Imprimir acórdão   
			
Processo n.º 755/06
 
 2.ª Secção
 Relator: Conselheiro Mário Torres
 
  
 
  
 
  
 
              Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
 
  
 
  
 
                                  1. Relatório
 
                                  Por decisão de 5 de Maio de 2006 do Juiz do 5.º 
 Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Guimarães, foi declarada a 
 insolvência de A., L.da, que se apresentara à insolvência, e designado como 
 administrador da insolvência B..
 
                                  No decurso da assembleia de credores, realizada 
 em 17 de Agosto de 2006, foi submetida à votação uma proposta de substituição do 
 administrador anteriormente nomeado, proposta que foi aprovada por credores que 
 representavam 63,25% dos créditos reclamados, na sequência do que foi proferido 
 o seguinte despacho judicial:
 
  
 
 “Do resultado da votação extrai‑se que a Assembleia de Credores votou 
 maioritariamente pela substituição do Senhor Administrador.
 Nos termos do disposto no artigo 53.º, n.º 3, o Juiz só pode deixar de nomear 
 como administrador da insolvência a pessoa eleita pelos credores quando a mesma 
 não esteja inscrita na lista oficial ou quando careça de idoneidade ou aptidão 
 para o exercício do cargo.
 Nos termos do disposto no artigo 202.º, n.º 1, da Constituição da República 
 Portuguesa, é aos tribunais que compete administrar a justiça em nome do povo, 
 aqui se incluindo obviamente, nos termos das leis processuais, a tramitação dos 
 vários processos e o respectivo julgamento.
 Ora, face às competências previstas no CIRE para o administrador da insolvência, 
 crê‑se que o conteúdo das normas previstas no artigo 53.º do CIRE padecem de 
 inconstitucionalidade por manifesta violação do conteúdo essencial da função 
 jurisdicional. Com efeito, é ao juiz que incumbe a nomeação do administrador de 
 insolvência, bem como a fiscalização do exercício das respectivas funções, 
 sendo essa nomeação um acto de relevante importância no desenvolvimento de todo 
 o processo.
 Assim, é nosso modesto entendimento que viola frontalmente a CRP a atribuição de 
 poderes à Assembleia de Credores para alterar, sem qualquer fundamentação 
 mínima, sem qualquer justificação válida, a nomeação feita pelo juiz do 
 processo.
 Assim, por considerar inconstitucionais, in casu, as normas do artigo 53.º do 
 CIRE e nos termos do disposto no artigo 204.º da CRP, decido desaplicar, por 
 violação do disposto no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da CRP, as referidas normas e, 
 em consequência, mantenho em funções o Senhor Administrador já nomeado.”
 
  
 
                                  É deste despacho que vem interposto recurso 
 pelo Ministério Público, nos termos dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), e 72.º, 
 n.º 3, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal 
 Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, 
 por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo‑se ver 
 apreciada a inconstitucionalidade, por violação do artigo 202.º da Constituição 
 da República Portuguesa (CRP), da norma constante do artigo 53.º, n.º 3, do 
 Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo 
 Decreto‑Lei n.º 53/2004, de 18 de Março.
 
                                  Neste Tribunal Constitucional, o representante 
 do Ministério Público apresentou alegações, concluindo:
 
  
 
 “1.º – Não se situa no âmbito da função jurisdicional a escolha ou designação, 
 em processo de natureza executiva, singular ou universal, da pessoa ou entidade 
 a quem está cometida uma função de gestão material do processo, realizando 
 todos os actos que não dependam de actuação ou decisão do juiz.
 
 2.º – Mesmo que se considere que, em tais processos, o princípio constitucional 
 da «reserva do juiz» implica que – apesar da desjudicialização parcial 
 prosseguida pelo legislador – ao juiz deve estar cometido um poder geral de 
 controlo do processo, adequando‑o aos seus fins e sindicando a actuação dos 
 intervenientes processuais que cooperam com o tribunal, a norma constante do 
 artigo 53.º do CIRE, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, não 
 afronta tal princípio.
 
 3.º – Na verdade, face ao regime legal estabelecido, incumbe ao juiz valorar a 
 nomeação feita pela assembleia de credores, rejeitando‑a quando formule um juízo 
 negativo acerca das capacidades e idoneidade do eleito, bem como sindicar a sua 
 actuação processual, destituindo‑o quando ocorra justa causa.
 
 4.º – Termos em que deverá proceder o presente recurso, em consonância com um 
 juízo de constitucionalidade da norma desaplicada na decisão recorrida.”
 
  
 
                                  Os recorridos não apresentaram 
 contra‑alegações.
 
                                  Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
 
  
 
                                  2. Fundamentação
 
                  2.1. A decisão recorrida recusou a aplicação da norma do artigo 
 
 53.º, n.º 3, do CIRE, por a reputar violadora do artigo 202.º, n.ºs 1 (“Os 
 tribunais são os órgãos de soberania com competência para aplicar a justiça em 
 nome do povo”) e 2 (“Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar 
 a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir 
 a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses 
 públicos e privados”), da CRP, já que desrespeitaria o “conteúdo essencial da 
 função jurisdicional”, por ser “ao juiz que incumbe a nomeação do administrador 
 de insolvência, bem como a fiscalização do exercício das respectivas funções, 
 sendo essa nomeação um acto de relevante importância no desenvolvimento de todo 
 o processo”.
 
                  O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de, por várias 
 vezes, densificar o conceito constitucionalmente relevante de função 
 jurisdicional, cujo exercício incumbe aos tribunais, mas tem‑no feito, na 
 maioria das vezes, em contraposição à noção de função administrativa. A função 
 jurisdicional tem sido caracterizada por se consubstanciar numa composição de 
 conflitos de interesses, levada a cabo por um órgão independente e imparcial, de 
 harmonia com a lei ou com critérios por ela definidos, tendo como fim 
 específico a realização do direito e da justiça, enquanto a função 
 administrativa é, ao invés, uma actividade que, partindo de uma situação de 
 facto traduzida numa “questão de direito”, visa a prossecução do interesse 
 público que a lei põe a cargo da Administração e não a paz jurídica que decorre 
 da resolução dessa questão (cf. a síntese das posições mais relevantes constante 
 do Acórdão n.º 80/2003).
 
                                  No presente caso, porém, não está tanto em 
 causa a diferenciação material daquelas duas funções, mas antes o entendimento, 
 subjacente à decisão ora recorrida, de que a reserva da função jurisdicional 
 implica não apenas a exigência de que seja um juiz a dirimir o conflito de 
 interesses em presença, mas também que seja o juiz a deter a direcção do 
 respectivo processo.
 
                                  No entanto, mesmo que se admita que aquela 
 reserva comporta esta extensão, é patente que, no caso, os termos em que está 
 legalmente regulada a intervenção da assembleia de credores na designação do 
 administrador da insolvência não permite concluir que seja posto em causa o 
 domínio do processo pelo juiz.
 
                                  Para fundamentar esta asserção, importa 
 descrever os traços mais salientes do regime instituído pelo CIRE.
 
  
 
                                  2.2. Conforme se explicita na exposição de 
 motivos do Decreto‑Lei n.º 53/2004, a aprovação do CIRE, em substituição do 
 Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência 
 
 (CPEREF), aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, teve por 
 preocupação fundamental a “agilização” desse procedimento, proporcionando a 
 
 “resolução célere e eficaz dos processos judiciais decorrentes da situação de 
 insolvência das empresas”, por se reconhecer que “a manutenção do regime actual 
 por mais tempo resultaria em agravados prejuízos para o tecido económico e para 
 os trabalhadores”. Porém, “a reforma (...) empreendida não se limit[ou] (...) à 
 colmatação pontual das deficiências da legislação em vigor, antes assent[ou] no 
 que se julg[ou] ser uma mais correcta perspectivação e delineação das 
 finalidades e da estrutura do processo, a que preside uma filosofia autónoma e 
 distinta”. Reconhecendo que “o objectivo precípuo de qualquer processo de 
 insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos 
 credores”, considerou‑se ser a estes “que cumpre decidir quanto à melhor 
 efectivação dessa garantia”, sendo “por essa via que, seguramente, melhor se 
 satisfaz o interesse público da preservação do bom funcionamento do mercado”. 
 Nesta perspectiva, “ao direito da insolvência compete a tarefa de regular 
 juridicamente a eliminação ou a reorganização financeira de uma empresa segundo 
 uma lógica de mercado, devolvendo o papel central aos credores, convertidos, por 
 força da insolvência, em proprietários económicos da empresa”.
 
                                  Salientando as principais inovações 
 introduzidas pelo CIRE, de acordo com a enunciada filosofia de privilegiamento 
 da posição dos credores, na referida exposição de motivos pode ler‑se, com 
 especial interesse para a apreciação do presente recurso:
 
  
 
                  “6 – (...)
 
                  Fugindo da errónea ideia afirmada na actual lei, quanto à 
 suposta prevalência da via da recuperação da empresa, o modelo adoptado pelo 
 novo Código explicita, assim, desde o seu início, que é sempre a vontade dos 
 credores a que comanda todo o processo. A opção que a lei lhes dá é a de se 
 acolherem ao abrigo do regime supletivamente disposto no Código – o qual não 
 poderia deixar de ser o do imediato ressarcimento dos credores mediante a 
 liquidação do património do insolvente ou de se afastarem dele, provendo por sua 
 iniciativa a um diferente tratamento do pagamento dos seus créditos. Aos 
 credores compete decidir se o pagamento se obterá por meio de liquidação 
 integral do património do devedor, nos termos do regime disposto no Código ou 
 nos de que constem de um plano de insolvência que venham a aprovar, ou através 
 da manutenção em actividade e reestruturação da empresa, na titularidade do 
 devedor ou de terceiros, nos moldes também constantes de um plano.
 
                  (...)
 
 8 – Elimina-se, igualmente, a distinção entre a figura do gestor judicial 
 
 (designado no âmbito do processo de recuperação) e a do liquidatário judicial 
 
 (incumbido de proceder à liquidação do património do falido, uma vez decretada 
 a sua falência), passando a existir a figura única do administrador da 
 insolvência. Também aqui a vontade dos credores prepondera, pois que lhes é 
 devolvida a faculdade – prevista na versão original do CPEREF, mas suprimida com 
 a revisão de 1998 – de nomearem eles próprios o administrador da insolvência, 
 em substituição do que tenha sido designado pelo Juiz, e, bem assim, a de 
 indicar com carácter vinculativo um administrador para ocupar o cargo de outro 
 que haja sido destituído das suas funções.
 Por outro lado, passando a comissão de credores a ser um órgão eventual no 
 processo de insolvência, também quanto à sua existência e composição impera a 
 vontade da assembleia de credores, que pode prescindir da comissão que o Juiz 
 haja nomeado, ou nomear uma caso o Juiz não o tenha feito, e, em qualquer dos 
 casos, alterar a respectiva composição. 
 
 (...)
 
 10 – A afirmação da supremacia dos credores no processo de insolvência é 
 acompanhada da intensificação da desjudicialização do processo.
 Por toda a parte se reconhece a indispensabilidade da intervenção do Juiz no 
 processo concursal, tendo fracassado os intentos de o desjudicializar por 
 completo. Tal indispensabilidade é compatível, todavia, com a redução da 
 intervenção do Juiz ao que estritamente releva do exercício da função 
 jurisdicional, permitindo a atribuição da competência para tudo o que com ela 
 não colida aos demais sujeitos processuais.
 
 É assim que, por um lado, ao Juiz cabe apenas declarar ou não a insolvência, 
 sem que para tal tenha de se pronunciar quanto à recuperabilidade financeira da 
 empresa (como actualmente sucede para efeitos do despacho de prosseguimento da 
 acção). A desnecessidade de proceder a tal apreciação permite obter ganhos do 
 ponto de vista da celeridade do processo, justificando a previsão de que a 
 declaração de insolvência deva ter lugar, no caso de apresentação à insolvência 
 ou de não oposição do devedor a pedido formulado por terceiro, no próprio dia da 
 distribuição ou nos três dias úteis subsequentes, ou no dia seguinte ao termo do 
 prazo para a oposição, respectivamente.
 Ainda na vertente da desjudicialização, há também que mencionar o 
 desaparecimento da possibilidade de impugnar junto do Juiz tanto as 
 deliberações da comissão de credores (que podem, não obstante, ser revogadas 
 pela assembleia de credores), como os actos do administrador da insolvência (sem 
 prejuízo dos poderes de fiscalização e de destituição por justa causa).
 
 11 – A desjudicialização parcial acima descrita não envolve diminuição dos 
 poderes que ao Juiz devem caber no âmbito da sua competência própria: afirma‑se 
 expressamente, no artigo 11.º do diploma, a vigência no processo de insolvência 
 do princípio do inquisitório, que permite ao Juiz fundar a decisão em factos que 
 não tenham sido alegados pelas partes.”
 
  
 
                                  Em concretização destes propósitos, o CIRE 
 reservou ao juiz, além do mais, as seguintes intervenções, na sequência da 
 apresentação do pedido de insolvência, pelo próprio devedor (artigo 18.º) ou por 
 terceiro (pelo responsável por dívidas do devedor, por qualquer credor ou pelo 
 Ministério Público em representação das entidades cujos interesses lhe estão 
 confiados – artigo 20.º): (i) indeferir liminarmente o pedido por manifestamente 
 improcedente ou evidente ocorrência de excepções dilatórias insupríveis de 
 conhecimento oficioso (artigo 27.º, n.º 1, alínea a)); (ii) conceder ao 
 requerente, sob pena de indeferimento, prazo para corrigir vícios sanáveis da 
 petição (artigo 27.º, n.º 1, alínea a)); (iii) declarar imediatamente a 
 insolvência requerida pelo próprio devedor (artigo 28.º); (iv) mandar citar o 
 devedor se a insolvência não tiver sido requerida pelo próprio (artigo 29.º; (v) 
 se o devedor não deduzir oposição, considerando-se confessados os factos 
 alegados na petição inicial, declarar a insolvência, se tais factos preencherem 
 os respectivos pressupostos (artigo 30.º, n.º 5); (vi) havendo justificado 
 receio da prática de actos de má gestão, ordenar, oficiosamente ou a pedido do 
 requerente, as medidas cautelares que se mostrem necessárias ou convenientes 
 para impedir o agravamento da situação patrimonial do devedor, até que seja 
 proferida sentença, medidas que podem designadamente consistir na nomeação de um 
 administrador judicial provisório (artigo 31.º), com poderes exclusivos para a 
 administração do património do devedor (hipótese em que deve providenciar pela 
 manutenção e preservação desse património, e pela continuidade da exploração da 
 empresa, salvo se considerar que a suspensão da actividade é mais vantajosa para 
 os interesses dos credores e tal medida for autorizada pelo juiz – artigo 33.º, 
 n.º 1), ou para assistir o devedor nessa administração (hipótese em que o juiz 
 deve especificar os deveres e as competências do administrador judicial 
 provisório – artigo 33.º, n.º 2).
 
                                  Tendo havido oposição do devedor, o juiz 
 designa dia para audiência de discussão e julgamento, competindo‑lhe: (i) ditar 
 logo para a acta sentença de declaração de insolvência, se não comparecerem o 
 devedor nem um seu representante e se os factos alegados na petição inicial, 
 que se têm por confessados, preencherem os requisitos legais dessa declaração, 
 ou sentença homologatória da desistência do pedido, se não comparecer o 
 requerente ou seu representante, já que esta ausência vale como desistência 
 
 (artigo 35.º, n.º 4); (ii) se o julgamento houver de prosseguir, seleccionar a 
 matéria de facto relevante que considere assente e a que constitui a base 
 instrutória, decidir logo as respectivas alegações, presidir à produção das 
 provas, e, após alegações, decidir a matéria de facto e proferir a sentença 
 
 (artigo 35.º, n.ºs 5 a 7).
 
                                  Na sentença que declarar a insolvência, deve o 
 juiz, além do mais, nomear o administrador da insolvência (artigo 36.º, alínea 
 d)), designar prazo para a reclamação de créditos (artigo 36.º, alínea j)) e 
 designar dia e hora para a realização da reunião da assembleia de credores 
 
 (artigo 36.º, alínea n)).
 
                                  A nomeação do administrador da insolvência é, 
 assim, da competência do juiz (artigo 52.º, n.º 1), devendo recair em entidade 
 inscrita na lista oficial de administradores da insolvência e devendo o juiz 
 atender igualmente às indicações que sejam feitas pelo próprio devedor ou pela 
 comissão de credores, se existir, e cabendo a preferência, na primeira 
 designação, ao administrador judicial provisório em exercício de funções à data 
 da declaração da insolvência (artigo 52.º, n.º 2). É neste contexto que surge o 
 artigo 53.º, cuja aplicação foi recusada pela decisão ora recorrida, e que 
 dispõe:
 
  
 
                  “Artigo 53.º
 
                  Escolha de outro administrador pelos credores
 
                  1 – Sob condição de que previamente à votação se junte aos 
 autos a aceitação do proposto, os credores podem, na primeira assembleia 
 realizada após a designação do administrador da insolvência, eleger para exercer 
 o cargo outra pessoa, inscrita ou não na lista oficial, e prover sobre a 
 remuneração respectiva, por deliberação que obtenha a aprovação da maioria dos 
 votantes e dos votos emitidos, não sendo consideradas as abstenções.
 
                  2 – A eleição de pessoa não inscrita na lista oficial apenas 
 pode ocorrer em casos devidamente justificados pelas especiais dimensão da 
 empresa compreendida na massa insolvente, pela especificidade do ramo de 
 actividade da mesma ou pela complexidade do processo.
 
                  3 – O juiz só pode deixar de nomear como administrador da 
 insolvência a pessoa eleita pelos credores, em substituição do administrador em 
 funções, se considerar que a mesma não tem idoneidade ou aptidão para o 
 exercício do cargo, que é manifestamente excessiva a retribuição aprovada pelos 
 credores ou, quando se trate de pessoa não inscrita na lista oficial, que não se 
 verifica nenhuma das circunstâncias previstas no número anterior.”
 
  
 
                                  O administrador da insolvência só assume a sua 
 função após ser notificado da sua nomeação pelo juiz (artigo 54.º), 
 incumbindo‑lhe, além das demais tarefas que lhe são cometidas, preparar o 
 pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro existentes 
 na massa insolvente, designadamente das que constituem produto da alienação, que 
 lhe incumbe promover, dos bens que a integram, e prover, no entretanto, à 
 conservação e frutificação dos direitos do insolvente e à continuação da 
 exploração da empresa, se for o caso, evitando quanto possível o agravamento da 
 sua situação económica (artigo 55.º, n.º 1). O administrador da insolvência 
 exerce a sua actividade sob a fiscalização do juiz, que pode, a todo o tempo, 
 exigir‑lhe informações sobre quaisquer assuntos ou a apresentação de um 
 relatório da actividade desenvolvida e do estado da administração e da 
 liquidação (artigo 58.º), bem como determinar‑lhe que preste contas em qualquer 
 altura do processo (artigo 62.º, n.º 2), e, nos termos do artigo 56.º, n.º 1, o 
 juiz pode, a todo o tempo, destituir o administrador da insolvência e 
 substituí-lo por outro, se, ouvidos a comissão de credores, quando exista, o 
 devedor e o próprio administrador da insolvência, fundadamente considerar 
 existir justa causa. Nos termos do artigo 169.º, o juiz pode, a requerimento de 
 qualquer interessado, decretar a destituição, com justa causa, do administrador 
 da insolvência, caso o processo de insolvência não seja encerrado no prazo de um 
 ano contado da data da assembleia de apreciação do relatório, ou no final de 
 cada período de seis meses subsequente, salvo havendo razões que justifiquem o 
 prolongamento.
 
                                  É ao juiz que cabe convocar (artigo 75.º) e 
 presidir (artigo 74.º) à assembleia de credores, conferir votos a créditos 
 impugnados (artigo 73.º, n.º 3), e decidir as reclamações contra as deliberações 
 da assembleia (artigo 78.º, n.º 2), bem como as impugnações dos credores 
 reconhecidos (artigo 130.º, n.º 1), proferir sentença de verificação e graduação 
 de créditos não impugnados (artigo 130.º, n.º 3), presidir a tentativa de 
 conciliação e proferir despacho saneador se o processo houver de prosseguir 
 
 (artigo 136.º), ordenar diligências instrutórias (artigo 137.º), designar e 
 presidir à audiência de discussão e julgamento (artigos 138.º e 139.º), e, 
 finalmente, proferir sentença de verificação e graduação dos créditos (artigo 
 
 140.º).
 
                                  Se a assembleia de credores optar pela 
 aprovação de um plano de insolvência, cabe ao juiz homologá‑lo (artigo 214.º), 
 podendo recusar essa homologação quer oficiosamente (no caso de “violação não 
 negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu 
 conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável 
 que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam 
 praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação” – 
 artigo 215.º), quer a solicitação do devedor ou de algum credor ou sócio, 
 associado ou membro do devedor, nas condições elencadas no artigo 216.º).
 
  
 
                                  2.3. Da sumária descrição do regime legal em 
 que se insere a norma desaplicada resulta que está reservada ao juiz a decisão 
 dos momentos cruciais do conflito de interesses presentes neste tipo de 
 processos: decretar, ou não, a insolvência; reconhecer e graduar os créditos; 
 homologar, ou não, o plano de insolvência. Está‑lhe também assegurado o efectivo 
 domínio do processo, em todas as suas fases, e, designadamente, um apertado 
 controlo da actuação do administrador de insolvência, que pode mesmo resultar na 
 sua destituição.
 
                                  É ao juiz que compete a nomeação do 
 administrador da insolvência, e mesmo a admissibilidade – pela norma reputada 
 inconstitucional pela decisão recorrida – de a assembleia de credores eleger 
 para exercer o cargo pessoa diversa da inicialmente indigitada pelo juiz 
 
 (prerrogativa inteiramente compreensível tendo em linha de conta que o processo 
 em causa visa primacialmente proteger os interesses dos credores, considerados 
 como sendo “por força da insolvência, os proprietários económicos da empresa”) 
 não retira ao juiz a última palavra na questão, pois ele pode recusar a nomeação 
 do administrador escolhido pela assembleia de credores se entender que o mesmo 
 não tem idoneidade ou aptidão para o exercício do cargo, que é manifestamente 
 excessiva a retribuição aprovada pelos credores ou, quando se trate de pessoa 
 não inscrita na lista oficial, que não se verificam as circunstâncias relativas 
 
 à especial dimensão da empresa compreendida na massa insolvente, à 
 especificidade do ramo de actividade da mesma ou à complexidade do processo que 
 foram invocadas para justificar a escolha de pessoa não inscrita na lista 
 oficial.
 
                                  Neste contexto, não é de manter o juízo de 
 inconstitucionalidade constante da decisão recorrida. Como se assinala na 
 contra‑alegação do Ministério Público, não está em causa a outorga a uma 
 entidade administrativa da competência para dirimir litígios entre 
 particulares, não se reportando o regime legal questionado ao exercício 
 substantivo da função jurisdicional, mas tão‑somente a uma determinada limitação 
 
 à discricionariedade judicial na escolha ou manutenção em funções de certo 
 interveniente processual, que cooperará com o tribunal no desenrolar do processo 
 de insolvência. Ora, “não está compreendido no âmbito da reserva do juiz um 
 poder irrestrito de escolha dos intervenientes processuais em causas de natureza 
 executiva, aos quais está cometida uma essencial tarefa de gestão, impulso e 
 realização material e prática dos actos processuais cuja natureza não imponha 
 uma actuação ou valoração jurisdicional”. A este propósito, recorda‑se que, no 
 
 âmbito da execução singular, também não é ao juiz que incumbe designar o 
 
 “solicitador de execução”, cabendo tal nomeação ao exequente ou à secretaria, 
 nos termos do artigo 808.º do CPC.
 
                                  No entanto, mesmo considerando, com o 
 representante do Ministério Público neste Tribunal, que “em processos de cariz 
 executório, a «desjudicialização parcial», recentemente prosseguida pelo 
 legislador, não pode aniquilar de todo o «poder geral de controlo e direcção do 
 processo pelo juiz», – adequando a tramitação da causa aos seus fins últimos, 
 garantindo os direitos e interesses legítimos nela envolvidos e sindicando a 
 actividade desenvolvida pelo «gestor material do processo» – (…) a norma em 
 causa no presente recurso não afronta tal «reserva mínima» da função 
 jurisdicional: é que, como se viu, a escolha e deliberação da assembleia de 
 credores não se impõe, em termos absolutos, ao juiz, permitindo‑lhe rejeitar 
 fundadamente uma eleição que considere manifestamente inadequada e 
 inconveniente para o fim e eficácia do processo, tal como lhe permite o artigo 
 
 56.º destituir o administrador em funções quando ocorra «justa causa»”. Na 
 verdade, “tais formas de controlo jurisdicional da nomeação e actuação do 
 administrador asseguram, (…) em termos bastantes, o poder geral de fiscalização 
 e direcção do processo pelo juiz, não afrontando o «núcleo essencial» da função 
 jurisdicional a possibilidade de as próprias «partes» – no caso, os credores, 
 reunidos em assembleia – preferirem que exerça a função de administrador da 
 insolvência pessoa diversa da originariamente designada, desde que tal 
 indicação não colida – atenta a capacidade e idoneidade do indicado – com o 
 interesse público na boa administração da justiça, naturalmente tutelado, em 
 todos os processos jurisdicionais, em última análise, pelo juiz”.
 
  
 
          3. Em face do exposto, acordam em:
 
             a) Não julgar inconstitucional a norma do 
 artigo 53.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 
 aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 53/2004, de 18 de Março; e, consequentemente,
 
              b) Conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão recorrida, na parte impugnada, em conformidade com o 
 precedente juízo de constitucionalidade.
 
                                  Sem custas.
 
                                  Lisboa, 18 de Outubro de 2006.
 
  
 Mário José de Araújo Torres
 Maria Fernanda Palma
 Paulo Mota Pinto
 Benjamim Silva Rodrigues
 Rui Manuel Moura Ramos