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Processo n.º 778/08
 Plenário
 Relatora: Conselheira Maria João Antunes
 
  
 Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
 
  
 I. Relatório
 
 1. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal requereu, nos 
 termos do artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do 
 Tribunal Constitucional (LTC), a apreciação e a declaração, com força 
 obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 
 
 1.º, n.º 6, e 2.º da Lei n.º 1/2004, de 15 de Janeiro, quando interpretadas no 
 sentido de que aos subscritores da Caixa Geral de Aposentações que, antes de 
 
 31-12-2003, hajam reunido os pressupostos para a aplicação do regime fixado pelo 
 Decreto-Lei n.º 116/85, de 19 de Abril, e tenham efectivamente requerido essa 
 aplicação, deixa de ser reconhecido o direito a esse regime de aposentação pela 
 circunstância de o respectivo processo ter sido enviado à Caixa, pelo serviço 
 onde o interessado exercia funções, após a data da entrada em vigor da Lei n.º 
 
 1/2004.
 Segundo o requerente, tal interpretação normativa foi já julgada materialmente 
 inconstitucional, por preterição dos artigos 2.º e 13.º da Constituição, em 
 fiscalização concreta, através dos Acórdãos n.ºs 615/2007, 158/2008 e 211/2008.
 
  
 
 2. Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da 
 LTC, o Presidente da Assembleia da República, em resposta, ofereceu o 
 merecimento dos autos e anexou documentação relativa aos trabalhos 
 preparatórios.
 
  
 
 3. Debatido o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal Constitucional e 
 fixada a orientação do Tribunal sobre as questões a resolver, procedeu-se à 
 distribuição do processo, cumprindo agora formular a decisão.
 
  
 II – Fundamentação
 
 1. Importa, desde logo, dar como verificados os requisitos previstos nos artigos 
 
 281.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 82.º da LTC, uma 
 vez que as normas em causa já foram julgadas inconstitucionais nos processos de 
 fiscalização concreta que deram origem aos acórdãos identificados pelo 
 requerente (Acórdãos n.ºs 615/2007, 158/2008 e 211/2008, disponíveis em 
 
 www.tribunalconstitucional.pt). Juízo esse que foi igualmente feito nos Acórdãos 
 n.ºs 222/2008, 228/2008 e 229/2008 e nas Decisões sumárias n.ºs 77/2008, 
 
 148/2008, 227/2008 e 337/2008 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
 Em todas estas decisões, o Tribunal entendeu que as normas que são objecto deste 
 processo são contrárias às exigências básicas estruturantes do Estado de direito 
 
 (artigos 2.º e 13.º da CRP).
 
  
 
 2. As normas em questão extraem-se dos artigos 1.º, n.º 6, e 2.º da Lei n.º 
 
 1/2004, de 15 de Janeiro, cuja redacção é a seguinte:
 
  
 
 «O disposto nos números anteriores não se aplica aos subscritores da Caixa Geral 
 de Aposentações cujos processos de aposentação sejam enviados a essa Caixa, 
 pelos respectivos serviços ou entidades, até à data de entrada em vigor deste 
 diploma, desde que os interessados reúnam, nessa data, as condições legalmente 
 exigidas para a concessão da aposentação, incluindo aqueles cuja aposentação 
 depende da incapacidade dos interessados e esta venha a ser declarada pela 
 competente junta médica após aquela data»;
 
  
 
 «A presente lei entra em vigor no dia 1 de Janeiro de 2004».
 
  
 Esta lei introduz alterações ao Estatuto da Aposentação, aprovado pelo 
 Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de Dezembro, revoga o Decreto-Lei n.º 116/85, de 19 
 de Abril e altera os Decretos-Leis n.ºs 128/90, de 17 de Abril, e 327/85, de 8 
 de Agosto, todos relativos a pensões de aposentação.
 A Lei n.º 1/2004, entrada em vigor no dia 1 de Janeiro de 2004, estabelece novas 
 regras relativamente às pensões de aposentação dos funcionários públicos, 
 obtidas no quadro da Caixa Geral de Aposentações, que são menos favoráveis do 
 que as estabelecidas pelo regime legal anterior, definindo uma regra transitória 
 no n.º 6 do artigo 1.º, já transcrito. Sobre isto pode ler-se no Acórdão n.º 
 
 228/2008 o seguinte:
 
 «A Lei nº 1/2004, na qual se incluem as normas questionadas, veio a estabelecer 
 a décima sétima alteração ao Estatuto da Aposentação. No elenco das mudanças 
 introduzidas conta-se – com particular relevo para o caso sob juízo – a 
 revogação, feita no n.º 3 do seu artigo 1.º, do Decreto-Lei nº 116/85, que 
 fixara o regime especial de aposentação antecipada. Tal regime conferira, v.g., 
 aos funcionários e agentes da administração central, regional e local a 
 possibilidade de, independentemente da idade que tivessem e qualquer que fosse a 
 carreira ou categoria em que se integrassem, obter a aposentação com direito a 
 pensão completa, desde que se não verificasse prejuízo para o serviço e tivessem 
 sido cumpridos 36 anos de actividade. 
 
 É este regime, definido em 1985 com intuitos de ‘descongestionamento’ e 
 
 ‘rejuvenescimento’ da Administração Pública, que a Lei nº 1/2004 veio a revogar, 
 substituindo-o por um outro – seguramente menos favorável para os administrados 
 
 – constante do artigo 37.º-A do Estatuto da Aposentação (aditado a esse mesmo 
 Estatuto por força do n.º 2 do artigo 1.º da Lei nº 1/2004). 
 Ao proceder a semelhante ‘substituição’ de regimes, porém, o legislador de 2004 
 não deixou de fazer a seguinte ‘ressalva’: desde que os interessados reunissem, 
 nessa altura, as condições legalmente exigidas para a concessão da aposentação, 
 o novo – e menos favorável – regime não se lhes aplicaria, contanto que os 
 processos de aposentação fossem enviados à Caixa Geral de Aposentações, pelos 
 respectivos serviços ou entidades, até à data da entrada em vigor da Lei nº 
 
 1/2004. (n.º 6 do artigo 1.º da referida Lei). De acordo com o artigo 2.º, a Lei 
 entrou em vigor a 1 de Janeiro de 2004 (vindo no entanto a ser publicada no 
 Diário da República apenas a 15 de Janeiro)».
 
  
 
 3. Face ao modo como o Decreto-Lei n.º 116/85 tramita o procedimento de obtenção 
 da pensão (artigos 1.º, n.º 1, e 3.º, n.ºs 1, 2, 3, 5 e 7) pode suceder que, 
 apesar de os pressupostos de aplicação do regime fixado neste diploma estarem 
 reunidos antes da entrada em vigor da Lei n.º 1/2004, o processo seja enviado à 
 Caixa Geral de Aposentações já depois de esta lei estar a vigorar. O subscritor 
 desta Caixa apresenta requerimento a solicitar a aposentação nos termos do n.º 1 
 do artigo 1.º, acompanhado dos documentos comprovativos do tempo prestado, e é 
 proferido despacho concordante no sentido da inexistência de prejuízo para o 
 serviço antes da entrada em vigor da Lei n.º 1/2004, mas só depois desta data é 
 que o processo é enviado à Caixa Geral de Aposentações. 
 Por força do teor literal daquela norma transitória, nos termos da qual as novas 
 regras não têm aplicação se os processos de aposentação forem enviados à Caixa 
 Geral de Aposentações até à data da entrada em vigor da Lei n.º 1/2004, põe-se 
 assim a questão da conformidade constitucional das normas constantes dos artigos 
 
 1.º, n.º 6, e 2.º desta lei, quando interpretadas no sentido de que aos 
 subscritores da Caixa Geral de Aposentações que, antes de 31-12-2003, hajam 
 reunido os pressupostos para a aplicação do regime fixado pelo Decreto-Lei n.º 
 
 116/85, de 19 de Abril, e tenham efectivamente requerido essa aplicação, deixa 
 de ser reconhecido o direito a esse regime de aposentação pela circunstância de 
 o respectivo processo ter sido enviado à Caixa, pelo serviço onde o interessado 
 exercia funções, após a data da entrada em vigor da Lei n.º 1/2004.
 
  
 
             4. Apesar de reiterarem a jurisprudência do Tribunal no sentido de 
 que “o facto de um interessado ter ingressado na função pública no domínio de um 
 determinado regime legal, designadamente em matéria de definição dos requisitos 
 para a aposentação e das regras de cálculo das respectivas pensões, não lhe 
 outorga o direito a ver inalterado esse regime durante todo o tempo, em regra 
 várias décadas, que durar a sua carreira até atingir o seu termo por 
 aposentação” (Acórdão n.º 158/2008), as decisões que estão na base do presente 
 pedido de generalização reconhecem que as normas que agora se apreciam 
 apresentam “particularidades que conduzem a uma diferente ponderação” (Acórdão 
 n.º 615/2007, ponto 10.). 
 Está em causa um direito, o direito à aposentação nos termos do Decreto‑Lei n.º 
 
 116/85, que entra na titularidade do interessado e é por ele efectivamente 
 exercitado na plena vigência do regime instituído por este diploma, que o 
 subscritor da Caixa Geral de Aposentações perde por haver demora no envio do 
 processo a este organismo, demora a que o interessado é de todo alheio. Sendo 
 certo que, como se assinala no Acórdão n.º 158/2008, o funcionário público está 
 numa posição de alteridade em relação à entidade administrativa ao serviço da 
 qual se encontra para efeitos do procedimento de atribuição de pensão de 
 aposentação:
 
   
 
 “(…) neste domínio, o funcionário encontra‑se numa situação de autonomia 
 subjectiva face à Administração. Na verdade, não é mais sustentável a concepção 
 que reduzia o funcionário público a “elemento integrante do aparelho 
 administrativo, objecto de supremacia absoluta da Administração, que define, 
 com o legislador, autoritária e integralmente, o seu estatuto (de sujeição) 
 especial” – o chamado sistema de inclusão (António Lorena de Sèves, “Os 
 concursos na função pública”, em Seminário Permanente de Direito Constitucional 
 e Administrativo, vol. I, Braga, 1999, p. 49). Antes se reconhece que, pelo 
 menos em certos domínios, a posição do funcionário face à Administração é, não 
 de inclusão, mas de alteridade, que pressupõe a autonomia jurídica do 
 funcionário. Impõe‑se, assim, a distinção entre “relação orgânica” (o 
 funcionário como órgão do aparelho administrativo) e “relação de serviço ou de 
 emprego” (que, na concepção clássica de funcionário, era absorvida pela 
 primeira), reconhecendo a esta, tal como às comuns relações de trabalho, uma 
 tutela jurídica específica, quer na contraprestação que constitui a remuneração, 
 
 “quer com todas as outras situações que se repercutem em termos económicos na 
 esfera do agente (v. g., qualificação profissional, carreira, férias, duração 
 do trabalho, segurança social, etc.)” (Francisco Liberal Fernandes, Autonomia 
 Colectiva dos Trabalhadores da Administração. Crise do Modelo Clássico de 
 Emprego Público, Coimbra, 1995, pp. 107‑108).
 A revisão constitucional de 1982, ao mudar a expressão “funcionários e agentes 
 do Estado e das demais entidades públicas”, constante do primitivo artigo 270.º, 
 n.º 1, para “trabalhadores da Administração Pública e demais agentes do Estado e 
 outras entidades públicas”, do novo artigo 269.º, tornou claro que nenhum 
 argumento justifica “não considerar os funcionários públicos como trabalhadores, 
 para efeitos de titularidade dos correspondentes direitos, liberdades e 
 garantias constitucionais” (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição 
 da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, p. 945)».
 
  
 
 5. As particularidades assinaladas, que se traduzem na circunstância de os 
 requisitos legais para a passagem à situação de aposentado se completarem no 
 domínio da vigência de determinado regime legal e serem posteriormente alterados 
 em termos de determinarem o não reconhecimento desse direito (Acórdão n.º 
 
 158/2008), impõem que se conclua que a normas em apreciação violam o princípio 
 da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito (artigo 2.º da CRP).
 Este Tribunal tem entendido que o princípio da confiança é violado quando haja 
 uma afectação inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa de expectativas 
 legitimamente fundadas dos cidadãos (cf., entre muitos outros, Acórdãos n.º 
 
 287/90, 303/90, 625/98 e 634/98, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). 
 Segundo o Acórdão n.º 287/90, a ideia geral de inadmissibilidade poderá ser 
 aferida, nomeadamente, por dois critérios: a afectação de expectativas, em 
 sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação na ordem 
 jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não 
 possam contar; e quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos 
 ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se 
 prevalecentes, devendo recorrer-se aqui ao princípio da proporcionalidade, 
 explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no 
 n.º 2 do artigo 18.º da Constituição.
 
 É o que ocorre, manifestamente, com aquela interpretação dos artigos 1.º, n.º 6, 
 e 2.º, da Lei n.º 1/2004: estando reunidos, antes da publicação da Lei n.º 
 
 1/2004, todos os requisitos legais para o reconhecimento, através de acto 
 estritamente vinculado, do direito do interessado à aposentação nos termos do 
 Decreto‑Lei n.º 116/85 – e sendo esse direito efectivamente exercitado em plena 
 vigência deste diploma –, do que se trata, com o critério normativo em 
 apreciação, é, em rigor, da destruição retroactiva de um “direito adquirido” 
 
 (Acórdão n.º 158/2008).
 Por outro lado, é de notar que o critério normativo em apreciação “conduz ao 
 tratamento desigual de situações idênticas, em função de o processo ser ou não 
 enviado à Caixa Geral de Aposentações, o que não pode deixar de violar o 
 princípio da igualdade enquanto manifestação do princípio do Estado de Direito” 
 
 (Acórdão n.º 615/2007).
 
  
 III. Decisão
 Pelos fundamentos expostos, decide-se declarar, com força obrigatória geral, a 
 inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 1.º, n.º 6, e 2.º da Lei 
 n.º 1/2004, de 15 de Janeiro, quando interpretados no sentido de que aos 
 subscritores da Caixa Geral de Aposentações que, antes de 31-12-2003, hajam 
 reunido os pressupostos para a aplicação do regime fixado pelo Decreto-Lei nº 
 
 116/85, de 19 de Abril, e hajam requerido essa aplicação, deixa de ser 
 reconhecido o direito a esse regime de aposentação pela circunstância de o 
 respectivo processo ter sido enviado à Caixa, pelo serviço onde o interessado 
 exercia funções, após a data da entrada em vigor da Lei n.º 1/2004, por violação 
 do princípio da protecção da confiança, ínsito no princípio do Estado de 
 direito, e do princípio da igualdade, consagrados nos artigos 2.º e 13.º da 
 Constituição da República Portuguesa.            
 Lisboa, 21 de Abril de 2009
 Maria João Antunes
 Benjamim Rodrigues
 Mário José de Araújo Torres
 Joaquim de Sousa Ribeiro
 José Borges Soeiro
 João Cura Mariano
 Carlos Fernandes Cadilha (pronunciei-me no sentido da inconstitucionalidade com
 fundamento em violação do  princípio  da protecção  da confiança,  nos  termos  
 da
 declaração de voto que acompanhei no Acórdão n.º 615/2007)
 Ana Maria Guerra Martins  (votei  a declaração  de  inconstitucionalidade  com  
 os
 fundamentos do acórdão n.º 615/07).
 Gil Galvão (Acompanho a declaração de inconstitucionalidade com os fundamentos
 do Acórdão N.º 615/07)
 Maria Lúcia Amaral ( no sentido da  inconstitucionalidade  com  fundamento  em
 violação do princípio da  protecção  da confiança, de acordo com a declaração de
 voto proferida no Acórdão n.º 615/2007)
 Vítor Gomes (votei a inconstitucionalidade com os fundamentos do ac. n.º 615/07)
 Rui Manuel Moura Ramos