 Imprimir acórdão
 Imprimir acórdão   
			
Processo  n.º 739/07
 
 3ª Secção
 Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
 
  
 Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
 
  
 I. Relatório
 
  
 
 1. A. propôs no Tribunal da Comarca de Leiria acção declarativa sob forma 
 ordinária contra B. e o Fundo de Garantia Automóvel, alegando que, enquanto 
 conduzia um motociclo na via pública, fora vítima de um acidente de viação 
 exclusivamente causado pelo primeiro réu, que na altura circulava, sem 
 beneficiar de qualquer seguro válido e eficaz, com um motocultivador com 
 reboque; pedia, em consequência, que os réus fossem condenados a pagar 
 solidariamente a quantia de 9.265.005$00 acrescida dos juros legais que se 
 vencessem após a citação, a título de indemnização pelos danos por si sofridos, 
 entre os quais se incluía a amputação traumática pelo terço superior da perna 
 direita e a incapacidade permanente global de 70%.
 
  
 Os réus contestaram e, ulteriormente, houve lugar à ampliação do pedido, por 
 parte do autor.
 
  
 Por sentença de 24 de Abril de 2007, foi a acção julgada parcialmente 
 procedente, nos seguintes termos:
 
  
 
 […]
 Nos casos de acidente de viação, aquilo que está coberto pelo seguro é a 
 obrigação de indemnização que, em virtude do acidente, possa recair sobre o 
 segurado (até ao limite do valor convencionado entre as partes).
 Ora, no caso vertente o Réu B. não tinha a responsabilidade por acidentes de 
 viação, em que o seu motocultivador interviesse, transferida para qualquer 
 Companhia de Seguros, pelo que, em caso de responsabilidade sua, é nossa humilde 
 opinião, intervém o Fundo de Garantia Automóvel, apesar da redacção literal do 
 artigo 21º do DL 522/85, de 31-12, que se transcreve:
 
 «1 - Compete ao Fundo de Garantia Automóvel satisfazer…as indemnizações 
 decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório 
 e que sejam matriculados em Portugal ou em países terceiros em relação à 
 Comunidade Económica Europeia que não tenham gabinete nacional de seguros, ou 
 cujo gabinete não tenha aderido à Convenção Complementar entre Gabinetes 
 nacionais.
 
 2- O Fundo de Garantia Automóvel garante, por acidente originado pelos veículos 
 referidos no número anterior, a satisfação das indemnizações por: a) morte ou 
 lesões corporais, quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de 
 seguro válido ou eficaz ou for declarada a falência da seguradora; b) lesões 
 materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido 
 ou eficaz.
 
 2- Nos casos previstos na alínea b) do número anterior haverá uma franquia de € 
 
 299, 28 a deduzir no montante a cargo do Fundo».
 Adoptamos assim uma interpretação que não colhe no teor literal do nº       1 
 deste preceito quando parece exigir, cumulativamente, para que o FGA seja 
 responsabilizado:
 
 1º: veículo sujeito ao seguro obrigatório
 
 2º e que seja matriculado…
 O motocultivador não está sujeito a seguro obrigatório nem a matrícula uma vez 
 que tal situação não foi ainda regulamentada, conforme o impunha o artigo 117º, 
 n.º 3, do Código da Estrada, vigente à altura.
 Tal situação implicaria, tomado o preceito à la lettre, que os lesados, nestes 
 casos de acidentes provocados por motocultivador, não seriam inteiramente 
 protegidos na sua pretensão indemnizatória em comparação com os lesados por 
 acidente de viação provocado por veículo sujeito ao seguro obrigatório e 
 matriculado. 
 Assim, a redacção do referido preceito constitui uma clara violação do princípio 
 constitucional da igualdade, consignado na CRP no seu artigo 13º, n.º 1, 
 princípio esse estruturante do sistema constitucional global e inerente ao 
 conceito de Estado de Direito Democrático e social pelo que se nega a sua 
 aplicação.
 Só esta interpretação obedece ao princípio da eliminação das desigualdades 
 fácticas, no sentido de que se atinja, sempre que possível, uma igualdade e 
 protecção reais de todos os cidadãos.
 Entender-se o contrário seria tratar diferentemente situações facticamente 
 iguais e retirar protecção ao lesado que tivesse “a desventura” de sofrer 
 acidente de viação causado por veículo não sujeito a seguro obrigatório e a 
 matrícula.
 Aliás, podemos aqui considerar até que o Estado Português, ao não regulamentar a 
 situação relativa aos motocultivadores, como já o impunha o artigo 117º, n.º 3, 
 do Código da Estrada vigente à altura, comete omissão grave do seu dever de 
 legislar neste campo, como lhe é imposto pela Directiva 84/9/CEE, do Conselho, 
 de 30-12-1983, no que toca a estas situações, pelo que até o próprio Estado pode 
 incorrer em responsabilidade.
 Isto posto:
 A circulação rodoviária é uma actividade perigosa pelo que está sujeita a regras 
 de conduta plasmadas no Código da Estrada a que todos devem obediência.
 Assim, e em caso de acidente de viação, cabe em 1º lugar averiguar se existiu 
 violação ou não de uma norma estradal, e, no caso de existir violação, se esta 
 pode ser imputada ao agente a título de culpa (dolo ou negligência).
 Ora, da prova produzida nos autos resulta que o acidente se deve a culpa 
 exclusiva do condutor do motocultivador, que, com negligência, violou as mais 
 elementares normas estradais, nomeadamente a obrigação de cedência de passagem 
 imposta pelo artigo 31º, n.º 1, alínea a), do Código da Estrada vigente à 
 altura.
 Quanto aos danos a indemnizar?
 
 […]
 Ora, passando aos danos efectivamente comprovados, temos o seguinte:
 
 […]
 V - Decisão:
 Pelo exposto, condeno os Réus B. e Fundo de Garantia Automóvel, solidariamente, 
 a pagar ao autor a quantia de:
 
 - € 49.879,79 (quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e 
 nove cêntimos) pelo dano corporal emergente da amputação do membro inferior 
 direito;
 
 - € 37.409,87 (trinta e sete mil quatrocentos e nove mil e oitenta e sete 
 cêntimos) a título de danos futuros;
 
 - € 29.927,87 (vinte e nove mil novecentos e vinte sete euros e oitenta e sete 
 cêntimos) pelos danos morais sofridos;
 
 - € 769,67 (setecentos e sessenta e nove mil e sessenta e sete cêntimos) a 
 título de danos patrimoniais,
 
  Acrescidas, tais quantias, de juros de mora à taxa legal desde a data da 
 citação até integral pagamento
 Quanto aos danos materiais, e relativamente ao FGA, há que deduzir a franquia de 
 
 229, 28 € - artigo 21º do DL n.º 522/85.
 No mais vão os RR absolvidos.
 
 […]
 Declara-se inconstitucional a norma do artigo 21º, n.º 1, do DL n.º 522/85, de 
 
 31-12, por violação do preceituado no artigo 13º, n.º 1, da Constituição da 
 República Portuguesa (princípio da igualdade).
 
 […].
 
  
 Desta sentença – e na medida em que nela “se recusou a aplicação dos ditames do 
 artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, por violação do 
 artigo 13º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa” - interpôs o 
 Ministério Público recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea 
 a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 571).
 
  
 O recurso de constitucionalidade foi admitido por despacho de fls. 585.
 
  
 Nas alegações, sustentou o representante do Ministério Público junto do Tribunal 
 Constitucional o seguinte (fls. 600 e seguintes):
 
  
 
 […]
 O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério Público da 
 decisão, proferida no Tribunal Judicial de Leiria, na acção indemnizatória por 
 acidente de viação intentada por A., na parte em que julgou inconstitucional a 
 norma constante do artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de 
 Dezembro, considerando que a exclusão da responsabilidade civil do Fundo de 
 Garantia Automóvel pelos danos causados a terceiros por viatura agrícola, não 
 sujeita a matrícula, e cujo proprietário está legalmente dispensado da obrigação 
 de celebrar contrato de seguro obrigatório, afronta o princípio constitucional 
 da igualdade.
 Percorrendo as normas relevantes para a dirimição do caso, verifica-se que no 
 acidente a que a acção se reporta teve intervenção um veículo agrícola – 
 dispensado de obrigatoriedade de matrícula, nos termos do nº 3 do artigo 117º do 
 Código da Estrada – e cujo proprietário não se encontrava sujeito à 
 obrigatoriedade de segurar a respectiva responsabilidade civil face aos lesados, 
 nos termos previstos no nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 522/85, precisamente 
 por estar em causa “máquina agrícola não sujeita a matrícula”.
 Por sua vez, tal regime implica que – em termos previstos no artigo 21º, nº 1, 
 do citado Decreto-Lei nº 522/85 – o FGA não seja responsável pelas indemnizações 
 devidas aos lesados, já que tal responsabilidade aparece condicionada, quer à 
 
 “matrícula” do veículo terrestre a motor em Portugal, quer à exigência de que se 
 trate de veículo “sujeito ao seguro obrigatório” (condições que, como se viu, se 
 não verificam no caso sub judicio).Como é evidente – e dá nota a sentença 
 recorrida – tal regime normativo implica uma completa desprotecção dos lesados 
 em acidentes originados pelos referidos veículos agrícolas, prejudicando, de 
 forma incompreensível, a “socialização do risco” associado à circulação 
 rodoviária nas vias públicas.
 Na verdade, as viaturas agrícolas do tipo da que originou o grave acidente a que 
 a acção se reporta circulam frequentemente – e sem restrições – nas vias 
 públicas, estando dotados de elevada perigosidade – não propriamente pela sua 
 eficácia, dinâmica, mas pelo facto de se poderem constituir frequentemente em 
 gravosos obstáculos à segurança e fluidez da circulação do restante tráfego 
 
 (como manifestamente terá sucedido no caso dos autos, em que tal viatura, saindo 
 inopinadamente de um caminho particular, cortou abruptamente a linha de marcha 
 do motociclo em que se deslocava o lesado).
 A dispensa da obrigação de celebrar seguro obrigatório, como condição para tais 
 viaturas motorizadas serem admitidas a circular nas vias públicas, implica, como 
 atrás se notou, uma total desprotecção dos direitos dos lesados: na verdade – a 
 não se admitir a responsabilidade do FGA – estes, não só terão o ónus de, na 
 sequência de eventual sentença condenatória do responsável directo, intentar e 
 impulsionar a subsequente acção executiva como – muito em particular – terão de 
 suportar o risco de uma eventual insolvabilidade do referido responsável 
 directo, impossibilitadora de um efectivo ressarcimento dos gravíssimos danos – 
 pessoais e patrimoniais – sofridos.
 Na verdade, se se poderia admitir a dispensa do seguro obrigatório 
 referentemente a viaturas agrícolas que não circulassem nas vias públicas, 
 compreende-se com dificuldade tal dispensa nos casos em que estas são admitidas 
 a circular, sem restrições substanciais, em tais vias, potenciando riscos 
 relevantes para os restantes utentes, sem qualquer garantia efectiva de 
 ressarcimento dos danos sofridos.
 Desta perplexidade dá, aliás, nota Filipe Albuquerque Matos, em O contrato de 
 seguro obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel (in BFD 78, 2002, pág. 
 
 336, nota 6), ao afirmar: “Relativamente à exclusão das máquinas agrícolas não 
 sujeitas a matrícula do âmbito da obrigação de segurar (art. 1.º, n.º 2, do 
 Decreto-Lei n.º 522/85) impõem-se, tendo em conta a ratio legis deste preceito, 
 algumas considerações. Parece ter sido propósito do Legislador no art. 1.º, n.º 
 
 1, impor a obrigatoriedade de celebração de um contrato de seguro obrigatório 
 sempre que estiverem em causa veículos terrestres susceptíveis, dada a sua 
 necessária e frequente utilização na via pública bem como a sua perigosidade, de 
 provocar perturbações na circulação no espaço público. Assim sendo, e no tocante 
 
 às máquinas agrícolas, que apesar de serem veículos de tracção mecânica, se 
 destinem a habitualmente circular na via pública (para por exemplo efectuarem o 
 transporte dos produtos agrícolas), não vemos razão para não integrar as pessoas 
 eventualmente responsáveis pelos danos causados pela sua circulação no círculo 
 de sujeitos sobre quem recaía a obrigação de realizar o seguro. Na verdade, em 
 relação a estas máquinas agrícolas colhem as mesmas razões justificativas da 
 obrigatoriedade do seguro subjacentes ao artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 
 
 522/85. Não estamos aqui a pensar no caso especial dos tractores. Com efeito, e 
 de acordo com a noção de veículo automóvel decorrente do Código da Estrada (seja 
 Código de 1954, seja Código de 94 revisto em 98, artigo 105.º), o tractor deve 
 classificar-se como veículo automóvel, e deste modo considerar-se imediatamente 
 incluído no âmbito da obrigatoriedade de celebrar o contrato de seguro. Queremos 
 então referir-nos àqueles transportes e máquinas agrícolas, que apesar de não 
 serem veículos automóveis para efeitos do actual Código da Estrada, se traduzem 
 em veículos terrestres de tracção mecânica habitualmente destinados a circularem 
 na via pública.
 Defendemos, de iure condendo uma tal extensão apenas para as hipóteses em que 
 estes veículos, apesar de não serem motorizados, apresentem características 
 substancialmente idênticas a estes últimos. Referimo-nos desde logo aos perigos 
 especiais envolvidos na sua utilização. Afastadas ficariam então aquelas 
 máquinas agrícolas cuja circulação é feita apenas em propriedades privadas, ou 
 de muito ocasionalmente circulem na via pública, bem como aquelas cuja 
 perigosidade se revele praticamente nula, apesar de transitarem habitualmente 
 naquela.”
 Como é manifesto, na óptica do lesado, a situação de desprotecção, notada na 
 sentença recorrida, decorre simultaneamente da dispensa de celebração do 
 contrato de seguro obrigatório, decorrente do preceituado no nº 2 do artigo 1º 
 do citado Decreto-Lei nº 522/85, e da exclusão de responsabilidade do FGA, 
 emergente da norma desaplicada, inviabilizando, quer a demanda da seguradora 
 
 (que não existirá, salvo se o detentor da viatura agrícola tiver celebrado 
 contrato de seguro facultativo da respectiva responsabilidade civil), quer do 
 FGA (legalmente excluído pelo simples facto de não incidir sobre o detentor do 
 veículo não matriculado a referida obrigação de segurar…).
 Acompanhando a linha argumentativa expendida na decisão recorrida, afigura-se 
 que esta absoluta desprotecção do lesado em acidente de viação imputável ao 
 condutor da viatura agrícola se configura como solução normativa carecida 
 manifestamente de fundamento material: na verdade, face aos interesses 
 subjacentes à instituição do seguro obrigatório da responsabilidade civil 
 automóvel – e à socialização do risco que lhe subjaz – não se vê qualquer razão 
 para desconsiderar os interesses do lesado só pelo facto de o instrumento que 
 causou o dano ter determinadas características intrínsecas ou “regulamentares” 
 
 (nomeadamente, a dispensa de matrícula) totalmente irrelevantes quanto ao que 
 deveria efectivamente interessar: a sua potencialidade para, circulando 
 frequentemente nas vias públicas, causar danos graves aos restantes utilizadores 
 das mesmas.
 Saliente-se que esta inadmissível solução legislativa estará – para o futuro - 
 arredada, face ao regime prescrito no Decreto-Lei nº 291/07, de 21 de Agosto, 
 que procedeu a uma completa e substancial reformulação da disciplina do seguro 
 obrigatório automóvel, acentuando a protecção dos lesados, em consonância com as 
 normas comunitárias vinculantes do Estado português.
 Assim – e embora o artigo 4º, n.º 2, de tal diploma legal mantenha a isenção da 
 obrigação de segurar referentemente a “máquinas agrícolas não sujeitas a 
 matrícula” –, o artigo 48º, nº 1, alínea c), amplia a responsabilidade do FGA 
 aos veículos cujo responsável pela circulação se encontre isento da obrigação de 
 seguro “em razão do veículo em si mesmo”.
 Na verdade, enquanto as isenções “subjectivas” da obrigação de segurar não 
 afectam, em termos substanciais, os interesses legítimos do lesado no seu 
 ressarcimento efectivo – já que pressupõem a necessária solvabilidade da 
 entidade institucional dispensada da celebração do contrato de seguro – as 
 isenções “objectivas”, assentes em mera característica inerente ao veículo 
 causador do acidente, podem deixar o lesado totalmente desprotegido, bastando 
 que o responsável não detenha património suficiente para o pagamento das 
 indemnizações devidas pelos danos causados – justificando-se, deste modo, que 
 deva competir ao FGA, face ao lesado, tal ressarcimento prioritário.
 
 2. Conclusão
 Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
 
 1º - Constitui solução legislativa arbitrária ou discricionária – 
 discriminatória relativamente ao lesado em acidente imputável ao detentor de 
 máquina agrícola – não sujeita a matrícula, mas admitida a circular nas vias 
 públicas – a que, dispensando a existência de seguro obrigatório, exclui a 
 responsabilidade do FGA pelos danos – corporais e materiais – sofridos pelo 
 lesado, deixando o ressarcimento deste totalmente condicionado à situação 
 patrimonial do responsável pelo acidente.
 
 2º - Na verdade – face aos objectivos subjacentes à instituição do seguro 
 obrigatório – o acautelamento da efectividade do direito ao ressarcimento dos 
 danos por parte do lesado terá de estar conexionado – não com quaisquer 
 características intrínsecas, de ordem regulamentar, dos veículos, – mas tão 
 somente com a sua potencialidade para, circulando pelas vias públicas, causarem 
 danos gravosos aos restantes utilizadores das mesmas.
 
 3º - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade 
 formulado quanto à norma constante do artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 
 
 522/85, de 31/12.”.
 
  
 Os recorridos não contra-alegaram.
 
  
 
  
 II. Fundamentação
 
  
 
  
 Delimitação do objecto do recurso
 
  
 
 2. A decisão recorrida declarou inconstitucional, por violação do princípio da 
 igualdade, a norma do artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de 
 Dezembro, em si mesma considerada.
 
  
 No entanto, da respectiva fundamentação decorre que esse juízo de 
 inconstitucionalidade versa sobre uma concreta interpretação desse preceito 
 legal: aquela que exclui a responsabilidade civil do Fundo de Garantia Automóvel 
 pelos danos causados a terceiros por viatura agrícola, não sujeita a matrícula, 
 e cujo proprietário está legalmente dispensado da obrigação de celebrar contrato 
 de seguro de responsabilidade civil automóvel.
 
  
 Sendo essa a interpretação normativa que foi julgada inconstitucional – e é a 
 ela que sempre alude o Ministério Público nas alegações –, o objecto do presente 
 recurso  há-de necessariamente restringir-se à norma do artigo 21º, n.º 1, do 
 Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, quando interpretada no sentido de se 
 encontrar excluída a responsabilidade civil do Fundo de Garantia Automóvel por 
 danos causados a terceiros por viatura agrícola, relativamente à qual não haja 
 obrigatoriedade de seguro automóvel por o veículo não estar sujeito a matrícula.
 
  
 Cumpre, portanto, aferir se esta interpretação normativa é inconstitucional, por 
 violação do princípio da igualdade, tal como decidiu o tribunal recorrido e 
 sustenta, nas  alegações de recurso, o Ministério Público.
 
  
 
 3. Com relevo para a apreciação da questão jurídico-constitucional que vem 
 suscitada, interessa considerar, no essencial, a seguinte factualidade:
 
  
 
 - o acidente ocorreu por virtude de uma colisão entre um motociclo de matrícula 
 
 2-LRA-86-37, conduzido pelo autor, e um motocultivador sem matrícula, tripulado 
 pelo réu B.; 
 
 - e verificou-se quando o réu, conduzindo o motocultivador, entrou na via 
 pública, súbita e inesperadamente, interrompendo a linha de marcha do autor, que 
 circulava na sua faixa de rodagem;
 
 . em resultado do embate, o autor sofreu lesões corporais, bem como danos 
 materiais.
 
  
 A sentença recorrida, com base em todos os factos tidos como provados, deu como 
 assente que o acidente se ficou a dever a culpa exclusiva do condutor do 
 motocultivador, que, com negligência, violou as regras estradais, nomeadamente a 
 obrigação de cedência de passagem imposta pelo artigo 31º, n.º 1, alínea a), do 
 Código da Estrada, então vigente.
 
  
 Tendo julgado inconstitucional a norma do artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 
 
 522/85, de 31 de Dezembro, na interpretação segundo a qual a responsabilidade 
 civil do Fundo de Garantia Automóvel apenas opera em relação a danos causados a 
 terceiros por viatura agrícola que esteja sujeita a matrícula e relativamente à 
 qual seja obrigatório seguro automóvel – e, por consequência, recusado a 
 aplicação da referida norma –, a sentença acabou por condenar nas indemnizações 
 devidas, em solidariedade, ambos os réus, que haviam sido demandados em 
 litisconsórcio voluntário passivo.
 
  
 
  
 
 4. O artigo 21º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, sistematicamente 
 inserido nas disposições gerais relativas ao Fundo de Garantia Automóvel e 
 possuindo como epígrafe “Âmbito do Fundo”, dispõe, no seu n.º 1, o seguinte:
 
  
 
 “1 – Compete ao Fundo de Garantia Automóvel satisfazer, nos termos do presente 
 capítulo, as indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos 
 sujeitos ao seguro obrigatório e que sejam matriculados em Portugal ou em países 
 terceiros em relação à Comunidade Económica Europeia que não tenham gabinete 
 nacional de seguros, ou cujo gabinete não tenha aderido à Convenção Complementar 
 entre Gabinetes Nacionais”.
 
  
 Os veículos referenciados nesta disposição que se encontram sujeitos ao seguro 
 obrigatório de responsabilidade civil automóvel encontram-se definidos no artigo 
 
 1º do mesmo Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, aí se mencionando os 
 veículos terrestres motores e seus reboques ou semi-reboques. O n.º 2 do mesmo 
 artigo determina, por outro lado, que a obrigação de segurar «não se aplica aos 
 responsáveis pela circulação dos veículos de caminho de ferro, bem como das 
 máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula» (itálico acrescentado).
 
  
 A obrigatoriedade de matrícula está, por sua vez, consignada no artigo 117º, n.º 
 
 3, do Código da Estrada (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de 
 Setembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 20/2002, de 21 de Agosto), 
 que, no seu n.º 3, estatui o seguinte:
 
  
 
 “3 - Os casos em que as máquinas agrícolas e industriais, os motocultivadores e 
 os tractocarros estão sujeitos a matrícula são fixados em regulamento” (itálico 
 acrescentado).
 
  
 O regulamento a que alude o artigo 117º, n.º 3, do Código da Estrada não chegou 
 a ser publicado, pelo que, por efeito da inércia regulamentar, nada foi 
 determinado quanto à possibilidade de as máquinas agrícolas e industriais, 
 incluindo os motocultivadores, ficarem sujeitas a matrícula para serem admitidas 
 
 à circulação rodoviária.
 
  
 Tal significa que, por mera decorrência do citado artigo 1º, n.º 2, do 
 Decreto-Lei n.º 522/85, os motocultivadores, como no caso dos autos, não estando 
 sujeitos a matrícula, poderiam circular na via pública independentemente de o 
 respectivo proprietário possuir seguro automóvel.
 
  
 Com a linear consequência de, por efeito do já mencionado artigo 21º, n.º 1, 
 desse diploma, os acidentes causados por esse tipo de veículos não se 
 encontrarem cobertos pelo Fundo de Garantia Automóvel, que, como se viu, apenas 
 está obrigado a satisfazer as «indemnizações decorrentes de acidentes originados 
 por veículos sujeitos ao seguro obrigatório».
 
  
 
 5. Sublinhe-se, uma vez mais, que a norma que constitui objecto do recurso de 
 constitucionalidade é a do artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 522/85, que 
 define o âmbito de intervenção do Fundo de Garantia Automóvel, e não a do artigo 
 
 2º desse diploma, que estabelece o âmbito da obrigação de segurar. 
 
  
 E sendo assim, a única questão que se coloca – e que pode ser dirimida – é a de 
 saber se pode considerar-se constitucionalmente justificável a exclusão da 
 responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel pelos danos causados por 
 veículos não sujeitos a seguro de responsabilidade civil obrigatório (por não 
 estarem sujeitos a matrícula).
 
  
 Nesta medida, não cabe apurar se é razoável a própria dispensa da obrigação de 
 celebrar seguro de responsabilidade civil automóvel em relação a veículos que 
 são objectivamente aptos a causar graves acidentes na via pública, mas que não 
 estão sujeitos a matrícula (defendendo a obrigatoriedade do seguro em relação a 
 máquinas se destinem a circular habitualmente na via pública e cuja utilização 
 envolva uma perigosidade especial, Filipe Albuquerque Matos, O contrato de 
 seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel - Alguns aspectos do seu 
 regime jurídico, in Boletim da Faculdade de Direito n.º 78, 2002, págs. 329-364, 
 em especial, pág. 333, nota 6).
 
  
 Como também não releva considerar as consequências que, no plano do direito, 
 possam resultar do incumprimento do dever de regulamentar, derivavam do disposto 
 no artigo 117º, n.º 3, do Código da Estrada. 
 
  
 
 6. Entrando na apreciação da questão de constitucionalidade, convirá começar por 
 enquadrar historicamente a solução legislativa em presença.
 
  
 O Decreto-Lei n.º 408/79, de 25 de Setembro, que instituiu o seguro obrigatório 
 de responsabilidade civil automóvel, determinou no seu artigo 20º que «[o]s 
 direitos dos lesados por acidentes ocorridos com veículos sujeitos ao seguro 
 obrigatório poderão ser efectivados, nos termos que legalmente vierem a ser 
 estabelecidos, contra o fundo de garantia automóvel, a instituir no âmbito do 
 Instituto Nacional de Seguros, nos seguintes casos: a) quando o responsável seja 
 desconhecido ou não beneficie de seguro válido ou eficaz; b) quando for 
 declarada a falência do segurador».
 
  
 O Fundo de Garantia Automóvel – reconhecendo-se ter constituído um contributo 
 importante no sentido da socialização do risco (cfr. Filipe Albuquerque Matos, 
 ob. cit., pág. 361) – foi simultaneamente instituído pelo Decreto Regulamentar 
 n.º 58/79, de 25 de Setembro, que, nos termos do artigo 2º, n.º 2, lhe atribuiu 
 a competência para  «satisfazer as indemnizações de morte ou lesões corporais 
 consequentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro 
 obrigatório, nos casos previstos no artigo 20º do Decreto-Lei n.º 408/79».
 
  
 Nem todos os danos se encontravam, no entanto, cobertos pelo fundo de garantia: 
 para além das limitações inerentes ao âmbito objectivo de protecção 
 
 (indemnizações por morte ou lesões corporais em acidentes em que fossem 
 intervenientes veículos sujeitos ao seguro obrigatório), o diploma também previa 
 a existência de certos limites às indemnizações a satisfazer pelo Fundo (artigo 
 
 2º, n.º 3); estipulava diversas exclusões, como, por exemplo, a referente ao 
 condutor do veículo titular da apólice e aos danos causados às pessoas dos 
 autores, cúmplices e encobridores de roubo, furto ou furto de uso de qualquer 
 veículo que intervenha no acidente (artigo 3º); e determinava que só 
 aproveitavam do benefício do Fundo os lesados por acidentes ocorridos em 
 Portugal (artigo 4º).
 
  
 
 À delimitação do âmbito de protecção do Fundo (circunscrito como estava aos 
 acidentes provocados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório) não será 
 alheio o próprio regime de financiamento,  sabendo-se que constituía receita do 
 Fundo «o montante, a liquidar por cada seguradora, resultante da aplicação de 
 uma percentagem sobre os prémios simples (líquidos de adicionais) de seguros 
 directos automóvel processados no ano anterior, líquidos de estornos e 
 anulações», para o que ficavam «as seguradoras autorizadas a cobrar dos seus 
 segurados do ramo “Automóvel” um adicional, calculado sobre os prémios simples 
 
 (líquidos de adicionais) […]» (artigo 6º, n.º s 1 e 4). E só em situações 
 excepcionais, devidamente comprovadas, o Estado podia assegurar uma dotação 
 correspondente ao montante dos encargos que excedessem as receitas previstas do 
 Fundo” (n.º 5 do mesmo artigo).
 
  
 A articulação do funcionamento do Fundo de Garantia Automóvel com a actividade 
 seguradora era também revelada pelo estabelecido no artigo 7º, n.º 1, do Decreto 
 Regulamentar n.º 58/79, de 25 de Setembro, que habilitava o Fundo a solver 
 eventuais compromissos superiores às suas disponibilidades de tesouraria 
 mediante o recurso às seguradoras, permitindo-lhe arrecadar até ao limite de 
 
 0,25% da carteira de prémios de seguro directo automóvel processados no ano 
 anterior.
 
  
 O regime jurídico Fundo de Garantia Automóvel viria a ser alterado pelo 
 Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro – o diploma que agora está 
 particularmente em foco -, que, através do seu artigo 40º, revogou os 
 mencionados Decreto-Lei n.º 408/79 e Decreto Regulamentar n.º 58/79, de 25 de 
 Setembro.
 
  
 O Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, procedeu ao alargamento do âmbito 
 de responsabilidade civil do Fundo, passando a assegurar também o ressarcimento 
 de danos materiais em relação a acidentes em que o responsável, sendo conhecido, 
 não seja portador de seguro válido e eficaz (cfr. o preâmbulo do diploma e o seu 
 artigo 21º, n.º 2, alínea b)).
 
  
 Manteve, todavia, a dependência financeira do Fundo em relação às seguradoras, 
 que teriam de participar nas respectivas receitas através do pagamento uma verba 
 correspondente a uma percentagem sobre os prémios simples de seguro directo do 
 ramo “Automóvel” processados no ano anterior (artigo 27º, n.º 1, alínea a)), 
 para cujo cumprimento ficavam as seguradoras autorizadas a cobrar aos seus 
 segurados do ramo “Automóvel” um adicional de idêntico montante (artigo 27º, n.º 
 
 4).
 
  
 Além de que o Fundo continuava a poder fazer face a ocasionais dificuldades de 
 tesouraria através de outro tipo de recursos financeiros que eram provenientes 
 das entidades seguradoras (artigo 28º).
 
  
 
 7. A questão de saber se a exclusão da responsabilidade do Fundo de Garantia 
 Automóvel em casos como o dos autos viola ou não o princípio da igualdade 
 implica que se averigue se o critério que é utilizado pela lei para definir o 
 
 âmbito restrito de protecção dos lesados – o da sujeição do veículo causador do 
 acidente a seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel – poderá ser 
 entendido como razoável, racional ou objectivamente fundado.
 
  
 Como logo se salientou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 750/95 
 
 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt):
 
  
 
 «O princípio da igualdade reconduz-se […] a uma proibição de arbítrio sendo 
 inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação 
 razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente 
 relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente 
 desiguais.
 A proibição de arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação 
 ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como 
 princípio negativo de controle.
 Mas existe, sem dúvida, violação do princípio da igualdade enquanto proibição de 
 arbítrio, quando os limites externos da discricionariedade legislativa são 
 afrontados por ausência de adequado suporte material para a medida legislativa 
 adoptada.
 Por outro lado, as medidas de diferenciação hão-de ser materialmente fundadas 
 sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da 
 solidariedade, não devendo basear-se em qualquer razão constitucionalmente 
 imprópria (cfr. sobre a matéria, por todos, os Acórdãos do Tribunal 
 Constitucional n.os 44/84, 425/87, 39/88 e 231/94, Diário da República, II 
 Série, de, respectivamente, 11 de Junho de 1984 e 5 de Janeiro de 1988, e I 
 Série, de, respectivamente, 3 de Março de 1988 e 28 de Abril de 1994, e ainda 
 Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 
 
 1993, pp. 127 e segs; Jorge Miranda, «O regime dos direitos, liberdades e 
 garantias», Estudos sobre a Constituição, vol. iii, pp. 50 e segs., e Manual de 
 Direito Constitucional, tomo iv, Coimbra, 1993, p. 219; Maria da Glória Ferreira 
 Pinto, «Princípio da Igualdade — Fórmula Vazia ou Fórmula Consagrada de 
 Sentido?», Separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 358, Lisboa, 1987; 
 Lívio Paladin, Il Princípio costituzionale d’equaglianza, Milão, 1965).»
 
  
 Nesta ordem de considerações tem-se entendido que a vinculação jurídico-material 
 do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação 
 legislativa, pertencendo-lhe, dentro dos limites constitucionais, definir ou 
 qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar 
 como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente.
 
  
 E, assim, aos tribunais, na apreciação daquele princípio, não compete 
 verdadeiramente «substituírem-se» ao legislador, ponderando a situação como se 
 estivessem no lugar dele e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a 
 solução «razoável», «justa» e «oportuna» (do que seria a solução ideal do caso); 
 compete-lhes, sim «afastar aquelas soluções legais de todo o ponto 
 insusceptíveis de se credenciarem racionalmente» (acórdão da Comissão 
 Constitucional, n.º 458, Apêndice ao Diário da República, de 23 de Agosto de 
 
 1983, pág. 120, também citado no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 750/95, 
 que vimos acompanhando).
 
  
 
 À luz das considerações precedentes pode dizer-se que a caracterização de uma 
 medida legislativa como inconstitucional, por ofensiva do princípio da igualdade 
 dependerá, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente, 
 isto é, de falta de razoabilidade e consonância com o sistema jurídico (nestes 
 precisos termos o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 370/2007 (disponível no 
 mesmo sítio).
 
  
 Ora, tendo presente a jurisprudência constitucional, que essencialmente reconduz 
 o princípio da igualdade a uma proibição de arbítrio ou, noutra perspectiva, a 
 uma exigência de razoabilidade e consonância com o sistema jurídico das medidas 
 legislativas, há que reconhecer que o critério da obrigatoriedade do seguro 
 automóvel  não se mostra ser arbitrário ou desprovido de fundamento material 
 suficiente.
 
  
 Com efeito, e em primeiro lugar, o Fundo de Garantia Automóvel foi instituído 
 para substituir, em certos casos, as seguradoras. Veja-se, a este propósito, o 
 acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26 de Janeiro de 2006 (disponível 
 em www.dgsi.pt/trl), onde se afirma que «[g]rosso modo, o Fundo de Garantia 
 Automóvel ocupa, por força da lei, a posição de uma seguradora que seria 
 accionada se o obrigado a outorgar o contrato de seguro de responsabilidade 
 civil automóvel tivesse cumprido a sua obrigação. Preenche a mesma função social 
 que justifica a necessidade da obrigatoriedade do seguro do risco da circulação 
 rodoviária automóvel a cargo das seguradoras -, e é, como se viu, financiado 
 directamente pelas seguradoras e indirectamente pelos segurados do ramo 
 
 ´Automóvel`».
 
  
 Em segundo lugar, o objectivo de socialização do risco da circulação automóvel 
 não impõe que só ao Fundo (e não a qualquer outra entidade) seja cometido o 
 encargo dessa socialização e todo o encargo dessa socialização: é assim que, por 
 exemplo, o Fundo não responde por certas lesões materiais (artigo 21º, n.º s 2, 
 alínea b), e n.º 3), assim como não responde por acidentes ocorridos fora do 
 território nacional (artigo 21º, n.º 4); e só responde até certos montantes 
 
 (artigo 23º), com exclusão de danos produzidos em certos condicionalismos 
 
 (artigo 24º); e, naturalmente, que o Fundo não visa ressarcir qualquer dano na 
 via pública, como, por exemplo, os danos causados por peões ou danos de causa 
 natural (artigo 21º, n.º 1).
 
  
 A intervenção do Fundo de Garantia Automóvel está, por conseguinte, delimitada 
 por um certo grau de operacionalização do risco social que se encontra associado 
 ao sistema de seguros na área da sinistralidade automóvel, destinando-se a 
 suprir certas contingências resultantes da ineficácia do sistema.
 
  
 Não parece, nestes termos, face aos objectivos da lei, que o critério subjacente 
 
 à interpretação normativa aqui em causa seja desajustado ou desprovido de um 
 fundamento material razoável, pelo que, também, não poderá concluir-se pela 
 violação do princípio da igualdade.
 
  
 Certo é que o regime decorrente do Decreto-Lei n.º 522/85 foi recentemente 
 alterado pelo Decreto-Lei n.º 291/07, de 21 de Agosto, que, apesar de continuar 
 a dispensar da obrigação de segurar os responsáveis pela circulação das máquinas 
 agrícolas não sujeitas a matrícula (artigo 4º, n.º 2), instituiu, no seu artigo 
 
 48º, n.º 1, alínea c), a regra segundo a qual o Fundo de Garantia Automóvel 
 satisfaz as indemnizações decorrentes de acidentes rodoviários ocorridos em 
 Portugal e originados «[p]or veículo cujo responsável pela circulação está 
 isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo […]». Essa é uma 
 solução centrada no aumento de protecção dos lesados, que é acompanhada de 
 outras medidas de reforço da responsabilização do Fundo, como seja a extensão da 
 cobertura dos danos materiais nos sinistros causados por responsável 
 desconhecido ou quando tenha o veículo causador do acidente sido abandonado no 
 local do acidente (artigo 49º, alínea c)), e que se integra num mais amplo 
 conjunto de alterações justificadas pela necessidade da transposição da 
 Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio 
 
 (cfr. preâmbulo do diploma).
 
  
 No entanto, essa ampliação das competências do Fundo, como último recurso para o 
 ressarcimento das vítimas da circulação automóvel, não cobrindo ainda assim 
 todas as situações em que poderá haver lugar a um direito à reparação (veja-se 
 os artigos 51º e 52º desse diploma), não deixa de se integrar na liberdade de 
 conformação legislativa (em certa medida, neste caso, condicionada pela 
 obrigatoriedade do cumprimento do direito comunitário), e não põe em causa a 
 validade, do ponto de vista jurídico-constitucional, das soluções que provinham 
 do diploma agora revogado. Ou seja, não é a circunstância de o legislador ter 
 melhorado o sistema de protecção dos lesados por acidentes de viação, através da 
 publicação de um novo diploma, que permite considerar que o regime anterior – e 
 especialmente o regime decorrente do artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 
 
 522/85 - está ferido de inconstitucionalidade por violação do princípio da 
 igualdade. Isso porque, como vimos, a exclusão da garantia do Fundo, como previa 
 essa norma, quando baseada na não obrigatoriedade do seguro não se apresentava 
 como uma medida legislativa arbitrária. 
 
  
 Questão diversa é a de saber se a não sujeição a matrícula do veículo causador 
 do acidente dos autos, e a sua consequente não sujeição a seguro obrigatório de 
 responsabilidade civil automóvel, é constitucionalmente justificável. Mas, como 
 se viu, não é essa a questão que constitui o objecto do presente recurso de 
 constitucionalidade. O que está causa não é a inexigência de seguro em relação a 
 viaturas agrícolas, mas o âmbito de responsabilidade civil do Fundo da Garantia 
 Automóvel, e quanto a isso não se encontrou motivo para considerar verificada 
 uma discriminação infundada. 
 
  
 
  
 III. Decisão
 
  
 Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: 
 
  
 a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 
 
 522/85, de 31 de Dezembro, interpretada como excluindo a responsabilidade civil 
 do Fundo de Garantia Automóvel pelos danos causados a terceiros por viatura 
 agrícola, não sujeita a matrícula, e cujo proprietário está legalmente 
 dispensado da obrigação de celebrar contrato de seguro de responsabilidade civil 
 automóvel;
 b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação 
 da decisão recorrida de acordo com o presente juízo de não 
 inconstitucionalidade.
 
  
 Sem custas.
 Lisboa, 2 de Abril de 2008
 Carlos Fernandes Cadilha
 Maria Lúcia Amaral
 Vítor Gomes
 Ana Maria Guerra Martins
 Gil Galvão