e 4 do C. P. Penal, e, aquele que utiliza não tem qualquer 
 virtualidade para que este Tribunal aprecie a bondade do julgamento.
 Efectivamente, nos termos do disposto no art. 412.º, n.º 3 do C. P. Penal, 
 
 “quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto o recorrente deve 
 especificar: a) os pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as 
 provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) as provas que devam ser 
 renovadas”.
 Para além disso, nos termos do n.º 4 do referido artigo, quando as provas 
 tiverem sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 
 anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a 
 transcrição.
 
 É jurisprudência praticamente unânime que o Tribunal da Relação, quando aprecia 
 recurso impugnatório da matéria de facto, não visa efectuar um segundo 
 julgamento.
 Efectivamente, o tribunal da Relação é um tribunal de recurso e não um tribunal 
 que aprecia a prova em primeira instância, pelo que não lhe incumbe fazer um 
 segundo julgamento quanto à matéria de facto.
 Do modo como está estruturado o art. 412.º do C. P. Penal, nomeadamente o seu 
 n.º 3 acima citado, ao tribunal da relação, enquanto tribunal de recurso, 
 incumbe emitir juízos de censura crítica, ou seja, indicando o recorrente quais 
 os pontos de facto que considera incorrectamente julgados bem como as provas que 
 impõem decisão diversa, averiguar criticamente se esses pontos estão ou não 
 correctamente julgados ou se as referidas provas impunham uma decisão diversa da 
 que foi proferida pelo tribunal “a quo”.
 Na verdade, quando as provas tiverem sido gravadas, as especificações acabadas 
 de referir fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a 
 transcrição.
 Nos presentes autos, a prova produzida no julgamento foi gravada mas não foi 
 efectuada a respectiva transcrição.
 Por outro lado, como já acima vimos, o recorrente não cumpre as acima referidas 
 exigências da lei, limitando-se a tecer considerações sobre a prova que entende 
 ter sido (e não ter sido) produzida no julgamento. 
 Como escreve o Prof. Damião da Cunha em “O Caso Julgado Parcial”, 2002, pág. 
 
 516) “o recurso em matéria de facto assenta na obrigatoriedade de o recorrente 
 não só afirmar qual o ponto de facto que julga mal decidido, como, para além 
 disso, fornecer as bases de facto em que se deverá basear a solução (inversa)”.
 Ora, tal alegação e indicação genéricas, feitas pelo ora recorrente, é 
 insuficiente, como acabamos de ver. 
 Assim, resta a este Tribunal a apreciação da decisão sob censura à luz do 
 disposto no art. 410 n.º 2 do C. P. Penal (…).”
 
  
 Conforme facilmente se alcança pela leitura do trecho ora transcrito, e ao invés 
 do alegado pelo Recorrente, a decisão recorrida do Tribunal da Relação de 
 Guimarães, consubstanciada no não conhecimento do recurso na parte respeitante à 
 impugnação da decisão sobre matéria de facto, não se estribou apenas na 
 aplicação das normas constantes do art. 412.º, n.º 3, alíneas b) e c), e n.º 4, 
 do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a transcrição da 
 prova gravada compete ao recorrente e de que a respectiva falta de junção aos 
 autos obsta imediatamente ao conhecimento do recurso na parte respeitante à 
 impugnação da decisão sobre matéria de facto, sem qualquer necessidade de 
 formulação de um convite prévio ao recorrente para efeito de junção da 
 transcrição em falta.
 O Tribunal da Relação de Guimarães não conheceu do recurso na parte respeitante 
 
 à impugnação da decisão sobre matéria de facto porque também entendeu que o 
 Recorrente não cumpriu o ónus de especificação das provas que impõem decisão 
 diversa da recorrida.
 Assim sendo, pode-se afirmar que, ainda que o Recorrente tivesse oportunamente 
 juntado a pertinente transcrição da prova gravada com as respectivas alegações 
 de recurso, ou mesmo que o Recorrente viesse a ser convidado a juntá-la dentro 
 de um determinado prazo especialmente concedido para esse efeito, a verdade é 
 que sempre subsistiria um outro fundamento de não conhecimento do recurso na 
 parte respeitante à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, 
 relativamente ao qual o Recorrente não suscitou qualquer questão de 
 constitucionalidade e que continuaria a determinar essa mesma consequência 
 processual negativa para o recorrente.  
 Uma vez que a interpretação normativa ora posta em crise pelo Recorrente não 
 constituiu a única ratio decidendi da decisão do Tribunal da Relação de 
 Guimarães, importa reconhecer que o presente recurso de constitucionalidade não 
 seria dotado de qualquer repercussão útil no processo concreto de que emerge na 
 parte respeitante à impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto.
 Assim, atenta a função meramente instrumental do recurso de 
 constitucionalidade, aferida pela susceptibilidade de repercussão útil no 
 processo concreto de que emerge, não deve ser conhecida a analisada questão.
 
 3. Da interpretação normativa dos artigos 203.º e 204.º do Código Penal 
 Pretende ainda o Recorrente que o Tribunal Constitucional leve a cabo a 
 fiscalização concreta da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 
 
 203.º e 204.º, do Código Penal, na interpretação segundo a qual o preenchimento 
 da incriminação em questão prescinde do facto do agente ter causado prejuízo 
 patrimonial efectivo ao proprietário dos bens furtados.
 Porém, também não assiste qualquer razão ao Recorrente nesta parte, na medida em 
 que o Tribunal da Relação de Guimarães decidiu subsumir os factos provados ao 
 tipo de crime de furto qualificado, p. e p. nos artigos 203.º e 204.º, n.º 1, 
 alínea a), do Código Penal, fazendo acompanhar essa subsunção da seguinte 
 fundamentação que se passa a transcrever:
 
 “(…) O direito à propriedade privada está reconhecido no art. 62 da Constituição 
 da República Portuguesa.
 Nos termos do art. 1305 do C. Civil “O proprietário goza de modo pleno e 
 exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe 
 pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela 
 impostas”. 
 Ora, como acima vimos, está dado como provado que o assistente era o 
 proprietário da identificada parcela de terreno que vendeu à Câmara Municipal de 
 Esposende, que ao tempo das negociações, foi autorizado oralmente ao 
 proprietário do prédio alienado a retirada das areias e demais materiais inertes 
 que se encontrassem acima da cota da estrada, que no preço estabelecido para a 
 venda descrita não foi considerado, como compensação ao assistente B., o valor 
 por ele obtido com a venda da areia e outros materiais inertes da dita parcela, 
 que para a construção da Variante sul da Apúlia foram adquiridos pelo Município 
 outros terrenos além do descrito, que o Município de Esposende adoptou o 
 procedimento descrito relativamente a todos os terrenos adquiridos para a 
 construção da Variante sul da Apúlia, com conhecimento de todo o executivo 
 camarário e, especialmente, do Presidente da Câmara, o que era do conhecimento 
 dos arguidos e dos responsáveis da sociedade à qual foi adjudicada a obra; e que 
 o assistente B.  pretendia comercializar a areia retirada e já tinha 
 estabelecido negociações com potenciais clientes.
 Assim, se o arguido A. é industrial da extracção de inertes, se em dia 
 concretamente não apurado de Janeiro de 2002, extraiu pelo menos 280 m3 de areia 
 limpa e de boa qualidade da parcela de terreno descrita, transportando-a em 
 camião, e se deu o uso que bem entendeu a tal areia, designadamente vendeu a 
 terceiros e utilizou em terrenos próprios e de familiares, tendo actuado livre, 
 voluntária e conscientemente, bem sabendo que a areia por si retirada não lhe 
 pertencia, assim como era conhecedor do valor que a mesma tinha e, ainda, 
 sabedor que actuava contra a vontade dos legítimos donos, sabendo ainda o 
 arguido A. que a sua conduta era proibida e punida por lei, não se vislumbra 
 onde está a falta de consciência da ilicitude, sendo certo que, como areeiro, 
 portanto experimentado na extracção de areias, terá que conhecer as condições 
 legais para a extracção de inertes que são um bem (art. 1305 e art. 204 n.º 1 d) 
 ambos do C. Civil) com valor de mercado, do que resulta também o prejuízo 
 patrimonial do seu titular, raciocínio esse que, ao contrário do alegado, não 
 enferma de qualquer inconstitucionalidade pois não viola qualquer preceito 
 constitucional, nomeadamente a dignidade da pessoa humana consagrada no art. 
 
 1.º da CRP, nem o direito à integridade moral consagrado no art. 25 n.º 1 da 
 CRP, antes se respeitando o direito à propriedade privada reconhecido no art. 62 
 da Constituição da República Portuguesa.”
 Resulta à saciedade da decisão recorrida, em especial deste trecho acabado de 
 transcrever, que o tribunal a quo não aplicou de forma alguma as normas 
 referentes ao crime de furto com a interpretação normativa delimitada pelo 
 Recorrente no respectivo requerimento de interposição de recurso; antes pelo 
 contrário, o tribunal a quo teve em especial consideração a questão da 
 titularidade do direito de propriedade sobre a areia furtada e não deixou de a 
 considerar expressa e positivamente para efeitos de subsunção dos factos à norma 
 incriminadora e de solução da questão controvertida da invocada falta de 
 consciência da ilicitude do arguido.
 Uma vez que interpretação normativa delimitada pelo Recorrente não constituiu a 
 verdadeira ratio decidendi da decisão do Tribunal da Relação de Guimarães, e 
 nem sequer constituiu um mero obiter dictum desta, a apreciação do recurso de 
 constitucionalidade não seria dotada de qualquer repercussão útil no processo 
 concreto de que emerge.
 Assim, uma vez verificada a falta de aplicação da referida interpretação 
 normativa, importa concluir que, por referência à mesma, também não estão 
 preenchidos todos os requisitos de admissibilidade do recurso de 
 constitucionalidade previsto no artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC.
 
 4. Conclusão
 Não podendo o Tribunal Constitucional apreciar qualquer uma das questões de 
 inconstitucionalidade suscitadas pelo Recorrente, deve ser proferida decisão 
 sumária nesse sentido, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.
 
  
 O recorrente reclamou desta decisão para a conferência, “tendo em vista a sua 
 revogação e a substituição por outra em que sejam admitidos todos os recursos de 
 constitucionalidade interpostos pelo recorrente”.
 
  
 O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
 
  
 
                                                       *
 Fundamentação
 Não tendo o reclamante alegado quaisquer argumentos justificativos da sua 
 discordância relativamente ao teor da decisão reclamada e, concordando-se que as 
 questões colocadas no recurso interposto não reúnem os requisitos necessários ao 
 conhecimento do recurso constitucional, pelos fundamentos constantes da decisão 
 reclamada que se subscrevem na íntegra, deve ser indeferida a reclamação 
 apresentada.
 
  
 
                                                       *
 Decisão
 Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A. da decisão sumária de 
 não conhecimento do recurso, proferida nestes autos em 23-1-2008.
 
  
 
                                                       *
 Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, 
 ponderados os critérios referidos no artigo 9º, do D.L. nº 303/98, (artigo 7.º, 
 do mesmo diploma).
 
  
 
                                                       *
 Lisboa, 12 de Março de 2008
 João Cura Mariano
 Mário José de Araújo Torres
 Rui Manuel Moura Ramos