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Processo n.º 77/08
 
 2.ª Secção
 Relator: Conselheiro Mário Torres
 
 
 Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional.
 
  
 
                         1. O representante do Ministério Público junto do 2.º 
 Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal do Porto deduziu reclamação para 
 o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 77.º da Lei de Organização, 
 Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 
 
 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 
 de Fevereiro (LTC), contra o despacho do Juiz daquele Juízo, de 12 de 
 Novembro de 2007, que não admitiu recurso por ele interposto, ao abrigo das 
 alíneas a) e/ou c) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, do despacho de 29 de Outubro 
 de 2007, que teria recusado a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade 
 e/ou ilegalidade, da norma do artigo 389.º, n.º 2, do Código de Processo Penal 
 
 (CPP).
 
                         O processo de que emerge a presente reclamação teve 
 origem em “auto de notícia por detenção”, instaurado, por agente da PSP, a A., 
 por, no dia 27 de Outubro de 2007, pelas 3 horas e 55 minutos, conduzir o 
 veículo automóvel de matrícula ..‑..‑.., na Praça Marquês de Pombal, Porto, e, 
 ao ser submetido a teste para a detecção de álcool, ter acusado a taxa de 1,53 
 g/l, e, posteriormente conduzido à Secção de Acidentes da Divisão de Trânsito do 
 Porto da PSP, onde foi submetido a novo controlo, ter acusado a taxa de álcool 
 no sangue de 1,33 g/l, o que integraria a prática de “crime contra a segurança 
 das comunicações”. O referido condutor foi constituído arguido e notificado, nos 
 termos do artigo 385.º, n.º 3, do CPP, para comparecer perante o Ministério 
 Público, junto do Tribunal de Turno do Porto, nesse dia 27 de Outubro de 2007, 
 pelas 10h00, para ser submetido a audiência de julgamento, em processo sumário.
 
                         O representante do Ministério Público no Tribunal do 
 Turno do Porto exarou, com data de 27 de Outubro de 2007, o seguinte despacho: 
 
 “Apresente o expediente ao M.mo Juiz de Turno, para os efeitos do artigo 387.º, 
 n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, atento o disposto no artigo 60.º, 
 n.º 1, alínea a), do Decreto‑Lei n.º 186‑A/99”.
 
                         O Juiz do Tribunal de Turno do Porto proferiu, na mesma 
 data, o seguinte despacho:
 
  
 
             “Neste Tribunal não existe qualquer sala de audiências que permita 
 a realização do julgamento sumário, com observância do formalismo legal.
 
             Importa, por igual, frisar que o edifício em que se encontra 
 inserido é de acesso reservado ao público, o que impede o cumprimento do artigo 
 
 387.º, n.º 1, do CPP.
 
             Verifica‑se, assim, a impossibilidade da realização de audiência 
 imediata, referida no artigo 387.º do CPP.
 
             Nestes termos, determino que o arguido seja notificado para 
 comparecer no próximo dia 29 de Outubro de 2007, pelas 10 horas, no Tribunal 
 competente, a fim de aí ser julgado em processo sumário – artigo 387.º, n.º 2, 
 alínea a), do CPP.”
 
  
 
                         Distribuído o processo ao 2.º Juízo do Tribunal de 
 Pequena Instância Criminal do Porto, o respectivo Juiz, em 29 de Outubro de 
 
 2007, exarou o seguinte despacho: “Atentos a promoção e o despacho meramente 
 formal de adiamento no TIC (artigo 387.º, n.º 2, alínea a), do CPP), vão os 
 autos ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes, 
 respectivamente apresentação da acusação”.
 
                         Dada vista dos autos ao representante do Ministério 
 Público junto desse Juízo, o mesmo consignou, na mesma data, que “Atento o 
 disposto no n.º 2 do artigo 389.º do CPP, «O Ministério Público pode substituir 
 a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que 
 tiver procedido à detenção», o Ministério Público aguardará o início da 
 audiência para, aí e então, se for o caso, requerer, nos termos legais supra, a 
 substituição da apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia (por 
 detenção, de fls. 1) da autoridade (PSP) que procedeu à detenção”.
 
                         Ainda nesse dia 29 de Outubro de 2007, o Juiz do 2.º 
 Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal do Porto exarou o seguinte 
 despacho:
 
  
 
 “Do auto de notícia elaborado pela autoridade policial resulta que o arguido foi 
 detido em flagrante delito e depois restituído à liberdade, tendo sido 
 notificado para comparecer perante o Ministério Público junto do Tribunal de 
 turno.
 Resulta também dos autos que não foi deduzida verdadeira acusação escrita contra 
 o arguido.
 O Ministério Público apresentou apenas o expediente ao juiz de turno para os 
 efeitos do artigo 387.º, n.º 2, alínea a), do CPP, pretensão que foi deferida, 
 adiando‑se simplesmente o início da audiência de julgamento.
 Aberta vista à Digna Magistrada do Ministério Público, pela mesma foi referido 
 que aguardará o início da audiência, para aí requerer a substituição da 
 apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que 
 procedeu à detenção.
 
 É certo que no auto de notícia constam alguns factos.
 Todavia, tais factos, por si só, não constituem qualquer crime.
 
 É de ter em conta que a consciência e a vontade de praticar tais factos típicos, 
 bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei – o dolo – constitui 
 elemento típico dos ilícitos criminais, e designadamente do perfunctoriamente 
 indiciado no auto de notícia.
 O mesmo sucede quanto à negligência, nos termos do disposto nos artigos 13.º e 
 
 15.º do Código Penal.
 Tal elemento subjectivo deverá constar da acusação e/ou do auto de notícia – cf. 
 os artigos 243.º e 283.º, n.º 3, alínea b), do CPP, e ainda sobre o tema, entre 
 outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 7 de Abril de 2003, 
 Colectânea de Jurisprudência, 2003, tomo II, pp. 291‑294.
 Qualquer acusação em que se omita este facto – falta dos factos integradores do 
 dolo ou da negligência – deve ser rejeitada, por se encontrar manifestamente 
 infundada, com base no artigo 311.º, n.º 3, alínea d), do CPP – quando os demais 
 elementos típicos do crime se encontrarem nela descritos.
 Do expediente ora em análise não consta qualquer um desses elementos (dolo ou 
 negligência).
 De tal expediente também não se retira a indicação das disposições legais 
 aplicáveis, a chamada qualificação jurídica dos factos, o que é relevante e 
 implica até a rejeição da acusação, nos termos do citado artigo 311.º, n.º 3, 
 alínea c), do CPP.
 Dado o teor do auto de notícia, mesmo com a sua leitura em audiência nada mais 
 se acrescenta ao que aí consta.
 
 É condição da realização de julgamento em processo sumário e desta forma de 
 processo especial a existência de um crime concreto e devidamente identificado, 
 com indicação dos respectivos factos integradores (objectivos e subjectivos) e 
 de todas as disposições legais aplicáveis. Só assim se podem apreciar os 
 apertados requisitos de admissibilidade do processo sumário, bem como a 
 competência do tribunal.
 Está em causa a natureza acusatória do processo penal, além das garantias de 
 defesa do arguido e o princípio da vinculação temática do tribunal.
 Afigura‑se‑nos, pois, que não se verificam os requisitos que justificam o 
 julgamento em processo sumário, nos termos do disposto no artigo 381.º do CPP, 
 na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Setembro.
 Assim sendo, e por razões de economia processual, e ainda nos termos dos artigos 
 
 381.º e 390.º, alínea a), do CPP, na actual redacção, determino a remessa dos 
 presentes autos ao Ministério Público, para tramitação sob outra forma 
 processual.”
 
  
 
                         Foi deste despacho que o referido representante do 
 Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo 
 das alíneas a) e/ou c) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, através de requerimento 
 onde refere que a decisão recorrida, “tendo consignado, além do mais, «Está em 
 causa a natureza acusatória do processo penal, além das garantias de defesa do 
 arguido e o princípio da vinculação temática do tribunal» (sic), a final decidiu 
 
 «… nos termos dos artigos 381.º e 390.º, alínea a), do CPP, na actual redacção, 
 determino a remessa dos presentes autos ao Ministério Público, para tramitação 
 sob outra forma processual» (sic), recus[ou], dessa forma, a aplicação da norma 
 constante do artigo 389.º, n.º 2, do CPP, expressamente requerida pelo 
 Ministério Público, por reputar a mesma inconstitucional, por violação dos 
 invocados princípios constitucionais das garantias de defesa do arguido e da 
 estrutura acusatória do processo penal – artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP – e/ou 
 ilegal, por violação do referido princípio da vinculação temática do tribunal – 
 artigos 358.º, 359.º e 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP”.
 
                         Este recurso não foi admitido pelo despacho de 12 de 
 Novembro de 2007, ora reclamado, por entender que o despacho de que se pretendeu 
 interpor recurso não recusou, nem explícita nem implicitamente, a aplicação de 
 qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade.
 
                         É contra este despacho que vem deduzida a presente 
 reclamação, aduzindo o magistrado reclamante:
 
  
 
 “Com efeito, da leitura integral do douto despacho judicial recorrido e da 
 respectiva integração na antecedente tramitação processual que conduziu à 
 prolação do mesmo, parece‑nos inegável que consubstancia este, de facto, a 
 recusa de aplicação da norma constante do n.º 2 do artigo 389.º do CPP – 
 constante de acto legislativo (Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto – 15.ª Alteração 
 ao Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 78/87, de 17 de 
 Fevereiro) –, por inconstitucionalidade e/ou ilegalidade.
 
             De facto, tendo o Ministério Público, nos termos do douto despacho 
 exarado a fls. 8, verificados que se mostravam os pressupostos dos artigos 
 
 381.º, n.º 1, alínea a), e 387.º, n.º 1, do CPP, determinado, nos termos do 
 disposto na 2.ª parte do n.º 2 do artigo 382.º do CPP, a apresentação do 
 
 «.../... expediente, ao M.mo Juiz de Turno para os efeitos do artigo 387.º, n.º 
 
 2, alínea a), do Código de Processo Penal, … /...» (sic) e tendo este – Mmo/a 
 Juiz de turno –, com os fundamentos de facto e de direito que constam do douto 
 despacho judicial de fls. 9 determinado “…/... que o arguido seja notificado 
 para comparecer no próximo dia 29 de Outubro de 2007, pelas 10 horas, no 
 Tribunal competente a fim de aí ser julgado em processo sumário, artigo 387.º, 
 n.º 2, alínea a), do CPP» (sic) e tendo ainda o Ministério Público, entretanto e 
 atento o despacho judicial de fls. 12 – «Atentos a promoção e o despacho 
 meramente formal de adiamento proferido no TIC (artigo 387.º, n.º 2, alínea a), 
 do CPP), vão os autos ao Ministério Público para os fins tidos por 
 convenientes, respectivamente apresentação da acusação» (sic) –, nos termos 
 consignados a fls. 13, reservado para o início da audiência de discussão e 
 julgamento o eventual uso da faculdade prevista no n.º 2 do artigo 389.º do 
 CPP, a decisão judicial entretanto recorrida, ao decidir «.../..., determino a 
 remessa dos presentes autos ao Ministério Público para tramitação sob outra 
 forma processual» (sic), não só nega a aplicação daquela disposição legal, 
 expressamente invocada pelo Ministério Público (ou antes, a possibilidade do 
 exercício, pelo Ministério Público, da faculdade prevista na mesma), como 
 fundamenta tal posição, alegando, além do mais, que: «É certo que no auto de 
 notícia constam alguns factos. Todavia, tais factos, por si só, não constituem 
 qualquer crime, …/… – o dolo – constitui elemento típico dos ilícitos criminais, 
 
 …/… O mesmo sucede quanto à negligência, …/… Tal elemento subjectivo deverá 
 constar da acusação e/ou do auto de notícia – …/… Do expediente ora em análise 
 não consta qualquer um desses elementos (dolo ou negligência). De tal expediente 
 também não se retira a indicação das disposições legais aplicáveis à chamada 
 qualificação jurídica dos factos, …/…» (sic), concluindo com a alegação de que 
 
 «Está em causa a natureza acusatória do processo penal, além das garantias de 
 defesa do arguido e o princípio da vinculação temática do tribunal» (sic).
 
             Ora, não sendo obviamente de exigir fórmulas sacramentais para 
 afirmar princípios, parece‑nos que outra coisa não fez o/a M.mo/a Juiz a quo 
 que não tenha sido recusar a aplicação, in casu, da norma legal expressamente 
 invocada pelo Ministério Público (n.º 2 do artigo 389.º do CPP), por entender 
 que tal aplicação, faltando no auto de notícia, «o elemento subjectivo» e «a 
 chamada qualificação jurídica dos factos», seria inconstitucional, por violação 
 dos, aliás expressamente citados e assim invocados, princípios constitucionais 
 da estrutura/natureza acusatória do processo penal e das garantias de defesa do 
 arguido – artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP – e/ou ilegal, por violação do, 
 igualmente expressamente citado e invocado, princípio da vinculação temática do 
 tribunal – artigos 358.º, 359.º e 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP.
 
             Mais alega o/a M.mo/a Juiz a quo, no douto despacho ora reclamado: 
 
 «Requisito de admissibilidade do recurso, nos termos do artigo 70.º, alínea a), 
 
 é o da existência da recusa de aplicação de uma norma com fundamento na sua 
 inconstitucionalidade. Ora, isso não acontece, nem explicita nem 
 implicitamente, no despacho em causa nos autos, …/…».
 
             De facto, nos termos da citada alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da 
 Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, ao abrigo da qual, também, mas não só, foi 
 interposto o recurso ora indeferido, o requisito de admissibilidade do recurso 
 
 é efectivamente a existência de recusa de aplicação de qualquer norma, com 
 fundamento em inconstitucionalidade.
 
             Contudo, nos termos da alínea c) do n.º 1 do mesmo preceito legal, 
 ao abrigo da qual foi, ainda, interposto o recurso em causa, o requisito de 
 admissibilidade do recurso é a existência de recusa de aplicação de norma 
 constante de acto legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de 
 lei com valor reforçado.
 
             Ora, a expressa invocação, no despacho recorrido, dos supra 
 referenciados princípios constitucionais da estrutura/natureza acusatória do 
 processo penal e das garantias de defesa do arguido e do princípio legal da 
 vinculação temática do tribunal, resulta inequívoca e inegavelmente do 
 respectivo texto, supra transcrito, mormente do supra citado segmento da 
 respectiva parte final – «Está em causa a natureza acusatória do processo, além 
 das garantias de defesa do arguido e o princípio da vinculação temática do 
 tribunal» (sic, com sublinhado nosso).
 
             Face ao exposto, não pode naturalmente concordar‑se com a, além de 
 infundamentada, estranha conclusão, constante do despacho em reclamação, no 
 sentido de que, no mesmo «…/… não acontece, nem explicita nem implicitamente 
 
 …/...» (sic), a recusa de aplicação de uma norma com fundamento na sua 
 inconstitucionalidade, pois que manifestamente tal acontece, relativamente à 
 norma constante do n.º 2 do artigo 389.º do CPP, com fundamento, aliás 
 explícito, e portanto, claro e inegável, na respectiva inconstitucionalidade 
 e/ou na respectiva ilegalidade, por violação dos princípios citados, o que, 
 sendo certo que a norma em referência consta de acto legislativo, também pode 
 fundamentar a admissibilidade do recurso, ora indeferido.
 
             Assim sendo, parece‑nos forçoso concluir que a decisão em referência 
 não só admite recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos das supra 
 citadas alíneas a) e/ou c) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de 
 Novembro, como é o mesmo, aliás, para o Ministério Público, atento o prescrito 
 no n.º 3 do artigo 72.º da citada Lei, até obrigatório, por a norma cuja 
 aplicação se mostra recusada constar de acto legislativo (Lei n.º 48/2007, de 29 
 de Agosto, conforme supra já referido).
 
             Concluindo, o que o/a M.mo/a Juiz fez, no/a douto/a despacho/decisão 
 recorrido/a, ao decidir «.../..., determino a remessa dos presentes autos ao 
 Ministério Público para tramitação sob outra forma processual» (sic), não 
 realizando o requerido pelo Ministério Público, nos termos legais e, aliás, 
 anteriormente, judicialmente determinado – tendo sido o/a arguido/a e o/ais 
 agente/s autuante/s de tal despacho notificado/a/s (cf. fls. 10) – julgamento 
 do/a arguido/a em processo sumário e nem sequer iniciando a audiência, cujo 
 início, note‑se, havia sido, oportuna e anteriormente, judicialmente adiado, 
 nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 387.º do CPP – sem cuidar 
 aqui sequer da questão da eventual violação do princípio do caso julgado 
 formal, na medida em que se pronunciou o/a M.mo/a juiz a quo sobre questão já 
 ultrapassada/processualmente precludida e relativamente à qual se encontrava 
 esgotado o poder jurisdicional com a prolação do anterior despacho judicial, 
 supra citado, que procedeu ao adiamento do início da audiência de julgamento em 
 processo sumário – foi manifestamente recusar a aplicação da norma constante do 
 n.º 2 do artigo 389.º do CPP, com fundamento em inconstitucionalidade e/ou na 
 sua ilegalidade, por permitir a realização do julgamento em processo sumário, 
 nos casos em que o Ministério Público, não tendo deduzido acusação, reserva para 
 o início da audiência a faculdade de substituir a apresentação da acusação pela 
 leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção, quando 
 deste «.../... não consta qualquer um desse elementos (dolo ou negligência)» 
 
 (sic) e «…/… não se retira a indicação das disposições legais aplicáveis, a 
 chamada qualificação jurídica dos factos, …/…» (sic). 
 
             Face ao exposto, o interposto recurso, requerendo a apreciação da 
 constitucionalidade e legalidade da norma constante do n.º 2 do artigo 389.º do 
 CPP deveria ter sido admitido, pelo que, não o tendo sido, o Ministério Público 
 apresenta a presente reclamação, sendo as ora expostas as razões que justificam 
 a admissão daquele.”
 
  
 
             Neste Tribunal Constitucional, o representante do Ministério Público 
 emitiu o seguinte parecer:
 
  
 
             “Importa notar liminarmente que – sendo o recurso, interposto pelo 
 Ministério Público e rejeitado no Tribunal a quo, – exclusivamente fundado na 
 alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, apenas poderá reportar‑se à 
 recusa de aplicação da norma identificada no respectivo requerimento de 
 interposição – e não a quaisquer outros preceitos legais, eventualmente 
 aplicados no despacho reclamado, já que tal implicaria a ampliação do 
 respectivo objecto de modo a incluir estes últimos, bem como a invocação, como 
 base recursória, da alínea b) daquele artigo 70.º, n.º 1, o que se afigura 
 inviável face à regra de que a delimitação do objecto do recurso decorre 
 irremediavelmente (no que se refere ao seu máximo âmbito) do teor daquele 
 requerimento.
 
             A sorte da presente reclamação dependerá, deste modo, da 
 determinação da existência de uma «verdadeira» recusa de aplicação normativa, 
 reportada ao artigo 389.º, n.º 2, do Código de Processo Penal fundada em 
 violação dos princípios constitucionais da estrutura acusatória do processo 
 penal e das garantias de defesa.
 
             Qual a interpretação normativa feita pelo juiz a quo de tal preceito 
 legal?
 
             A nosso ver, considerou‑se ser inviável a substituição da 
 apresentação de acusação pelo Ministério Público em processo sumário pela 
 simples leitura do auto de notícia, no início da audiência, sem qualquer 
 
 «aditamento», num caso em que o referido auto omitiria elementos essenciais a 
 qualquer acusação, nos planos fáctico (estruturantes do elemento subjectivo do 
 crime imputado ao arguido), da qualificação jurídica (especificação das 
 disposições legais aplicáveis) e probatório (indicação das provas que 
 fundamentam tal imputação ao arguido).
 
             É feita, no despacho reclamado, a seguinte leitura da norma 
 constante do artigo 389.º, n.º 2, do Código de Processo Penal:
 
             Em processo sumário, pode o Ministério Público substituir a 
 apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que 
 tiver procedido à detenção, salvo se de tal auto não constarem todos os 
 elementos – fácticos, de qualificação jurídica e probatório – que 
 obrigatoriamente – por força das disposições gerais – devem constar de qualquer 
 acusação.
 
             Ou seja: não se considerou inviável, de modo genérico, a actuação 
 processual ali consentida ao Ministério Público, procedendo‑se antes a uma 
 leitura conjugada de tal preceito legal com as disposições que regulam os 
 requisitos da acusação, só consentindo a «substituição» da acusação pela 
 leitura do auto quando este satisfaça minimamente tais requisitos gerais.
 
             Procedeu, deste modo, o despacho recorrido a uma leitura conjugada 
 da norma que integra o objecto do presente recurso (a do artigo 389.º, n.º 2, do 
 Código de Processo Penal) com outras disposições que regem sobre os requisitos 
 da acusação (artigos 283.º, n.º 3, e 311.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo 
 Penal) para concluir que a possibilidade de mera leitura do auto de notícia, no 
 início da audiência, pressupõe a suficiência deste, na óptica das exigências 
 formuladas por aqueles preceitos legais.
 
             Sendo duvidosa a definição da precisa «linha de fronteira» entre a 
 verdadeira «recusa de aplicação» normativa, enquadrável na alínea a) do n.º 1 
 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, e a mera interpretação de 
 preceitos legais «em conformidade com a Constituição» (cf., v. g., os Acórdãos 
 n.ºs 170/85, 425/89, 137/89, 636/94 e 1020/96), afigura‑se que – no caso dos 
 autos – o juízo de inaplicabilidade de certa interpretação que – a ser feito – 
 violaria determinados princípios constitucionais se não fundou «única ou 
 primacialmente» (para utilizar a expressão de Rui Medeiros, A Decisão de 
 Inconstitucionalidade, pp. 331 e seguintes) no princípio da interpretação 
 conforme à Lei Fundamental, mais não desempenhando «o apelo à Constituição 
 
 (princípio do acusatório e das garantias de defesa) em sede hermenêutica, uma 
 função de apoio ou de confirmação de um sentido da norma já sugerido pelos 
 restantes elementos de interpretação» (cf. ainda o Acórdão n.º 285/2002).
 
             Assim, por se afigurar que o Tribunal a quo, no despacho recorrido, 
 se limitou a proceder a uma leitura conjugada de diversos regimes processuais 
 penais, referentes aos requisitos da acusação, articulando‑os com a 
 possibilidade de mera «leitura» pelo Ministério Público do auto de notícia no 
 início da audiência em processo sumário, não será a circunstância de se 
 considerar que a imperativídade de tal aplicação conjugada dos regimes legais 
 decorre dos princípios constitucionais do acusatório e das garantias de defesa 
 que traduz a ocorrência de uma verdadeira «recusa de aplicação normativa», 
 enquadrável no tipo recursório previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da 
 Lei n.º 28/82.”
 
  
 
                         Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
 
  
 
                         2. Face ao teor do requerimento de interposição de 
 recurso, o respectivo objecto era integrado por alegada decisão de recusa de 
 aplicação da norma do artigo 389.º, n.º 2, do CPP, com fundamento em 
 inconstitucionalidade e/ou ilegalidade (por violação de lei com valor 
 reforçado).
 
                         Tem este Tribunal entendido que a recusa de aplicação de 
 norma com fundamento em inconstitucionalidade, para abrir via ao recurso 
 previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, tanto pode consistir numa 
 recusa explícita, como numa recusa implícita, e que são equiparáveis a recusas 
 determinadas decisões de aplicação da norma interpretada em conformidade com a 
 Constituição, “sempre que se esteja perante uma clara rejeição de certa 
 interpretação, mormente da interpretação literal ou «natural», com fundamento na 
 sua inconstitucionalidade” (José Manuel M. Cardoso da Costa, A Jurisdição 
 Constitucional em Portugal, 3.ª edição revista e actualizada, Coimbra, 2007, p. 
 
 73, nota 93). Necessário é sempre, porém, que o juízo de inconstitucionalidade 
 
 (ou de desconformidade constitucional) constitua uma verdadeira ratio decidendi, 
 e não um mero obiter dictum, da decisão recorrida.
 
                         Nos presentes autos, ressalta da leitura da decisão 
 recorrida que o elemento primordial e determinante do entendimento da 
 inadmissibilidade, no caso, de o Ministério Público “substituir a apresentação 
 da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à 
 detenção”, prevista no n.º 2 do artigo 389.º do CPP, resultou da leitura 
 conjugada das disposições dos artigos 243.º, 283.º, n.º 3, alínea b), e 311.º, 
 n.º 3, alínea d), do mesmo Código, que determinam a rejeição da acusação que 
 omita os factos integradores do elemento subjectivo do crime, o mesmo se devendo 
 passar quando o Ministério Público substitua a dedução de acusação pela leitura 
 do auto de notícia, quando este auto seja igualmente omisso quanto a esses 
 factos.
 
                         Isto é: foi com base na interpretação do direito 
 ordinário que a decisão recorrida entendeu só ser admissível a substituição da 
 acusação pela leitura do auto de notícia quando este auto contenha todos os 
 elementos legalmente exigíveis para a validade de qualquer acusação.
 
                         A posterior referência a que violaria a estrutura 
 acusatória do processo criminal e poria em causa as garantias de defesa do 
 arguido a realização da audiência, em processo sumário, tendo por acusação 
 apenas o que consta de um auto de notícia, que não possibilitava ao arguido a 
 conhecimento da totalidade dos factos necessários ao preenchimento do tipo 
 legal, constituiu um mero argumento de conforto da justeza do entendimento a que 
 anteriormente se chegou quanto à interpretação tida por correcta, ao nível da 
 interpretação do direito ordinário aplicável, da possibilidade de substituição 
 da acusação pelo Ministério Público pela leitura do auto de notícia.
 
                         Só existiria recusa de aplicação de norma com fundamento 
 em inconstitucionalidade se o tribunal tivesse interpretado o artigo 389.º, n.º 
 
 2, do CPP no sentido de permitir essa substituição mesmo quando o auto de 
 notícia não contivesse os elementos exigidos para a validade da acusação, e, 
 depois, sustentasse que, assim interpretada, tal norma violaria princípios 
 constitucionais. Mas não foi esse, como se evidenciou, o caminho seguido pela 
 decisão recorrida.
 
                         Não encerrando esta, sequer implicitamente, uma recusa 
 de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade, o presente 
 recurso surge como inadmissível, na perspectiva da alínea a) do n.º 1 do artigo 
 
 70.º da LTC.
 
                         E o mesmo se diga quanto à também invocada alínea c) do 
 mesmo preceito, já que não se vislumbra – nem o recorrente a indica – que lei 
 com valor reforçado teria fundamentado, na lógica da decisão recorrida, a 
 pretensa recusa de aplicação da norma do artigo 389.º, n.º 2, do CPP.
 
                         No mesmo sentido já se pronunciaram, em situações 
 idênticas à presente, os Acórdãos n.ºs 8/2008, 12/2008, 15/2008, 16/2008, 
 
 31/2008, 48/2008, 49/2008, 56/2008, 58/2008, 60/2008, 61/2008, 65/2008, 73/2008, 
 
 74/2008, 79/2008, 88/2008 e 89/2008.
 
  
 
                         3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente 
 reclamação.
 
                         Sem custas.
 Lisboa, 20 de Fevereiro de 2008.
 Mário José de Araújo Torres 
 João Cura Mariano
 Rui Manuel Moura Ramos