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Processo n.º 316/07
 
 3ª Secção
 Relator: Conselheiro Vítor Gomes
 
  
 
                         Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
 
 
 I- Relatório
 
  
 
             1.O Ministério Público acusou A., em processo sumário, perante o 
 Tribunal de Comarca de Matosinhos (Juízos Criminais), imputando‑lhe a prática de 
 um crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelas disposições 
 conjugadas do n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada e do n.º 2 do artigo 
 
 348.º do Código Penal (desobediência qualificada).
 
             O arguido veio a ser absolvido, por sentença de 10 de Janeiro de 
 
 2007, apesar de se ter considerado provado que, no dia 3 de Janeiro de 2007, 
 conduzira um motociclo na via pública, não sendo portador de licença de 
 condução, dado que a tinha entregue, na véspera, na Direcção-Geral de Viação, a 
 fim de cumprir a sanção de 30 dias de inibição de conduzir que lhe tinha sido 
 imposta no âmbito do processo de contra-ordenação n.º 352349158. 
 
             A sentença absolutória tem a seguinte fundamentação:
 
  
 
 “É imputado ao arguido a prática, em autoria material e na forma consumada, de 
 um crime de desobediência qualificada p. e p. pelos artºs. 138º do Código 
 Estrada e 348º n.º 2, do CP. 
 Antes de entrar na subsunção dos factos ao Direito cumpre apreciar uma questão 
 prévia que, a proceder, impedirá que o Tribunal entre na apreciação do mérito. E 
 essa questão é a da existência de eventual inconstitucionalidade da norma 
 vertida no artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada. 
 Isto a propósito das diferenças de redacção (numa norma que se pode considerar 
 verdadeiramente penal) dos artºs. 139º, nº.4 dos DL 2/98, de 03/01 e DL 
 
 265‑A/2001, de 28/09 e 138º, n.º 2, do DL 44/2005, de 23/02. 
 Como é consabido, a definição de determinadas acções ou omissões como matéria 
 penal é matéria de competência reservada da Assembleia da República, pelo que 
 quando o Governo pretende tipificar determinados comportamentos como ilícitos 
 criminais só o pode fazer mediante lei de autorização legislativa – lei de 
 autorização legislativa que obrigatoriamente especificará o objecto da 
 autorização, consubstanciando uma relação de conformidade entre a lei 
 autorizante e o decreto-lei autorizado. Quando assim não sucede, isto é, quando 
 existe decreto-lei a tipificar comportamentos como crimes sem que sejam 
 precedidos de leis de autorização legislativa então poder-se-á estar perante uma 
 hipótese de inconstitucionalidade orgânica. 
 No dizer do Tribunal Constitucional, nestas hipóteses a lei de autorização 
 legislativa representa o parâmetro superior. 
 No caso concreto a legislação aplicável é a emergente do novo Código da Estrada, 
 ou seja, o regime emergente do DL 44/2005. A lei de autorização legislativa 
 subjacente a este diploma nada refere no que respeita à (re) tipificação ou 
 alteração do tipo inscrito no artigo 138º, n.º 2 do Código da Estrada 
 actualmente em vigor em relação às anteriores (supra-referidas) versões do 
 diploma em causa. Ou seja, da leitura comparada do artigo 138º, n.º 2, nas 
 versões actual e anterior, verifica-se que a redacção de ambas não é exactamente 
 igual, pelo que se verificou uma alteração nos elementos descritivos do tipo 
 subjacente. Ora, a Lei de Autorização Legislativa n.º 53/2004, de 04/11, não 
 autorizou o Governo a tipificar quaisquer condutas como ilícitos penais 
 
 (ex-novo, portanto) ou sequer a alterar nos seus elementos um tipo já existente. 
 
 
 Por isso, a necessidade de clara tipificação nestas matérias em lei de 
 autorização legislativa não se compadece com o arbítrio de interpretação do 
 parâmetro inferior que representa o decreto-lei autorizado. A reserva exclusiva 
 parlamentar nestas matérias reclama que a lei autorizante seja absolutamente 
 clara e apertada. 
 O que significa, pois, nesta nossa interpretação, que jamais houve autorização 
 legislativa para alterar o artigo 138º, n.º 2, do Código da Estrada, no que 
 respeita aos elementos nele agora enunciados, pelo que esta norma deve ser tida 
 como organicamente inconstitucional, devendo ser recusada a aplicação do artº 
 
 138º, n.º 2, do Código da Estrada. 
 Com a recusa de aplicação da referida norma, com o sentido apontado, falece em 
 absoluto o objecto da acusação, pelo que o arguido deve ser absolvido do crime 
 pelo qual vem acusado.” 
 
 2. O Ministério Público interpôs recurso desta decisão, ao abrigo da alínea a) 
 do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro. 
 
             Apresentou oportunamente alegações, acolhendo-se às razões do 
 acórdão n.º 574/2006 deste Tribunal, em que se decidiu no sentido da 
 inconstitucionalidade orgânica da mesma norma, e conclui nos termos seguintes: 
 
  
 
 “Na falta de prévia autorização parlamentar para legislar sobre matéria 
 constante do artigo 165.º, n.º 1, alínea c) da Constituição, não podia o Governo 
 emitir, tal como o fez, a norma do artigo 138.º, n.º 2 do Código da Estrada na 
 redacção resultante do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, pelo que 
 deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade orgânica constante da 
 decisão recorrida.”
 
  
 
             O recorrido não alegou.
 
  
 II - Fundamentos
 
  
 
             3. Invocando a autorização legislativa concedida pela Lei n.º 
 
 53/2004, de 4 de Novembro, e o disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 
 
 198.º da Constituição, o Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, veio dar 
 nova redacção a vários preceitos do Código da Estrada (artigo 1.º). Entre as 
 matérias que foram objecto de alteração avulta o regime de sancionamento dos 
 ilícitos estradais. Neste capítulo, se insere o artigo 138.º que, na nova 
 redacção, passou a dispor (sublinhada a disposição sobre que incide a 
 controvérsia):
 
  
 Artigo 138.º
 Sanção acessória
 
  
 
 1 - As contra-ordenações graves e muito graves são sancionáveis com coima e com 
 sanção acessória.
 
 2 - Quem praticar qualquer acto estando inibido ou proibido de o fazer por 
 sentença transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva que aplique 
 uma sanção acessória é punido por crime de desobediência qualificada.
 
 3 - A duração mínima e máxima das sanções acessórias aplicáveis a outras 
 contra-ordenações rodoviárias é fixada nos diplomas que as prevêem.
 
 4 - As sanções acessórias são cumpridas em dias seguidos.
 
  
 
  
 
             Na redacção imediatamente anterior do Código da Estrada, esta 
 matéria estava regulada no artigo 139.º, que tinha a seguinte redacção (também 
 sublinhada a norma em que se punia a condução de veículos automóveis no período 
 de cumprimento da sanção acessória):
 Artigo 139.º
 Inibição de conduzir
 
 1- As contra-ordenações graves e muito graves são sancionadas com coima e com 
 sanção acessória de inibição de conduzir. 
 
 2 - A sanção de inibição de conduzir tem a duração mínima de um mês e máxima de 
 um ano, ou mínima de dois meses e máxima de dois anos, consoante seja aplicável 
 
 às contra ordenações graves ou muito graves, respectivamente. 
 
 3 - A sanção de inibição de conduzir é cumprida em dias seguidos e refere-se a 
 todos os veículos a motor. 
 
 4 - Quem conduzir veículo a motor estando inibido de o fazer por sentença 
 transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva é punido por 
 desobediência qualificada.
 
             
 Cotejando os preceitos transcritos, verifica-se que, além da diferente 
 numeração, e da alteração da epígrafe do preceito, existem as seguintes 
 diferenças entre os textos legais em comparação: 
 
           i)  onde anteriormente se dizia: “Quem conduzir veículo a motor …”, 
 agora diz-se: “ Quem praticar qualquer acto”; 
 
          ii)  onde se dizia: “ ….estando inibido de o fazer”, passou a dizer-se 
 
 : “ …estando inibido ou proibido de o fazer”.
 
  
 
             Mantém-se a estatuição: a conduta tipificada era e continua a ser 
 punida como crime de desobediência qualificada.
 
  
 
             O legislador pretendeu abranger na punição da desobediência 
 qualificada prevista no n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada não só o 
 agente que conduza estando inibido de o fazer por força de decisão 
 administrativa ou judicial, como sanção acessória de contra-ordenação (anterior 
 n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada), mas também a conduta do individuo 
 que viole, no domínio rodoviário, as proibições ou interdições que resultem da 
 imposição de pena acessória por sentença criminal (artigo 353.º do Código 
 Penal). Unificou-se a punição criminal de condutas que se traduzam em 
 desrespeito de decisões judiciais ou administrativas que imponham ao agente 
 proibições ou inibições de conduzir ou outras condutas no domínio da circulação 
 rodoviária, seja qual for a natureza da infracção (crime ou contra-ordenação) 
 cuja prática pelo agente levou a essa proibição de agir ou a natureza da decisão 
 que a impôs (decisão judicial ou administrativa). 
 Nesta interpretação, o n.º 2 do artigo 138.º, na nova redacção, numa parte 
 
 (dimensão ou segmento ideal) sobrepõe-se e noutra é inovador, relativamente ao 
 anterior n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada. Seguramente que se limita a 
 manter o regime anterior na parte em que sanciona o desrespeito pelo cumprimento 
 da inibição de conduzir veículo a motor resultante da imposição de sanção 
 acessória pela prática de contra-ordenações, porque essa conduta, já punida nos 
 mesmos termos na redacção anterior do Código, cabe na expressão “qualquer acto”. 
 E é inovador na parte em que transpõe para o Código da Estrada o desrespeito por 
 proibições atinentes à circulação rodoviária, impostas a título de pena 
 acessória ou medida de segurança por sentença criminal, subtraindo-a do domínio 
 geral da punição do não cumprimento das obrigações impostas por sentença 
 criminal.
 
  
 
             4. Foi com esta interpretação que o acórdão n.º 574/2006 (publicado 
 no Diário da República, II Série, de 13 de Dezembro) confirmou o juízo de 
 inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva relativa de competência 
 legislativa constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, 
 formulado pela sentença que nesse processo estava em reapreciação. 
 
             Com efeito, na Lei n.º 53/2004 não se vislumbra autorização ao 
 Governo para, como se diz na sentença agora em apreciação, proceder à 
 
 '(re)tipificação ou alteração do tipo inscrito no artigo 138.º, n.º 2, do Código 
 da Estrada actualmente em vigor', ou seja, para alterar o que constava da  
 anterior versão do mesmo Código no domínio da definição de crimes e penas 
 criminais, como seria necessário para que o Governo pudesse legislar nesta 
 matéria, face à reserva relativa de competência legislativa estabelecida pela 
 alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.
 
  
 
             Todavia, não pode interpretar-se esse acórdão, em que se decidiu 
 
 'confirmar o juízo de inconstitucionalidade orgânica constante da decisão 
 recorrida', como comportando um juízo de inconstitucionalidade do n.º 2 do 
 artigo 138.º do Código da Estrada, em toda a sua extensão normativa. 
 
             Na verdade, o que o despacho então recorrido recusara aplicar, por 
 organicamente inconstitucional, fora “a norma do n.º 2 do artigo 138.º do Código 
 da Estrada, na redacção resultante do Decreto-Lei n.º 44/2005, na interpretação 
 segundo a qual comete um crime de desobediência qualificada todo aquele que 
 conduzir um veículo automóvel estando proibido de o fazer por força de pena 
 acessória aplicada por sentença criminal transitada em julgado”. Estava, pois, 
 em causa o desrespeito da proibição de conduzir veículos automóveis imposta como 
 pena acessória por uma anterior sentença criminal. E essa é, por contraposição 
 ao anterior n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada, uma das “zonas de não 
 sobreposição”. Este alcance restrito do julgamento do referido acórdão ressalta 
 da seguinte passagem:
 
  
 
        'A nova norma, ainda que com zonas de sobreposição, abrange hipóteses 
 distintas e implica ponderações diferentes, nomeadamente no que respeita à 
 variação relativa da gravidade da ilicitude dos vários comportamentos 
 tipificados, com consequências para os comportamentos que agora são abrangidos. 
 Com efeito, o nº 4 do artigo 139º do Código da Estrada, na redacção anterior ao 
 Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro, previa a punição por desobediência 
 qualificada para quem conduzisse veículo a motor estando inibido de o fazer por 
 sentença transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva, ao passo 
 que o nº 2 do artigo 138º do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei nº 
 
 44/2005, de 23 de Fevereiro, prevê a mesma punição quer para quem praticar 
 qualquer acto, quer esteja inibido quer esteja proibido de o fazer. 
 Independentemente de saber se, noutras hipóteses em que não existisse 
 
 [existisse?] uma exacta coincidência de factualidade típica, ainda assim por 
 razões de ilicitude material se teria de reconhecer o carácter inovatório da 
 norma em causa, o certo é que, no presente caso, o agente violou a proibição de 
 condução de veículo a motor decorrente da sanção acessória aplicada por sentença 
 transitada em julgado que o condenou por crime rodoviário. Como se verifica, não 
 existe total coincidência entre a factualidade típica constante das duas normas 
 incriminadoras'. 
 
  
 
             
 
             5. Sucede que a situação agora em apreciação é diversa.  
 
             Imputou-se ao arguido e considerou-se provada a condução de um 
 ciclomotor na via pública no período de cumprimento de sanção acessória de 
 inibição de conduzir imposta por decisão administrativa em processo de 
 contra-ordenação. Consequentemente, a dimensão ou o segmento normativo do n.º 2 
 do artigo 138.º relevante não coincide com aquele que se julgou inconstitucional 
 no acórdão n.º 574/2006. A situação respeita à violação da inibição de conduzir 
 imposta como sanção acessória por contra-ordenação estradal, conduta que já 
 estava prevista na redacção anterior do Código da Estrada como constituindo 
 crime de desobediência qualificada, ou seja, o segmento normativo do n.º 2 do 
 artigo 138.º em causa no presente recurso corresponde a uma “zona de 
 sobreposição” total com o n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada na versão 
 anterior àquela a que o Decreto-Lei n.º 44/2005 deu corpo. 
 
  
 
             Assim, reconduzindo o objecto do recurso à dimensão normativa 
 relevante, como é próprio do recurso de fiscalização concreta de 
 constitucionalidade, importa saber se é organicamente inconstitucional a norma 
 do n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada, na redacção emergente do 
 Decreto-Lei n.º 44/2005, enquanto pune como crime de desobediência qualificada 
 quem conduzir veículo a motor estando inibido de o fazer por sentença transitada 
 em julgado ou decisão administrativa definitiva, como sanção acessória de 
 contra-ordenação.           
 
  
 
             6. Há dois aspectos essenciais que podem afirmar-se sem maior 
 demonstração, uma vez que as considerações que a sentença recorrida faz a este 
 propósito não são postas em dúvida por qualquer dos sujeitos processuais e se 
 subscrevem, a saber:
 
             - A Lei n.º 53/2004 não conferiu credencial ao Governo para legislar 
 em matéria de definição de crimes ou penas criminais, porque dela não consta 
 qualquer referência a esta matéria, como o Tribunal já considerou no acórdão n.º 
 
 574/2006 e se reitera;
 
 - A norma que qualifica determinada conduta como fazendo incorrer o agente em 
 crime de desobediência qualificada (a disposição legal a que se refere o n.º 2 
 do artigo 348.º do Código Penal) consubstancia ainda a definição de crime, pelo 
 que a sua emissão está abrangida pela reserva parlamentar a que se refere o 
 artigo 165º, nº 1, alínea c), da Constituição (cfr. Acórdão n.º 256/2002, 
 publicado no Diário da República, I  Série-A, de 8 de Julho de 2002).
 
  
 
             Estamos, portanto perante uma norma que pertence ao domínio de 
 reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República e que foi 
 inserida em acto legislativo da autoria do Governo sem que exista credencial 
 parlamentar específica. 
 
  
 
 7. Todavia, nem por assim ser tem de concluir-se necessariamente pela 
 inconstitucionalidade orgânica.
 
             Com efeito, o Tribunal já por diversas vezes afirmou, em 
 jurisprudência que remonta à Comissão Constitucional, que o facto de o Governo 
 aprovar actos normativos respeitantes a matérias inscritas no âmbito da reserva 
 relativa de competência da Assembleia da República não determina, por si só e 
 automaticamente, a invalidação das normas que assim decretem, por vício de 
 inconstitucionalidade orgânica. Força é que se demonstre que as normas postas 
 sob observação não criaram um regime jurídico materialmente diverso daquele que 
 até essa nova normação vigorava, limitando-se a retomar e a reproduzir 
 substancialmente o que já constava de textos legais anteriores emanados do órgão 
 de soberania competente (Cfr. os acórdãos n.ºs 502/97, 589/99, 377/02, 414/02, 
 
 450/02, 416/03, 340/05 estes tirados em Secção e publicados no Diário da 
 República, II Série, de 4 de Novembro de 1998, de 20 de Março de 2000, de 14 de 
 Fevereiro de 2002, de 17 de Dezembro de 2002, de 12 de Dezembro de 2002, de 6 de 
 Abril de 2004 e de 29 de Julho de 2005, bem como o acórdão n.º 123/04 (Plenário) 
 publicado no Diário da República, I Série-A, de 30 de Março de 2004. Cfr. ainda, 
 aliás com posição discordante, a indicação de jorge miranda, Manual de Direito 
 Constitucional, tomo V, págs. 234/235). 
 
             Para tanto, para que essa intromissão formal em domínios de reserva 
 relativa de competência parlamentar seja irrelevante, é necessário que se possa 
 concluir pelo carácter não inovatório da normação suspeita. Não bastará a mera 
 verificação da identidade textual dos dispositivos legais em sucessão, tendo 
 também de ponderar-se os demais elementos de interpretação da lei, pois o mesmo 
 texto, reproduzido em novo contexto, pode adquirir diverso conteúdo normativo. 
 Mas, adquirida a certeza do carácter materialmente não inovatório da norma 
 editada pelo Governo, na perspectiva da distribuição constitucional de 
 competências legislativas tutelada pela inconstitucionalidade orgânica, não se 
 vê razão para a invalidade da norma. A opção política e a volição legislativa 
 primária do parlamento materializadas em determinado acto legislativo da 
 Assembleia da República ou parlamentarmente autorizado mantêm-se intocadas no 
 ordenamento jurídico, apesar da recompilação no novo acto legislativo do 
 Governo.
 A este propósito mantém-se válida a exposição que o acórdão n.º 299/92, Diário 
 da República, II Série, de 14 de Dezembro de 1992, faz dos contornos da 
 jurisprudência do Tribunal:
 
 “(…)
 Com efeito, numa primeira fase, o Tribunal Constitucional apenas julgou 
 inconstitucionais as normas que, versando sobre matéria integrada na reserva de 
 competência legislativa da Assembleia da República, fossem inovatórias. 
 Uma tal visão das coisas decorria do entendimento já perfilhado pela Comissão 
 Constitucional (cf. Pareceres n.ºs 2/79, 31/79, 24/80, 29/80, 3/82, 12/82 e 
 
 17/82, publicados nos volumes que coligiram os pareceres daquela Comissão, 
 respectivamente 7.º vol., p. 189, 10.º vol., p. 59, 13.º vol., pp. 129 e 249, 
 
 18.º vol., p. 141, e 19.º vol., pp. 113 e 253) e reiterado pelo Tribunal 
 Constitucional, entre outros, nos seus Acórdãos n.ºs 1/84 (publicado no Diário 
 da República, 2.ª série, de 26 de Abril de 1984), 56/84 (publicado no Diário da 
 República, 1.ª série, de 9 de Agosto de 1984), 142/85 (publicado no Diário da 
 República, 1.ª série, de 7 de Setembro de 1985), 212/86 (publicado no Diário da 
 República, 1.ª série, de 4 de Julho de 1986), 254/86 (publicado no Diário da 
 República, 2.ª série, de 26 de Novembro de 1986), 67/87 (publicado no Diário da 
 República, 2.ª série, de 16 de Abril de 1987) e 423/87 (publicado no Diário da 
 República, 1.ª série, de 26 de Novembro de 1987), segundo o qual não originaria 
 inconstitucionalidade orgânica a produção pelo Governo de decretos-leis não 
 autorizados em matérias reservadas à competência legislativa da Assembleia da 
 República, desde que o Governo se limitasse a compilar e reproduzir a legislação 
 vigente. Nestes casos, em que o Governo se limitava a reproduzir o texto de 
 disposições em vigor, em nada alterando, acrescentando ou retirando ao que antes 
 já estava legislado, tudo se passaria como se o legislador governamental se 
 tivesse mantida inactivo em tal matéria, abstendo-se de legislar. 
 Desenvolvendo e precisando os contornos de tal entendimento, o Tribunal 
 Constitucional, no seu Acórdão n.º 77/88 (publicado no Diário da República, 1.ª 
 série, de 29 de Abril de 1988), introduziu uma nuance na formulação daquele 
 entendimento, ao sublinhar, num enfoque mais sensível a argumentos de ordem 
 sistemática, a relevância da «vocação global» do diploma onde as normas 
 reproduzidas se inserem para efeitos do juízo de constitucionalidade. Ai se 
 escreve que, «se é inegável que num conjunto não despiciendo de disposições do 
 diploma em apreço o legislador governamental se limitou a reproduzir e 
 
 ‘sistematizar’ direito vigente, não é menos certo que o que sobreleva nessa 
 intervenção legislativa é, por um lado, o seu propósito de modificar pontos de 
 fundamental relevância no regime jurídico em causa e, por outro lado, o seu 
 significado e alcance global. 
 
 […]
 Ora, nestas condições, não faz sentido aplicar na espécie a orientação 
 jurisprudencial atrás citada e restringir o juízo de inconstitucionalidade 
 apenas às normas desse diploma efectivamente modificadoras do regime legal 
 anterior: a verdade é que se está perante uma intervenção global, e de fundo, do 
 legislador governamental em matéria que entra por inteiro na reserva 
 parlamentar». 
 Esta argumentação viria a ser retomada nos Acórdãos n.ºs 111/88 (publicado no 
 Diário da República, 2.ª série, de 1 de Setembro de 1988), 8/89 (publicado no 
 Diário da República, 2.ª série, de 13 de Abril de 1989), 407/89 (publicado no 
 Diário da República, 2.ª série, de 14 de Setembro de 1989) e 414/89 (publicado 
 na 1.ª série do jornal oficial de 3 de Julho de 1989) e, mais recentemente, nos 
 Acórdãos n.ºs 372/91 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 7 de 
 Novembro de 1991) e 373/91 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 6 de 
 Novembro de 1991) embora neste último caso com dois votos de vencido …”. 
 
  
 
  
 
             Ora, como se deixou dito, os factos imputados ao arguido, ora 
 recorrido, eram punidos como crime de desobediência qualificada pelo n.º 4 do 
 artigo 139.º do Código da Estrada na versão deste Código anterior àquela em que 
 se insere a norma a que agora foi subsumida essa conduta. E continuam a ser 
 punidos como crime de desobediência qualificada pelo n.º 2 do artigo 138.º na 
 nova versão do Código, nos mesmos exactos termos. A diferente numeração e a 
 alteração da epígrafe do preceito é mera consequência da reordenação dos demais 
 preceitos do Código, não traduzindo diversa valoração quanto ao bem jurídico 
 protegido ou quanto ao contexto dos elementos relevantes para a punição desta 
 conduta. Nesta parte, continua a tutelar-se penalmente, agora como antes, o 
 cumprimento das decisões que imponham sanções acessórias de inibição de conduzir 
 pela prática de contra-ordenações em matéria de circulação rodoviária. Não houve 
 aqui intervenção materialmente constitutiva do Governo. Estão, assim, reunidas 
 as condições para que, à luz da referida jurisprudência do Tribunal e tendo em 
 consideração que estamos no âmbito de um processo de fiscalização concreta, a 
 intromissão legislativa formal não autorizada do Governo no domínio da reserva 
 relativa da competência da Assembleia da República não gere 
 inconstitucionalidade orgânica.
 
  
 
             Nestas circunstâncias, o Tribunal Constitucional não considera 
 violado o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição pela 
 norma do n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada, na parte (dimensão ou 
 segmento ideal) em que pune como desobediência qualificada quem conduzir veículo 
 a motor estando inibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou decisão 
 administrativa definitiva a título de sanção acessória pela prática de 
 contra-ordenações, pelo que o recurso merece provimento.
 
  
 III - Decisão
 
  
 
             Pelo exposto, concedendo provimento ao recurso, decide-se:
 a)      Não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 138.º do Código 
 da Estrada, enquanto pune como desobediência qualificada quem conduzir veículo a 
 motor estando inibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou decisão 
 administrativa definitiva a título de sanção acessória pela prática de 
 contra-ordenações;
 b)      Ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o agora 
 decidido quanto à questão de constitucionalidade;
 c)      Sem custas.
 Lisboa, 20 de Fevereiro de 2008
 Vítor Gomes
 Ana Maria Guerra Martins
 Carlos Fernandes Cadilha
 Maria Lúcia Amaral
 Gil Galvão