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Processo nº 781/06
 
 2.ª Secção
 Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
 
  
 
  
 
                  Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal 
 Constitucional:
 
  
 A – Relatório
 
  
 
                  1 – A. reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 
 
 3 do art. 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão 
 
 (LTC), da decisão sumária proferida pelo relator, no Tribunal Constitucional, 
 que decidiu não conhecer do recurso de constitucionalidade, interposto do 
 acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11 de Julho de 2006.
 
  
 
                  2 – Fundamentando a sua reclamação, discorre o reclamante do 
 seguinte jeito:
 
  
 
 «Em síntese, serve de sustentação à doutíssima decisão sumária em causa a 
 invocada tese de falta de relação efectiva entre a matéria apreciada pelo 
 Tribunal a quo e aquela em que o ora reclamante alicerçou o recurso sub judice. 
 
  
 Ora, salvo o devido e merecido respeito, que muito é, ainda que tal falta de 
 nexo possa, eventualmente, resultar de alguma opacidade do douto Acórdão 
 sindicado em sede constitucional – sem conceder – o certo é que essa decisão 
 omitiu pronúncia clara sobre a matéria que lhe foi sujeita, desviando o âmbito 
 do recurso para questões novas como, de resto, foi suscitado no requerimento 
 preliminar de interposição do presente recurso. 
 
  
 
 É assim que resulta pacífico da simples leitura do Venerando Acórdão recorrido 
 que a questão da inconstitucionalidade interpretativa de algumas normas legais 
 aplicáveis, apesar de aflorada,[1] 1 não é apreciada. 
 
  
 E partindo de pressupostos correctos no que tange à inclusão das missivas e 
 pagela de teor religioso no círculo da privacidade e intimidade da vida privada 
 do prosador epistolar, matéria que já havia sido também assente noutra Relação, 
 vem considerar que “(...) a defesa da arguida no processo cível, ainda que 
 passível daquela crítica, não foi inequivocamente dirigida à violação do 
 referido bem jurídico em hostilidade directa ou necessária no plano subjectivo 
 jurídico-penal aludido.(...)”[2].
 
  
 Ora, precisamente uma das interpretações considerada incorrecta e expressamente 
 arguida de inconstitucionalidade era a de que a utilização dessas epístolas como 
 prova em processo civil carecia da tramitação imposta em sede de suprimento 
 judicial, tal como se aduziu na conclusão 9 do recurso ali em apreciação, pelo 
 que esta questão básica que inopinadamente surge postergada per saltum que é o 
 fulcro da alegada interpretação inconstitucional das normas penais invocadas. 
 
  
 Questão, também ela previamente suscitada em sede preliminar no requerimento de 
 interposição do presente recurso, onde expressa e clarividentemente se pode ler: 
 
 “Esta questão de inconstitucionalidade foi suscitada expressamente, ad cautelam 
 nas conclusões 7ª, 21ª e 22ª do recurso apreciado pelo Tribunal a quo, como 
 corolário das demais, para além do que do inusitado e imprevisto quanto à 
 alteração dos fundamentos essenciais que emerge agora do venerando acórdão assim 
 sindicado quanto à interpretação das normas.” – sublinhado de agora. 
 
  
 Configura-se assim – e ali foi previamente considerado e alegado – que existia 
 um desvirtuamento da matéria sujeita a juízo de um modo tão inesperado e 
 imprevisto que a sua prognose não poderá ser exigível ao cidadão comum, ao bonus 
 paterfamilias,[3] na senda, de resto, da vasta jurisprudência deste Tribunal 
 Constitucional. 
 
  
 Esta derroga de apreciação de questão civil essencial, concomitante com toda a 
 demais matéria e preceitos legais expressamente invocados, adulterou a 
 configuração dos elementos constitutivos dos ilícitos criminais indiciados, e 
 foi ela que sustentou também, aliada à demais matéria, o fundamento expresso do 
 recurso de inconstitucionalidade interpretativa colocado a juízo neste Tribunal, 
 mormente pela arguição de violação pelo Tribunal a quo do dever de aplicar a 
 lei, em contravenção aos imperativos constitucionais dos art. 202º, nºs 1 e 2, e 
 
 203º, como claramente expresso. 
 
  
 E com a declaração formal do seu inesperado, imprevisto, imprevisível ante o 
 reconhecido mérito jurídico do Venerando Tribunal a quo. 
 
  
 Tais derrogas relevantes, adulteradoras da matéria sub judice, provêm de 
 interpretada errada e deficiente, data venia, do conjunto e concomitância das 
 normas arguidas de inconstitucionalidade, o que carece de apreciação nesta sede 
 superior em conformidade com o direito de acesso à justiça previsto no art. 20º 
 da Constituição da República e, maxime, dos artºs 6º, 8º e 9º da Convenção para 
 a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, outorgada pelo 
 Estado Português e, em consequência, a elas sujeito. 
 
  
 O inusitado dessas derrogas coloca as questões novas e imprevistas na alçada 
 deste Tribunal, pelo que a doutíssima decisão sumária, deverá ser, como 
 requerido ab initio, sujeita a Conferência, e apreciada segundo as considerações 
 que se expressaram supra e constituem o fundamento da presente reclamação».
 
  
 
                  3 – O Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal Constitucional, 
 respondeu pelo seguinte modo:
 
                  
 
                  “1 – A presente reclamação é manifestamente improcedente.
 
                  2 – Na verdade – e ao contrário do que sustenta o reclamante – 
 dispôs de plena oportunidade processual para suscitar, durante o processo, em 
 termos processualmente adequados, a questão de constitucionalidade a que 
 reportou o seu recurso”.
 
  
 
                  4 – A decisão reclamada tem o seguinte teor:
 
  
 
                 «1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do 
 disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, 
 na sua actual versão (LTC), do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11 
 de Julho de 2006, pretendendo ver apreciada “a inconstitucionalidade da norma 
 contida no n.º 1 do artigo 308.º do Código de Processo Penal e, em consequência, 
 dos artigos 192.º, n.º1, alínea d), e 205.º, n.º 1, ambos do Código Penal, na 
 interpretação (...) de que, apesar da reconhecida violação da reserva da 
 intimidade da vida privada tutelada pelas normas dos artigos 75.º a 81.º do 
 Código Civil, o facto dessa devassa ser efectuada em juízo para defesa de 
 interesses civis em litígio, retira o elemento subjectivo do crime previsto e 
 punido pela sobredita alínea d) do n.º 1 do artigo 192.º do Código Penal e, por 
 isso, os indícios considerados bastantes para pronunciar as arguidas por 
 qualquer dos crimes imputados, a fortiori pelo crime do n.º 1 do artigo 205.º”, 
 pretextando que “uma tal interpretação dessa norma adjectiva, na sua 
 concomitância com as substantivas civis e penais referidas, viola os imperativos 
 do nº 1 do artigo 26º, dos nºs 1 e 2 do artigo 202º, e do artigo 203º, na sua 
 parte final, todos da Constituição da República Portuguesa”.
 
  
 
                 2 – O presente recurso foi admitido por despacho do tribunal a 
 quo. Esta decisão não vincula, todavia, o Tribunal Constitucional, como se prevê 
 no n.º 3 do art. 76.º da LTC. E porque se configura uma situação que se enquadra 
 na hipótese recortada no n.º 1 do art. 78.º-A da LTC passa a decidir-se 
 imediatamente.
 
  
 
                 3 – O objecto do recurso de fiscalização concreta de 
 constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280º da 
 Constituição e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, disposição esta que 
 se limita a reproduzir o comando constitucional, apenas se pode traduzir numa 
 questão de (in)constitucionalidade da(s) norma(s) de que a decisão recorrida 
 haja feito efectiva aplicação ou que tenha constituído o fundamento normativo do 
 aí decidido. 
 
                 Trata-se de um pressuposto específico do recurso de 
 constitucionalidade cuja exigência resulta da natureza instrumental (e 
 incidental) do recurso de constitucionalidade, tal como o mesmo se encontra 
 recortado no nosso sistema constitucional, de controlo difuso da 
 constitucionalidade de normas jurídicas pelos vários tribunais, bem como da 
 natureza da própria função jurisdicional constitucional (cf. Cardoso da Costa, 
 
 «A jurisdição constitucional em Portugal», in Estudos em homenagem ao Professor 
 Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, I, 
 
 1984, pp. 210 e ss., e, entre outros, os Acórdãos n.º 352/94, publicado no 
 Diário da República II Série, de 6 de Setembro de 1994, n.º 560/94, publicado no 
 mesmo jornal oficial, de 10 de Janeiro de 1995 e, ainda na mesma linha de 
 pensamento, o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República II Série, de 
 
 20 de Junho de 1995, e, aceitando os termos dos arestos acabados de citar, o 
 Acórdão n.º 192/2000, publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de Outubro de 
 
 2000).
 
                 Por outro lado, importa acentuar que, neste domínio da 
 fiscalização concreta de constitucionalidade, a intervenção do Tribunal 
 Constitucional se limita ao reexame ou reapreciação da questão de 
 
 (in)constitucionalidade que o tribunal a quo apreciou ou devesse ter apreciado. 
 
                 Na verdade, a resolução da questão de constitucionalidade há-de 
 poder, efectivamente, reflectir-se na decisão recorrida, implicando a sua 
 reforma, no caso de o recurso obter provimento. 
 
                 Tal só é possível quando a norma cuja constitucionalidade o 
 Tribunal Constitucional aprecie haja constituído a ratio decidendi da decisão 
 recorrida, ou seja, o fundamento normativo do aí decidido. 
 Concretizando, ainda, aspectos do seu regime, cumpre acentuar que, sendo o 
 objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído 
 por normas jurídicas que violem preceitos ou princípios constitucionais, não 
 pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em sim 
 própria, mesmo quando esta faça aplicação directa de preceitos ou princípios 
 constitucionais, quer no que importa à correcção, no plano do direito 
 infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no 
 que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado 
 
 às circunstâncias específicas do caso concreto (correcção do juízo subsuntivo).
 
                 Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos 
 interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a 
 
 (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos 
 que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, 
 sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efectuada 
 pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao acto judicial de “aplicação” 
 a violação (directa) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe 
 a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efectuado 
 in concreto pelo tribunal a quo. A intervenção do Tribunal Constitucional não 
 incide sobre a correcção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a 
 conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida, cabendo 
 ao recorrente, como se disse, nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do 
 n.º 1 do artigo 70.º, o ónus de suscitar o problema de constitucionalidade 
 normativa num momento anterior ao da interposição de recurso para o Tribunal 
 Constitucional [cf. Acórdão n.º 199/88, publicado no Diário da República II 
 Série, de 28 de Março de 1989; Acórdão n.º 618/98, disponível em 
 
 www.tribunalconstitucional.pt, remetendo para jurisprudência anterior (por 
 exemplo, os Acórdãos nºs 178/95 - publicado no Diário da República II Série, de 
 
 21 de Junho de 1995 -, 521/95 e 1026/9, inéditos e o Acórdão n.º 269/94, 
 publicado no Diário da República II Série, de 18 de Junho de 1994)].
 
                 A este propósito escreve Carlos Lopes do Rego («O objecto idóneo 
 dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade: as interpretações 
 normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional», in Jurisprudência 
 Constitucional, 3, p. 8) que “É, aliás, perceptível que, em numerosos casos – 
 embora sob a capa formal da invocação da inconstitucionalidade de certo preceito 
 legal tal como foi aplicado pela decisão recorrida – o que realmente se pretende 
 controverter é a concreta e casuística valoração pelo julgador das múltiplas e 
 específicas circunstâncias do caso sub judicio […]; a adequação e correcção do 
 juízo de valoração das provas e de fixação da matéria de facto provada na 
 sentença (…) ou a estrita qualificação jurídica dos factos relevantes para a 
 aplicação do direito […]».
 
                 Finalmente, deve referir-se que decorre, ainda, dos referidos 
 preceitos que a questão de inconstitucionalidade tenha de ser suscitada em 
 termos adequados, claros e perceptíveis, durante o processo, de modo que o 
 tribunal a quo ainda possa conhecer dela antes de esgotado o poder jurisdicional 
 do juiz sobre tal matéria e que desse ónus de suscitar adequadamente a questão 
 de inconstitucionalidade em termos do tribunal a quo ficar obrigado ao seu 
 conhecimento decorre a exigência de se dever confrontar a norma sindicanda com 
 os parâmetros constitucionais que se têm por violados, só assim se 
 possibilitando uma razoável intervenção dos tribunais no domínio da fiscalização 
 da constitucionalidade dos actos normativos. 
 
                 É evidente a razão de ser deste entendimento: o que se visa é 
 que o tribunal recorrido seja colocado perante a questão da validade da norma 
 que convoca como fundamento da decisão recorrida e que o Tribunal 
 Constitucional, que conhece da questão por via de recurso, não assuma uma 
 posição de substituição à instância recorrida, de conhecimento da questão de 
 constitucionalidade, fora da via de recurso. 
 
                 É por isso que se entende que não constituem já momentos 
 processualmente idóneos aqueles que são abrangidos pelos incidentes de arguição 
 de nulidades, pedidos de aclaração e de reforma, dado terem por escopo não a 
 obtenção de decisão com aplicação da norma, mas a sua anulação, esclarecimento 
 ou modificação, com base em questão nova sobre a qual o tribunal não se poderia 
 ter pronunciado (cf., entre outros, os acórdãos n.º 496/99, publicado no Diário 
 da República II Série, de 17 de Julho de 1996, e Acórdãos do Tribunal 
 Constitucional, 33º vol., pp. 663; n.º 374/00, publicado no Diário da República 
 II Série, de 13 de Julho de 2000, BMJ 499º, pp. 77, e Acórdãos do Tribunal 
 Constitucional, 47º vol., pp.713; n.º 674/99, publicado no Diário da República 
 II Série, de 25 de Fevereiro de 2000, BMJ 492º, pp. 62, e Acórdãos do Tribunal 
 Constitucional, 45º vol., pp.559; n.º 155/00, publicado no Diário da República 
 II Série, de 9 de Outubro de 2000, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 46º 
 vol., pp. 821, e n.º 364/00, inédito). 
 
                 Por outro lado, importa reconhecer que não basta que se indique 
 a norma que se tem por inconstitucional, sendo, antes, necessário que se 
 problematize a questão de validade constitucional da norma (dimensão normativa) 
 através da alegação de um juízo de antítese entre a norma/dimensão normativa e 
 o(s) parâmetro(s) constitucional(ais), indicando-se, pelo menos, as normas ou 
 princípios constitucionais que a norma sindicanda viola ou afronta.
 
                 Tais exigências têm sido deveras reiteradas pela nossa 
 jurisdição constitucional.
 
                 De forma contínua e sistemática, tem este Tribunal estabelecido 
 que «“Suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo 
 tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão 
 de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que 
 
 (...) tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a norma (ou um 
 segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem 
 suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte 
 o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a 
 norma ou princípio constitucional infringido.” Impugnar a constitucionalidade de 
 uma norma implica, pois, imputar a desconformidade com a Constituição não ao 
 acto de aplicação do Direito – concretizado num acto de administração ou numa 
 decisão dos tribunais – mas à própria norma, ou, quando muito, à norma numa 
 determinada interpretação que enformou tal acto ou decisão (cf. Acórdãos nºs 
 
 37/97, 680/96, 663/96 e 18/96, este publicado no Diário da República, II Série, 
 de 15-05-1996). [§] É certo que não existem fórmulas sacramentais para 
 formulação dos pedidos, nem sequer para suscitação da questão de 
 constitucionalidade. [§] Esta tem, porém, de ocorrer de forma que deixe claro 
 que se põe em causa a conformidade à Constituição de uma norma ou de uma sua 
 interpretação (...) – cf. o referido Acórdão n.º 618/98 e os acórdãos para os 
 quais remete.
 
  
 
                 4 – Ora, no caso sub judice, constata-se que o recorrente não 
 suscitou nos autos a questão de constitucionalidade que agora pretende ver 
 apreciada nem o Tribunal da Relação fez aplicação, como ratio decidendi, do 
 
 “critério” definido pelo recorrente no seu requerimento de interposição de 
 recurso para este Tribunal.
 
                 Vejamos.
 
                 
 
 4.1 – Nas alegações de recurso que interpôs para o Tribunal da Relação de 
 Lisboa, o recorrente concluiu o seu discurso sustentando que:
 
  
 
 “(...)
 
 1. A douta decisão instrutória atenta, data venia, contra os direitos legais e 
 constitucionais do ora recorrente, mormente os de personalidade e reserva da 
 vida privada, perfilhando tese que reflecte a profunda crise de valores da 
 hodierna sociedade e colide com a lei vigente e os ancestrais usos e costumes do 
 nosso povo;
 
 2. Na realidade, nas oito missivas manuscritas pelo recorrente e uma pagela de 
 cariz religioso dados como prova nuns autos cíveis pelas arguidas, a primeira a 
 destinatária dessas epístolas, a segunda sua ilustre advogada, se mostram 
 espelhados sentimentos, estados de alma e convicções religiosas do recorrente, 
 tutelados pelo direito à reserva da vida privada; 
 
 3. Sem que se possa dizer que tais valores a preservar o sejam também em relação 
 
 à destinatária dessas cartas e se o fossem sempre esta, voluntariamente, deles 
 abriu mão, podendo fazê-lo, mas não em relação ao prosador epistolar; 
 
 4. É que essas missivas, incluindo a pagela religiosa, pelo seu conteúdo e 
 natureza sempre são reveladoras de matéria de carácter que a lei preserva da 
 divulgação pública, através do dispositivo contido no art. 75º do Código Civil; 
 
 5. Sendo afastadas quaisquer dúvidas quanto a essa natureza reservada e 
 confidencial pela referência expressa à intimidade da vida privada contida no 
 texto do art. 77º da mesma lei substantiva; 
 
 6. E ainda que dúvidas houvesse sempre estariam elas resolvidas pela justa 
 expectativa do seu autor, o aqui recorrente, homem casado em primeiras e únicas 
 núpcias há 31 anos e sempre convivente com sua família, sem qualquer 
 interrupção, quanto à não divulgação de epístolas que pudessem colocar em crise 
 a boa harmonia familiar, como resulta da letra e do espírito do art. 78º do 
 referido Código Civil; 
 
 7. Diferente interpretação destas normas civis, emergente na douta decisão em 
 crise, violam o imperativo constitucional contido nos nºs 1 e 2 do art. 26º da 
 Constituição da República Portuguesa, o que aqui se invoca expressamente para os 
 efeitos da lei; 
 
 8. De resto, foi assim que em dois arestos do Venerando Tribunal da Relação de 
 Guimarães devidamente transitados em julgado – proc. nºs 404/02 e 192/03 ambos 
 da 2ª secção – as mesmas missivas em causa nestes autos foram julgadas 
 confidenciais, embora ali cometidas de não preenchedoras de condição bastante 
 para tipificar qualquer ilícito penal por terem sido utilizadas em defesa de 
 arguidos em processos penais, logo revestindo-se de um carácter de defesa de um 
 interesse superior na hierarquia dos valores e direitos legalmente protegidos; 
 
 9. Porém nestes autos afere-se a sua utilização abusiva em razão de defesa de 
 direitos e valores de natureza particular cuja tutela deveria ter sido efectuada 
 pelos meios processuais previstos na lei, nomeadamente através de processo de 
 suprimento de autorização estatuído no art. 1425º e seguintes do Código de 
 Processo Civil, se necessário em face de recusa do prosador; 
 
 10. As cartas e pagela religiosa em causa, mais que o seu suporte físico, são 
 constituídas pelo seu conteúdo efectivo o qual é especial propriedade 
 intelectual do seu autor e, referindo elas matéria de natureza confidencial que 
 as regras de experiência comum classificariam como, no mínimo, passíveis de que 
 este tivesse a expectativa de não revelação ou divulgação, pelo que a sua 
 utilização em processo cível em defesa de interesses particulares da arguida 
 Maria Fernanda Antunes, constitui um abuso de confiança depositado nela pelo 
 recorrente na medida em que se apropria do seu suporte material e conteúdo 
 intelectual não transladado para si, como se seu fosse, em exclusivo; 
 
 11. Esta apropriação ilegítima para posterior utilização em defesa civil, 
 consubstancia a prática, voluntária, de nove crimes de ABUSO DE CONFIANÇA 
 previsto e punido pelo nº 1 do art. 205º do Código Penal; 
 
 12. Pior, verifica-se pelo teor das declarações processuais que acompanhavam 
 tais documentos confidenciais, a artigos 21º e 22º da sua douta contestação na 
 acção cível onde foram dadas como prova, que em nada relevariam para a boa e 
 eficaz defesa, quer dela arguida Maria Fernanda, quer dos seus co-réus e filhos; 
 
 
 
 13. Uma vez que, assentando essa defesa num pretenso “relacionamento amoroso” a 
 provar pela utilização insistente da palavra “amor”, e a causa de pedir na 
 aludida acção cível na facturação resultante da prestação de serviços 
 profissionais do recorrente à primeira arguida e seus filhos, jamais este 
 pagamento poderia ser compensado por serviços sexuais, tampouco por se referir 
 também a terceiros (art. 851º, nº 1, CC) e não ter sido efectuada a declaração 
 de compensação de créditos segundo as regras do art. 848º, nº 1, do Código 
 Civil; 
 
 14. Não tendo eficácia uma tal defesa em juízo é ela supérflua e patentemente 
 destinada a, de forma astuciosamente camuflada, divulgar um pretenso 
 
 “relacionamento amoroso” que pudesse realizar intenção dolosa de vingança por 
 afectação da boa harmonia familiar do recorrente; 
 
 15. Tanto mais que, para além das sobreditas missivas e pagela, nenhuma prova 
 carreou sobre a existência de um qualquer “relacionamento amoroso” ao ponto de 
 ter ficado arredado da matéria provada nos referidos autos cíveis, como é 
 constatável da douta sentença neles proferida que maiores cuidados 
 investigatórios deveria ter requisitado;
 
 16. Razão acrescida na necessária prova indiciária para fazer recair sobre as 
 arguidas o libelo de que sem consentimento do recorrente e com intenção de 
 devassar a sua vida privada, designadamente sexual, divulgaram em juízo, e dali 
 a terceiros, missivas de natureza confidencial, quer pela sua natureza, quer 
 pela justa expectativa do seu autor; 
 
 17. Sendo que a divulgação atinge já neste momento, com tendência a continuar, 
 vários processos civis, criminais e disciplinares, em, pelo menos, três 
 comarcas, por via da possibilidade legal de qualquer cidadão poder consultar e 
 extrair certidões, como resulta perfeito do dispositivo do art. 167º, nº 2, do 
 Código de Processo Civil; 
 
 18. Sendo que a arguida Cristina Lago Carvalho, pelos especiais conhecimentos de 
 direito em virtude da sua condição profissional de advogado, tinha obrigação de 
 fazer saber à arguida Maria Fernanda a ilicitude de tal prática, de não a 
 sancionar ou subscrever, segundo as regras do nº 2 do art. 485º do já invocado 
 Código Civil e as dos arts. 78º, alíneas a), b) e c) e 83º, nº 1, alínea c), 
 ambos do Estatuto da Ordem dos Advogados; 
 
 19. Ao contrário é esta especial arguida uma das utentes da divulgação como se 
 veio a dizer em sede de abertura de Instrução e foi olvidado pela douta decisão 
 instrutória; 
 
 20. Por este conjunto de razões as práticas imputadas indiciariamente às 
 arguidas constituem ilícitos criminais, os apontados e/ou outros que melhor 
 ciência adeque, bastando esses indícios para as submeter a julgamento, sem 
 prejuízo de defesa nos termos da lei; 
 
 21. Ao não pronunciar as arguidas o Tribunal a quo, recusou aplicar a lei 
 vigente a que deve submissão, designadamente o disposto no art. 308º, nº 1, do 
 Código de Processo Penal, e a assegurar assim a tutela dos direitos legais e 
 constitucionais do recorrente no que tange à ofensa da personalidade e à reserva 
 da vida privada, resultantes das normas plasmadas nos arts. 70º a 81º do Código 
 Civil e 26º, nºs 1 e 2, da Lei Fundamental; 
 
 22. Maxime, violando com isso os imperativos constitucionais emergentes dos nºs 
 
 1 e 2 do art. 202º e do art. 203º, ambos da Constituição da República Portuguesa 
 violação esta resultante da diferente interpretação dada às invocadas normas na 
 decisão recorrida, cuja verdadeira o recorrente tem pela reproduzida no conjunto 
 das presentes conclusões, arguindo essas inconstitucionalidades interpretativas 
 ad cautelam para todos os legais efeitos; 
 
 23. Carece, pois, por tudo isto, a douta decisão instrutória de que aqui se 
 recorre de revogação e substituição por outra que pronuncie as arguidas pelos 
 crimes indiciados, e/ou outros que se venham a mostrar adequados à realidade 
 penal, submetendo-as ao legal julgamento como de lei”.
 
  
 
                 4.2 – Por seu turno, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu as 
 questões levantadas pelo recorrente com base na seguinte fundamentação:
 
  
 
 “(...)
 
 2.1-O âmbito dos recursos encontra-se delimitado em função das questões 
 sumariadas pelo recorrente nas conclusões extraídas da respectiva motivação, sem 
 prejuízo, no entanto, das questões que sejam de conhecimento oficioso, cfr. se 
 extrai do disposto no art. 412º nº 1 e no art. 410º nºs 2 e 3 do Código de 
 Processo Penal (C.P.P.) 
 Isto, sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou 
 nulidades, designadamente dos vícios indicados no art. 410º, nº 2 do CPP[4].
 Tais conclusões visam permitir ou habilitar o tribunal ad quem a conhecer as 
 razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida[5]. 
 Assim, traçado o quadro legal temos por certo que as questões levantadas no 
 recurso são cognoscíveis no âmbito dos poderes desta Relação. 
 
 2.2-Está em apreciação e em síntese, a seguinte questão: 
 Há indícios suficientes para que as arguidas Maria Fernanda e Drª Cristina Lago, 
 sua mandatária forense, devam ser pronunciadas como autoras materiais do crime 
 de devassa da vida privada, p.p. no art. 192º do CP, face à junção a processo 
 cível das cartas do autor dirigidas àquela, com conteúdo confidencial e 
 respeitante a declarações do foro íntimo, amoroso e religioso, desnecessárias à 
 defesa desta e embora visando excepção invocada como prova de que o mandato cuja 
 retribuição ali se exigia não era oneroso? 
 E também pronunciadas deveriam sê-lo pela prática de um crime de abuso de 
 confiança p.p. nos termos do art. 205º nº 1 do CP? 
 
 2.3-Vejamos então: 
 No caso, discute-se se as cartas juntas ao processo cível em que a aqui arguida 
 era ré e autor o ora assistente, como prova da “amizade entre ambos” 
 justificativa da exclusão da remuneração de serviços deste àquela, contêm 
 matéria susceptível de constituir devassa da vida privada do recorrente e é isso 
 que importa apurar. 
 Ora bem! 
 A Constituição da república inclui o direito “à reserva da intimidade da vida 
 privada e familiar” (artigo 26º, nº 1), no núcleo fundamental dos direitos 
 liberdades e garantias. 
 Em consonância com isto, erigindo a reserva da vida privada em bem jurídico 
 penalmente protegido, prescreve o artigo 192º do Código Penal: 
 
 1 - Quem, sem consentimento e com intenção de devassar a vida privada das 
 pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual:
 
 […]
 d) Divulgar factos relativos à vida privada ou a doença grave de outra pessoa; é 
 punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias. 
 
 2 - O facto previsto na alínea d) do número anterior não é punível quando for 
 praticado como meio adequado para realizar um interesse público legítimo e 
 relevante. 
 Assim, no caso, são requisitos do crime de devassa da vida privada: 
 a) que tenham sido divulgados factos relativos à vida privada de alguém; 
 b) que essa divulgação tenha sido feita sem o consentimento desse alguém; 
 c) que essa divulgação tenha sido feita com intenção de devassar a vida privada 
 dessa pessoa, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual. 
 Quanto aos dois primeiros requisitos, não há dúvida de que as cartas juntas ao 
 processo se referem a factos e sentimentos da vida privada mais íntima do 
 assistente (também da arguida Maria Fernanda) e a sua junção foi feita sem o seu 
 consentimento tácito ou expresso. 
 E dúvidas também não temos em afirmar, ao contrário do decidido no despacho de 
 não pronúncia, que a divulgação consiste na saída da esfera de conhecimento do 
 conteúdo daquelas cartas por parte da destinatária para a esfera de conhecimento 
 de terceiros, podendo eles ser os intervenientes do processo cível, juízes, 
 funcionários judiciais ou outros que tivessem ou tenham acesso ao processo. 
 Divulgar consiste em tornar conhecido o que até aí não o era, publicitando-o, no 
 sentido ao menos de o revelar a outrém que não os conhecedores originais dos 
 factos. 
 E fazê-lo através de defesa em processo judicial não é excepção a tal conceito.
 Quanto ao último requisito – intenção de devassar a vida privada do assistente: 
 Há que dizer, antes de mais, que estamos diante “de um daqueles crimes em que a 
 lesão do bem jurídico só é punida enquanto consequência “de uma direcção da 
 vontade hostil ao bem jurídico”, ou seja, exige-se um dolo específico, isto é, a 
 intenção de devassar a vida privada de alguém. 
 Note-se que a doutrina maioritária considera não ser punível o dolo eventual[6] 
 A alusão, no preceito transcrito, à intimidade da vida familiar ou sexual e a 
 doença grave tem finalidades meramente exemplificativas, pois a vida privada, 
 como é bom de ver, não se esgota nesses aspectos. 
 
 2.4- A doutrina costuma distinguir entre privacidade stricto sensu e intimidade 
 como constituindo duas esferas da privacidade latu sensu. 
 Como ensina Costa Andrade (R.L.J., 130º, págs. 382 e seguintes), a segunda – a 
 esfera da intimidade – corresponde ao último reduto do “right to be alone”. “A 
 sua preservação e salvaguarda constitui condição do livre desenvolvimento ético 
 da pessoa, estando, por isso, a coberto de toda a intervenção (pública ou 
 privada) e contando com uma tutela tendencialmente absoluta por parte da ordem 
 jurídica. 
 A intimidade está subtraída ao princípio geral da ponderação de interesses e, em 
 particular, à prossecução de interesses legítimos [...]. Para além disso, ela 
 configura uma barreira intransponível à exceptio veritatis, isto é, à prova da 
 verdade dos factos, em geral, admissível quando estão em causa atentados à honra 
 sob a forma de imputação de factos. 
 Como emanação que é do ser-pessoa, a esfera íntima assiste a todo o indivíduo, 
 quaisquer que sejam o seu estatuto e papéis sociais. [...] inclusivamente as 
 pessoas que fazem a história do seu tempo [...] quer dizer, as pessoas que 
 protagonizam a vida política, económica ou social ou brilham no mundo da 
 cultura, do espectáculo ou do desporto têm direito à inviolabilidade da 
 Intimsphäre.” 
 A primeira – a privacidade em sentido restrito – segundo o mesmo Autor, 
 
 “compreende os eventos ou vivências ainda pertinentes à pessoa como indivíduo, 
 mas exteriores à área nuclear da intimidade: onde a pessoa almoça e com quem, 
 onde passa férias, os negócios privados que faz, etc. 
 A sua densidade e extensão são decisivamente influenciadas pelo estatuto do 
 portador concreto, pela sua maior ou menor exposição aos holofotes da 
 publicidade. A privacidade – pelo menos a privacidade penalmente protegida – 
 tende a estreitar-se drasticamente, podendo mesmo ser nula quando estão em causa 
 as pessoas da Zeitgeschichte, as public figures. 
 Por outro lado, a privacidade é um valor susceptível de ponderação e exposto ao 
 sacrifício em nome da prossecução de interesses legítimos. Para além disso, ela 
 não configura limite bastante e intransponível à exceptio veritatis”. 
 Ainda segundo Costa Andrade (ob. e loc. citados[7]) o conceito de 
 privacidade/intimidade é eminentemente relativo – e variável, não sendo possível 
 referenciar um universo de eventos ou vivências invariável e definitivamente 
 pertinentes à privacidade /intimidade. Ou, noutros termos, não é possível 
 definir a área de reserva da vida privada como um espaço de conteúdo material 
 estabilizado e fixo e, como tal, estanque face ao domínio da publicidade. 
 
  
 
 2.5-A intimidade da vida privada de cada um, que a lei protege, compreende 
 aqueles actos que, não sendo secretos em si mesmos, devem subtrair-se à 
 curiosidade pública por naturais razões de resguardo e melindre, como os 
 sentimentos e afectos familiares, os costumes de vida e as vulgares práticas 
 quotidianas, a vergonha da pobreza e as renúncias que ela impõe e, até, por 
 vezes, o amor da simplicidade, a parecer desconforme com a grandeza dos cargos e 
 a elevação das posições sociais; em suma, tudo: sentimentos, acções e 
 abstenções, que podem ser altamente meritórios do ponto de vista da pessoa a que 
 se referem, mas que, vistos do exterior, tendem a apoucar a ideia que deles faz 
 o público em geral (Parecer da PGR no 121/80, de 23 de Julho de 1981- BMJ, 
 
 309-142); 
 
 “Esfera íntima da vida privada” constitui aquele sector da vida que se 
 desenvolve entre as paredes domésticas e no âmbito da família e considera o 
 direito da pessoa a conservar a discrição mesmo em tomo dos acontecimentos e do 
 desenvolvimento da sua vida como uma manifestação do “direito ao resguardo” 
 
 (diritto alia riservatezza) – De Cupis, “Os Direitos da Personalidade”, trad. de 
 Adriano Vera Jardim, e António Miguel Caeiro, Morais Editora, Lisboa, 1961, 
 págs. 142 e segs.; 
 Daqui dever limitar-se a determinação do conceito de “vida privada” do nº 3 do 
 artigo 35º da Constituição, à esfera da intimidade, ou seja, à esfera inviolável 
 e intangível da vida privada, protegida de intromissões por parte de 
 estranhos.[8] 
 
 2-6- As cartas dirigidas pelo recorrente à arguida Maria Fernanda não tinham 
 natureza declarada ou solicitadamente confidencial. Essa confidencialidade seria 
 antes implícita, já que nelas o recorrente manifestava sentimentos íntimos (de 
 amor e amizade, de prática e convicções religiosas) em pressuposição legítima de 
 reserva de não divulgação a terceiros, sobretudo sendo o recorrente casado, o 
 que a arguida sabia. 
 E essa expectativa era conhecida obviamente pela arguida porquanto se retira da 
 sua posição no processo cível que invocou ter existido entre ambos uma relação 
 de amizade obstaculizante do pedido do ali autor e ora queixoso recorrente. 
 Decorre do senso comum e das regras da experiência e também da boa convivência 
 social que havendo entre duas pessoas uma relação de amizade íntima ou mais do 
 que isso, a confiança recíproca seja uma regra a respeitar para a manutenção 
 dessa relação e que a mesma não seja violada. 
 Seja como for, tal confidencialidade impõe que o seu destinatário guarde reserva 
 sobre o seu conteúdo, não lhe sendo lícito aproveitar os elementos de informação 
 que a carta-missiva lhe tenha levado ao conhecimento – art. 75º do CC. 
 A sua publicação está sujeita ao consentimento do autor ou dependerá, se não for 
 obtido tal consentimento, do seu suprimento judicial – art. 76º do CC 
 Mesmo quando a carta não seja confidencial o seu destinatário só pode usar dela 
 em termos que não contrariem a expectativa do autor – art. 78º do CC.
 
 2.7-O crime de devassa configura invariavelmente um crime de dano em todas as 
 suas modalidades, já que pressupõe a lesão efectiva do bem jurídico típico 
 
 (Costa Andrade, Comentário Conimbricense, 734) 
 A lesão ocorre invariavelmente com a divulgação dos conteúdos de reserva da vida 
 privada e tal divulgação ocorre quando o conhecimento dos mesmos é obtido por 
 terceiros que, sem tal divulgação, não teriam deles conhecimento por não lhes 
 ser legítimo ter-lhes acesso. 
 Posto isto, e indo numa direcção em parte diferente da argumentação do despacho 
 de não pronúncia, haverá preenchimento ainda assim do crime de devassa imputado 
 pelo recorrente? A questão só poderá resolver-se, em nosso entender, pela 
 detecção do elemento subjectivo. 
 A junção das cartas aos autos cíveis para as ali rés provarem que a dívida não 
 existia pois os serviços do autor teriam sido prestados por” amizade” pode ser 
 passível de ser considerada um excesso de defesa, um despropósito de mau gosto 
 ou mesmo até uma atitude reveladora de alguma falta de carácter. E isso, 
 considerando que as cartas juntas aos autos cíveis nem sequer visavam um fim 
 público mas privado, não sendo sequer de afastar a possibilidade de aquela 
 defesa poder ter sido consubstanciável através de outros meios menos lesivos das 
 expectativas legítimas do assistente em que o seu conteúdo nunca fosse revelado, 
 pelo menos sem o seu consentimento. 
 Embora tal atitude possa ser passível de desmerecimento ético, temos porém como 
 muito duvidoso que a arguida tivesse querido agir para causar dano directo ou 
 necessário ao assistente. Com exagero ou não na defesa, não se extrai dos autos 
 que a junção das cartas não visasse mais que provar o amor e amizade propalado 
 pelo assistente à arguida e que fosse essa a única razão para o exercício de um 
 mandato não oneroso insusceptível de ressarcimento ou retribuição por serviços 
 prestados no âmbito da relação entre ambos dotada daqueles sentimentos 
 
 (retribuídos ou não pela arguida) 
 Considerando a natureza da infracção e a falta de sinais e indícios claros de 
 intenção de devassa (dolo directo ou necessário) e aceitando como correcto no 
 plano dogmático que o dolo eventual não será cabível neste tipo de infracção, 
 então teremos de concluir que não há suficiência de indícios justificativos da 
 pronúncia. 
 Trata-se de uma infracção a levar à categoria dos “delitos de tendência”, em que 
 a “acção típica está subordinada à direcção da vontade do agente, que é o que 
 lhe confere o seu carácter particular ou especial perigosidade e em que a lesão 
 do bem jurídico “está no alvo da punição enquanto “consequência de uma direcção 
 da vontade hostil ao bem jurídico” (cfr Costa Andrade, op. Cit, p 735, § 24); 
 Ora, a defesa da arguida no processo cível, ainda que passível daquela crítica, 
 não foi inequivocamente dirigida à violação do referido bem jurídico em 
 hostilidade directa ou necessária no plano subjectivo jurídico-penal aludido. E 
 não havendo sinais suficientes de que essa actuação foi assim “dolosamente 
 
 “direccionada, sendo mais provável a absolvição por dúvidas que a condenação, 
 bem andou o despacho recorrido em não ter pronunciado a arguida, nessa parte, 
 ainda que aqui o digamos por razões não totalmente coincidentes. 
 
 2.8- Quanto ao crime de abuso de confiança 
 Para a verificação deste crime, cujos elementos constitutivos se encontram aliás 
 bem caracterizados no despacho recorrido, e por isso aqui se dão como 
 reproduzidos por economia de esforços, necessário se tornaria que houve 
 apropriação de coisa entregue por título não translativo de propriedade. E é 
 aqui que falha a argumentação do recorrente. Quando este enviou as cartas que 
 escreveu, dirigiu-as à Maria Fernanda sem qualquer nótula ou indicação de 
 devolução. E das regras da experiência que situações como esta, que ocorrem 
 milhares de vezes pelo mundo inteiro todos os dias, implicam sempre que os 
 destinatários sejam os receptores das cartas a eles dirigidas e façam delas o 
 que bem entenderem: guardem, arquivem, rasguem, destruam, etc. Passem pois a 
 agir como se proprietários fossem (usando-as, fruindo-as e delas dispondo, 
 salvas as restrições éticas, morais ou legais que lhes sejam oponíveis). 
 Além do mais, caberá aqui assinalar desde já que também o conteúdo intelectual 
 das missivas nunca poderia ser objecto de apropriação, tal como acontece com os 
 créditos e outros direitos em sentido não material (cfr. CP Conimbricense 
 anotado, J.F. Dias, pª 97, Coimbra Editora) 
 E assim sendo, a sua disposição material e de conteúdo, ao passar pela entrega à 
 arguida advogada, não seria senão mais do que um acto de poder da arguida 
 Fernanda sobre as cartas que passaram a ser legitimamente suas e que entendeu 
 dever usar para sua defesa em processo cível. Não se apropriou delas 
 ilegitimamente (recebeu-as gratuitamente endereçadas para si por liberalidade do 
 assistente) nem passou a usar ilicitamente do “dominus” sobre as ditas pois a 
 sua recepção voluntária sem cláusula de devolução ou de não apropriação foi 
 suficiente para a legítima integração patrimonial própria. 
 Bem decidiu pois, também neste particular, o despacho recorrido.
 
 (...)”.
 
  
 
 4.3 – Ora, como bem se vê, o recorrente não suscitou a constitucionalidade da 
 
 “norma” que agora coloca à apreciação do Tribunal, tendo, ao invés, em sede de 
 recurso, imputado directamente à decisão – juízo aplicativo – do tribunal a quo 
 a desconformidade com o diploma fundamental.
 
                 E nem se diga que o presente caso concreto configura uma 
 daquelas situações excepcionais ou anómalas nas quais o interessado não dispôs 
 de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes 
 referida ou não era exigível que o fizesse, designadamente por o tribunal a quo 
 ter efectuado uma aplicação de todo insólita e imprevisível. 
 
                 De facto, pugnando o recorrente pela pronúncia das arguidas, não 
 seria inexigível que configurasse, no contexto do seu recurso, a questão do 
 preenchimento do elemento subjectivo do crime previsto no artigo 192.º do Código 
 Penal.
 Como vem sendo reiterado por este Tribunal, deve entender-se que as partes, ao 
 encararem ou equacionarem na defesa das suas posições a aplicação das normas, 
 não estão dispensadas de entrar em linha de conta com o facto de estas poderem 
 ser entendidas segundo sentidos divergentes e de os considerar na defesa das 
 suas posições, aí prevenindo a possibilidade da (in)validade da norma em face da 
 lei fundamental. 
 Ou seja, entendendo-se que as partes têm um dever de prudência técnica na 
 antevisão do direito plausível de ser aplicado e, nessa perspectiva, quanto à 
 sua conformidade constitucional, o recorrente teve oportunidade para suscitar a 
 questão de constitucionalidade, tanto mais que a fundamentação que o recorrente 
 controverte se apresentava como sendo claramente plausível de ser mobilizada 
 pelo tribunal, tanto mais que a questão da “intenção de devassa da vida privada 
 fora expressamente equacionada no recurso para a Relação.
 
                 Por outro lado, importa também reconhecer que a norma “contida 
 no n.º 1 do artigo 308.º do Código de Processo Penal e, em consequência, dos 
 artigos 192.º, n.º1, alínea d), e 205.º, n.º 1, ambos do Código Penal, na 
 interpretação (...) de que, apesar da reconhecida violação da reserva da 
 intimidade da vida privada tutelada pelas normas dos artigos 75.º a 81.º do 
 Código Civil, o facto dessa devassa ser efectuada em juízo para defesa de 
 interesses civis em litígio, retira o elemento subjectivo do crime previsto e 
 punido pela sobredita alínea d) do n.º 1 do artigo 192.º do Código Penal (...)” 
 não foi aplicada como ratio decidendi pelo juízo recorrido.
 
                 Na verdade, na economia do decidido, não pode deixar de 
 reconhecer-se que o Tribunal da Relação não apreciou a questão da reserva da 
 intimidade da vida privada à luz dos dispositivos juscivilísticos que o 
 recorrente menciona, limitando-se a apurar, apenas e só, da existência – ou 
 inexistência – de indícios susceptíveis de conduzirem à pronúncia das arguidas.
 Acresce a isto que o elemento subjectivo do crime não é afastado, qua tale, pelo 
 facto de estar em causa a defesa de interesses civis, mas, sem mais, por o 
 tribunal ter concluído pela “falta de sinais e indícios claros de intenção de 
 devassa (dolo directo ou necessário) (...) aceitando como correcto no plano 
 dogmático que o dolo eventual não será cabível neste tipo de infracção (...)”.
 
                 Ou seja, dito de outro modo, não foi, como diz o recorrente, “o 
 facto dessa devassa ser efectuada em juízo para defesa de interesses civis em 
 litígio, [que] retir[ou] o elemento subjectivo do crime”, mas é antes o facto de 
 não ter havido aquela intenção de devassa que afasta, independentemente da 
 ponderação dos interesses em jogo, o preenchimento do tipo.
 
                 
 
                 5 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional 
 decide não tomar conhecimento do recurso.
 
                 
 Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 UCs».
 
  
 
  
 
  
 B – Fundamentação
 
  
 
                  5 – Antes de mais, cabe notar que o reclamante não refuta um 
 dos fundamentos da decisão sumária que só por si justifica o não conhecimento do 
 pedido: o de que as normas, cuja constitucionalidade se pretende que o Tribunal 
 Constitucional aprecie, não constituíram ratio decidendi do acórdão recorrido.
 
                  Na verdade, o acórdão da Relação não assentou na consideração 
 alegada pelo reclamante de que “o facto dessa devassa ser efectuada em juízo 
 para defesa de interesses civis em litígio retira o elemento subjectivo do crime 
 previsto e punido pela sobredita alínea d) do n.º 1 do artigo 192.º do Código 
 Penal (...)”, mas, antes, na de que faltavam “sinais e indícios claros de 
 intenção de devassa (dolo directo ou necessário) (...) aceitando como correcto 
 no plano dogmático que o dolo eventual não será cabível neste tipo de infracção 
 
 (...)”.
 
                  Dito de outro modo, a decisão da Relação resulta de um juízo de 
 ponderação probatória sobre os elementos de facto evidenciados pelas provas 
 existentes no processo ou de um juízo cognoscitivo-valorativo efectuado sobre as 
 provas recolhidas no processo – logo de natureza ou estrutura factual – e não da 
 assumpção de qualquer entendimento normativo nos termos do qual a junção a 
 processo civil de missivas ou cartas com conteúdo coberto pelo direito de 
 reserva de intimidade da vida privada arredava o elemento subjectivo da 
 infracção por cuja pronúncia o reclamante se batia no recurso.
 
                  Mas, independentemente desta razão, acresce que o reclamante 
 dispôs de inteira oportunidade para suscitar a questão de constitucionalidade, 
 tal qual a recortou no seu requerimento de recurso, como se afirma na decisão 
 reclamada e em contrário do que argumenta na sua reclamação.
 
                  Tal como defendeu, em síntese, no recurso para a Relação, a 
 existência de uma conexão necessária entre a existência de dolo por parte das 
 arguidas e a ilicitude da junção das missivas à acção cível, ilicitude esta 
 decorrente do facto de a revelação do seu conteúdo atentar contra os seus 
 direitos de personalidade e de reserva de intimidade à vida privada, bem poderia 
 o reclamante antecipar uma posição contrária à, por si, sustentada e suscitar a 
 questão de inconstitucionalidade de um tal entendimento.
 
                  Não se estaria, pois, perante qualquer interpretação 
 imprevisível ou insólita cuja antecipação não pudesse ser efectuada pelo 
 reclamante.
 
  
 C – Decisão
 
  
 
                  6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional 
 decide indeferir a reclamação.
 
                  Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
 Lisboa, 17 de Janeiro de 2007
 Benjamim Rodrigues
 Maria Fernanda Palma
 Rui Manuel Moura Ramos
 
  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 [1] Página 9. § 5º.
 
 [2] Página 12, § 6º.
 
 [3] Acórdãos 61/92, 188/93, 569/95, 596/96, entre outros.
 
 [4] vide Ac. STJ para fixação de jurisprudência 19.10.1995 publicado no DR, 1-A 
 Série de 28.12.95
 
 [5] vide, entre outros, o Ao STJ de 19.06.96, BMJ 458, pág. 98 e o Ac. STJ de 
 
 13.03.91, proc° 416794, 3ª sec., tb cit° em anot. ao art. 412º do CPP de Maia 
 Gonçalves 12ª ed; e Germano Marques da Silva, Curso Proc° Penal, III, 2ª ed., 
 pág. 335; e ainda jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Acs. do STJ de 16-11-95, 
 in BMJ 451/279 e de 31-01-96, in BMJ 453/338) e Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano 
 de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), bem como Simas Santos/
 Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 74 e decisões ali 
 referenciadas.
 
 [6] Cfr Comentário Conimbricense, Costa Andrade, 1999, p 735 e autores aí 
 citados (Jakobs 337; Zielinski, cit, STGB- Kommentar Bd 1, 495)
 
 [7] Cfr. ainda anot ao art. 192º do CP, Comentário Conimbricense, Coimbra 
 Editora, 1999
 
 [8] Cfr sobre a posição enunciada o Ac STJ 04/09/2003 (site da DGSI)