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Processo nº 411/08
 
 1ª Secção
 Relatora: Conselheira Maria João Antunes
 
 
 Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional
 
 
 I. Relatório
 
 1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Comarca de Leiria, em que é 
 recorrente o Ministério Público, foi interposto recurso para o Tribunal 
 Constitucional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei da 
 Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da 
 sentença daquele Tribunal de 12 de Outubro de 2007.
 
  
 
 2. A decisão recorrida homologou a lista de credores reconhecidos pelo 
 administrador da insolvência e graduou os créditos constantes de tal lista, 
 recusando a aplicação do nº 2 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de 
 Maio, com fundamento em inconstitucionalidade. 
 Para o que cumpre apreciar e decidir importa transcrever o seguinte:
 
  
 
 «(…)
 Os créditos de contribuições da Segurança Social e respectivos juros gozam de 
 privilégio mobiliário geral “graduando-se logo após os créditos referidos na 
 alínea a) do n°1 do artigo 747° do Código Civil”, dispõe o art. 10°, n°1 do DL 
 
 103/80, de 9/5.
 Por sua vez, o n° 2 deste artigo dispõe que “Este privilégio prevalece sobre 
 qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.”
 Por força desta norma estará afastada a prevalência acima referida do credor que 
 beneficia do penhor sobre determinado bem móvel?
 Atento ao teor expresso do n° 2 do art. 10º do DL 103/80, de 9/5, a resposta 
 imediata parece dever ser afirmativa. Todavia, essa não é a resposta definitiva. 
 E isto porque se entende que tal como a norma constante do art. 11º do mesmo 
 diploma, declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Ac. do 
 Tribunal Constitucional n° 363/2002, de 17/9/2002, in DR, I-A, de 16/17/2002, 
 também esta norma se encontra ferida de inconstitucionalidade. Como é dito no 
 Ac. R.P., de 09/11/2006, in www.dgsi.pt, proc. 0635637 “(...) as razões 
 subjacentes à inconstitucionalidade do citado art. 11º são aplicáveis ao n° 2 do 
 art. 10.
 Como escreve Miguel Lucas Pires, em “Dos Privilégios Creditórios: Regime 
 Jurídico e sua influência no Concurso de Credores”, pp. 132/134, “os fundamentos 
 utilizados pelos arestos que consideraram inconstitucional a aplicação do regime 
 do art.751º aos privilégios imobiliários da Segurança Social – a falta de 
 publicidade, a falta de conexão entre o bem sobre que recai a garantia e a causa 
 do crédito, a inexistência de limite temporal e a existência de garantias 
 alternativas – são perfeitamente extensíveis ao regime delineado pelo n° 2 do 
 art. 10º para os privilégios mobiliários gerais. (...) Por outro lado, o juízo 
 de censura que nos merece este art. 10º, nº 2 – comparativamente com o art. 11º 
 
 - é, em certa medida, mais veemente, porquanto esta norma viola directamente os 
 referidos princípios constitucionais “qua tale”, enquanto o privilégio 
 imobiliário apenas o fará a perfilhar-se uma das interpretações possíveis da 
 norma que o atribua, “in casu” a sua submissão ao regime do art. 751°”.
 Pelo exposto não se aplicará o nº 2 do art. 10º do DL 103/80, de 8[9]/5, por 
 violar o princípio da confiança, consagrado no art. 2° da Constituição da 
 República Portuguesa.
 Nos termos do disposto no art.97°, n°1, a) do CIRE com a declaração de 
 insolvência os privilégios creditórios gerais acessórios de créditos sobre a 
 insolvência de que forem titulares o Estado, as autarquias locais e Segurança 
 Social constituídos mais de 12 meses antes da data do inicio do processo de 
 insolvência extinguem-se, passando os créditos que deles beneficiavam a créditos 
 comuns.
 
 (…)
 No caso dos autos, como já dissemos foram apenas apreendidos bens móveis, sendo 
 que quanto a 5700 acções foi constituído penhor a favor de A., S.A.
 III. Decisão
 Por todo o exposto, nos termos das disposições legais referidas e ainda atento 
 ao disposto nos arts. 172°, n°s 1 e 2, 174°, n°1, 175°, n°s 1 e 2 e 176° do 
 CIRE, homologa-se a lista de credores reconhecidos pelo Sr. Administrador da 
 insolvência, constante a fls. 10 a 28, com as rectificações/correcções de fls. 
 
 91-92 e graduam-se os créditos da seguinte forma, saindo as custas do processo e 
 despesas da liquidação precípuas do produto dos bens penhorados:
 A) Relativamente às acções objecto de penhor:
 
 1° O crédito garantido por penhor de A., S.A;
 
 2° Os créditos dos trabalhadores, a pagar rateadamente se necessário;
 
 3° Os créditos do Estado relativos a IRC, IRS e IVA, constituídos menos de 12 
 meses antes do início do processo de insolvência;
 
 4° Os créditos da Segurança Social, constituídos menos de 12 meses antes do 
 início do processo de insolvência;
 
 5° Os restantes créditos reconhecidos, que têm natureza comum e os do Estado e 
 da Segurança Social constituídos mais de 12 meses antes do início do processo de 
 insolvência e crédito do Estado não referido em A) 3° e B) 2°, resultante de 
 reversão, mencionado na lista de créditos, que também têm natureza comum, 
 rateadamente, se necessário;
 B) Relativamente aos demais bens apreendidos:
 
 (…)».
 
  
 
  
 
 3. Notificado para alegar, o recorrente concluiu que:
 
  
 
 «1º
 Os privilégios creditórios gerais, mobiliários e imobiliários, não se configuram 
 actualmente como direitos reais de garantia, face ao disposto na lei civil, 
 estando desprovidos de sequela sobre os bens que oneram e de prevalência sobre 
 as garantias gerais que incidam sobre tais bens.
 
 2º
 A norma constante do n° 2 do artigo 10º do Decreto-Lei n° 103/80, de 08 [9] de 
 Maio, ao conferir eficácia real ao privilégio mobiliário geral, outorgado à 
 Segurança Social, abrangendo todos os bens móveis existentes no património da 
 entidade devedora, susceptível de prevalecer sobre qualquer penhor; ainda que de 
 constituição anterior, afecta o princípio da confiança e da segurança no 
 comércio jurídico, ao possibilitar a existência de ónus ocultos sobre o 
 património do devedor, susceptíveis de precludir, em absoluto, um direito real 
 de garantia, constituído sobre bens determinados, ultrapassando a regra da 
 prioridade temporal na eficácia das várias garantias.
 
 3º
 Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado 
 pela decisão recorrida».
 
  
 Cumpre apreciar e decidir.
 
  
 II. Fundamentação
 
 1. A norma que é objecto do presente recurso é a constante do artigo 10º, nº 2, 
 do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, diploma que aprovou o Regime Jurídico 
 das Contribuições para a Previdência.
 O artigo 10º (Privilégio mobiliário) tem a seguinte redacção: 
 
  
 
 «1 – Os créditos das caixas de previdência por contribuições e os respectivos 
 juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se logo após os 
 créditos referidos na alínea a) do nº 1 do artigo 747º do Código Civil.
 
 2 – Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição 
 anterior».
 
  
 O Tribunal da Comarca de Leiria recusou a aplicação do nº 2 deste artigo, 
 enquanto faz prevalecer sobre qualquer penhor, ainda que de constituição 
 anterior, o privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos da Segurança 
 Social por contribuições e os respectivos juros de mora, por violação do 
 princípio da confiança, consagrado no artigo 2º da Constituição da República 
 Portuguesa (CRP).
 
  
 
 2. Os créditos por contribuições devidas a caixas sindicais de previdência, 
 caixas de reforma ou de previdência e caixas de abono de família gozavam, já em 
 
 1951, do privilégio mobiliário geral que lhes era concedido pelo artigo 14º do 
 Decreto-Lei nº 38 538, de 24 de Novembro. 
 Posteriormente, o artigo 167º do Decreto-Lei nº 45 266, de 23 de Setembro de 
 
 1963, manteve o privilégio mobiliário geral dos créditos por contribuições 
 devidas às caixas sindicais de previdência, tendo sido, no entanto, questionada 
 a subsistência deste privilégio face ao texto do artigo 8º do Decreto-Lei nº 47 
 
 344, de 25 de Novembro de 1966, diploma que aprovou o Código Civil (sobre isto, 
 cf. Vaz Serra, “O privilégio mobiliário geral das caixas sindicais de 
 previdência”, Revista dos Tribunais, Ano 90º, nº 1875, 1972, p. 387 e ss. e 
 Pessoa Jorge, “Privilégio creditório a favor das instituições de previdência”, 
 Ciência e Técnica Fiscal, nºs 169-170, 1973, p. 67 e ss.). 
 As dúvidas foram definitivamente dissipadas com a publicação do Decreto-Lei nº 
 
 512/76, de 3 de Julho – diploma que tinha por objectivo definir as garantias que 
 assistiam aos créditos por contribuições do regime geral de previdência e aos 
 respectivos juros de mora –, cujo artigo 1º prescrevia que os créditos pelas 
 contribuições do regime geral de previdência e respectivos juros de mora gozam 
 de privilégio mobiliário geral, graduando-se logo após os créditos referidos na 
 alínea a) do nº 1 do artigo 747º do Código Civil, prevalecendo este privilégio 
 sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior. 
 Esta garantia dos créditos das caixas de previdência por contribuições e 
 respectivos juros de mora manteve-se no artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80, 
 diploma que estabeleceu o Regime Jurídico das Contribuições para a Previdência. 
 
 “O pagamento pontual das contribuições devidas às instituições de previdência é 
 absolutamente indispensável como fonte básica de financiamento das prestações da 
 segurança social” (ponto 1. da Exposição de motivos do diploma).
 
  
 
 3. O Tribunal Constitucional já se pronunciou pela não inconstitucionalidade do 
 nº 1 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80, concluindo que o privilégio 
 mobiliário geral de que gozam os créditos da Segurança Social por contribuições 
 e os respectivos juros de mora tem justificação do ponto de vista 
 jurídico-constitucional (Acórdão nº 688/98, disponível em 
 
 www.tribunalconstitucional.pt. No mesmo sentido, cf. Acórdão nº 153/2002, 
 disponível no mesmo sítio, relativamente ao privilégio mobiliário geral 
 outorgado ao Estado para garantia de créditos fiscais provenientes de IVA e 
 respectivos juros compensatórios).
 No Acórdão nº 688/98 escreveu-se, entre o mais, o seguinte:
 
  
 
 «4.1. Definidos assim os contornos do princípio da igualdade, importa analisar 
 se a consagração do privilégio levado a efeito pelo artº 10º do D.L. nº 103/80, 
 tendo como pano de fundo (reitera-se) a par conditio creditorum estabelecida 
 pelo principal compêndio legislativo civil, é perspectivável como uma 
 arbitrariedade, irrazoabilidade ou algo carecido de fundamento material bastante 
 
 (ou, se se quiser, não estribado em motivo constitucionalmente próprio).
 A resposta a esta questão deve, no entender do Tribunal, sofrer resposta 
 negativa.
 Na realidade, de entre os direitos sociais, institui a Constituição o direito à 
 segurança social (nº 1 do artigo 63º), impondo como uma das tarefas do Estado 
 organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado (nº 2 
 do mesmo artigo).
 Ora, não podendo aceitar-se que os recursos do Estado são ilimitados, e sabido 
 que é que uma importante parte dos réditos da segurança social advêm das 
 contribuições impostas para esse fim, designadamente a cargo ou da 
 responsabilidade das entidades patronais, não se afigura como irrazoável ou 
 injustificado que, havendo débitos surgidos pela não satisfação daquelas 
 contribuições, os correspectivos créditos venham a ser dotados de uma mais 
 vincada garantia de cumprimento das obrigações subjacentes.
 A isto acresce, e decisivamente, que, de uma banda, sendo um privilégio 
 mobiliário geral, não incide ele sobre determinados ou concretos bens móveis do 
 devedor (desta arte postergando outros direitos reais de garantia - excepção 
 feita ao penhor - que sobre eles fosse constituído), e, de outra, que não está 
 em causa uma garantia dotada de sequela oponível a credores titulados por 
 garantias ou direitos reais sobre os bens objecto de penhora.
 Daí que se não lobrigue qualquer excesso ou desproporção intolerável na 
 consagração desta forma de garantia especial da obrigação de cumprimento das 
 contribuições para a segurança social, antes, e como se viu, existindo um motivo 
 ou fundamento constitucionalmente adequado ou válido, alicerçado no artigo 63º 
 da Lei Fundamental, para tal consagração e que, referentemente à mencionada par 
 conditio creditorum, representa uma distinção de tratamento ou, pelo menos, 
 comporta uma certa forma de sacrifício para o credor comum não munido de 
 qualquer garantia especial».
 
  
 Naqueles dois acórdãos foi feito um julgamento de não inconstitucionalidade de 
 normas que outorgam privilégios mobiliários gerais para garantia de créditos da 
 segurança social ou de créditos fiscais, fundado na ideia de que as finalidades 
 subjacentes ao sistema da segurança social e ao sistema fiscal justificam a 
 quebra da regra da par conditio creditorum, consagrada no artigo 604º, nº 1, do 
 Código Civil. Uma justificação de há muito avançada pela doutrina, nomeadamente 
 para sustentar a manutenção do privilégio mobiliário geral que garantia créditos 
 por contribuições devidas a instituições de previdência, face ao texto do artigo 
 
 8º do diploma que aprovou o Código Civil (cf., entre outros, Sousa Franco, 
 
 “Aspectos fiscais do novo Código Civil”, Ciência e Técnica Fiscal, nº 98, 1967, 
 p. 80 e s., Vaz Serra, loc. cit., p. 391 e Pessoa Jorge, loc. cit., p. 82 e 
 ss.).
 
  
 
 4. Não obstante os privilégios creditórios da Segurança Social terem 
 justificação do ponto de vista jurídico-constitucional, o Tribunal 
 Constitucional julgou inconstitucional o artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, 
 enquanto confere à Segurança Social um privilégio imobiliário geral, dotado de 
 sequela sobre todos os imóveis existentes à data da instauração da execução no 
 património do devedor, oponível independentemente do registo a todos os 
 adquirentes de direitos reais de gozo sobre os bens onerados (cf. acórdãos nºs 
 
 354/2000 e 561/2000, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). E declarou a 
 inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do 
 artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, e do artigo 2º do Decreto-Lei 
 nº 512/76, de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio 
 imobiliário geral nelas conferido à Segurança Social prefere à hipoteca, nos 
 termos do artigo 751º do Código Civil (Acórdão nº 363/2002, disponível em 
 
 www.tribunalconstitucional.pt. No mesmo sentido, cf. Acórdão nº 362/2002, 
 disponível no mesmo sítio, que declara a inconstitucionalidade, com força 
 obrigatória geral, da norma constante, na versão primitiva, do artigo 104º do 
 Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo 
 Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30 de Novembro, e, hoje, na renumeração resultante 
 do Decreto-Lei nº 198/2001, de 3 de Julho, do seu artigo 111º, na interpretação 
 segundo a qual o privilégio imobiliário geral nele conferido à Fazenda Pública 
 prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil).
 No Acórdão nº 160/2000, uma das decisões que deu origem à declaração de 
 inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do Acórdão nº 
 
 363/2002, escreveu-se o seguinte:
 
  
 
 «5. -     É indiscutível que o legislador com as normas dos artigos 2º do 
 Decreto-Lei n.º 512/76 e 11º do Decreto-Lei n.º 103/80 pretendeu dar alguma 
 preferência aos créditos da Segurança Social ao determinar que os créditos ali 
 consignados sejam graduados logo a seguir aos do Estado e das autarquias locais, 
 referidos no artigo 748º do Código Civil.
 
  No entanto, a interpretação que o acórdão recorrido fez destas normas, mediante 
 a aplicação do regime do artigo 751º do Código Civil, confere a este privilégio 
 a natureza de verdadeiro direito real de garantia, munido de sequela sobre todos 
 os imóveis existentes no património da entidade devedora das contribuições para 
 a previdência, à data da instauração da execução, e, atribui-lhe  preferência 
 sobre  direitos reais de garantia - a consignação de rendimentos, a hipoteca e o 
 direito de retenção - ainda que anteriormente constituídos.
 Este privilégio, com esta amplitude, funciona à margem do registo (já que a ele 
 não está sujeito) e sacrifica os demais direitos de garantia consignados no 
 artigo 751º, designadamente a hipoteca - que é o caso dos autos.
 Não se questiona que face à natureza, às finalidades e às funções atribuídas a 
 certos créditos de entidades públicas que visam permitir ao Estado a satisfação 
 de relevantes necessidades colectivas constitucionalmente tuteladas - como é o 
 caso da Segurança Social cujo imperativo constitucional resulta do artigo 63º -, 
 se possa conferir algum privilégio ao credor, expresso, nomeadamente, na quebra 
 do princípio da 'par conditio creditorum' (como se concluiu no do já citado 
 acórdão 688/98), nem, tão pouco, que se atribua um regime procedimental 
 específico para a cobrança coerciva de tais créditos (cfr. acórdãos 51/99 
 publicado no Diário da República IIª série, de 05/04/99, e 281/99, inédito).
 
 6. -      A orientação jurisprudencial que estes arestos reflectem não pode, no 
 entanto, sem mais, ser aplicada ao concreto caso, referente a um privilégio 
 imobiliário geral.
 Com efeito, o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de 
 direito democrático, postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas 
 expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações 
 inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se 
 poderia moral e razoavelmente contar (cfr. inter alia, os acórdãos nºs. 303/90 e 
 
 625/98, publicados no Diário da República, II Série, de 26 de Dezembro de 1990 e 
 
 18 de Março de 1999, respectivamente).
 A esta luz, pergunta-se – e os recorrentes fazem-no – que segurança jurídica, 
 constitucionalmente relevante, terá o cidadão, perante uma interpretação 
 normativa que lhe neutraliza a garantia real (hipoteca) por si registada, 
 independentemente de o ter sido em data posterior ao início da vigência das 
 normas em causa.
 
 É que, por um lado, o registo predial tem uma finalidade prioritária que radica 
 essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus 
 ocultos que possam dificultar a constituição e circulação de direitos com 
 eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas – que, 
 em certa perspectiva, possam afectar a segurança do comércio jurídico 
 imobiliário (cfr. Oliveira Ascensão, Direito Civil. Reais, Coimbra, 1993, pág. 
 
 333; Isabel Pereira Mendes, “Repercussão no Registo das Acções dos Princípios do 
 Direito Registral e da Função Qualificadora dos Conservadores do Registo 
 Predial” in – O Direito, ano 123, 1991, págs. 599 e segs., maxime, pág. 604; 
 Paula Costa e Silva, “Efeitos do Registo e Valores Mobiliários. A Protecção 
 Conferida ao Terceiro Adquirente”, in – Revista da Ordem dos Advogados, ano 58, 
 
 1998, II, págs. 859 e ss., maxime pág. 862).
 Por outro lado, o princípio da confidencialidade tributária impossibilita os 
 particulares de previamente indagarem se as entidades com quem contratam são ou 
 não devedoras ao Estado ou à Segurança Social.
 Ora, não estando o crédito da Segurança Social sujeito a registo, o particular 
 que registou o seu privilégio, uma vez instaurada a execução com fundamento 
 nesse crédito privilegiado, ou que ali venha a reclamar o seu crédito, pode ser 
 confrontado com uma realidade – a existência de um crédito da Segurança Social – 
 que frustra a fiabilidade que o registo naturalmente merece.
 Acresce que, não se encontrando este privilégio sujeito a limite temporal e 
 atento o seu âmbito de privilégio 'geral', e não existindo qualquer conexão 
 entre o imóvel onerado pela garantia e o facto que gerou a dívida (no caso à 
 Segurança Social), ao contrário do que sucede com os privilégios especiais 
 referidos nos artigos 743º e 744º do Código Civil, a sua subsistência, com a 
 amplitude acima assinalada, implica também uma lesão desproporcionada do 
 comércio jurídico.
 Finalmente, ainda se dirá não se surpreender suporte razoável adequado para esta 
 desproporcionada lesão na tutela dos interesses da Segurança Social e no destino 
 das contribuições que esta deixou de receber, pois a Segurança Social dispõe de 
 meios adequados para assegurar a efectividade dos seus créditos, sem frustração 
 das expectativas de terceiros: bastar-lhe-á proceder ao oportuno registo da 
 hipoteca legal, nos termos do artigo 12º do Decreto-Lei n.º 103/80.
 A interpretação normativa em sindicância viola, em conclusão, o princípio da 
 confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no 
 artigo 2º da Constituição da República».
 
  
 Para além da remissão para os fundamentos desta decisão, pode ainda ler-se no 
 Acórdão nº 363/2002 que:
 
  
 
 «(…) como se entendeu no acórdão nº 109/01 [02], tirado em plenário – ao 
 debruçar-se sobre a norma do artigo 104º do CIRS, quando interpretada no sentido 
 de que o privilégio imobiliário geral nela conferido prefere à hipoteca, nos 
 termos do artigo 751º do Código Civil (…) –, o princípio da confiança é violado 
 na medida em que, gozando o privilégio de preferência sobre os direitos reais de 
 garantia, de que terceiros sejam titulares, sobre os bens onerados, esses 
 terceiros são afectados sem, no entanto, lhes ser acessível o conhecimento quer 
 da existência do crédito, protegido que está pelo segredo fiscal, quer do ónus 
 do privilégio, devido à inexistência de registo».
 
  
 Nos acórdãos mencionados, o Tribunal Constitucional apreciou normas que outorgam 
 privilégios imobiliários gerais para garantia de créditos da segurança social ou 
 de créditos fiscais, susceptíveis de preferir a direitos reais de gozo ou de 
 garantia, independentemente de registo prévio, concluindo pela 
 inconstitucionalidade por violação do princípio da confiança, ínsito no 
 princípio do Estado de direito democrático (artigo 2º da CRP).
 
  
 
 5. Porém, no Acórdão nº 193/2003 o Tribunal decidiu não julgar inconstitucional 
 a norma constante do artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 8 de Maio, 
 interpretada em termos de o privilégio imobiliário geral nela conferido às 
 instituições de segurança social preferir à garantia emergente do registo da 
 penhora sobre determinado imóvel (no mesmo sentido, cf. Acórdãos nºs 231/2003 e 
 
 697/2004, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Relativamente a esta 
 norma o Tribunal concluiu que a ponderação a efectuar entre os fundamentos da 
 existência do privilégio, por um lado, e a confiança dos cidadãos, por outro, 
 não pende no sentido de se considerar aquele como incompatível com a 
 Constituição. Ou seja, as razões que levaram este Tribunal a concluir pela 
 inconstitucionalidade da prevalência do privilégio sobre a hipoteca 
 anteriormente registada não valem, da mesma forma, relativamente a essa 
 prevalência face à penhora.
 
  
 
 6. Nos presentes autos, a decisão recorrida foi no sentido de estas razões, 
 constantes do Acórdão nº 362/2002, valerem também para a norma que faz 
 prevalecer o privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos da Segurança 
 Social por contribuições e os respectivos juros de mora sobre qualquer penhor, 
 ainda que de constituição anterior (artigo 10º, nº 2, do Regime Jurídico das 
 Contribuições para a Previdência). O tribunal recorrido aderiu expressamente às 
 razões que levaram o Tribunal Constitucional a declarar a inconstitucionalidade, 
 com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 11º do Decreto-Lei nº 
 
 103/80, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela 
 conferido à Segurança Social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do 
 Código Civil. Para a sentença, a falta de publicidade, a falta de conexão entre 
 o bem sobre que recai a garantia e a causa do crédito, a inexistência de limite 
 temporal e a existência de garantias alternativas são fundamentos “perfeitamente 
 extensíveis ao regime delineado pelo nº 2 do artigo 10º para os privilégios 
 mobiliários gerais”. 
 Importa, por isso, começar por aferir se tais fundamentos são todos eles 
 perfeitamente extensíveis à norma que cumpre apreciar.
 
  
 
 7. Antecipando a conclusão, é de afirmar que nem todos aqueles fundamentos são 
 extensíveis ao nº 2 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80 e que o primeiro 
 fundamento não é perfeitamente extensível a esta disposição legal.
 
 7.1. Nos autos que deram origem à decisão recorrida, o privilégio mobiliário 
 geral em causa tem um limite temporal – o decorrente do disposto no artigo 97º, 
 nº 1, alínea a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, segundo 
 o qual com a declaração de insolvência os privilégios creditórios gerais 
 acessórios de créditos sobre a insolvência de que for titular a Segurança Social 
 constituídos mais de 12 meses antes da data do início do processo de insolvência 
 extinguem-se, passando os créditos que deles beneficiavam a créditos comuns. E 
 um tal limite, que a sentença recorrida aplica de forma expressa, pode 
 repercutir-se no juízo sobre a constitucionalidade da norma em apreciação, por 
 referência à proporcionalidade da lesão do comércio jurídico (cf. supra, ponto 
 
 4. da Fundamentação, na parte em que se transcreve o Acórdão nº 160/2000).
 Por outro lado, a Segurança Social não dispõe relativamente aos bens móveis que 
 estão em causa nos presentes autos de meio equivalente ao previsto no artigo 12º 
 daquele Decreto-Lei – hipoteca legal sobre imóveis existentes no património das 
 entidades patronais. O que pode ter repercussão na apreciação da conformidade 
 constitucional da norma em causa, por referência à proporcionalidade da lesão do 
 comércio jurídico (cf. supra, ponto 4. da Fundamentação, na parte em que se 
 transcreve o Acórdão nº 160/2000).
 
  
 
 7.2. O fundamento da falta de publicidade não é perfeitamente extensível ao nº 2 
 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80, na medida em que a fundamentação do 
 Acórdão nº 363/2002, a este propósito, nunca perdeu de vista a circunstância de 
 estar em causa uma garantia real (hipoteca) registada pelo credor. Face à 
 finalidade prioritária do registo predial e ao princípio da confidencialidade 
 tributária, o Tribunal concluiu que “não estando o crédito da Segurança Social 
 sujeito a registo, o particular que registou o seu privilégio, uma vez 
 instaurada a execução com fundamento nesse crédito privilegiado, ou que ali 
 venha a reclamar o seu crédito, pode ser confrontado com uma realidade – a 
 existência de um crédito da Segurança Social – que frustra a fiabilidade que o 
 registo naturalmente merece”.
 Na norma em apreciação também se contrapõe ao privilégio conferido à Segurança 
 Social um direito real de garantia – o penhor (artigo 666º do Código Civil) –, 
 só que, diferentemente do que sucede com a hipoteca (artigo 687º do Código 
 Civil), tal direito não é objecto de registo. Desta forma, não é frustrada a 
 fiabilidade que o registo naturalmente merece, devendo concluir-se que o credor 
 pignoratício não tem uma expectativa jurídica equiparável à do credor 
 hipotecário.
 
 É certo que, nos presentes autos, está em causa um penhor de acções e que os 
 valores mobiliários são também objecto de registo. Sucede, porém, que este 
 registo não se destina essencialmente a dar publicidade à situação jurídica de 
 tais bens, tendo em vista a segurança do comércio jurídico de valores 
 mobiliários, diferentemente do que sucede com o registo predial (cf. artigo 1º 
 do Código do Registo Predial). O registo de valores mobiliários não está sujeito 
 
 à regra da publicidade (sobre isto, cf. Paula Costa e Silva, “Efeitos do registo 
 e valores mobiliários. A protecção conferida ao terceiro adquirente”, Revista da 
 Ordem dos Advogados, Ano 58, 1998, p. 862 e ss. e Ferreira de Almeida, “Registo 
 de valores mobiliários”, Direito dos Valores Mobiliários, volume VI, Coimbra 
 Editora, 2006, p. 99).
 
  
 
 8. Subsiste, no entanto, a questão de saber se o nº 2 do artigo 10º do 
 Decreto-Lei nº 103/80, enquanto faz prevalecer sobre qualquer penhor, ainda que 
 de constituição anterior, o privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos 
 da Segurança Social por contribuições e os respectivos juros de mora, viola o 
 princípio da confiança (artigo 2º da CRP). 
 Para além de um dos fundamentos do Acórdão nº 363/2002 ser perfeitamente 
 extensível à norma cuja aplicação foi recusada com fundamento em 
 inconstitucionalidade – a falta de conexão entre o bem sobre que recai a 
 garantia e a causa do crédito –, é um facto que o princípio da confidencialidade 
 tributária tem repercussões na publicidade daquele privilégio. Devendo notar-se, 
 no entanto, que o legislador foi atenuando este princípio, reduzindo, 
 consequentemente, a existência de ónus ocultos: segundo o artigo 20º do 
 Decreto-Lei nº 103/80, dos relatórios anuais das empresas públicas e das 
 sociedades, de publicação obrigatória, deverá constar se as mesmas são ou não 
 devedoras à respectiva caixa de previdência e qual o montante em dívida; de 
 acordo com o disposto nos nºs 5 e 6 do artigo 64º da Lei Geral Tributária, na 
 redacção introduzida pela Lei nº 60-A/2005, de 30 de Dezembro, permite-se a 
 divulgação de listas de contribuintes cuja situação tributária não se encontre 
 regularizada.
 
  
 
 9. Este Tribunal tem entendido que o princípio da confiança, ínsito na ideia do 
 Estado de direito democrático (artigo 2º da CRP), é violado apenas quando haja 
 uma afectação inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa de expectativas 
 legitimamente fundadas dos cidadãos (cf., entre muitos outros, Acórdãos n.º 
 
 287/90, 303/90, 625/98, 634/98, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). 
 Seguindo o critério do Acórdão n.º 287/90:
 
  
 
 «A ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos dois 
 seguintes critérios:
 a)      A afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, 
 quando constitua uma mutação na ordem jurídica com que, razoavelmente, os 
 destinatários das normas dela constantes não possam contar; e, ainda
 b)      Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou 
 interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes 
 
 (deve recorrer-se aqui ao princípio da proporcionalidade, explicitamente 
 consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no nº 2 do artigo 
 
 18º da Constituição, desde a 1ª revisão).
 Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente 
 onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se 
 excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária».
 
  
 Ora, relativamente à norma em apreciação não se pode sequer afirmar uma mutação 
 na ordem jurídica. Por um lado, de há muito que o privilégio mobiliário geral de 
 que gozam os créditos da Segurança Social por contribuições e os respectivos 
 juros prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior (cf. 
 supra, ponto 2. da Fundamentação); por outro, na falta de registo público, a 
 ordem jurídica instituída não criou expectativas jurídicas atinentes à segurança 
 do comércio jurídico que a norma impugnada tenha alterado (cf. supra, ponto 7. 
 da Fundamentação).
 Em suma, o artigo 10º, nº 2, do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, não viola o 
 princípio da confiança, ínsito na ideia do Estado de direito democrático (artigo 
 
 2º da Constituição da República Portuguesa), enquanto faz prevalecer sobre 
 qualquer penhor, ainda que de constituição anterior, o privilégio mobiliário 
 geral de que gozam os créditos da Segurança Social por contribuições e os 
 respectivos juros de mora – privilégio creditório com justificação 
 constitucional por referência ao artigo 63º da CRP. 
 
  
 III. Decisão
 Em face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso, determinando a 
 reforma da decisão recorrida em conformidade com o decidido quanto à questão de 
 constitucionalidade.
 Sem custas.
 
  
 Lisboa, 10 de Fevereiro de 2009
 Maria João Antunes
 Carlos Pamplona de Oliveira
 Gil Galvão
 José Borges Soeiro
 Rui Manuel Moura Ramos