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Processo n.º 777/08
 Plenário
 Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
 
 
 Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
 
  
 
  
 
             I – Relatório 
 
  
 
 1. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional 
 requereu, nos termos do artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e 
 Processo do Tribunal Constitucional (LTC), a apreciação e a declaração, com 
 força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 
 
 189.º, n.º 2, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 
 aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, “que impõe que o juiz, na 
 sentença que qualifique a insolvência como culposa, decrete a inabilitação do 
 administrador da sociedade comercial declarada insolvente”.
 Alega-se no pedido que a norma em causa foi, no âmbito da fiscalização concreta 
 da constitucionalidade, julgada, por três vezes, materialmente inconstitucional, 
 por ofensa ao artigo 26.º, conjugado com o artigo 18.º da Constituição, no 
 segmento em que consagra o direito à capacidade civil. Tal sucedeu no Acórdão 
 n.º 564/2007 e nas decisões sumárias n.ºs 615/2007 e 85/2008.
 
  
 
             2. Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, 
 n.º 3, da LTC, o Primeiro-Ministro, em resposta, ofereceu o merecimento dos 
 autos.
 
  
 
 3. Debatido o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal, nos termos do 
 artigo 63.º da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, procedeu-se à 
 distribuição do processo, cumprindo agora formular a decisão.
 
  
 
                         
 
             II – Fundamentação
 
             
 
 4. Não se suscitam dúvidas quanto ao preenchimento dos pressupostos de que os 
 artigos 281.º, n.º 3, da CRP, e 82.º da LTC fazem depender a apreciação de um 
 pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral.
 Na verdade, como se aduz no pedido, a mesma norma já foi julgada 
 inconstitucional em três casos concretos. No acórdão n.º 564/2007, foi decidido 
 
 «julgar inconstitucional a norma do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do mesmo 
 diploma [Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas], por ofensa ao 
 artigo 26.º, conjugado com o artigo 18.º da Constituição da República, no 
 segmento em que consagra o direito à capacidade civil». Na decisão sumária n.º 
 
 615/2007, por sua vez, decidiu-se julgar inconstitucional a mesma norma “quando 
 aplicada a administrador de sociedade comercial declarada insolvente”. Na 
 decisão sumária n.º 85/2008, o julgamento de inconstitucionalidade obedeceu aos 
 mesmos termos dos constantes no acórdão n.º 564/2007. 
 A mais destes três decisões identificadas pelo requerente, também os acórdãos 
 n.ºs 570/2008, 571/2008, 584/2008, e as decisões sumárias n.ºs 267/2008, 
 
 323/2008, 376/2008, 417/2008 e 425/2008 se pronunciaram pela 
 inconstitucionalidade da norma constante da alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º 
 do CIRE, com fórmulas decisórias idênticas à do acórdão n.º 564/2007. Os 
 acórdãos n.ºs 581/2008 e 582/2008, bem como as decisões sumárias n.ºs 288/2008, 
 
 321/2008, 371/2008 e 421/2008 julgaram essa norma inconstitucional “na parte em 
 que impõe que o juiz, na sentença, decrete a inabilitação do administrador da 
 sociedade comercial declarada insolvente”.
 Como se vê, não há coincidência total na identificação das pessoas sujeitas à 
 aplicação da medida de inabilitação. De facto, enquanto que, num grupo de 
 decisões (aí incluída a primeiramente tomada), não se faz qualquer enunciação 
 restritiva, já num outro se circunscreve o juízo de inconstitucionalidade a uma 
 certa dimensão aplicativa da norma: a aplicação a administradores de sociedade 
 comercial declarada insolvente.
 Há, no entanto, que ter presente que, em todas as situações alvo das decisões 
 apontadas pelo requerente, sempre os sujeitos afectados pelo decretamento da 
 inabilitação revestiam essa qualidade. Daí que, tratando-se de fiscalização 
 concreta, a “norma do caso” tinha forçosamente esse âmbito directo de 
 incidência, ainda quando a decisão o não refira expressamente.
 O requerente pede a declaração de inconstitucionalidade da norma constante do 
 artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do CIRE, “que impõe que o juiz, na sentença que 
 qualifique a insolvência como culposa, decrete a inabilitação do administrador 
 da sociedade comercial declarada insolvente”.
 Pode concluir-se, atento o exposto, que há correspondência entre o objecto do 
 pedido e o objecto das decisões de inconstitucionalidade, em três casos 
 concretos.  
 
  
 
   5. O artigo 189.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de 
 Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto Lei n.º 53/2004, estabelece, sob a 
 epígrafe 'sentença de qualificação': 
 
 «Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
 a) Identificar as pessoas afectadas pela qualificação;
 b) Decretar a inabilitação das pessoas afectadas por um período de 2 a 10 anos; 
 c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um 
 período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de 
 
 órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de 
 actividade económica, empresa pública ou cooperativa; 
 d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa 
 insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação 
 na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.»
 
  
 
             A disposição legal prevê, portanto, para além de outras medidas, a 
 inabilitação obrigatória das pessoas afectadas pela qualificação da falência 
 como culposa, independentemente da verificação dos requisitos gerais da 
 inabilitação.
 Ainda que com antecedentes remotos no direito pátrio, que remontam ao Código 
 Comercial de 1833, e se prolongaram até ao Código de Processo Civil de 1939, a 
 solução não se encontrava prevista no Código dos Processos Especiais de 
 Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 
 
 23 de Abril, pelo que tem carácter inovador. 
 Parece poder retirar-se de uma alusão expressa no n.º 40 do preâmbulo do 
 Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, que a fonte directa da norma em causa 
 foi a Ley Concursal espanhola (Ley 22/2003), promulgada pouco antes, em 9 de 
 Julho de 2003. Mas aí (artigo 172., 2., 2.), a condição pessoal designada como 
 
 “inabilitação” afecta bem menos a capacidade do sujeito afectado, pois 
 retira-lhe apenas legitimidade para administrar bens alheios e para representar 
 outras pessoas – cfr. COUTINHO DE ABREU, Curso de direito comercial, I, 6.ª ed., 
 Coimbra, 2006, 125, n. 100.
 Na doutrina, aventa-se a hipótese de que este diverso alcance se ficou a dever a 
 uma tradução à letra do vocábulo “inhabilitácion”, sem representar o seu 
 significado próprio no direito espanhol, não coincidente com o da figura como 
 tal designada e regulada no nosso Código Civil, que o direito dos nossos 
 vizinhos desconhece – cfr. LUÍS CARVALHO FERNANDES, “A qualificação da 
 insolvência e a administração da massa insolvente pelo devedor”, Themis, 2005, 
 
 104, n. 36, e RUI PINTO DUARTE, “Efeitos da declaração de insolvência quanto à 
 pessoa do devedor”, ibidem, 146 (Autor, este, que não hesitou em afirmar que 
 
 “parece, pois, que o legislador do CIRE se equivocou quanto ao sentido da sua 
 fonte inspiradora”).
 Seja como for, a consagração da medida provocou, quase de imediato, viva reacção 
 crítica na doutrina nacional, dela merecendo epítetos como “estranha” (COUTINHO 
 DE ABREU, ob. loc. cit.), ou “absurdas” (RUI PINTO DUARTE, ob. cit., 145, em 
 referência às normas que a regulam: para além da norma sub judicio, o artigo 
 
 190.º do CIRE). 
 Mas, para lá das críticas que possa suscitar no plano do direito ordinário, será 
 que a norma da alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE está também ferida de 
 inconstitucionalidade?
 
  
 
 6. Assim o entendeu o Acórdão n.º 564/2007, considerando que a disposição, ao 
 impor a inabilitação como efeito necessário da situação de insolvência culposa, 
 violava o artigo 18.º, n.º 2, e o artigo 26.º da Constituição, na parte em que 
 este último reconhece o direito à capacidade civil.
 Para decidir em tal sentido, o mencionado Acórdão, depois de afastar a violação 
 de outros parâmetros constitucionais invocados pelo requerente, expendeu a 
 fundamentação que a seguir se transcreve: 
 
 «De facto, a inabilitação a que a insolvência pode conduzir só pode ser a 
 correspondente ao instituto jurídico civilístico com essa designação, previsto 
 nos artigos 152.º e seguintes do Código Civil – neste sentido, CARVALHO 
 FERNANDES, “A qualificação da insolvência e a administração da massa insolvente 
 pelo devedor”, Themis, ed. esp., 2005, 97.  Trata-se, pois, de uma situação de 
 incapacidade de agir negocialmente, traduzindo a inaptidão para, por acto 
 exclusivo (sem carecer do consentimento de outrem), praticar “actos de 
 disposição de bens entre vivos e todos os que, em atenção às circunstâncias de 
 cada caso, forem especificados na sentença” (artigo 153.º, n.º 1, do Código 
 Civil).
 Ora, o reconhecimento constitucional da capacidade civil, como decorrência 
 imediata da personalidade e da subjectividade jurídicas, cobre, tanto a 
 capacidade de gozo, como a capacidade de exercício ou de agir. É certo que, 
 contrariamente à personalidade jurídica, a capacidade, em qualquer das suas duas 
 variantes, é algo de quantificável, um posse susceptível de gradações, de 
 detenção em maior ou menor medida. Mas a sua privação ou restrição, quando 
 afecte sujeitos que atingiram a maioridade, será sempre uma medida de carácter 
 excepcional, só justificada, pelo menos em primeira linha, pela protecção da 
 personalidade do incapaz. É “em homenagem aos interesses da própria pessoa 
 profunda” (ORLANDO DE CARVALHO, Teoria geral do direito civil, polic., Coimbra, 
 
 1981, 83), quando inabilitada, por razões atinentes à falta de atributos 
 pessoais, para uma autodeterminação autêntica na condução de vida e na gestão 
 dos seus interesses, que a incapacidade, em qualquer das suas formas, pode ser 
 decretada.
 Daí que, para além do disposto no n.º 4 do artigo 26.º da Constituição, as 
 restrições à capacidade civil, incluindo a capacidade de agir, só sejam 
 legítimas quando os seus motivos forem “pertinentes e relevantes sob o ponto de 
 vista da capacidade da pessoa”, não podendo também a restrição “servir de pena 
 ou de efeito de pena” (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República 
 Portuguesa anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 465).
 Nenhuma destas duas condições está aqui preenchida. De facto, neste âmbito, a 
 inabilitação não resulta de uma situação de incapacidade natural, de um modo de 
 ser da pessoa que a torne inapta para a gestão autónoma dos seus bens, mas de um 
 estado objectivo de impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas 
 
 (artigo 3.º, n.º 1, do CIRE), imputável a uma actuação culposa do devedor ou dos 
 seus administradores. Forma de conduta que, só por si, não é, evidentemente, 
 indiciadora de qualquer característica pessoal incapacitante.
 
  Em vez de acorrer em tutela de um “sujeito deficitário”, precavendo os seus 
 interesses, a inabilitação é, no quadro da insolvência, uma resultante forçosa 
 de uma dada situação patrimonial, efectivada com total abstracção de 
 características da personalidade do inabilitado, que possam ter conduzido a essa 
 situação.
 
  Que essa correlação inexiste, prova-o, além do mais, o facto de a inabilitação 
 ser decretada por um prazo fixo, sem possibilidade de levantamento, previsto no 
 regime comum, para o caso de desaparecimento das causas de incapacidade natural 
 que, nesse regime, a fundaram.
 E nem se diga que a figura é instrumentalizada para defesa dos interesses dos 
 credores, pois a inabilitação em nada contribui para a consecução da finalidade 
 do processo de insolvência. Este, nos termos do artigo 1.º do CIRE, «é um 
 processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do 
 património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos 
 credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência 
 
 (…).» 
 Para atingir essa finalidade, já existe um mecanismo adequado no processo, 
 tendente à conservação dos bens penhorados. Trata-se da transferência para o 
 administrador da insolvência dos poderes de administração e disposição dos bens 
 integrantes da massa insolvente (artigo 81.º, n.º 1, do CIRE). 
 Mas esta limitação de actuação negocial não pode ser confundida com uma 
 incapacidade, quer pela sua causa e função, quer pelos efeitos dos actos 
 praticados pelo insolvente em contravenção daquela norma: esses actos estão 
 feridos de ineficácia (n.º 6 do artigo 81.º), não de anulabilidade, como seria o 
 caso se fosse a incapacidade a qualificação apropriada. Assim se protege, na 
 justa medida, os interesses dos credores.
 Foi por reconhecer que a situação não pode ser qualificada de incapacidade que o 
 Acórdão n.º 414/2002 deste Tribunal se pronunciou pela conformidade 
 constitucional do, entre outros, artigo 147.º do anterior Código dos Processos 
 Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, a que corresponde, no actual 
 Código, o artigo 81.º, n.º 1. Diz-se aí que essa norma não viola o artigo 26.º 
 da CRP porque «tão pouco afecta o seu [do falido] direito à capacidade civil, 
 mesmo entendido o sentido constitucional deste direito de uma forma ampla (há 
 unanimidade na doutrina, no sentido de que não se trata de uma situação de 
 
 “incapacidade”) […]».
 Nada acrescentando à defesa da integridade da massa insolvente, não se vê também 
 que a inovação introduzida pelo artigo 189.º, n.º 2, alínea b), possa contribuir 
 eficazmente para a defesa dos interesses gerais do tráfego, resguardando a 
 posição de eventuais credores futuros do inabilitado. Pois, na verdade, e de 
 acordo com o regime da inabilitação, estes não terão legitimidade para arguir a 
 invalidade dos actos celebrados pelo inabilitado sem o consentimento do curador. 
 Essa legitimidade, por força do disposto no artigo 125.º do Código Civil, 
 aplicável, com as devidas adaptações, por remissão dos artigos 156.º e 139.º do 
 mesmo Código – v., por todos, C. MOTA PINTO, Teoria geral do direito civil, 4.ª 
 ed. por A. PINTO MONTEIRO/P. MOTA PINTO, Coimbra, 2005, 243 – cabe apenas ao 
 curador, ao próprio inabilitado, uma vez readquirida a capacidade plena, e aos 
 seus herdeiros.
 A inabilitação prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE só pode, 
 pois, ter um alcance punitivo, traduzindo-se numa verdadeira pena para o 
 comportamento ilícito e culposo do sujeito atingido. 
 Sintomaticamente, a sua duração é fixada dentro de uma moldura balizada por um 
 mínimo e um máximo, tal como as penas do foro criminal. E os critérios para a 
 sua determinação, em concreto, não andarão longe dos que operam nesta área 
 
 (designadamente, o grau de culpa e a gravidade das consequências lesivas), pois 
 não se vê que outros possam ser utilizados.
 Essa “pena” fere o sujeito sobre quem recai com uma verdadeira capitis 
 diminutio, sujeitando-o à assistência de um curador (artigo 190.º, n.º 1). Ele 
 perde a legitimidade para a livre gestão dos seus bens, mesmo os não apreendidos 
 ou apreensíveis para os fins da execução, situação que se pode prolongar para 
 além do encerramento do processo (artigo 233.º, n.º 1, alínea a)). 
 Consequência que, tendo também presente a globalidade dos efeitos da 
 insolvência, e em particular a inibição para o exercício do comércio, não pode 
 deixar de ser vista como inadequada e excessiva.
 O que tudo leva a concluir pela desconformidade do artigo 189.º, n.º 2, alínea 
 b), do CIRE, com o artigo 26.º, conjugado com o artigo 18.º, da Constituição da 
 República.»
 
  
 
 7. Estando em juízo a violação do princípio da proporcionalidade – o que é um 
 denominador comum a todas as decisões que sustentam o pedido em apreciação neste 
 processo ─, é determinante, para a formação dos juízos ponderativos que a 
 aplicação desse princípio subentende,  a identificação da teleologia imanente à 
 norma sub judicio e dos interesses que ela procura acautelar. 
 Não existe, nesta matéria, unanimidade de concepções, como se pode constatar 
 pela simples análise da jurisprudência deste Tribunal. Enquanto que o Acórdão 
 n.º 564/2007 não logrou descortinar outra intenção legislativa, por detrás da 
 imposição de decretar a inabilitação, que não fosse a de sancionar a conduta 
 culposa dos sujeitos afectados, a decisão sumária n.º 615/2007, fazendo-se eco 
 de algumas posições doutrinárias, deixa em aberto o entendimento alternativo de 
 que ela visa proteger esses sujeitos.
 Diga-se, além do mais que já ficou expresso naquele acórdão, que os pressupostos 
 aplicativos da inabilitação, só imposta em caso de culpa qualificada (nos termos 
 do artigo 186.º, n.º 1, do CIRE, a culpa relevante circunscreve-se aqui ao dolo 
 ou à culpa grave), criam obstáculos decisivos ao acolhimento desta segunda 
 hipótese, fornecendo, ao invés, um bom argumento em prol da primeira.
 Na verdade, se o destinatário da tutela fosse o próprio afectado pela medida, 
 não se compreenderia a restrição do âmbito subjectivo dos destinatários aos 
 administradores menos merecedores dessa protecção, por lhes ser imputável uma 
 conduta gestionária altamente censurável, deixando de fora aqueles que actuaram 
 sem culpa ou com culpa leve. 
 De resto, a ser esse o fundamento da inabilitação, ficaria sempre por explicar 
 porque é que os pressupostos gerais dessa medida, tal como estabelecidos no 
 Código Civil, se mostram aqui insuficientes ou inadequados, abrindo campo para a 
 aplicação de uma medida restritiva da capacidade, como efeito acessório 
 necessário de uma situação de insolvência culposa, sem dependência da 
 comprovação, pelos meios processuais próprios, de um défice de capacidade 
 natural. 
 O ponto decisivo é mesmo este. Na verdade, não pode excluir-se que a 
 impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas, justificativa 
 da insolvência, seja o resultado de um comportamento anómalo, revelador da falta 
 de qualidades exigíveis para uma autónoma e auto-responsável gestão dos 
 interesses próprios. Mas, para os casos em que assim é, não se vislumbram, sob o 
 prisma da tutela do incapaz, especiais razões determinantes de desvios ao regime 
 comum, quanto à certificação da ocorrência (e permanência) de qualquer das 
 causas de inabilitação em geral previstas.
 Ao dispensar inteiramente os pressupostos condicionantes consagrados no artigo 
 
 152.º do Código Civil, impondo ao juiz, em caso de insolvência culposa, o dever 
 de, sem mais, decretar a inabilitação, o legislador mostra que a instituiu, em 
 si mesma, como uma adicional causa autónoma dessa medida, por razões distintas 
 da que subjaz ao regime das normas codicísticas.
 
 É seguro, pois, que a medida não é determinada pela intenção de tutela do 
 interesse do próprio inabilitado – incontroversamente o interesse visado por 
 todas as formas de incapacidade submetidas ao regime comum, incluindo a 
 inabilitação por habitual prodigalidade, como é entendimento unânime da doutrina 
 privatista (cfr., por todos, além de ORLANDO DE CARVALHO, ob. loc. cit. no 
 Acórdão n.º 564/2007, CARLOS MOTA PINTO, ob. cit. no mesmo acórdão, 227-228, e 
 PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria geral do direito civil, Coimbra, 2005, 3.ª 
 ed., 109 e 117).
 
  
 
 8. O Acórdão n.º 564/2007 assumiu que a vinculação das incapacidades a esse fim 
 
 é também um imperativo constitucional, pelo que não é constitucionalmente 
 admissível a instrumentalização das restrições à capacidade civil para atingir 
 outros objectivos, designadamente como sanção à conduta culposa dos 
 administradores da sociedade comercial declarada insolvente. Este entendimento 
 já foi sufragado na doutrina (cfr. LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito da insolvência, 
 Coimbra, 2009, 275-276).
 No quadro desta posição, a solução em causa contraria o princípio da 
 proporcionalidade logo no primeiro patamar do controlo da sua observância, pois 
 a “legitimidade constitucional dos fins prosseguidos com a restrição”, bem como 
 a “legitimidade dos meios utilizados” constituem um “pressuposto lógico” da sua 
 idoneidade (nesse sentido, JORGE REIS NOVAIS, Os princípios constitucionais 
 estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, 2004, 166). Ora, se admitirmos – 
 como se decidiu no Acórdão n.º 564/2007 – que só a tutela do naturalmente 
 incapaz goza de credencial bastante como justificação constitucionalmente 
 relevante de medidas restritivas da capacidade civil, fica, à partida, 
 irremediavelmente comprometida a validação da utilização das incapacidades como 
 meio de prossecução de qualquer outro fim. Independentemente da justeza 
 intrínseca desse outro fim, é ilegítima a sua prossecução por meio da sujeição 
 dos administradores a um regime de incapacidade como o da inabilitação.  
 Mas, mesmo adoptando uma posição mais complacente, acolhedora da legitimidade 
 constitucional de uma concepção da inabilitação como um instrumento 
 multivocacionado, idóneo a servir outros interesses, que não apenas os do 
 próprio incapaz, a norma em questão não passa o test da proporcionalidade. 
 Na verdade, sendo nula a relevância da inabilitação no processo de insolvência e 
 seus resultados (LUÍS CARVALHO FERNANDES, ob. cit., 102) não serão os interesses 
 dos credores da massa insolvente (tutelados por outra via), mas interesses 
 gerais do tráfico, designadamente mercantil, os visados com a medida. Nesta 
 
 óptica (em que se coloca a declaração de voto de vencido exarada no Acórdão n.º 
 
 564/2007), tendo um carácter sancionatório, a medida estaria reflexamente 
 abonada em razões de prevenção de condutas culposamente atentatórias da 
 segurança do comércio jurídico em geral.
 Simplesmente, para esse fim, continua a estar prevista a tradicional medida de 
 inibição do exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular 
 de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de 
 actividade económica, empresa pública ou cooperativa (alínea c) do n.º 2 do 
 artigo 189.º), como sanção adicionável, e não alternativa, à da inabilitação.
 Tendo em conta o obrigatório decretamento da inibição – medida só justificável 
 por atenção àqueles interesses gerais – e o universo dos afectados, coincidente 
 com os sujeitos à inabilitação, pode concluir-se que a sanção mais gravosa da 
 inabilitação não é indispensável para a salvaguarda desses interesses. Sendo 
 assim, resulta violado o critério da necessidade ou exigibilidade, postulado 
 pelo princípio da proporcionalidade. 
 Noutra óptica, para quem possa entender que a eficácia preventiva resulta melhor 
 satisfeita com a inabilitação, será sempre de decidir que a cumulação e 
 aplicação simultânea das duas restrições atenta contra a proibição do excesso. 
 
 É de concluir, pois, que, seja qual for a perspectiva elegida, quanto à 
 finalidade do regime em apreciação, e quanto à teleologia do instituto da 
 inabilitação, a norma do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do CIRE viola o 
 princípio da proporcionalidade.
 
  
 
  
 
             III - Decisão 
 
  
 
             Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional acorda em 
 declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do artigo 189.º, 
 n.º 2, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 
 aprovado pelo Decreto Lei nº 53/2004, de 18 de Março, por violação dos artigos 
 
 26.º e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que 
 impõe que o juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, decrete 
 a inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada insolvente.
 
             
 
             Lisboa, 2 de Abril de 2009    
 
  
 Joaquim de Sousa Ribeiro (com declaração de voto)
 Maria Lúcia Amaral
 José Borges Soeiro
 Vítor Gomes
 Maria João Antunes
 Carlos Fernandes Cadilha
 Ana Maria Guerra Martins
 Carlos Pamplona de Oliveira
 Mário José de Araújo Torres
 Gil Galvão
 
               João Cura Mariano (com declaração de voto que anexo).
 Benjamim Rodrigues (vencido de acordo com a declaração anexa)
 Rui Manuel Moura Ramos
 
  
 
  
 
         
 DECLARAÇÃO DE VOTO 
 
  
 
  
 Em observância do princípio do pedido, e tendo em conta o objecto do 
 requerimento apresentado pelo Ministério Público, a decisão de 
 inconstitucionalidade recaiu apenas sobre uma dimensão da norma constante do 
 artigo 189.º, n.º 2: a que impõe que o juiz, na sentença que qualifique a 
 insolvência como culposa, decrete a inabilitação do administrador da sociedade 
 comercial declarada insolvente.
 Mas entendo que o pedido poderia ter ido mais longe, facultando uma decisão de 
 
 âmbito subjectivo não circunscrito a esses sujeitos, antes coincidente com o 
 universo dos afectados com a medida (os identificados no n.º 2 do artigo 186.º 
 do CIRE), para o que, aliás, já dispunha de decisões em processos de 
 fiscalização concreta em número bastante.
 Partindo, como parto, da convicção firme de que uma medida restritiva da 
 capacidade civil, mesmo da capacidade de agir negocial, está, também por 
 imperativo constitucional, vinculada ao fim de tutela do próprio incapaz, e de 
 que não é essa a teleologia da norma em questão, não descortino qualquer razão 
 para circunscrever o alcance da decisão àquela categoria de inabilitados.
 
  
 Lisboa, 2 de Abril de 2009 
 
  
 Joaquim de Sousa Ribeiro
 
  
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 
  
 
  
 Não acompanho a fundamentação do presente acórdão por entender que sendo a 
 declaração de inconstitucionalidade limitada à aplicação da medida de 
 inabilitação prevista no artigo 189.º, n.º 2, b), do C.I.R.E., aos 
 administradores de sociedade comercial declarada insolvente, o juízo radical de 
 que a aplicação de tal medida a qualquer insolvente não é constitucionalmente 
 admissível, além de me suscitar sérias reservas, é certamente excessivo.
 Conforme se encontra melhor explicado na decisão sumária n.º 615/07 deste 
 Tribunal, de 27 de Novembro de 2007 (acessível no site 
 
 www.tribunalconstitucional.pt), aplicando-se a medida de inabilitação, nos 
 termos do artigo 189.º, nº 2, b), do C.I.R.E., a um administrador duma sociedade 
 comercial declarada insolvente, ao qual também é aplicável a medida de inibição 
 para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de 
 
 órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de 
 actividade económica, empresa pública ou cooperativa, nos termos da alínea c), 
 do n.º 2, do mesmo artigo 189.º, independentemente da perspectiva que tivermos 
 da motivação da utilização daquela figura civilista (medida de protecção ou 
 sanção ao inabilitado), a sua previsão legal surge sempre manifestamente 
 desproporcionada.
 Na verdade, a conduta causadora da insolvência não ocorreu na gestão do 
 património pessoal do administrador da sociedade comercial, mas sim no exercício 
 da sua actividade profissional, pelo que nem o seu interesse, nem o dos seus 
 credores pessoais, nem sequer o do tráfego jurídico-económico, reclamam tal 
 medida, a qual se revela, assim, desnecessária e desadequada ao facto que a 
 desencadeia.
 Não existindo qualquer manifestação por parte do administrador da sociedade 
 declarada insolvente que este não se encontra apto a gerir convenientemente o 
 seu património, a aplicação da medida de inabilitação, limitadora da sua 
 capacidade jurídica, não é proporcionada, pelo que não é admitida, nos termos do 
 artigo 18.º, da C.R.P., mostrando-se, pois, violado o direito constitucional à 
 capacidade civil, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da C.R.P..
 Este raciocínio era o bastante para se ter atingido a decisão que subscrevi.
 
  
 
    João Cura Mariano
 
  
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO 
 
  
 Votei vencido pelo essencial das razões constantes da declaração de vencido, 
 aposta ao Acórdão n.º 564/07. Em rectas contas, o acórdão acaba por abonar-se 
 num entendimento segundo o qual o instituto da inabilitação é um instrumento 
 jurídico que está ao serviço da protecção dos interesses da pessoa inabilitada, 
 procedendo a uma espécie de “constitucionalização” da figura da inabilitação. 
 
             Ora, no quadro do direito fundamental à capacidade civil, consagrado 
 no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, a inabilitação não é mais do que uma 
 restrição a esse direito cuja constitucionalidade tem de obedecer às regras 
 constantes no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, podendo o instituto ser 
 acolhido para dar satisfação a outros interesses que não apenas da pessoa 
 inabilitada, como os interesses gerais do comércio e da segurança jurídica, como 
 se adensou na referida declaração de voto. 
 
             Por outro lado, ao contrário da linha metodológica adoptada, 
 afigura-se-me que o teste do cumprimento das exigências condensadas no princípio 
 da proporcionalidade deve ser estabelecido, apenas, num diálogo entre aqueles 
 interesses, com relevância constitucional, exteriores ao sujeito inabilitado e o 
 seu direito fundamental à capacidade civil plena e não no interior do próprio 
 instituto.
 E dentro desta linha, continuamos a não descortinar razões, como já expusemos na 
 mencionada declaração de vencido, para censurar a opção normativa feita pelo 
 legislador ordinário, sendo que, como se disse no Acórdão n.º 187/01, disponível 
 em www.tribunalconstitucional.pt:
 
  
 
  “[…] não pode deixar de reconhecer-se ao legislador – diversamente da 
 administração – […] uma “prerrogativa de avaliação”, como que um “crédito de 
 confiança”, na apreciação, por vezes difícil e complexa, das relações empíricas 
 entre o estado que é criado através de uma determinada medida e aquele que dela 
 resulta e que considera correspondente, em maior ou menor medida, à consecução 
 dos objectivos visados com a medida […]. Tal prerrogativa da competência do 
 legislador na definição dos objectivos e nessa avaliação […] afigura-se 
 importante sobretudo em casos duvidosos, ou em que a relação medida-objectivo é 
 social ou economicamente complexa, e a objectividade dos juízos que se podem 
 fazer (ou suas hipotéticas alternativas) difícil de estabelecer.
 
  
 
 […] em casos destes, em princípio, o Tribunal não deve substituir uma sua 
 avaliação da relação, social e economicamente complexa, entre o teor e os 
 efeitos das medidas, à que é efectuada pelo legislador, e que as controvérsias 
 geradoras de dúvida sobre tal relação não devem, salvo erro manifesto de 
 apreciação – como é, designadamente (mas não só), o caso de as medidas não serem 
 sequer compatíveis com a finalidade prosseguida –, ser resolvidas contra a 
 posição do legislador”.
 
      Benjamim Rodrigues