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Processo n.º 1067/06 
 Plenário 
 Relator: Conselheiro. Pamplona de Oliveira
 
                                                          
 
  
 
  
 ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
 
  
 
  
 
  
 
 1.            No dia 14 de Dezembro de 2006, invocando urgência, o Presidente da 
 República requereu ao Tribunal Constitucional, nos termos do n.º 1 do artigo 
 
 278° da Constituição e do n.º 1 do artigo 51º e do n.º 1 do artigo 57° da Lei nº 
 
 28/82 de 15 de Novembro, a apreciação, no prazo de quinze dias, da conformidade 
 constitucional da norma constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 19° e de todas 
 as constantes do artigo 20º do decreto da Assembleia da República registado com 
 o n.º 93/X, entrado na Presidência da República em 11 de Dezembro para ser 
 promulgado como lei. Alega: 
 
  
 I
 
  
 
 1º
 As normas relativamente às quais recaem as minhas dúvidas sobre a respectiva 
 conformidade constitucional constam de decreto aprovado pela Assembleia da 
 República e enviado para promulgação como Lei das Finanças Locais e reportam-se 
 aos efeitos decorrentes da faculdade nelas prevista de os municípios poderem vir 
 a ter uma participação variável nas receitas do Imposto sobre o Rendimento das 
 Pessoas Singulares (IRS), imposto que é nacional e não local e incide sobre o 
 rendimento global do agregado familiar.
 
  
 
 2º
 Verifica-se, efectivamente, que nas disposições normativas constantes da alínea 
 c) do nº 1 do art° 19º e dos n°s 1 e 4 do art° 20° do decreto em apreciação: 
 a) Se reconhece aos municípios, em cada ano, o direito a uma participação 
 variável até 5%, no IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva 
 circunscrição e relativa aos rendimentos do ano imediatamente anterior; 
 b) Se habilita cada município a prescindir de parte da mesma receita em favor 
 dos sujeitos passivos, autorizando-se os órgãos autárquicos competentes a 
 deliberar uma percentagem de participação da autarquia nas receitas do IRS em 
 valor inferior à taxa máxima definida no nº 1 do art. 20°, sendo nesse caso o 
 produto da diferença entre as taxas e a colecta líquida considerada como dedução 
 
 à colecta do referido imposto, em favor dos contribuintes. 
 
  
 
 3º
 Do regime legal constante das disposições mencionadas no nº 2 deste pedido 
 resulta a possibilidade de os sujeitos passivos do IRS poderem ser tributados de 
 forma diferente, assentando essa diferença, não na respectiva capacidade 
 contributiva, mas no critério do seu domicílio fiscal. 
 Pelo que, 
 
  
 
 4°
 Considero existirem fundadas dúvidas sobre se semelhante modelação da incidência 
 do IRS, não afrontará: 
 a) O princípio da capacidade contributiva que decorre da conjugação do n° 1 do 
 artigo 103º com o nº 1 do artigo 104° da Constituição da República Portuguesa 
 
 (CRP): 
 b) O princípio da igualdade na sua dimensão territorial, nos termos do n° 2 do 
 art° 13° da CRP; 
 c) O princípio do Estado unitário, consagrado no n° 1 do art° 6° da CRP. 
 
  
 II
 
  
 
 5°
 O princípio da capacidade contributiva é caracterizado consensualmente pela 
 doutrina e pela jurisprudência do Tribunal Constitucional como um princípio 
 estruturante do sistema fiscal que exprime e concretiza o princípio da igualdade 
 tributária e que tem assento implícito na “Constituição Fiscal”, por força da 
 conjugação dos artigos 103° e 104° da CRP. 
 
  
 
 6°
 O princípio em referência enuncia o dever de todos pagarem imposto de acordo com 
 um critério uniforme, o qual radica na tributação de cada um segundo a sua 
 capacidade económica (Ac. n° 452/2003), daqui decorrendo que: 
 a) Ao ser determinado que cada sujeito passivo pague na medida das suas 
 possibilidades (“capacidade para pagar”), o princípio da capacidade contributiva 
 constitui um pressuposto de justiça fiscal no que tange à repartição dos 
 impostos pelas pessoas; 
 b) O critério do pagamento na medida das possibilidades supõe que os 
 contribuintes com maior capacidade económica venham a pagar um imposto mais 
 elevado e os contribuintes com menor capacidade económica, um imposto mais 
 baixo; 
 c) Embora o princípio da capacidade contributiva não consuma o princípio da 
 igualdade fiscal, ele constitui, todavia, umas das suas expressões ou 
 manifestações mais fortes, bem como a de um elemento conformador da ideia de 
 Estado de Direito Material; 
 d) O princípio da capacidade contributiva compreende duas dimensões, que são a 
 de pressuposto e a de limite da tributação: como pressuposto ou fonte da 
 tributação, o princípio da capacidade contributiva baseia-se na força económica 
 do contribuinte expressa na titularidade ou utilização da riqueza; já como 
 limite ou medida valor do imposto, veda que o legislador adopte elementos de 
 ordenação incidentes sobre os elementos constitutivos do imposto contrários às 
 exigências de justiça fiscal enunciadas pelo mesmo princípio. 
 
  
 
 7°
 A capacidade contributiva, tal como foi definida, reclama não só a 
 personalização da tributação mas também que o legislador dirija o imposto às 
 três manifestações de riqueza relevantes que indiciem a capacidade económica do 
 contribuinte e que constituem a base tributável: trata-se da riqueza que angaria 
 
 (o rendimento); a riqueza que possui (o património) e a riqueza que dispende (o 
 consumo). 
 
  
 
 8º
 Sem prejuízo de poder incidir sobre os impostos indirectos, verifica-se, 
 contudo, que a “intensidade” do princípio da capacidade tributária “(...) é bem 
 maior nos impostos sobre o rendimento, especialmente no imposto pessoal sobre o 
 rendimento” (cfr. Casalta Nabais, “Estado Fiscal, Cidadania Fiscal e Alguns dos 
 seus Problemas”, separata, Coimbra, 2002, p. 588), que é, precisamente, o caso 
 do IRS. 
 
  
 
 9º
 No que em particular respeita à aplicação do princípio da capacidade 
 contributiva à tributação de rendimentos, deverá o legislador no respeito do 
 princípio da “tributação do rendimento líquido”, acautelar que, em sede de 
 despesas dedutíveis se evite “qualquer tipo de exclusões não intencionais, de 
 modo a que não surjam situações de discriminação negativa contrários ao 
 princípio da igualdade, devendo preocupações de equidade de ordem idêntica 
 presidir ao regime dos abatimentos” (cfr. Saldanha Sanches, cit., p. 197). 
 
  
 
 10º
 Neste sentido, as deduções consistem na forma de tomar líquidos certos 
 rendimentos e os abatimentos o modo de levar em conta aspectos determinantes da 
 capacidade contributiva das diversas pessoas e agregados familiares ligados a 
 exigências existenciais, devendo estas operações assumir carácter objectivo e 
 não atender, sob pena de arbítrio, a critérios alheios à capacidade contributiva 
 das pessoas sujeitas à tributação. 
 Ora, 
 
  
 
 11º
 No caso 'sub iuditio' confere-se a cada município, nos termos expostos no n° 2 
 deste pedido, a faculdade de deliberarem prescindir de uma parte da receita do 
 IRS que lhes cabe nos termos da lei, em benefício dos contribuintes com 
 domicílio fiscal na respectiva circunscrição, sendo o produto da diferença entre 
 as taxas e a colecta líquida tido como dedução à colecta do referido imposto, em 
 favor dos mesmos contribuintes. 
 
  
 
 12°
 O regime normativo em apreciação, não parece mostrar-se conforme com o princípio 
 constitucional da capacidade contributiva, na medida em que a nova variante de 
 dedução à colecta, radicada no critério do domicílio fiscal, nada aparenta ter a 
 ver com os pressupostos estruturantes dos abatimentos à colecta. 
 Na verdade, 
 
  
 
 13º
 A conjugação do disposto nos n°s 1 e 4 do art° 20º do diploma sindicado permite, 
 por exemplo, que: 
 a) Sujeitos passivos do IRS, detentores da mesma capacidade contributiva mas 
 fiscalmente domiciliados em municípios diferentes, possam ser tributados de 
 forma diferente, por via de uma dedução à colecta do IRS, como efeito de os 
 municípios onde residam prescindirem em seu favor, em percentagens diversas, de 
 uma parte das receitas desse imposto a que têm direito, podendo ter-se por 
 violado o critério da igualdade horizontal; 
 b) Sujeitos passivos com maior capacidade contributiva do que outros possam ser 
 sujeitos a uma menor tributação, por força das deduções à colecta, pela 
 circunstância de o município onde os primeiros se encontrem domiciliados 
 fiscalmente ter prescindido de um valor mais expressivo das receitas a que têm 
 direito, do que o município onde os segundos se encontrem domiciliados, podendo 
 registar-se uma eventual lesão do critério da igualdade vertical. 
 
  
 
 14º
 O critério da admissibilidade, não admissibilidade ou admissibilidade parcial 
 das deduções consagradas pelo legislador, depende da respectiva harmonização com 
 exigências de igualdade horizontal e vertical entre diversos grupos de 
 contribuintes, pelo que o princípio constitucional da capacidade contributiva 
 parece não ter sido observado pelas normas sindicadas, nas suas duas dimensões 
 de pressuposto e de limite tributário, já que: 
 a) O critério do domicílio fiscal, como fundamento da variabilidade das deduções 
 
 à colecta do IRS, não se harmoniza com o critério fundamental da capacidade 
 económica de cada pessoa, como pressuposto da respectiva tributação; 
 b) Deduções à colecta variáveis de município para município, determinadas 
 discricionariamente pelos respectivos órgãos autárquicos em favor dos 
 contribuintes que neles se encontrem domiciliados fiscalmente são susceptíveis 
 de gerar, num imposto pessoal, unitário e nacional como o IRS, uma sub-oneração 
 fiscal para titulares de maiores rendimentos, bem como uma sobre-oneração para 
 titulares de menores rendimentos violando-se o princípio da capacidade 
 contributiva como limite da tributação. 
 
  
 
 15°
 Não existe, ademais, um fundamento material razoável e evidente que possa 
 sustentar a opção em eleger um regime de dedução assente no critério territorial 
 do domicílio fiscal que figura na declaração de rendimentos (n°s 1 e 6 do art° 
 
 20° do diploma objecto de impugnação), nem vir a justificar, por hipótese, a 
 consagração nesse mesmo regime, no desiderato da promoção do aumento do número 
 de residentes em municípios carentes de fixação populacional ou do estímulo à 
 criação de riqueza em municípios com menos recursos financeiros, na medida em 
 que: 
 a) Embora seja frequente que o domicílio fiscal dos contribuintes do IRS 
 coincida com o local de residência, verifica-se, contudo, que este último não 
 coincide, em numerosos casos, com o local onde o rendimento é gerado (situação 
 comum com os municípios satélites das grandes metrópoles e com a proximidade 
 entre municípios das zonas do interior), pelo que ficará sem sustentação o 
 critério da fixação populacional ou o do estímulo à criação de riqueza; 
 b) O novo regime de deduções à colecta permite que se venha a alterar, com 
 objectivos manipulativos ligados à obtenção de vantagens tributárias, o 
 domicílio fiscal (que é o que figura na declaração de rendimentos), 
 acentuando-se uma ausência de conexão necessária entre o mesmo e a área 
 geográfica onde se geram os rendimentos do contribuinte. 
 
  
 
 16º
 Considerando que o legislador “não pode modelar a lei de modo a que leve a 
 tratamento desigual dos contribuintes que pela sua situação de detentores de 
 rendimentos idênticos e pela ausência de elementos diferenciadores disponham da 
 mesma capacidade contributiva (...)“ (cfr. Saldanha Sanches, cit., p. 204), 
 estima-se que: 
 a) Sobre as normas constantes da alínea c) do n° 1 do art° 19° e dos n°s 1 e 4 
 do artigo 20°, recai a fundada suspeita de desconformidade com o princípio 
 constitucional da capacidade contributiva, que se retira da conjugação do n° 1 
 do art° 103° com os n°s 1 e 4 do art° 104° da CRP; 
 b) As normas previstas nos n°s 2,3,5,6 e 7 do mesmo artigo 20° podem enfermar, 
 igualmente, de inconstitucionalidade, na medida em que guardam uma relação 
 instrumental com as disposições normativas referidas na alínea anterior. Por 
 outro lado, 
 
  
 
 17º
 No n° 6 deste requerimento sublinhou-se o facto de o princípio da capacidade 
 contributiva exprimir e concretizar o princípio da igualdade tributária, sem 
 todavia o esgotar, já que se podem registar outras dimensões autónomas de 
 projecção do mesmo princípio. 
 
  
 
 18°
 O n° 2 do art° 13° da Constituição da República através de uma lista 
 exemplificativa de discriminações negativas, bem como de privilégios contrários 
 ao princípio constitucional da igualdade reza, especificamente, que: 'Ninguém 
 pode ser beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de 
 qualquer dever em razão de (...) território de origem (...)'.
 
  
 
 19º
 Atento o carácter exemplificativo da disposição citada, considera-se que a 
 menção ao critério território de origem convoca, por identidade de razão, o 
 critério do território de residência ou o do território de domiciliação fiscal, 
 resultando da Lei fundamental que ninguém que aufira um rendimento igual ao de 
 outro contribuinte poderá ser beneficiado ou prejudicado na tributação desse 
 rendimento, em face do segundo, com base em critérios aleatórios, arbitrários e 
 materialmente não fundados, como o do território ou circunscrição municipal onde 
 se encontre fiscalmente domiciliado. 
 
  
 
 20º
 Julgo, nos termos expostos, que as normas constantes da alínea c) do n° 1 do 
 art° 19º e dos n°s 1 e 4º do art° 20°, bem como por razões de conexão 
 instrumental necessária com as anteriores, as normas previstas nos n°s 2, 3, 5, 
 
 6, e 7 deste último artigo e respeitantes ao decreto que aprova a nova lei das 
 finanças locais, não se mostram conformes à incidência territorial do princípio 
 da igualdade, enunciada no n°2 do art° 13° da CRP. Finalmente, 
 
  
 
 21°
 Importa tomar em consideração que princípio da capacidade contributiva reclama, 
 para os impostos nacionais um critério unitário de tributação, o qual determina 
 que a incidência e a repartição desses impostos se faça segundo a capacidade 
 económica dos contribuintes (Ac. 142/2004). 
 
  
 
 22°
 O critério unitário que deveria, nos termos do n° 1 do art° 104° da CRP, 
 implicar a nível nacional a criação de um imposto sobre o rendimento pessoal 
 
 “(...) único e progressivo, tendo em conta as necessidades e rendimentos do 
 agregado familiar” parece ser contrariado pelas disposições sindicadas, as quais 
 permitem que razões de política local, estranhas aos referidos fins unitários 
 previstos na Constituição, possam impor a contribuintes com a mesma capacidade 
 económica, diferentes cargas tributárias. Pelo que, 
 
  
 
 23°
 Os preceitos normativos sindicados parecem afrontar o princípio do Estado 
 unitário, acolhido no n° 1 do art° 6° da CRP, já que a natureza de imposto 
 universal, unitário e nacional com relevo imediato para todos os contribuintes, 
 que inere ao IRS nos termos do n° 1 do art° 104° da CRP, supõe que a incidência, 
 as garantias e a taxa sejam regidos por critérios uniformes previstos na lei, 
 não podendo estes elementos ser modelados discricionariamente pela vontade dos 
 poderes locais. 
 
  
 III
 
  
 
 24°
 Sendo esta a fundamentação das dúvidas de constitucionalidade que recaem sobre o 
 decreto da Assembleia da República registado sob o n° 93/X, venho requerer ao 
 Tribunal Constitucional que aprecie a conformidade constitucional das normas 
 constantes da alínea c) do n° 1 do art° 19° e do artigo 20° do mesmo decreto, 
 com fundamento em eventual violação: 
 a) Do princípio da capacidade contributiva, como critério estruturante do 
 sistema fiscal, o qual se encontra implicitamente consagrado na Constituição 
 como efeito da conjugação do n° 1 do art° 103° com o n° 1 do art° 104° da CRP; 
 b) Do princípio da igualdade, na sua projecção territorial, tal como decorre do 
 n° 2 do art° 13° da CRP; 
 e) Do princípio do Estado unitário, previsto no n° 1 do art° 6° da CRP. 
 
  
 
 25°
 Dado que a urgência no esclarecimento da questão, atenta a incidência orçamental 
 do diploma, pressupõe a prolação de uma decisão do Tribunal Constitucional tão 
 breve quanto possível, determino, nos termos do nº 8 do artigo 278° da 
 Constituição, o encurtamento do prazo de pronúncia do Tribunal para quinze dias.
 
  
 
  
 
 2.            Na sua resposta, o Presidente da Assembleia da República ofereceu 
 o merecimento dos autos e juntou os Diários da Assembleia da República que 
 contêm os trabalhos preparatórios.
 Foram apresentados pareceres jurídicos pelo Governo e pela Associação Nacional 
 de Municípios Portugueses.
 
  
 
 3.            Apura-se que o diploma em análise resultou de uma proposta do 
 Governo (proposta de lei n.º 92/X) que deu entrada na Assembleia da República em 
 
 5 de Setembro de 2006.
 A proposta foi votada na generalidade, tendo sido aprovada com os votos do PS, 
 os votos contra do PSD, do PCP, do BE e do PEV, e abstenção do CDS-PP (DAR, I 
 Série, n.º 11, de 13/10/2006). Em votação na especialidade foi aprovada, com 
 votos do PS e do CDS-PP e votos contra do PSD, do PCP, do BE e do PEV, uma 
 proposta do CDS-PP de emenda à alínea c) do nº 1 do artigo 19º da proposta de 
 lei (DAR, I Série, n.º 21, de 17/11/2006). Foi também aprovada, com votos a 
 favor do PS e do CDS-PP e votos contra do PSD, do PCP, do BE e do PEV, uma 
 proposta do CDS-PP de alteração ao n.º 1 do artigo 20º da proposta de lei (DAR, 
 I Série, n.º 21, de 17/11/2006). Submetidos a votação conjunta os n.ºs 2 a 7 do 
 artigo 20º da proposta de lei, foram aprovados com votos a favor do PS e do 
 CDS-PP e votos contra do PSD, do PCP, do BE e do PEV (DAR, I Série, n.º 21, de 
 
 17/11/2006).
 Em votação final global, a proposta de lei n.º 92/X foi aprovada com votos a 
 favor do PS, votos contra do PSD, do PCP, do BE e do PEV e abstenção do CDS-PP 
 
 (DAR, I Série, n.º 21, de 17/11/2006).
 O diploma contém sessenta e cinco artigos, agrupados em sete títulos: Objecto e 
 princípios fundamentais, Receitas das autarquias locais, Repartição de recursos 
 públicos entre o Estado e as autarquias locais, Endividamento autárquico, 
 Contabilidade, prestação e auditoria externa das contas, Transferência de 
 atribuições e competências e, finalmente, Disposições finais e transitórias.
 
  
 
 4.            Os questionados artigos 19º e 20º do decreto estão integrados no 
 Título III (Repartição de recursos públicos entre o Estado e as autarquias 
 locais). No que interessa ao presente caso, têm a seguinte redacção:
 
  
 
  
 Artigo 19.º
 Repartição de recursos públicos entre o Estado e os municípios
 
  
 
 1 -           A repartição dos recursos públicos entre o Estado e os municípios, 
 tendo em vista atingir os objectivos de equilíbrio financeiro horizontal e 
 vertical, é obtida através das seguintes formas de participação:
 a)                 ......  ;
 b)                 ...... ;
 c)                 Uma participação variável de 5% no IRS, determinada nos 
 termos do artigo 20.º, dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva 
 circunscrição territorial, calculada sobre a respectiva colecta líquida das 
 deduções previstas no n.º 1 do artigo 78.º do Código do IRS.
 
 2 -           .....
 
 3 -           .....
 
 4 -           .....
 
  
 
  
 Artigo 20.º
 Participação variável no IRS
 
  
 
 1 -           Os municípios têm direito, em cada ano, a uma participação 
 variável até 5% no IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva 
 circunscrição territorial, relativa aos rendimentos do ano imediatamente 
 anterior, calculada sobre a respectiva colecta líquida das deduções previstas no 
 n.º 1 do artigo 78.º do Código do IRS.
 
 2 -           A participação referida no número anterior depende de deliberação 
 sobre a percentagem de IRS pretendida pelo município, a qual deve ser comunicada 
 por via electrónica pela respectiva câmara municipal à Direcção-Geral dos 
 Impostos, até 31 de Dezembro do ano anterior àquele a que respeitam os 
 rendimentos.
 
 3 -           A ausência da comunicação a que se refere o número anterior ou a 
 recepção da comunicação para além do prazo aí estabelecido equivale à falta de 
 deliberação.
 
 4 -                 Caso a percentagem deliberada pelo município seja inferior à 
 taxa máxima definida no n.º 1, o produto da diferença de taxas e a colecta 
 líquida é considerado como dedução à colecta do IRS, a favor do sujeito passivo, 
 relativo aos rendimentos do ano imediatamente anterior àquele a que respeita a 
 participação variável referida no n.º 1, desde que a respectiva liquidação tenha 
 sido feita com base em declaração apresentada dentro do prazo legal e com os 
 elementos nela constantes.
 
 5 -           A inexistência da dedução à colecta a que se refere o número 
 anterior não determina, em caso algum, um acréscimo ao montante da participação 
 variável apurada com base na percentagem deliberada pelo município.
 
 6 -                 Para efeitos do disposto no presente artigo, considera-se 
 como domicílio fiscal o do sujeito passivo identificado em primeiro lugar na 
 respectiva declaração de rendimentos.
 
 7 -           O produto da participação variável no IRS é transferido para os 
 municípios até ao último dia útil do mês seguinte ao do respectivo apuramento 
 pela Direcção-Geral dos Impostos.
 
  
 
  
 
 5.            Conforme se retira do pedido, o Presidente da República questiona 
 a possibilidade de os municípios passarem a ter uma participação variável nas 
 receitas do IRS – trata-se, diz, de um 'imposto que é nacional e não local' –, e 
 poderem prescindir de parte desta mesma receita a favor dos sujeitos passivos, o 
 que abriria a porta a uma diferença de tributação concreta dos cidadãos 
 unicamente decorrente do 'critério do seu domicílio fiscal'; tal resultado 
 ofenderia simultaneamente os princípios da capacidade contributiva, da 
 igualdade, e do Estado unitário – respectivamente consagrados nos n.ºs 1 dos 
 artigos 103º e 104°, no artigo 13º n.º 2, e no artigo 6º n.º 1º, todos da 
 Constituição. 
 
  
 
 5.1.        Rigorosamente, porém, as normas incluídas no pedido de fiscalização 
 preventiva envolvem ainda outras questões. 
 Na verdade, se a norma do artigo 19º n.º 1 alínea c), e as normas que constam do 
 artigo 20º n.ºs 1 e 4 respeitam efectivamente à participação variável nas 
 receitas do IRS e à possibilidade de cada município prescindir de parte desta 
 mesma receita a favor dos sujeitos passivos com domicílio fiscal neles sedeado, 
 já as normas dos n.ºs 2 e 3 do artigo 20º se limitam a disciplinar o 
 procedimento adequado à expressão da vontade municipal; a do n.º 7 respeita ao 
 prazo dentro do qual é transferido para os municípios, pela administração 
 central, o produto da participação variável no IRS que lhes cabe; e as que 
 constam dos n.ºs 5 e 6 estabelecem regras quanto à liquidação do imposto e sobre 
 o limite do montante da participação variável deliberada pelo município. 
 O Requerente esclarece que  incluiu as normas dos n.ºs 2, 3, 5, 6, e 7 deste 
 artigo 20º no conjunto normativo impugnado, por razões de mera 'conexão 
 instrumental necessária' com as outras normas impugnadas, e não expressou, 
 quanto a elas, qualquer individualizada acusação de inconstitucionalidade. 
 
 É, assim, de concluir que o objecto do pedido é o resultado normativo que o 
 Requerente crê estar constitucionalmente proibido, pelo que o Tribunal não irá 
 analisar individualmente cada uma das normas impugnadas, designadamente as que 
 se ligam numa mera 'conexão instrumental' com as normas que estabelecem 
 verdadeiramente o referido resultado.
 
  
 
 5.2.        As dúvidas sobre a conformidade constitucional desta solução 
 surgiram ainda no decorrer dos debates na Assembleia da República. Com efeito, 
 tanto na discussão na generalidade (DAR, I Série, n.º 10, de 12/10/2006), como 
 na discussão na especialidade da proposta (DAR, I Série, n.º 21, de 17/11/2006), 
 foi levantada a questão da inconstitucionalidade dos artigos 19º e 20º, com 
 contornos semelhantes aos referidos no pedido.
 Recorde-se que o Governo motivara esta proposta de alteração legal (DAR, II 
 Série-A, n.º 1, de 16 de Setembro de 2006) invocando a necessidade de serem 
 adoptadas 'medidas de rigor e consolidação orçamental' em simultâneo com 'um 
 quadro financeiro para as autarquias locais dinâmico', baseado no 
 
 'aprofundamento da descentralização e da autonomia local', por considerar que 'o 
 processo de transferência de competências para os municípios e freguesias, 
 concretizando o princípio da descentralização, é um importante instrumento de 
 redução da despesa pública, com importantes implicações no plano financeiro 
 decorrentes da operacionalidade do princípio da subsidiariedade.” No caso em 
 apreço, pretende-se que a reforma do sistema de financiamento autárquico incida 
 sobre o modelo de repartição de recursos públicos entre o Estado e as autarquias 
 locais, tornando os municípios 'menos dependentes das receitas oriundas da 
 construção civil', e permitindo-se, inovadoramente, 'a participação directa dos 
 municípios na receita do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) 
 gerado no concelho'. 
 Segundo a proposta apresentada pelo Governo, tal participação municipal no IRS, 
 seria composta por uma parcela fixa de 2% e por uma parcela variável que podia 
 chegar aos 3%, cabendo aos municípios definir a percentagem da receita do IRS 
 
 'que pretendem fazer impender sobre os seus munícipes'. Existindo uma diferença 
 entre a percentagem definida e os 3% de tecto máximo desta parcela variável, tal 
 montante era considerado como uma 'dedução à colecta do contribuinte', mecanismo 
 que, no entender do Governo, era um 'instrumento essencial para a promoção da 
 autonomia financeira local, promovendo a concorrência fiscal intermunicipal, 
 aumentando o leque de receitas próprias dos municípios e responsabilizando os 
 eleitos locais pelas suas decisões financeiras”. 
 Por proposta do CDS-PP, aprovada nos termos já referidos, a repartição dos 
 recursos entre o Estado e os municípios acabou por ser fixada numa participação 
 variável de 5% no IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva 
 circunscrição territorial; caso a percentagem deliberada pelo município seja 
 inferior à taxa máxima, o produto da diferença de taxas e a colecta líquida é 
 considerado como dedução à colecta, a favor do sujeito passivo, relativo aos 
 rendimentos do ano imediatamente anterior àquele a que respeita a referida 
 participação variável.
 
 É precisamente esta última solução – a que permite diferenciar a tributação 
 concreta do rendimento pessoal dos cidadãos por via de um critério relacionado 
 apenas com o seu domicílio – que o Presidente da República aponta como sendo 
 violadora dos já referidos princípios da capacidade contributiva, da igualdade, 
 e do Estado unitário, acolhidos nos n.ºs 1 dos artigos 103º e 104°, no artigo 
 
 13º n.º 2, e no artigo 6 n.º 1 da Constituição. Vejamos.
 
  
 
 6.            Nos termos do n.º 1 do artigo 104º da Constituição, o imposto 
 sobre o rendimento das pessoas singulares 'visa a diminuição das desigualdades e 
 será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do 
 agregado familiar'. O Tribunal tem retirado desta norma a exigência da 
 conformação do imposto como justo e orientado para o objectivo da diminuição das 
 desigualdades, o que logo afasta a ideia de rigorosa igualdade formal, quer na 
 selecção dos contribuintes, quer no montante do imposto devido. Com efeito, a 
 progressividade do imposto em função da capacidade económica dos contribuintes e 
 a ideia da repartição justa dos rendimentos e da riqueza, que se recolhe do 
 artigo 103º n.º 1 da Constituição, convocam preferentemente um objectivo de 
 igualdade material tanto no sacrifício que os cidadãos devem individualmente 
 suportar, como quanto ao resultado da consequente redistribuição da riqueza. O 
 invocado princípio da capacidade contributiva assenta no critério segundo o qual 
 a incidência e a repartição dos impostos deve ter em conta a capacidade 
 económica de cada um e não o que cada um eventualmente receba em bens ou 
 serviços públicos. 
 Todavia, o Tribunal já afirmou no Acórdão n.º 84/2003 (DR, II Série, de 29 de 
 Maio de 2003), 'não ser fácil retirar consequências jurídicas muito líquidas e 
 seguras do princípio da capacidade contributiva traduzidas num juízo de 
 inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adoptadas pelo 
 legislador fiscal.'
 O invocado princípio impõe o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo 
 critério, mas não dispensa o concurso de outros princípios constitucionais na 
 resolução do problema que agora é colocado Em consonância com esta doutrina, diz 
 o Acórdão n.º 142/04 (DR, II Série, de 19 de Abril de 2004):
 
  
 
 'Por outro lado, é claro que o “princípio da capacidade contributiva” tem de ser 
 compatibilizado com outros princípios com dignidade constitucional, como o 
 princípio do Estado Social, a liberdade de conformação do legislador, e certas 
 exigências de praticabilidade e cognoscibilidade do facto tributário, 
 indispensáveis também para o cumprimento das finalidades do sistema fiscal.'
 
  
 
  
 Na verdade, é o apelo a outros valores com assento constitucional que habilita o 
 legislador ordinário a ponderar o enquadramento desta matéria num leque de 
 soluções possíveis, cuja concreta escolha cabe na liberdade de conformação 
 legislativa permitida pelo exercício democrático do poder. Trata-se, afinal, da 
 concretização prática da actuação governativa, traduzida na eleição desta 
 matéria como instrumento de política financeira, sujeita, portanto, a graus 
 diversificados de avaliação e de conformação.
 
  
 
 7.            É justamente a harmonização do princípio da capacidade 
 contributiva com outros princípios com dignidade constitucional que o Tribunal 
 tem procurado estabelecer quando pondera a conformidade das opções do legislador 
 ordinário, em matéria de impostos, com o princípio da igualdade. Diz-se no 
 Acórdão n.º 806/93 (DR, II Série de 29JAN94):
 
 'Mas, assim sendo, desta estreita conexão entre o sistema fiscal e o princípio 
 da igualdade não resulta inelutavelmente que toda e qualquer discriminação se 
 deverá sempre ter por atentatória do aludido princípio? A resposta a esta 
 questão, naturalmente, só pode ser negativa.
 Desde logo porque em função da distinta capacidade económica dos contribuintes e 
 da diversa natureza dos rendimentos tributáveis, a progressividade do imposto 
 pode impor, em cumprimento do próprio princípio da igualdade, que se adopte um 
 tratamento discriminatório que compense ou minore os efeitos de situações 
 fácticas de desigualdade, tendo em vista alcançar uma efectiva igualdade real, 
 tal como a postula o ordenamento jurídico no seu todo (artigo 13º da 
 Constituição) e o concreto corpo normativo constitucional sobre matéria 
 tributária (artigos 106º e 107º da Constituição).
 Mas, se o princípio da igualdade não proíbe que haja diferenças de tratamento na 
 lei, antes por vezes as imponha directa ou indirectamente, o que com segurança 
 se pode dizer é que tal princípio proíbe, isso sim, as discriminações 
 arbitrárias, irrazoáveis ou infundadas, sendo tidas como tais todas as que não 
 encontrem um apoio suficiente na distinta materialidade das diferentes situações 
 que se contemplam ou na compatibilização do aludido princípio da igualdade com 
 outros princípios constitucionalmente acolhidos. 
 Este tem sido o entendimento sucessivamente reafirmado pelo Tribunal 
 Constitucional (entre muitos outros, nos Acórdãos nº 44/84, nº 142/85, nº 80/86, 
 nº 336/86, publicados todos no Diário da República, respectivamente, II Série, 
 de 11 de Julho de 1984, II Série, de 7 de Setembro de 1985, I Série, de 9 de 
 Junho de 1986 e I Série, de 24 de Dezembro de 1986), na esteira da 
 jurisprudência da própria Comissão Constitucional (em especial, o Parecer nº 
 
 26/82, publicado nos Pareceres da Comissão Constitucional, 20º vol., pág. 211 e 
 ss.). Sobre o tema em causa escreveu se, com efeito, no Acórdão nº 142/85:
 
 “ (...) o princípio da igualdade, para além das especificações ou concretizações 
 que recebe no nº 2 do artigo 13º da Constituição, reconduz-se à ideia geral da 
 
 'proibição de distinções arbitrárias, isto é, desprovidas de justificação 
 racional (ou fundamento material bastante), atenta a especificidade da situação 
 ou dos efeitos da causa'. Esse princípio, na verdade, não tem um conteúdo 
 puramente formal (traduzido simplesmente no dever de igual aplicação da lei), 
 mas obriga (materialmente) a lei, segundo a consabida fórmula 'dar tratamento 
 igual ao que é igual e tratamento desigual ao que é desigual'.
 Averiguar, porém, da existência de um particularismo suficientemente distinto 
 para justificar uma desigualdade de regime jurídico, e decidir das 
 circunstâncias e factores a ter como relevantes nessa averiguação, é tarefa que 
 primariamente cabe ao legislador, que detém o primado da concretização dos 
 princípios constitucionais e a correspondente liberdade de conformação. Por 
 isso, o princípio da igualdade se apresenta fundamentalmente aos operadores 
 jurídicos, em sede de controlo de constitucionalidade, como um princípio 
 negativo, nos termos indicados como proibição do arbítrio.'
 Contudo, esta ideia de proibição do arbítrio não esgota o sentido dirigente do 
 princípio da igualdade, pois que dele também decorre que nem todas as 
 discriminações, mesmo que dotadas de um 'título habilitador' como se acabou de 
 referir, são, só por isso, admissíveis. Com efeito, se igualdade não corresponde 
 a uniformidade, antes postulando o tratamento igual do que é igual e o 
 tratamento distinto de situações em si mesmas diversas, ela constitui um limite 
 impostergável da própria medida de discriminação consentida, exigindo que haja 
 uma razoável relação de adequação e proporcionalidade entre os fins prosseguidos 
 pela norma e a concreta discriminação por ela introduzida.
 Ora, como está bem de ver, a determinação do sentido da medida da discriminação, 
 sendo em si mesma uma operação de natureza jurídica, não pode, contudo, 
 prescindir, num domínio como o da actividade tributária, de fazer apelo à 
 realidade social na qual a norma há-de operar, como resulta, aliás, do postulado 
 da igualdade real a que atrás aludimos quando vimos os fundamentos 
 constitucionais do sistema fiscal português.
 
 [...]
 
 É por isso que não repugna a uma concepção constitucionalmente adequada da 
 igualdade (e especificamente da igualdade tributária) que a norma possa conter 
 um mínimo de desigualdade formal se tal se mostrar necessário, adequado e 
 proporcional à realização da igualdade substancial. Por isso, não se trata, 
 nesta sede, de procurar formular um juízo àcerca da observância no caso do 
 princípio da  igualdade apenas confinado ao plano do direito (ou da lei, se se 
 preferir), mas também de carrear para a interpretação e fixação do sentido quer 
 do princípio constitucional que constitui o valor parâmetro invocado pelo 
 requerente, quer da norma sindicada, os próprios dados da realidade económica e 
 social como elementos integrativos da valoração jurídica atinente à concreta 
 aplicação pelos poderes públicos dos princípios do ordenamento jurídico 
 tendentes a modificar essa realidade. [...]
 Eis, pois, porque a discriminação tributária alegada pelo requerente como 
 atentatória do princípio da igualdade há de ser vista e valorada não só nos 
 limites do sistema normativo, mas também à luz das necessidades sociais a que, 
 com a regra impugnada, se pretendeu acorrer e dos fins de justiça norteadores da 
 conduta do legislador.'
 
  
 
  
 
 8.            O Tribunal já afirmou o julgamento de não desconformidade 
 constitucional de normas tendentes a fazer participar as autarquias – de forma 
 diferenciada – no modelo de repartição de recursos tributários. Fê-lo, com 
 fundamento na autonomia administrativa e financeira das autarquias locais, tal 
 como resulta da organização democrática do Estado acolhida nos artigos 6º n.º 1 
 e 235º da Constituição, no Acórdão n.º 57/95 (DR, II Série de 12 de Abril 1995), 
 a propósito da atribuição aos municípios do poder para fixar a taxa da 
 contribuição autárquica e para lançar derramas sob a forma de adicional à 
 colecta do IRC:
 
  
 
 ' [...] O princípio da autonomia local é igualmente importante para afastar a 
 ideia de que a diferenciação de taxas, de município para município, envolve 
 infracção ao princípio da igualdade. A existência de autarquias locais, dotadas 
 de poder regulamentar próprio, nos termos do artigo 242º da Constituição, 
 implica uma pluralidade de sujeitos com competência para emanar normas jurídicas 
 de carácter regulamentar. Normas estas que estabelecem regimes jurídicos 
 diversos, adaptados aos condicionalismos locais, como não podia deixar de ser. 
 Ora, não se pode ver nessa pluralidade de normas jurídicas, provenientes de 
 sujeitos diversos, uma violação do princípio da igualdade, já que este tem um 
 carácter relativo, não só sob o ponto de vista temporal, como territorial. De 
 facto, o reconhecimento pela Constituição às autarquias locais de uma 
 competência normativa autónoma, de que resulta a vigência, no seu âmbito 
 territorial, de preceitos jurídicos diferentes, não contradiz o princípio da 
 igualdade, dado que a ideia de criação e aplicação do direito com base na 
 igualdade circunscreve-se ao âmbito territorial de validade da norma, não sendo 
 legítimas comparações entre soluções adoptadas por preceitos jurídicos de 
 eficácia territorial diversa. [...]'
 
  
 E prossegue:
 
  
 
  
 
 '[...] Nas palavras de A. Rodrigues Queiró (cfr. Parecer, p. 40), 'estamos 
 perante uma diferenciação justificada por factores constitucionalmente 
 relevantes e destituídos de qualquer margem de arbítrio. A 'lógica' da 
 descentralização e a ideia que a anima não são apenas a da liberdade ou a da 
 autonomia, é também a da diferença. Descentralizar é  aceitar a diferenciação de 
 regimes e de decisões locais. O argumento de que  a existência de taxas fiscais 
 divergentes nos vários municípios iria ofender o princípio da igualdade é, pois, 
 seguramente infundado'. Cfr.,  no mesmo sentido, A. Barbosa de Melo, Parecer, p. 
 
 11, 12.[...]'
 
  
 
  
 
 9.            A Jurisprudência do Tribunal Constitucional tem, portanto, 
 perfilhado o entendimento de que não é desconforme à Constituição conferir à 
 autonomia local valor suficiente para permitir uma diferenciação nesta matéria, 
 o que, aliás, decorre da constatação de que qualquer autonomia – relevando para 
 a autonomia local o disposto no artigo 238º n.º 4 da Constituição – radica, 
 afinal, na diferenciação. Em suma, a diferente localização da residência do 
 sujeito passivo pode permitir, sem ofensa à Constituição, um diferente resultado 
 quanto ao montante do imposto. Necessário é, porém, que essa diferença não 
 assente em critérios puramente arbitrários, nem se mostre desrazoável e 
 desproporcionada. 
 
  
 
 10.         As normas em causa inserem-se num quadro legislativo que, radicado 
 nos poderes tributários próprios das autarquias locais, visa, conforme se viu 
 já, o 'aprofundamento da descentralização e da autonomia local', por considerar 
 que 'o processo de transferência de competências para os municípios e 
 freguesias, concretizando o princípio da descentralização, é um importante 
 instrumento de redução da despesa pública, com importantes implicações no plano 
 financeiro decorrentes da operacionalidade do princípio da subsidiariedade”, 
 tornando os municípios 'menos dependentes das receitas oriundas da construção 
 civil', e fazendo-os participar na receita do IRS, promovendo a concorrência 
 fiscal intermunicipal, o aumento do leque de receitas próprias, e a 
 responsabilização dos eleitos locais pelas suas decisões financeiras. 
 Ora, há que reconhecê-lo, a diferenciação assim autorizada não está em desacordo 
 com estes objectivos, antes pretende justificar-se como um meio – que não é 
 desproporcionado, atentos os valores em causa –,  para alcançar tal objectivo. 
 Haverá ainda que ter em conta que o controle político que a comunidade exerce 
 sobre as decisões financeiras dos eleitos locais se estabelece por via de 
 eleições e que, nessas eleições, os votantes são aqueles que têm com a autarquia 
 uma conexão baseada na domiciliação. Não é, portanto, arbitrário, ou 
 materialmente infundado, o critério que as normas em causa utilizam para 
 estabelecer uma determinada identidade tributária entre o eleitor e o eleito 
 local.
 
  
 
 11.         Recorde-se que, em Espanha, onde a diversidade de poderes 
 tributários (estatal, autonómico, local) provoca a não uniformidade da carga 
 fiscal, aceita-se que as desigualdades de natureza tributária decorrentes da 
 existência de diferentes poderes tributários se justificam tendo em conta a 
 própria diversidade territorial, desde que fundadas em motivos adequados e não 
 arbitrários. Na STC 233/1999 de 16 de Dezembro, FJ 26 – a propósito das 
 competências tributárias dos Ayuntamientos sobre o Impuesto sobre Bienes 
 Inmuebles – o Tribunal Constitucional espanhol  aceitou especificamente as 
 diferenças de tributação como consequência das competências municipais em 
 matéria tributária, afirmando, a propósito da compatibilidade entre a autonomia 
 local e o princípio da igualdade, que não é exigível um tratamento jurídico 
 uniforme dos direitos e deveres dos cidadãos em todo o tipo de matérias e em 
 todo o território do Estado, o que, aliás, seria incompatível com a autonomia. 
 
  
 
 12.         O apelo ao princípio da autonomia do poder local, consagrado nos 
 artigos 6º n.º 1 e, quanto a matéria tributária, 238º e 254º n.º 2 da 
 Constituição, permite não só explicar a razão pela qual as normas questionadas 
 não ofendem o princípio da igualdade, como permite constatar que o princípio do 
 Estado unitário é aqui, como parâmetro, imprestável para provocar a 
 desconformidade constitucional dessas mesmas normas.
 Com efeito, a diferente tributação não tem incidência na unidade do Estado. A 
 Constituição esclarece (citado artigo 6º) que o Estado é unitário mas que 
 respeita a autonomia insular e os princípios da subsidiariedade, e da autonomia 
 das autarquias locais. A unidade do Estado exige uma soberania única e um único 
 sistema jurídico decorrente directa ou indirectamente da mesma Constituição: a 
 estrutura do Estado não se altera por força da consagração das autonomias, da 
 descentralização administrativa, ou da operatividade do princípio da 
 subsidiariedade. Ora, a atribuição, autorizada por lei, e com respeito pela 
 Constituição, de poderes tributários às autarquias, não ofende aquela unidade.
 A invocação deste princípio surge, no pedido, ligada a uma exigência de 
 uniformidade do critério de taxação do imposto. Já se viu, porém, que a 
 Constituição não impede a diferenciação do sacrifício tributário em matéria de 
 imposto sobre o rendimento, com fundamento na autonomia municipal. Cumprirá 
 acrescentar que em lado algum a Constituição impõe a existência de imposto 
 
 'nacional' não modelável em qualquer dos seus elementos em razão da aludida 
 autonomia. Também se fica sem saber por que razão o IRS, na configuração 
 desejada pelas normas em apreço, perde o invocado carácter 'nacional'.
 Em suma, a solução legislativa agora consagrada pelas normas em apreço não põe 
 em causa a unidade do Estado.
 
  
 
 13.         A invocação do princípio da autonomia do poder local impõe, ainda, 
 uma sucinta abordagem de um outro problema que, embora ausente do pedido, se 
 relaciona tão directamente com a conformidade constitucional das normas em 
 apreço, e com a história da jurisprudência constitucional, que o Tribunal não 
 pode, agora, ignorá-lo. 
 Trata-se de saber se a interferência dos órgãos autárquicos na concretização do 
 montante de IRS que os munícipes poderão ter que pagar, nos apertados limites 
 que a norma prevê, ofende o princípio da reserva de lei. 
 Na verdade, nos termos do n.º 2 do artigo 103º da Constituição, os impostos são 
 criados 'por lei' que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as 
 garantias dos contribuintes. O Tribunal tem entendido, com apelo ao disposto na 
 alínea i) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição, que a locução quer aqui dizer 
 lei formal, pelo que se coloca a questão de saber se é conforme à Constituição a 
 entrega a órgãos autárquicos daquela competência, ainda que ela decorra da lei e 
 se exerça dentro dos limites fixados na mesma lei.
 O Tribunal foi chamado a tratar de questão semelhante a propósito das normas que 
 atribuíram às autarquias competências para fixar a taxa de contribuição 
 autárquica sobre prédios situados nas suas circunscrições, e, ainda, para lançar 
 derramas.
 No já aqui citado Acórdão n.º 57/95 o Tribunal deu resposta positiva a qualquer 
 uma destas questões, fundamentado nos poderes que, integrados na autonomia 
 administrativa e financeira das autarquias, a Constituição então já concedia. 
 Depois disto, a quarta revisão constitucional (LC n.º 1/97 de 20 de Setembro) 
 aditou aos (actuais) artigos 238º e 254º respectivamente o n.º 4 e o n.º 2, 
 conferindo inovadoramente às autarquias poderes tributários, e a possibilidade 
 de disporem de receitas tributárias próprias. Das actas da Comissão Eventual 
 para a Revisão Constitucional (por exemplo, DAR, II Série-RC n.º 69 de 29 de 
 Novembro de 1996) resulta bem clara a preocupação, aliás perfeitamente 
 consensualizada, de conferir inequívocas competências tributárias às autarquias 
 
 – 'constitucionalizar a competência das autarquias locais relativamente a 
 matéria tributária no sentido de passarem a ter, verdadeiramente e sem dúvidas 
 quanto à sua constitucionalidade, alguns poderes sem pôr em causa o princípio da 
 criação de impostos que tem que ser sempre nacional' – deixando claro 'de uma 
 vez por todas, que não é inconstitucional que a legislação, seja ela o Código da 
 Contribuição Autárquica ou, de hoje a amanhã, o Código do IRC [...], seja uma 
 outra legislação da Assembleia da República, atribua poderes tributários em 
 situações perfeitamente definidas e enquadradas pela lei.' (DAR, II Série-RC n.º 
 
 116 de 9 de Julho de 1997).
 
 É, assim, agora claro que a lei, com o sufrágio constitucional retirado dos 
 artigos 238º n.º 4 e 254º n.º 2 da Constituição, pode conferir aos órgãos 
 autárquicos a competência para – dentro de limites perfeitamente definidos e, no 
 caso em presença, muito estreitos –, interferir no montante do imposto sobre o 
 rendimento. Em suma, as normas em apreço não violam o princípio da reserva de 
 lei.
 
  
 
  
 
 14.         É, enfim, chegado o momento de concluir que as normas constantes da 
 alínea c) do n.º 1 do artigo 19° e do artigo 20º do diploma em análise não 
 violam os princípios da capacidade contributiva, da igualdade e do Estado 
 unitário – respectivamente consagrados nos n.ºs 1 dos artigos 103º e 104°, no 
 artigo 13º n.º 2, e no artigo 6 n.º 1º, todos da Constituição.
 
  
 
  
 
  
 
  
 
 15.         Em face do exposto, o Tribunal decide não se pronunciar pela 
 inconstitucionalidade das normas constantes da alínea c) do n.º 1 do artigo 19° 
 e do artigo 20º do decreto da Assembleia da República registado com o n.º 93/X.
 
  
 Lisboa, 29 de Dezembro de 2006
 Carlos Pamplona de Oliveira
 Maria Helena Brito
 Rui Manuel Moura Ramos
 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
 Bravo Serra
 Gil Galvão
 Maria João Antunes
 
                                          Maria Fernanda Palma (com declaração de 
 voto)
 
                                          Paulo Mota Pinto (com declaração de 
 voto)
 
                                                            Benjamim Rodrigues 
 
 (vencido de acordo com a declaração de voto junta)
 
                                                                Vítor Gomes 
 
 (Vencido, consoante declaração de voto que junto)
 
                                                           Mário José de Araújo 
 Torres (Vencido, nos termos da
 
                                                                     declaração  
 de voto)
 Artur Maurício
 
  
 
  
 
  
 Declaração de voto
 
  
 
  
 Votei favoravelmente a decisão do presente Acórdão, revendo‑me, em vários 
 aspectos, na sua fundamentação. Todavia, devo acentuar que a autonomia local, 
 mesmo após a Revisão Constitucional de 1997, não chega, por si só, para 
 justificar esta possível diferenciação da taxa de participação dos Municípios e 
 o sistema de devolução de parte do montante do imposto aos contribuintes que lhe 
 
 é associado. 
 A meu ver, deve concluir-se – de modo decisivo – pela conformidade 
 constitucional do presente regime legal por ele favorecer a redução de despesas 
 públicas, a partir de uma perspectiva de necessidade e controlo das mesmas pelos 
 munícipes. Na verdade, os Municípios devem devolver aos contribuintes as verbas 
 que, à partida, consideram desnecessárias, traduzidas numa percentagem do 
 montante do imposto que não poderá exceder 5%. Em última análise, prossegue-se 
 um desígnio de justiça fiscal, entendida em sentido global, que se sedia no 
 artigo 103º, nº 1, da Constituição.
 Assim, a situação não deverá ser tratada como questão idêntica à versada no 
 Acórdão nº 57/95: em primeiro lugar, porque este aresto  é anterior à Revisão 
 Constitucional de 1997, que atribuiu expressamente poder tributário às 
 autarquias locais (artigo 238º, nº 4); em segundo lugar, porque a norma então em 
 crise, que eu considerei inconstitucional em voto de vencida, se referia à 
 determinação não fundamentada da taxa de um imposto municipal; em terceiro 
 lugar, porque está agora em causa um mecanismo sui generis (não qualificável 
 como taxa ou mesmo como benefício fiscal), cuja razão de ser e finalidade última 
 
 é uma compensação dos contribuintes diversa de outras figuras já consagradas no 
 Direito ordinário.
 
               Esta última constatação (o carácter inovador do regime sub 
 judicio) exige 
 uma análise em função de critérios de valor constitucional, à luz das 
 finalidades de 
 justiça distributiva do sistema fiscal. Diversamente do que sucedia quanto à 
 contribuição autárquica, está‑se agora perante uma figura que se insere numa 
 lógica de justificação e controlo da utilização das receitas dos impostos e que, 
 como referi, promove a redução de despesas públicas e a compensação dos cidadãos 
 em casos de desnecessidade, maior ou menor, de utilização das receitas do I.R.S. 
 pelos Municípios.
 
  
 Maria Fernanda Palma
 
  
 
  
 
  
 
  
 Declaração de voto
 
  
 Votei a decisão pelo essencial da fundamentação constante dos pontos 9 e 10, 12 
 e 13 do Acórdão, isto é, por entender que os princípios da igualdade e da 
 capacidade contributiva têm de ser conciliados com a consagração constitucional 
 da autonomia local, com os “poderes tributários” que a Constituição também 
 admite no artigo 238.º, n.º 4, permitindo uma diferenciação do imposto sobre o 
 rendimento em termos limitados como a que as normas em causa prevêem, a qual 
 também não é susceptível de pôr em causa a unidade do Estado (ou o princípio do 
 
 “Estado unitário”). Para além da possibilidade de concessão de poderes 
 tributários, prevista na Constituição, implicar a possibilidade de 
 diferenciação, entendo que a concessão desses poderes, nos apertados termos em 
 que é prevista, aos municípios que recebem as receitas respectivas, e apenas 
 nesta medida, pode também ser justificada com o interesse, constitucionalmente 
 atendível, na aproximação da titularidade da decisão sobre as receitas da 
 titularidade da decisão sobre as despesas públicas municipais, com os 
 consequentes (possíveis e desejáveis) efeitos no plano da transparência e da 
 responsabilização dos eleitos municipais, e, até, da diferenciação consoante a 
 qualidade e quantidade de bens (designadamente, bens públicos) postos à 
 disposição dos munícipes.
 A mais destes fundamentos, apontados no Acórdão, entendi que não resulta das 
 normas questionadas violação das exigências constitucionais relativas 
 especificamente ao imposto sobre o rendimento pessoal, previstas no artigo 
 
 104.º, n.º 1, da Constituição: o objectivo de “diminuição das desigualdades” não 
 
 é posto em causa, não só porque não se trata ali (pelo menos só) das 
 desigualdades de imposto a pagar, como porque essas diferenças podem ser 
 justificadas, designadamente, com o estabelecimento de uma relação mais próxima 
 entre eleitores e decisores sobre as despesas públicas municipais e com a 
 promoção de uma racional realização destas últimas; a exigência de que seja um 
 imposto “único” não diz respeito à diferença de imposto a pagar mas à incidência 
 de um só imposto, e não vários, sobre o rendimento pessoal; e, funcionando como 
 uma dedução proporcional à colecta, o “desagravamento” em causa é neutro em 
 relação à natureza progressiva do imposto. 
 Faço questão de notar, porém, que eram apenas os poderes dos municípios de 
 limitadamente (na parte relativa à sua participação nas receitas) interferir no 
 montante de imposto a pagar pelos seus munícipes, previstos nas normas 
 questionadas, cuja constitucionalidade competia ao Tribunal Constitucional 
 apreciar, e não quaisquer outras normas da nova Lei das Finanças Locais, na 
 perspectiva da comparação com o regime anterior (por exemplo, no que toca à 
 eventual redução quantitativa, na prática, das receitas de certos municípios), 
 muito menos estando em questão um juízo político‑legislativo sobre a bondade das 
 soluções adoptadas, mesmo nas normas questionadas.
 Paulo Mota Pinto
 
  
 
  
 Declaração de voto
 
  
 
 1 – Votei vencido na questão de constitucionalidade que o acórdão apreciou, 
 acompanhando-o apenas na posição que tomou quanto à identificação do problema 
 colocado ao Tribunal Constitucional. 
 Na verdade, conquanto o pedido, feito pelo Presidente da República, mencione a 
 norma constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º e todas as normas do artigo 
 
 20.º do decreto da Assembleia da República, registado com o n.º 93/X, resulta 
 claro que as suas dúvidas de constitucionalidade apenas versam sobre a criação 
 de uma dedução à colecta, de acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 20.º, a 
 favor dos sujeitos passivos de IRS com domicílio fiscal na circunscrição 
 territorial dos municípios que deliberem fixar em percentagem inferior à de 5% a 
 sua participação variável nas receitas desse imposto, reconhecida na alínea c) 
 dos artigos 19.º e 20.º, n.º 1, do mesmo decreto.
 
                   Em termos mais singelos, o Presidente da República tem dúvidas 
 sobre se, em sede de IRS, poderá haver uma dedução à colecta de que apenas 
 beneficiem os sujeitos passivos que tenham domicílio fiscal em municípios que 
 deliberem fixar em percentagem inferior à da máxima de 5%, estabelecida na lei, 
 a sua participação nas receitas provenientes deste imposto. 
 
                  
 
                  2 – Antes de mais, importa notar que é, estrutural e 
 funcionalmente, diferente a norma que reconhece aos municípios o direito a uma 
 participação variável até 5% nas receitas advindas do IRS, constante da alínea 
 c) do artigo 19.º e do n.º 1 do artigo 20.º do decreto acima identificado, e a 
 norma que cria uma dedução à colecta desse imposto, em favor, apenas, dos 
 sujeitos passivos que tenham domicílio fiscal na circunscrição territorial dos 
 municípios, em função dos termos em que estes deliberem comungar nas receitas 
 provenientes desse imposto, dentro da percentagem máxima estabelecida na lei 
 
 (artigo 20.º, n.º 4).
 
                  A primeira norma tem uma clara natureza financeira – trata-se, 
 pois, de uma norma que se insere na categoria daquelas que enunciam quais as 
 receitas que podem ser previstas pelos municípios para poderem pacificar as 
 necessidades cuja satisfação está a seu cargo. 
 
                  E, porque as necessidades a satisfazer com essas e outras 
 receitas estão, no caso, numa relação essencialmente directa com o número de 
 munícipes compreende-se, no plano da adequação e da razoabilidade, que o 
 legislador tenha adoptado o critério de calcular a participação variável até 5% 
 do IRS dos municípios sobre a “colecta líquida das deduções previstas no n.º 1 
 do artigo 78.º do Código do IRS” dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na 
 respectiva circunscrição territorial [art.ºs 19.º n.º 1, alínea c) e 20.º, n.º 
 
 1, do referido decreto]. 
 
                  A segunda é, por sua vez, uma norma estritamente fiscal – diz 
 respeito à conformação legal do imposto que gera a receita, independentemente do 
 fim que lhe dê o Estado, apenas se sabendo que, por via de regra, não será para 
 entesouramento.
 
                  Nesta óptica, são completamente diversos os critérios que as 
 justificam e os momentos em que operam. 
 No caso da primeira, está em causa a questão de saber quanto dinheiro poderá 
 obter-se desta fonte e que destino se lhe há-de dar; na segunda, a questão 
 prende-se com saber como se arranja o dinheiro de que os municípios poderão em 
 parte dispor – como se obtém esse valor em sede de imposto de IRS.
 
                  Quer isto dizer que a norma que atribui aos municípios uma 
 participação variável no IRS dos contribuintes domiciliados na sua circunscrição 
 territorial concretiza uma repartição, entre o Estado e os municípios, dos 
 recursos públicos que se obtiveram por essa via de aquisição.
 
                  Ao invés, a norma que institui a dedução à colecta diz respeito 
 a um momento anterior a este, ou seja, ao momento em que se define, pela 
 concorrência de todos os seus diversos elementos normativos, a obrigação deste 
 tipo de imposto e, consequentemente, o montante dos recursos públicos dele 
 provindos, a repartir pelo Estado e pelos municípios.
 
                  No momento em que os municípios renunciam a uma percentagem da 
 participação máxima a que terão direito na arrecadação futura do imposto, eles 
 ainda não são titulares de qualquer direito de crédito sobre o Estado, 
 proveniente da arrecadação do imposto, mas apenas titulares de uma simples 
 expectativa jurídica. Sem embargo, essa atitude projecta, desde logo, efeitos 
 sobre o modo como acabará por ficar conformada legalmente a obrigação do 
 imposto, interferindo com a definição do seu regime jurídico.
 
                  No âmbito da primeira norma, cabe a ponderação sobre o destino 
 a dar ao dinheiro e, nomeadamente, sobre as opções relativas à identificação e 
 grau das necessidades dos munícipes a satisfazer. Nesta medida, poderá dizer-se 
 que, ao renunciarem a parte da percentagem máxima a que terão direito na 
 arrecadação do imposto, os municípios estarão a renunciar à satisfação de 
 algumas necessidades dos seus munícipes. Estarão, se mantiverem o nível de 
 obtenção de receitas de outra fonte legal, como o das taxas e receitas 
 patrimoniais, o que nada garante que possa acontecer. Daí que perca todo o 
 sentido um argumento de equilíbrio do nível da despesa pública, em sede das 
 autarquias locais, que seja estruturado sobre o recurso a tal mecanismo.
 
                  Os únicos objectivos a cuja prossecução tal instrumento 
 jurídico se mostra adequado são os de, em alguma medida – mas pouco expressiva, 
 salvo se interesseiramente sobrevalorizada – se poderem corresponsabilizar, 
 politicamente, as autarquias locais, em conjunto com o Governo, pelos graus de 
 tributação impostos aos seus munícipes em sede de IRS e de tornar possível o 
 exercício de alguma concorrência normativa entre os municípios sobre o modo como 
 poderão satisfazer as necessidades dos seus munícipes, deixando-lhes, 
 simultaneamente, livre alguma parte – pequena – do rendimento sujeito a 
 tributação em IRS.
 
                  De qualquer modo, pode adiantar-se, desde já, que estes 
 interesses não são interesses próprios e específicos de populações de concretas 
 circunscrições territoriais municipais, mas antes interesses gerais de todos os 
 contribuintes do país.
 
                  Falta, porém, saber se um tal efeito possível constitui razão 
 material bastante para, sob o ponto de vista constitucional, justificar a 
 diferença de tratamento fiscal entre os sujeitos passivos do imposto.
 
                  Adiante se voltará a tal questão.
 
  
 
                  3 – Dispõe o artigo 104.º, n.º 1 da Constituição que “o imposto 
 sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e 
 progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado 
 familiar”.
 
                  O imposto regulado no Código do Imposto sobre o Rendimento das 
 Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, 
 com as inúmeras alterações sofridas posteriormente, é o tipo de imposto que visa 
 cumprir tal injunção constitucional. 
 
                  Ao dispor que o imposto sobre o rendimento seja único, a 
 Constituição obriga a que sobre todas as diferentes categorias de rendimento 
 fiscalmente elegíveis não possa incidir outro imposto. 
 
                  Tal equivale por dizer que o imposto sobre o rendimento deverá 
 ser um imposto global sobre todas as categorias de rendimento e, portanto, que 
 lhe é alheia qualquer ideia de localização territorial das fontes do 
 rendimento-produto ou do rendimento acréscimo, fiscalmente relevadas. Da sua 
 natureza de imposto único e global sobre os rendimentos decorre, deste modo, 
 inelutavelmente, que o mesmo seja um imposto nacional. 
 
                  Mas sendo um imposto nacional, não pode ele deixar de ser 
 modelado pelo legislador parlamentar, pois é este quem, unicamente, exerce a 
 soberania fiscal sobre todo o território nacional [art. 165.º, n.º 1, alínea i) 
 da CRP] a que respeita a globalidade dos rendimentos tributados neste tipo de 
 imposto, independentemente de o local ou circunscrição territorial inferior em 
 que sejam obtidos ou gerados. 
 
                  Por outro lado, tal imposto deve ser conformado pelo legislador 
 ordinário, de modo a visar a diminuição das desigualdades e ser um imposto 
 progressivo. 
 O cumprimento deste objectivo constitucional demanda, desde logo, uma 
 compreensão da igualdade dos contribuintes que não se baste por uma igualdade 
 perante a lei (igualdade formal), nem tão somente por uma igualdade na lei 
 
 (uniformidade do critério de tributação) (ambas inferíveis, no caso dos 
 impostos, dos artigos, 12.º, n.º 1, e 13.º da CRP), apontando, também, para a 
 prossecução de uma tendencial igualdade prática de repartição dos rendimentos 
 
 (artigos 103.º, n.º 1 e 104.º, n.º 1, da CRP) (cf. neste sentido, além de outra, 
 a jurisprudência mencionada no pedido).
 
                  A progressividade do imposto representa, assim, um modo 
 necessário para realizar esse objectivo constitucional de diminuição das 
 desigualdades. 
 Contudo, a progressividade não se queda pela previsão de taxas progressivas, 
 existindo outros instrumentos que poderão influenciar a progressividade real da 
 tributação, não obstante operarem sobre a determinação da matéria colectável ou 
 sobre a colecta do imposto, na medida em que deixarem livres parcelas de 
 rendimento. 
 A dedução à colecta é um desses instrumentos, sendo claro que, se essa dedução à 
 colecta respeitar o critério da universalidade e da uniformidade dentro do 
 espaço territorial a que se reportam os rendimentos tributáveis o ritmo da 
 progressividade será o mesmo para todos os contribuintes desse espaço nacional. 
 
                  Se, pelo contrário, como acontece no caso, essa dedução à 
 colecta apenas beneficiar certa categoria de contribuintes, elegidos em função 
 de uma área de território mais pequena onde residem e do facto de o respectivo 
 município renunciar a parte da participação variável até 5% no IRS a que tem 
 direito, então esses contribuintes beneficiarão de uma progressividade menos 
 intensa, na medida em que vêem relevada a sua capacidade contributiva em menor 
 grau do que a daqueles que não estão em tal situação.
 
                  Chame-se a essa dedução o que se entender – abatimento, 
 desagravamento, benefício fiscal (como se entende ser verdadeiramente – cfr. 
 art. 2.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais) ou outro qualquer instituto 
 jurídico-fiscal, do que não restam dúvidas é que o seu efeito jurídico-prático 
 corresponde a deixar livre na mão dos respectivos titulares de rendimentos 
 globalmente iguais, no espaço nacional, diferente fatia desse rendimento global 
 fiscalmente relevante.
 
                  E, assim sendo, embora não saia ofendido o princípio da 
 capacidade contributiva, enquanto pressuposto da tributação – acepção esta que 
 só terá préstimo para salvaguardar da tributação um mínimo para uma existência 
 humana condigna, ou seja, como marco do limite de tributação – não deixa de 
 atingir-se uma igual capacidade contributiva em diferente grau, com violação do 
 princípio da igualdade, na sua dimensão de uniformidade de critério de 
 tributação dentro do espaço nacional a que respeita o imposto.
 
                  Tal conclusão corresponde a um resultado inelutável, mesmo em 
 face da jurisprudência do Tribunal Constitucional que o acórdão recupera.
 
  
 
                  4 – Sustenta, porém, o acórdão a que esta declaração de voto 
 diz respeito, que o princípio de igualdade na tributação pode, de acordo com a 
 jurisprudência nele citada (e muita outra), consentir restrições desde que 
 racional e materialmente fundadas para a salvaguarda de outros direitos ou 
 interesses legalmente protegidos (artigo 18.º, n.º 2, da CRP). E o acórdão 
 encontra essa razão material, essencialmente, no princípio da autonomia local.
 
                  Ora, não lobrigamos como é que, para a salvaguarda ou, sequer, 
 o desenvolvimento da axiologia que suporta o princípio da autonomia local, possa 
 contribuir a instituição de um tal abatimento ou benefício fiscal, denominado 
 
 “dedução à colecta”, actuante sobre um imposto nacional e incidente sobre os 
 rendimentos obtidos nesse espaço territorial. 
 
                  A autonomia local constitui um modo de organização democrática 
 do Estado, expresso na existência de autarquias locais, dotadas de órgãos 
 representativos, constitucionalmente previsto e funcionalizado para “a 
 prossecução de interesses próprios das populações respectivas” da sua área 
 territorial (artigo 235º, nº 2, da CRP).
 
                  Tal autonomia demanda a atribuição da capacidade jurídica de 
 auto-eleição dos interesses locais a satisfazer e de auto-regulação de 
 instrumentos normativos necessários para tanto.
 
                  Nesta perspectiva, o reconhecimento constitucional às 
 autarquias locais de património e finanças próprias não representa mais do que 
 um postulado necessário da autonomia local. 
 
                  Nesse espaço de autonomia cabe, como não pode deixar de ser, o 
 direito a terem como próprias as receitas provenientes da gestão do seu 
 património e as cobradas pela utilização dos seus serviços (artigo 238º, nº 1, e 
 
 254º, nº 2, da CRP).
 
                  E, porque os interesses por elas prosseguidos não se opõem, 
 substancialmente, aos do Estado, antes integram o seu todo solidário, dispõe a 
 Lei fundamental que “o regime das finanças locais (que será estabelecido por 
 lei) visará a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas 
 autarquias e a necessária correcção de desigualdades entre autarquias do mesmo 
 grau” (artigo 238º, nº 2, da CRP).
 
                  Não reconhece a Constituição poderes tributários originários às 
 autarquias locais, apenas, admitindo que a lei lhos atribua, em certos casos.
 
                  Mas, como é postulado pelo fundamento material do princípio da 
 autonomia local, não se vê que a Constituição admita que possam ser 
 reconhecidos, às autarquias, poderes tributários que ultrapassem os limites 
 materiais desse fundamento: a prossecução dos interesses próprios das populações 
 respectivas da sua circunscrição territorial.
 
                  Desta sorte, entendo que os poderes tributários reconhecidos às 
 autarquias, com a revisão constitucional de 1997, no artigo 238.º, n.º 4 da CRP, 
 se cingem aos tributos locais, aos tributos previstos na lei como constituindo 
 modos próprios e específicos de arrecadação de receitas locais, não abrangendo 
 os impostos nacionais. 
 
                  O preceito constitucional teve essencialmente no seu horizonte 
 a resolução do tipo de dúvidas de constitucionalidade que foram levantadas pelos 
 vencidos no Acórdão n.º 57/95, relativamente à fixação da taxa da contribuição 
 autárquica dentro dos limites estabelecidos na lei e quanto à derrama.
 
                  Ora, se não existem dúvidas que as normas constantes dos 
 artigos 19.º, n.º 1, alínea c) e do artigo 20.º, n.º 1 do decreto da Assembleia 
 da República (que definem a participação variável dos municípios na receita do 
 IRS), em causa, estão numa linha de inteira e perfeita coerência com esses 
 princípios constitucionais, já não vemos em que medida é que a possibilidade de 
 reflectir a renúncia, por banda dos municípios, à obtenção de fundos 
 provenientes de IRS em deduções à colecta em favor dos sujeitos passivos desse 
 imposto, domiciliados na sua circunscrição territorial, como resulta do n.º 4 do 
 mesmo artigo 20.º, corresponda a uma forma de prosseguir interesses próprios das 
 populações das circunscrições territoriais desses municípios, de interesses que 
 sejam, materialmente, diferentes dos demais sujeitos passivos desse imposto, 
 domiciliados em circunscrições territoriais diferentes.
 
                  No primeiro caso, existe uma relação directa entre as 
 necessidades a satisfazer pelos municípios, que serão tantas mais quanto maior 
 for a população da respectiva área territorial, e as verbas necessárias para as 
 pacificar.
 
                  Já, no segundo caso, não se lobriga como é que uma renúncia do 
 município, tomada no âmbito da sua autonomia, justifique que a mesma se deva 
 converter, dentro de uma linha de respeito pelos fundamentos materiais da 
 autonomia local, em um benefício fiscal para os domiciliados na sua 
 circunscrição territorial para sair respeitada a prossecução de interesses 
 próprios das populações dessa área. 
 
                  Dir-se-á, como se refere em pareceres juntos, que uma tal 
 dedução à colecta se justifica pelo princípio do benefício, dado equivaler a uma 
 compensação pelo benefício que os munícipes deixam de fruir do não gasto de 
 receita proveniente do IRS ou até que ele não é mais do que um modo de, 
 antecipadamente, o município repartir essa receita de cuja participação abdica.
 
                  Mas tais juízos, na minha opinião, não têm a mínima 
 consistência científica. 
 Basta notar que os beneficiários da dedução à colecta, independentemente de 
 poderem sofrer por outra via, como a do agravamento de outras fontes de receita, 
 como as taxas e os preços de serviços, a manutenção do nível da despesa pública 
 local, são apenas os domiciliados na circunscrição que tenham colecta onde se 
 possa abater o respectivo montante e que esse universo é totalmente diferente do 
 universo que constitui a população da respectiva circunscrição territorial para 
 prossecução de cujos interesses a autonomia local é constitucionalmente 
 reconhecida.
 
                  Por outro lado, a posição de ver nesse benefício uma repartição 
 antecipada de um crédito ignora não só a diversidade desse universo subjectivo 
 como a circunstância de não haver qualquer correspondência objectiva entre o 
 benefício que pessoalmente se obtém da comunidade (estatal ou municipal) através 
 do gasto das receitas provenientes dos impostos e o montante de imposto que se 
 paga. 
 
                  Ninguém tem direito a benefícios na medida do que paga de 
 impostos. 
 
                  Há muito tempo que o princípio do benefício deixou de ser 
 alegado como base e pressuposto de tributação!
 
  
 
                  5 – Há, ainda, quem fundamente constitucionalmente a 
 diferenciação estabelecida no referido n.º 4 do artigo 20.º do decreto em causa 
 num alegado conjugado de razões, a que o Tribunal não deixou de atender debaixo 
 do rótulo de exigências constitucionais de transparência e de redução da despesa 
 pública.
 Consistem estas: no facto de os rendimentos tributáveis em IRS serem reflexo 
 importante da actuação dos órgãos municipais à actividade exercida pelas pessoas 
 e empresas que os geram; na circunstância de a renúncia à participação na 
 receita do IRS implicar uma renúncia à despesa pública e, por isso, ser razoável 
 que os ganhos assim obtidos sejam distribuídos pela generalidade dos munícipes 
 em função da capacidade contributiva destes, inserindo-se no exercício de uma 
 autonomia responsável; na necessidade de uma luta eficaz contra a “esquizofrenia 
 municipal”; no facto de a actual Lei das Finanças Locais já permitir 
 significativas diferenças de tributação no respeitante aos impostos cuja 
 titularidade cabe aos municípios e no paralelismo de problemas e dificuldades 
 com o que se passa com os impostos nas regiões autónomas.
 
                  A nosso ver, nenhum destes fundamentos, segundo um mero prisma 
 de controlo jurisdicional da evidência da adequação, merece aceitação. 
 Sendo o IRS um imposto único sobre o rendimento global, fiscalmente relevado 
 
 (rendimento-produto e rendimento-acréscimo considerados), é-lhe absolutamente 
 alheia qualquer ideia de concreta e específica conexão territorial com os 
 concretos municípios e os respectivos órgãos municipais que propiciem o 
 funcionamento da específica dedução à colecta, constante do artigo 20.º, n.º 4, 
 do referido decreto da Assembleia da República. 
 
                  Quando muito, deixando de lado os rendimentos obtidos fora do 
 território nacional, o que poderá dizer-se é que esse rendimento, na sua 
 globalidade, é sempre produzido ou obtido em uma ou mais circunscrições 
 territoriais municipais, dado que o território nacional se acha todo ele 
 dividido em municípios. 
 
                  Mas a inferir-se daí que os rendimentos tributáveis são, de 
 algum modo constitucionalmente relevante, potenciados pelos concretos municípios 
 que propiciam essa dedução e não por outros é dar um salto para o desconhecido. 
 
                  Os rendimentos podem ser gerados ou obtidos em Faro e o 
 contribuinte estar domiciliado em Bragança. 
 
                  Em boa verdade, não se vê como é que poderá estabelecer-se 
 qualquer relação de localização dos rendimentos provenientes de trabalho 
 dependente, de capitais, de alguns incrementos patrimoniais e de pensões, com a 
 actuação dos municípios que propiciem, pela sua renúncia à participação na 
 receita do IRS, a dedução à colecta em causa.
 
                  Por outro lado, não existe uma relação adequada, como exigem as 
 restrições ao princípio da igualdade, entre a redução na participação da receita 
 proveniente de IRS e uma eventual redução da despesa pública e a existência de 
 ganhos fiscais. O nível de despesa pública só pode ser visto na sua totalidade, 
 pelo que apenas existirão ganhos fiscais se as outras fontes de receita 
 municipal não sofrerem aumentos, e, estando o resultado dependente de um 
 pressuposto não tornado obrigatório, tudo pode ficar na mesma ou, até, pior.
 
                  Não havendo necessária dependência entre a responsabilização 
 pela actuação política a nível local e a responsabilização política a nível 
 nacional, e sendo o produto da participação variável no IRS destinado à 
 satisfação de necessidades locais, não se vê, por outro lado, que os eleitos 
 locais passem a ser mais facilmente responsabilizados pelos seus munícipes pelas 
 decisões da política nacional tributária relativa ao IRS, até, porque o universo 
 dos munícipes que gozarão do benefício da dedução poderá ser muito diverso do 
 universo dos eleitores locais. 
 
                  De qualquer jeito, não obstante estarmos perante interesses 
 suportados na Constituição, eles são interesses do todo subjectivo nacional e 
 não próprios da população de uma específica circunscrição territorial municipal.
 
                  Só em razões de ética política será possível fundar uma tal 
 comunhão de responsabilidade política de nível nacional e local.
 
                  Acresce que não são, de modo algum, transponíveis para o caso 
 sub judicio os fundamentos que justificam as diferenças de tributação no 
 respeitante aos impostos cuja titularidade cabe aos municípios, decorrentes do 
 n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, e do poder municipal de 
 lançar derramas. 
 
                  Basta atentar que, nesses casos, é possível descortinar uma 
 relação suficientemente directa e intensa entre a actuação dos municípios e dos 
 seus órgãos representativos e os factos tributários relevados no respectivo tipo 
 de imposto [valor patrimonial dos imóveis (Imposto Municipal sobre Imóveis – 
 IMI, outrora Contribuição Autárquica – CA, e Imposto Municipal sobre as 
 Transmissões Onerosas de Imóveis – IMT) ou os rendimentos empresariais de 
 empresas pessoais ou colectivas – Derrama]. É essa a razão, aliás, que justifica 
 que o titular activo do imposto e o destinatário da sua receita sejam as 
 autarquias. 
 
                  Sendo ínsita à autonomia local uma ideia de diferenciação 
 implicada pela prossecução dos interesses próprios das populações das autarquias 
 que não pode deixar de conduzir, igualmente, a diferenciações de actuações 
 municipais propiciadoras da obtenção dos valores tributáveis em sede dos 
 impostos locais, tem, do mesmo passo, de admitir-se que exista uma tal 
 diferenciação na conformação e lançamento dos impostos e tributos locais. 
 Nessa medida, não são, assim, deslocáveis, para o domínio de um imposto único, 
 global e nacional sobre todo o rendimento fiscalmente relevante, os fundamentos 
 que, no Acórdão n.º 57/95, abonaram a decisão de conformidade constitucional das 
 normas aí questionadas, relativas à taxa da contribuição autárquica e do 
 lançamento de derramas. 
 
                  No que respeita à “esquizofrenia municipal”, vista no facto de 
 os eleitos municipais não terem de responder politicamente pelo ónus político do 
 lançamento dos impostos, de cujo produto da arrecadação os municípios apenas em 
 parte participam, caberá dizer que, independentemente de ela se consubstanciar, 
 essencialmente, numa atitude ética perante um outro órgão político, a mesma 
 apenas é susceptível de ocorrer porque o sistema e a competência constitucionais 
 relativos aos impostos não se encontram estruturados em termos de obrigar a uma 
 comparticipação ou comunhão políticas no exercício da soberania fiscal e nem se 
 vê que, por força desta providência legislativa, aumente a transparência no 
 exercício de tal poder. De qualquer modo, estamos não perante um interesse 
 próprio de populações de uma concreta circunscrição municipal, mas perante um 
 interesse de âmbito nacional.
 
                  Finalmente, não existe qualquer paralelo entre os poderes 
 tributários conferidos pela Constituição às regiões autónomas e os conferidos às 
 autarquias locais. 
 
                  Na verdade, segundo o disposto no artigo 227.º, n.º 1, alíneas 
 i) e j) da Constituição, as regiões têm os poderes de “exercer poder tributário 
 próprio, nos termos da lei, bem como adaptar o sistema fiscal nacional às 
 especificidades regionais, nos termos da lei quadro da Assembleia da República” 
 e de “dispor, nos termos dos estatutos e da lei de finanças das regiões 
 autónomas, das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas, bem como de uma 
 participação nas receitas tributárias do Estado, estabelecida de acordo com um 
 princípio que assegure a efectiva solidariedade nacional (…)”.
 
                  Relativamente às autarquias locais, o n.º 4 do artigo 238.º da 
 Constituição limita-se a prever que “as autarquias locais podem dispor de 
 poderes tributários, nos casos e nos termos previstos na lei”.
 
                  São patentemente diferentes os poderes tributários conferidos a 
 uma e outra destas categorias de pessoas colectivas territoriais.
 
                  Desde logo, importa acentuar que as regiões têm poderes 
 tributários próprios; que podem adaptar o sistema fiscal nacional e que podem 
 dispor das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas.
 
                  Cabe, seguramente, nesta adaptação do sistema fiscal nacional a 
 adopção de medidas como a de estabelecer taxas de imposto ou benefícios fiscais 
 diferentes dos vigentes no sistema nacional.
 
                  Nada disto atribui a Lei fundamental às autarquias locais.
 De qualquer jeito, a justificação da desigualdade na tributação nunca poderá ser 
 achada dentro de uma dialética entre a dedução à colecta de que gozam os 
 munícipes de certos municípios, derivada apenas da renúncia destes a uma parte 
 da participação nas receitas provenientes de IRS, e a autonomia local (valendo o 
 argumento igualmente para a autonomia regional), na sua expressão de 
 titularidade de poderes tributários, mas entre esse benefício concedido a certos 
 sujeitos passivos do imposto em função apenas do seu domicílio fiscal e a 
 especificidade material que o concreto domicílio seja objectivamente susceptível 
 de evidenciar. 
 
                  Nesta linha, a diferença, mesmo relativamente às regiões, não 
 pode tanto ser procurada na sua competência constitucional para adaptar o 
 sistema fiscal nacional, mas na circunstância de, nessa adaptação, poderem 
 relevar as especificidades dessas regiões, como o seu nível de desenvolvimento 
 económico e social e o seu isolamento geográfico, enquanto realidades 
 objectivamente susceptíveis de atingir os factos tributários e os contribuintes.
 
                  As realidades a avaliar, sob o prisma da igualdade, são apenas 
 as situações que, relativamente ao mesmo bem jurídico (neste caso, dedução à 
 colecta), se verifiquem entre diferentes categorias de sujeitos passivos do 
 mesmo imposto e não entre contribuintes e quem detém o poder tributário que faz 
 a discriminação, seja este local ou regional, pois o princípio da igualdade 
 funciona como um limite à sua liberdade normativo-constitutiva.
 
                  Dir-se-á, ainda, que o poder de determinar a existência de uma 
 dedução à colecta, como a que estamos examinando, caberá nos poderes tributários 
 das autarquias locais, enquanto abrangida pela cláusula aberta “nos casos e 
 termos previstos na lei”, sendo essa lei, aqui, esta norma cuja 
 constitucionalidade se questiona.
 
                  Mas, uma tal interpretação do preceito constitucional implica o 
 reconhecimento da possibilidade de atribuição, por parte do legislador ordinário 
 
 (a AR), de poderes tributários para além do estrito âmbito competencial 
 demandado pelo princípio da autonomia local enquanto direito de prossecução dos 
 interesses próprios das populações das autarquias. Ou seja, equivale a 
 reconhecer às autarquias a possibilidade de interferirem na criação dos 
 pressupostos jurídicos tributários integrantes de um abatimento, desagravamento 
 ou benefício fiscal conformado pelo legislador nacional com um âmbito apenas 
 local, como é a dedução à colecta constante do n.º 4 do referido artigo 20.º.
 Porém, nada na Constituição, mesmo após a revisão de 1997, como se pode colher 
 das próprias fontes assumidas pelo acórdão, inculca a ideia de que se pretendeu 
 instituir na nossa norma normarum um tal sistema de comunhão e responsabilidade 
 política conjunta pelas opções relativas ao funcionamento do sistema de impostos 
 nacionais.
 
                  Também não colhe, minimamente, o argumento de paralelismo com o 
 que se passa na vizinha Espanha. Na verdade, para ser pertinente seria 
 necessário que, tal como lá acontece, todo o território nacional estivesse 
 regionalizado e municipalizado e fosse igual a Constituição fiscal de ambos os 
 países. Ora, entre nós, apenas se verifica a segunda circunstância. Por outro 
 lado, anote-se que a apreciação do Tribunal Constitucional espanhol se refere a 
 um tipo de imposto semelhante ao nosso imposto municipal sobre imóveis (IMI), 
 nada tendo a ver com um imposto sobre o rendimento de âmbito nacional, valendo, 
 assim, para ele as considerações atinentes aos poderes tributários que 
 relativamente à CA, ora IMI, se reconhecem aos municípios.
 
                  Ao contrário da posição tomada no acórdão, não vemos que tenha 
 qualquer pertinência, para a apreciação do caso, a convocação do princípio da 
 legalidade tributária, embora se pense que quem votou vencido nos Acórdãos nºs 
 
 57/95 e 70/04 não poderia deixar de concluir, sem incorrer em incongruência, 
 pela inconstitucionalidade da norma constante do referido n.º 4 do artigo 20.º.
 
                  Na verdade, não está em causa qualquer questão atinente à 
 definição do elemento “taxa” de imposto, pois este está assumido com relevância 
 autónoma pela Constituição, não sendo legítimo um entendimento, perspectivado, 
 de tal conceito, enquanto traduzindo a grandeza real ou efectiva da tributação 
 sofrida, resultante da concorrência de diversos instrumentos jurídico-fiscais, 
 como sejam as taxas, as isenções, abatimentos ao rendimento, deduções à colecta 
 e outros.
 
                  Concluiria, assim, pela inconstitucionalidade da norma 
 constante do n.º 4 do artigo 20.º do decreto da Assembleia da República, mas 
 tão-sómente por violação conjugada dos princípios da capacidade contributiva, 
 que se extrai dos artigos 103.º, n.º 1 e 104.º, n.º 1; da igualdade, decorrente, 
 no caso dos impostos, dos artigos 12.º, n.º 1 e 13.º, e do princípio da 
 unicidade do imposto sobre o rendimento e da sua vinculação à prossecução da 
 diminuição das desigualdades, constantes do artigo 104.º, n.º 1, relativos à 
 tributação do rendimento, todos os preceitos da Constituição.
 Benjamim Rodrigues
 
  
 
  
 
  
 Declaração de voto
 
  
 
  
 
                  Votei no sentido da inconstitucionalidade das normas da alínea 
 c) do n.º 1 do artigo 19.º e do n.º 4 do artigo 20.º do Decreto em análise, por 
 violação do artigo 13.º em conjugação com o n.º 1 do artigo 104.º da 
 Constituição, pelas seguintes razões essenciais:
 
                  Independentemente do nomen juris ou da técnica tributária, a 
 opção do município por uma percentagem inferior a 5% no IRS dos sujeitos 
 passivos com domicílio fiscal na respectiva circunscrição territorial 
 consubstancia, para esses contribuintes, a concessão de um desagravamento de 
 efeitos prático-jurídicos equivalentes a um benefício fiscal. Contribuintes em 
 situação em tudo o mais idêntica face ao regime geral do imposto nacional em 
 causa, portanto com a mesma capacidade contributiva, pagarão montantes 
 diferentes porque alguns beneficiam (ou beneficiam de modo diverso) de uma 
 dedução suplementar à colecta que acresce às deduções constantes do artigo 78.º 
 do CIRS só por residirem (recte, se considerarem fiscalmente domiciliados – cfr. 
 n.º 6 do artigo 20.º do Decreto em apreciação) no território de autarquias que 
 fazem opções políticas distintas quanto a prescindir de uma parte do 
 financiamento decorrente das receitas do IRS. Suportarão diferente carga fiscal, 
 com discriminação em razão do território de residência, num imposto que, segundo 
 a Constituição, “visa a diminuição das desigualdades e será único e 
 progressivo”. Afiguram-se-me evidentes quer a produção de um efeito 
 diferenciador ao arrepio deste objectivo e desta regra constitucional de 
 estruturação do imposto sobre o rendimento, quer a presença de uma causa 
 operativa semelhante a um factor suspeito (o território de origem, n.º 2 do 
 artigo 13.º da Constituição) na origem dessa entorse ao princípio da igualdade 
 fiscal. Efectivamente, do princípio da unicidade do IRS decorre não só o mandato 
 
 (no limite da praticabilidade) de tributação por um único imposto de todos os 
 rendimentos pessoais, mas também que esse imposto seja uniforme para todos os 
 residentes em território nacional em função da capacidade contributiva. Assim, 
 embora o princípio da igualdade fiscal não proíba diferenciações materialmente 
 fundadas, o mero domicílio fiscal não pode funcionar como critério que 
 justifique esta manifestação negativa do poder tributário local a favor dos 
 sujeitos passivos fiscalmente residentes na circunscrição. Aliás, o domicílio 
 fiscal nem sequer tem uma conexão necessária com a fonte do rendimento 
 tributável em IRS, bastando pensar nos residentes nos municípios da periferia 
 das grandes cidades e que nestas trabalham.
 
                  E, quanto a este parâmetro, não pode transpor-se, mediante um 
 raciocínio inverso, para o sentido da modelação local deste imposto estadual que 
 agora se aprecia, a justificação que no acórdão n.º 57/95 o Tribunal adoptou 
 para as espécies tributárias aí analisadas. A prestação de bens públicos pela 
 autarquia, de que o contribuinte beneficia ou fica em condições de beneficiar, 
 fornece uma justificação material para a imposição (o imposto acessório ou a 
 fixação da taxa superior ao mínimo legal) e, consequentemente para a 
 diferenciação entre contribuintes residentes em municípios distintos. Para o 
 desagravamento local de um imposto nacional (uma espécie de anti-derrama 
 aplicada ao IRS) é necessário não só encontrar fundamento em interesses públicos 
 extrafiscais constitucionalmente relevantes que sejam superiores aos da própria 
 tributação-regra que impedem e cumpra ao município prosseguir, mas também um 
 critério de atribuição materialmente fundado. Ora, no que essencialmente divirjo 
 do entendimento que fez vencimento não é na legitimidade de o legislador 
 prosseguir os objectivos enunciados no nº 10 do acórdão, mas na possibilidade de 
 utilizar para o efeito o mero facto da domiciliação fiscal, que é imprestável 
 por introduzir uma desigualdade entre contribuintes – que, no limite máximo pode 
 atingir montantes significativos – em função de uma variável que é o território 
 de residência, num imposto que a Constituição quer geral e uniforme, visando a 
 diminuição das desigualdades.
 
  
 
                  É exacto que a autonomia local, com a componente do poder 
 tributário (n.º 4 do 
 artigo 238.º, da Constituição), que constitui fundamento axial do acórdão, 
 permite uma diferenciação nesta matéria. Mas a autonomia não fornece, por si 
 mesma, critério que 
 legitime o conteúdo e o sentido da diferenciação. Pode ser base constitucional 
 para a 
 atribuição de poderes de configuração local de tributos estaduais (ou  
 regionais) – e, 
 portanto, operar quanto ao princípio da legalidade tributária –, mas   não   
 habilita  com 
 critério   material   de   compressão   do   princípio   da   igualdade,   na   
 sua   vertente 
 constitucionalmente qualificada quanto à espécie tributária em que recai o 
 benefício em 
 crise.
 Vítor Gomes
 
  
 
  
 Declaração de voto
 
  
 
                                  Votei vencido por entender que da conjugação 
 das normas constantes da alínea c) do artigo 19.º com os n.ºs 1 e 4 do artigo 
 
 20.º do Decreto da Assembleia da República n.º 93/X, que “aprova a Lei das 
 Finanças Locais, revogando a Lei n.º 42/98, de 6 de Agosto”, resulta a violação: 
 
 (i) dos limites constitucionais dos poderes tributários das autarquias locais; 
 
 (ii) do princípio da capacidade contributiva, enquanto projecção do princípio 
 da igualdade tributária; (iii) dos princípios constitucionais da tributação do 
 rendimento pessoal; e (iv) do princípio da legalidade tributária; e que da norma 
 do n.º 2 do referido artigo 20.º pode resultar (v) violação das competências 
 constitucionais das assembleias municipais.
 
                                  Antes de explicitar os fundamentos de cada um 
 desses juízos de inconstitucionalidade (infra, 3. a 7.), afigura‑se‑me 
 essencial analisar o sentido e alcance da medida legislativa objecto de 
 apreciação de constitucionalidade (infra, 1.) e – já que se invoca a autonomia 
 local como justificação do reconhecido entorse ao princípio da capacidade 
 contributiva – precisar qual o contorno constitucional dessa autonomia no 
 domínio fiscal (infra, 2.).
 
  
 
                                  1. Análise do sentido e alcance da medida 
 legislativa em causa.
 
                                  Há que distinguir claramente, nas normas 
 questionadas, uma dimensão financeira e uma dimensão fiscal: a dimensão 
 financeira respeita à atribuição aos municípios, no contexto da repartição de 
 recursos públicos entre o Estado e os municípios, de uma participação variável 
 de 5% no imposto sobre o rendimento de pessoas singulares (IRS) dos sujeitos 
 passivos com domicílio fiscal na respectiva circunscrição territorial, calculada 
 sobre a respectiva colecta líquida das deduções previstas no n.º 1 do artigo 
 
 78.º do Código do IRS; a dimensão fiscal reporta‑se à possibilidade de, como 
 decorrência directa de determinado município ter deliberado receber uma 
 percentagem da participação no IRS inferior à taxa máxima de 5%, “o produto da 
 diferença de taxas e a colecta líquida [ser] considerada como dedução à colecta 
 do IRS, a favor do sujeito passivo”.
 
                                   Relativamente à apontada dimensão financeira 
 nenhuma questão de constitucionalidade vem colocada.
 
                                  A violação de princípios constitucionais 
 suscita‑se apenas quanto à dimensão fiscal, na medida em que ela necessariamente 
 determina que cidadãos com o mesmo nível de rendimentos paguem menos imposto de 
 rendimento pessoal pela mera circunstância de estarem fiscalmente domiciliados 
 em município que haja deliberado “renunciar”, no todo ou em parte, à 
 participação no IRS.
 
                                   Afiguram‑se‑me inconsistentes quer a 
 construção jurídica que vê nessa medida uma cessão dos créditos do município 
 sobre o Estado a favor dos seus munícipes seguida de uma compensação dos 
 créditos assim adquiridos pelos munícipes com os seus débitos de imposto face ao 
 Estado, por demasiado artificiosa, quer a qualificação da medida como um 
 benefício fiscal, por não subsumível ao conceito sedimentado desta figura 
 
 (“Consideram‑se benefícios fiscais as medidas de carácter excepcional 
 instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam 
 superiores aos da própria tributação que impedem” – artigo 2.º, n.º 1, do 
 Estatuto dos Benefícios Fiscais).
 
                                  A medida em causa, em termos substantivos – a 
 
 “dedução à colecta” traduz tão‑só o mecanismo através do qual ela se executa –, 
 corresponde a uma redução da taxa do imposto de que beneficiam, geral e 
 automaticamente, todos os contribuintes fiscalmente domiciliados no município 
 que “renunciou”, no todo ou em parte, à participação no IRS. Trata‑se, assim, de 
 um medida equivalente (ou de efeito equivalente) à redução da taxa do imposto. 
 Nem se diga que toda e qualquer dedução à colecta tem esse efeito, já que é 
 diametralmente diferente a redução do montante do imposto a pagar a final por 
 força de uma dedução casuisticamente operada, variável de contribuinte para 
 contribuinte, sujeita tão‑só a limite máximo e dependente de declaração do 
 próprio, da presente situação, em que, por mero efeito de uma deliberação 
 municipal, todos os contribuintes com residência fiscal no município, podem 
 pagar menos 5% de IRS do que os residentes num município vizinho. A generalidade 
 
 (reportada à universalidade dos contribuintes com residência fiscal no 
 município) e a automaticidade da redução afastam esta medida das verdadeiras 
 deduções à colecta (incluindo os benefícios fiscais) e fazem‑na equivaler, em 
 termos práticos e substantivos, a uma redução da taxa do imposto.
 
                                  Aliás, e significativamente, em diversos dos 
 pareceres solicitados pelo Governo e remetidos ao Tribunal (pareceres 
 solicitados já depois da apresentação do presente pedido de fiscalização 
 preventiva da constitucionalidade) se invoca, como justificação da medida ora em 
 causa, a existência de precedentes no que concerne às Regiões Autónomas, 
 precedentes estes que consistem precisamente na atribuição às respectivas 
 assembleias legislativas de “diminuir as taxas nacionais dos impostos sobre o 
 rendimento (IRS e IRC) e do imposto sobre o valor acrescentado, até ao limite de 
 
 30% e dos impostos especiais de consumo” (n.º 4 do artigo 37.º da Lei das 
 Finanças Regionais – Lei n.º 13/98, de 24 de Fevereiro).
 
                                  Conclui‑se, assim, que, na sua dimensão fiscal, 
 a medida em causa consiste substancialmente na atribuição aos municípios do 
 poder de diminuir a taxa nacional do imposto sobre o rendimento pessoal.
 
  
 
                                  2. Os poderes tributários constitucionalmente 
 atribuídos às autarquias locais.
 
                                  Como é sabido, foi a revisão constitucional de 
 
 1997 que aditou ao artigo 238.º (anterior artigo 240.º) da Constituição da 
 República Portuguesa (CRP), o seu n.º 4, segundo o qual: “As autarquias locais 
 dispõem de poderes tributários, nos casos e nos termos previstos na lei”.
 
                                  E como também é sabido, esta alteração 
 constitucional teve por causa próxima as divergências de que o Acórdão do 
 Tribunal Constitucional n.º 57/95 se deu conta quanto à possibilidade de as 
 autarquias locais fixarem as taxas de um imposto local (a contribuição 
 autárquica) e de lançarem derramas.
 
                                  O precedente acórdão (n.º 13) extrai da 
 intervenção de um Deputado, em sede de Comissão Eventual da Revisão 
 Constitucional, em que se aludiu, a par do Código da Contribuição Autárquica, 
 ao Código do IRC, a conclusão de que se pretendeu permitir a outorga legal às 
 autarquias locais de possibilidade de intervenção não apenas em impostos locais, 
 mas também em impostos nacionais, concretamente, “no montante do imposto sobre o 
 rendimento”.
 
                                  Para além da questionável relevância, em sede 
 de interpretação da Constituição, de considerações baseadas na hipotética 
 vontade do legislador histórico, é unanimemente reconhecida a extrema 
 fragilidade de argumentos extraídos de trabalhos preparatórios de leis, 
 designadamente provenientes de órgãos colegiais, sobretudo se respeitam a 
 intervenções orais, muitas vezes proferidas de improviso, não sendo lícito 
 afirmar a existência de consenso quanto a afirmações produzidas pelo mero facto 
 de não serem imediatamente contraditadas. Acresce que, no presente caso, 
 imediatamente antes da intervenção referida no precedente acórdão (da autoria do 
 Deputado Luís Marques Guedes), ocorreu outra intervenção (do Deputado Luís Sá), 
 que o acórdão omite, em que apenas se alude, como efeito do aditamento desse 
 número, à possibilidade de o município fixar a taxa de incidência da 
 contribuição autárquica (Diário da Assembleia da República, II Série‑RC, n.º 
 
 116, de 9 de Julho de 1997, p. 3399).
 
                                  De qualquer forma, outros argumentos existem 
 que me levam a repudiar o entendimento dado no precedente acórdão ao alcance do 
 n.º 4 do artigo 238.º da CRP, sendo o mais determinante dentre eles o que 
 resulta da comparação entre esse preceito e o artigo 227.º, n.º 1, alínea i), 
 que atribui às regiões autónomas poderes para “exercer poder tributário 
 próprio, nos termos da lei, bem como adaptar o sistema fiscal nacional às 
 especificidades regionais, nos termos da lei‑quadro da Assembleia da República”.
 
                                  Não sendo obviamente equiparáveis a autonomia 
 política das regiões autónomas e a autonomia meramente administrativa das 
 autarquias locais e resultando da alínea i) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP que 
 o poder de adaptar o sistema fiscal nacional às especificidades regionais é 
 algo distinto do “poder tributário próprio” – e sendo certo que o n.º 4 do 
 artigo 238.º da CRP nem sequer qualifica como próprios os poderes tributários 
 que consente que a lei venha a atribuir às autarquias locais –, tenho por seguro 
 que entre os poderes tributários que este último dispositivo constitucional 
 possibilita que se confiram às autarquias não se encontra o poder de adaptar o 
 sistema fiscal nacional. É o que resulta da inexistência, no artigo 238.º, de 
 inciso similar ao da alínea i) do n.º 1 do artigo 227.º e da incomparabilidade 
 entre o carácter político da autonomia regional face ao carácter meramente 
 administrativo da autonomia local.
 
                                  Este entendimento é, aliás, perfilhado por José 
 Magalhães (Dicionário da Revisão Constitucional, Lisboa, 1999, p. 129), que 
 imputa ao aditamento em causa o objectivo de dar “cobertura constitucional 
 apropriada a legislação em vigor” e de abrir “a possibilidade de diversos 
 modelos de «impostos locais», sempre gizados pela Assembleia da República mas 
 podendo devolver às autarquias opções filiadas em estratégias de incentivo 
 fiscais diferentes” (itálico acrescentado).
 
                                  Em suma: o n.º 4 do artigo 238.º da CRP não 
 constitui credencial para a atribuição às autarquias locais, designadamente aos 
 municípios, de poderes para alterarem elementos (e muito menos elementos 
 essenciais) de impostos nacionais (ou estaduais).
 
  
 
                                  3. Violação dos limites constitucionais dos 
 poderes tributários das autarquias locais.
 
                                  Assente que o n.º 4 do artigo 238.º da CRP não 
 constitui credencial para a atribuição às autarquias locais, designadamente aos 
 municípios, de poderes para alterarem elementos de impostos nacionais (supra, 
 n.º 2), e que a medida em causa consiste substancialmente na atribuição aos 
 municípios do poder de diminuir a taxa nacional do imposto sobre o rendimento 
 pessoal (supra, n.º 1), impõe‑se a conclusão que as normas ora em causa violam 
 aquele preceito constitucional.
 
                                  A idêntica conclusão se chegaria, aliás, mesmo 
 que se adoptasse a qualificação da diminuição de imposto a pagar como um 
 benefício fiscal.
 
  
 
                                  4. Violação do princípio da capacidade 
 contributiva, enquanto projecção do princípio da igualdade.
 
                                  Seguindo a lição de Teixeira Ribeiro (Lições de 
 Finanças Públicas, 5.ª edição, Coimbra, 1995, pp. 260 e seguintes), o princípio 
 da igualdade tributária, fiscal ou contributiva concretiza-se na generalidade e 
 na uniformidade dos impostos: generalidade quer dizer que todos os cidadãos 
 estão adstritos ao pagamento de impostos; uniformidade quer dizer que a 
 repartição de impostos pelos cidadãos obedece ao mesmo critério, a critério 
 idêntico para todos. A uniformidade dos impostos traduz‑se na igualdade 
 horizontal (os indivíduos nas mesmas condições devem pagar o mesmo imposto) e 
 na igualdade vertical (os indivíduos em condições diferentes devem pagar 
 diferentes impostos, na medida da diferença). Daqui deriva (com afastamento do 
 princípio do benefício, segundo o qual cada um deve ser tributado consoante o 
 benefício que aufere dos bens públicos) o princípio da capacidade de pagar, 
 segundo o qual estão nas mesmas condições, devendo satisfazer o mesmo imposto, 
 os que têm a mesma capacidade de pagar; estão em diferentes condições, devendo 
 satisfazer diferente imposto, os que têm capacidade de pagar diferente.
 
                                  O Tribunal Constitucional tem, desde sempre, 
 reconhecido como um princípio basilar da “Constituição fiscal” o princípio da 
 capacidade contributiva. Na formulação do Acórdão n.º 84/2003:
 
  
 
 “10 – O princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da 
 igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de uniformidade – o dever de 
 todos pagarem impostos segundo o mesmo critério –, preenchendo a capacidade 
 contributiva o critério unitário da tributação.
 
                  Consiste este critério em que a incidência e a repartição dos 
 impostos – dos «impostos fiscais» mais precisamente – se deverá fazer segundo a 
 capacidade económica ou capacidade de gastar (na formulação clássica 
 portuguesa, de Teixeira Ribeiro, «A justiça na tributação», in Boletim de 
 Ciências Económicas, vol. XXX, Coimbra 1987, n.º 6, autor que também se lhe 
 refere como capacidade para pagar) de cada um e não segundo o que cada um 
 eventualmente receba em bens ou serviços públicos (critério do benefício).
 
                  A actual Constituição da República não consagra expressamente 
 este princípio com longa tradição no direito constitucional português – a Carta 
 Constitucional de 1826 expressa‑o na fórmula de tributação «conforme os haveres» 
 dos cidadãos e, na Constituição de 1933, o artigo 28.º consigna‑o na obrigação 
 imposta a todos os cidadãos de contribuir para os encargos públicos «conforme os 
 seus haveres»).
 
                  Não obstante o silêncio da Constituição, é entendimento 
 generalizado da doutrina que a capacidade contributiva continua a ser um 
 critério básico da nossa «Constituição fiscal», sendo que a ele se pode (ou 
 deve) chegar a partir dos princípios estruturantes do sistema fiscal formulados 
 nos artigos 103.º e 104.º da CRP (cf. Casalta Nabais, O dever fundamental de 
 pagar impostos, págs. 445 e seguintes, onde, no entanto, se defende que, embora 
 o princípio não careça – para ter suporte constitucional – de preceito 
 específico e directo, não é de todo inútil ou indiferente a sua consagração 
 expressa).
 
                  Autores há, porém, que contestam a operatividade jurídica 
 prática ao princípio da capacidade contributiva, em razão, nomeadamente, da sua 
 acentuada e indiscutível indeterminabilidade, não se estando aí senão perante 
 uma «fórmula passe-partout» imprestável para um teste jurídico‑constitucional 
 dos impostos, quer porque se limitaria a «estabelecer que ‘deve pagar-se o que 
 se pode pagar’» sem definir o «poder pagar», quer porque «não forneceria nenhum 
 critério concreto para a repartição justa dos encargos fiscais por todos os 
 contribuintes», quer ainda porque «diria muito pouco sobre as taxas a considerar 
 correctas dos impostos ou sobre a sua exacta progressão, caso esta, em alguma 
 medida possa resultar de um tal princípio» (cf. Casalta Nabais, ob. cit., págs. 
 
 459 e 461).
 
                   Diferentemente, outros autores, como é o caso do próprio 
 Casalta Nabais, reconhecem ainda «importantes préstimos» ao princípio, o qual 
 
 «afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando‑o a que, na selecção e 
 articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade 
 contributiva, ou seja, erija em objecto ou matéria colectável de cada imposto 
 um determinado pressuposto que seja manifestação dessa capacidade e esteja 
 presente nas diversas hipóteses legais do respectivo imposto» e tem «especial 
 densidade no concernente ao(s) imposto(s) sobre o rendimento» exigindo «um 
 conceito de rendimento mais amplo do que o rendimento-produto» e implicando 
 
 «quer o princípio do rendimento líquido (...) quer o princípio do rendimento 
 disponível (...)» (Direito Fiscal, págs. 157/168).”
 
  
 
                                  Não se ignora que o Tribunal Constitucional tem 
 reconhecido a existência de liberdade de conformação do legislador neste 
 domínio, mas tem‑no feito com mais frequência quando está em causa o princípio 
 da capacidade como direito fundamental, ou seja, como direito a não pagar mais 
 imposto do que a capacidade do contribuinte consente, do que quando está em 
 causa esse princípio como medida da igualdade, ou seja, como direito a não pagar 
 mais imposto do que outrem nas mesmas condições (cf. Guilherme Waldemar 
 d’Oliveira Martins, Os Benefícios Fiscais: Sistema e Regime, Almedina, 2006, p. 
 
 30): cf. Acórdãos n.ºs 806/93 (sobre o abatimento de rendas), 308/2001 (sobre o 
 abatimento das pensões de preço de sangue), 211/2003 (sobre presunções 
 inilidíveis), 452/2003 (sobre rendimentos presumidos), 142/2004 (sobre despesas 
 dedutíveis), 601/2004 (sobre requisitos processuais para a impugnação de 
 liquidação de imposto de mais‑valias), 173/2005 e 178/2005 (sobre dedução de 
 pensões) e 278/2006 (sobre a prevalência dos valores das avaliações de imóveis).
 
                                  Mesmo na vertente de medida da igualdade, o 
 princípio da capacidade contributiva consente derrogações. Questão é que essas 
 derrogações se mostrem justificadas pela necessidade de defesa de outros valores 
 constitucionais. E é esta justificação que, a meu ver, não ocorre com a medida 
 legislativa cuja constitucionalidade se pretende ver aferida.
 
                                  Na verdade, a circunstância do domicílio fiscal 
 
 – muitas vezes (sobretudo nas áreas metropolitanas e grandes centros urbanos) 
 não coincidente com o local da fonte dos rendimentos – não é um critério 
 atendível para justificar a diferenciação de tratamento, já que, diferentemente 
 do que acontecia nos casos tratados nos acórdãos acabados de citar, nada tem a 
 ver com a definição dos rendimentos e encargos do contribuinte e do seu agregado 
 familiar.
 
                                  Por outro lado, a opção conferida aos 
 municípios é uma opção cega e sem critério. Ela beneficia – e beneficia 
 necessariamente, sem qualquer possibilidade de diferenciação – todos os 
 contribuintes fiscalmente domiciliados no município em causa, independentemente 
 dos respectivos níveis de rendimento, e sem qualquer exigência de fundamentação 
 da opção pela renúncia total ou parcial, e em que percentagem, à participação do 
 município no IRS.
 
                                  Não se vislumbra como e porquê a autonomia 
 local obriga, legitima ou justifica esta reconhecida violação do princípio da 
 capacidade contributiva. A autonomia local em nada sai beliscada se não for 
 conferida aos municípios, como o não tem sido até agora, a possibilidade de, 
 através da renúncia à participação total no IRS, determinarem um desagravamento 
 da carga fiscal, a nível da tributação do rendimento pessoal, dos contribuintes 
 fiscalmente domiciliados no município.
 
                                  Não se nega que são constitucionalmente 
 admissíveis e que são mesmo, na prática, frequentes as derrogações ao princípio 
 da capacidade contributiva, mas isso desde que a violação deste princípio seja 
 justificada pela necessidade de preservação de outros direitos ou interesses 
 constitucionalmente protegidos, o que, no caso, não se verifica.
 
  
 
                                  5. Violação dos princípios constitucionais da 
 tributação do rendimento pessoal.
 
                                  Para além da violação do princípio da 
 capacidade contributiva, princípio que atravessa todo o sistema fiscal, ocorre 
 ainda violação dos princípios constitucionais específicos da tributação do 
 rendimento pessoal.
 
                                  O “programa constitucional”, neste domínio, tem 
 como objectivo a diminuição das desigualdades, como requisitos a unicidade e a 
 progressividade e como critérios as necessidades e os rendimentos do agregado 
 familiar (artigo 104.º, n.º 1, da CRP)
 
                                  A medida ora em causa fomenta a desigualdade, 
 permitindo que cidadãos com o mesmo rendimento paguem impostos diferentes pela 
 mera circunstância de estarem fiscalmente domiciliados em municípios diversos; 
 compromete a unicidade do imposto, permitindo alterações significativas de seus 
 elementos essenciais de acordo com as áreas territoriais, o que, em termos 
 práticos, significa que se aplicarão taxas de imposto diferentes de acordo com a 
 residência fiscal; afecta a progressividade, uma vez que reduz a mesma 
 percentagem de imposto a pagar seja qual for o nível de rendimentos; e é 
 totalmente indiferente a considerações relacionadas com as necessidades e os 
 rendimentos do agregado familiar.
 
  
 
                                  6. Violação do princípio da legalidade 
 tributária.
 
                                  Como escrevi na declaração de voto de vencido 
 aposta ao Acórdão n.º 70/2004:
 
  
 
                  “A justificação actual desse princípio [do princípio da 
 legalidade tributária, consagrado no artigo 103.º, n.º 2, da CRP, enquanto 
 comete à lei que cria impostos a determinação da sua incidência e da sua taxa] 
 já não assenta na ideia de autotributação nem se esgota numa função de garantia 
 dos contribuintes, que seria satisfeita pela mera fixação, pelo Parlamento, de 
 limites máximos das taxas aplicáveis aos diversos impostos, sendo lícito ao 
 Governo fixar limites inferiores, porque daí não derivaria agravamento da 
 situação dos contribuintes. Pelo contrário, ao Parlamento incumbe a definição 
 da política fiscal, e essa definição passa não só pela determinação dos 
 impostos a cobrar, mas também pela definição dos seus elementos essenciais, 
 entre os quais a incidência e a taxa.
 
                  Considero, assim, que cabe à lei proceder à determinação da 
 taxa dos impostos e não apenas à indicação dos seus limites, tal como era 
 defensável face ao artigo 70.º da Constituição de 1933, após a revisão de 1971, 
 que reservava à lei tão‑só a determinação da taxa ou dos seus limites. A 
 Constituição de 1976, ao eliminar a menção “ou dos seus limites”, quis 
 claramente reservar à própria lei a directa determinação da taxa dos impostos. 
 Como se refere na declaração de voto do Ex.mo Cons. Monteiro Diniz, aposta ao 
 Acórdão n.º 57/95: «Por força do princípio assim consagrado [no então artigo 
 
 106.º, actual artigo 103.º, n.º 2, da CRP], a criação e determinação dos 
 elementos essenciais dos impostos não pode deixar de constar de diploma 
 legislativo (reserva de lei), o que implica a tipicidade legal, isto é, o 
 imposto há‑de ser definido na lei de forma suficientemente determinada, sem 
 margem para desenvolvimento regulamentar nem para discricionariedade 
 administrativa quanto aos seus elementos essenciais. E assim sendo, ‘não pode 
 deixar de considerar‑se como constitucionalmente excluída a possibilidade de a 
 lei conferir às autoridades administrativas (estaduais, regionais ou locais) a 
 faculdade de fixar dentro dos limites legais mais ou menos abertos, por exemplo, 
 as taxas de determinados impostos’ (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. 
 cit. [Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993], 
 pág. 458).»
 
                  Não se ignora que o Tribunal Constitucional, no citado Acórdão 
 n.º 57/95, embora com diversos votos dissidentes, aceitou como 
 constitucionalmente tolerável que a lei se tivesse cingido a determinar os 
 limites da variação possível da taxa da contribuição autárquica, «devolvendo às 
 assembleias deliberativas dos municípios a competência para, dentro das balizas 
 por ela traçadas, fixar o respectivo valor». Mas fê‑lo salientando a 
 excepcionalidade da situação, fruto da conjugação, no caso, de diversas 
 especificidades: (i) «o poder atribuído aos municípios para fixar a taxa da 
 contribuição autárquica diz respeito a um imposto de natureza municipal – não 
 apenas porque a sua receita reverte para os municípios, mas também porque o 
 valor patrimonial dos prédios é fortemente influenciado pelas obras realizadas 
 por aqueles entes públicos territoriais»; (ii) «o grau de variação fixado pela 
 lei entre o mínimo e o máximo da taxa daquele imposto é relativamente curto 
 
 (1,1% a 1,3 % do valor matricial), pelo que a margem das assembleias municipais 
 
 é bastante estreita»; (iii) «o poder conferido pela lei para modelação da taxa 
 do referido imposto, dentro dos limites rigorosos por ela definidos, tem como 
 destinatários os municípios, ou seja, as autarquias locais mais importantes 
 actualmente existentes, dotadas de personalidade jurídica e de autonomia 
 administrativa e financeira». Só por força da conjugação destes factores é que o 
 Tribunal Constitucional concluiu então pela não violação do princípio da 
 legalidade tributária, entendendo que as funções específicas desse princípio (a 
 de natureza democrática, ligada à ideia de autotributação, e a de natureza 
 garantística, sendo a anterioridade da lei condição necessária para que os 
 cidadãos saibam antecipadamente e com exactidão o que vão ser chamados a 
 pagar) não eram postas em causa «pelo facto de um órgão da administração 
 autárquica ser autorizado pela lei a definir a taxa de um imposto local, dentro 
 dos limites muito apertados fixados pelo órgão parlamentar» (sublinhado 
 acrescentado).”
 
  
 
                                  Nenhuma destas especificidades ocorre no 
 presente caso: não se trata de imposto local, mas de imposto estadual; não 
 existe necessariamente conexão entre o município que delibera a redução do 
 imposto e a ser pago e as fontes dos rendimentos sobre que este incide; são 
 muito maiores os limites de variação (duas décimas no caso do Acórdão n.º 57/95 
 face a 5 pontos percentuais no presente caso); e a lei não fixa nenhum critério 
 de orientação da tomada de deliberação pelo município, que surge, assim, 
 revestido de ilimitada arbitrariedade.
 
                                  
 
                                  7. Violação das competências constitucionais 
 das assembleias municipais.
 
                                  Resulta do princípio do pedido, consagrado no 
 artigo 51.º, n.º 5, da Lei do Tribunal Constitucional, que este Tribunal só 
 pode declarar (ou pronunciar‑se sobre) a inconstitucionalidade de normas cuja 
 apreciação tenha sido requerida, mas pode fazê‑lo com fundamentação na violação 
 de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi 
 invocada. Isto é: o Tribunal Constitucional está vinculado ao objecto do pedido, 
 mas não à causa de pedir.
 
                                  Por isso, no presente caso, apesar de, na 
 formulação do pedido, a inconstitucionalidade das normas dos n.ºs 2, 3, 5, 6 e 
 
 7 do artigo 20.º do diploma em causa surgir como consequencial da 
 inconstitucionalidade imputada directamente aos n.ºs 1 e 4 do mesmo preceito, 
 conjugados com a alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º, nada impede – 
 contrariamente ao que se entendeu no n.º 5.1. do precedente acórdão – que a 
 constitucionalidade daquelas normas seja apreciada pelo Tribunal Constitucional 
 na perspectiva de outros princípios e normas constitucionais.
 
                                  Ora, a norma do n.º 2 do artigo 20.º, se for 
 interpretada – como o seu teor literal não apenas permite, mas até sugere (e, 
 por isso, alguns dos pareceres juntos preconizam a necessidade de uma 
 interpretação, que não pode deixar de se qualificar como correctiva, no sentido 
 de se entender que o legislador quis referir‑se a assembleias municipais) – no 
 sentido de atribuir às câmaras municipais competência para deliberar qual a 
 percentagem de participação no IRS que pretendem auferir, violará a competência 
 constitucionalmente reservada às assembleias municipais, como órgãos 
 deliberativos do município (artigos 239.º, n.º 1, e 251.º da CRP).
 
                                  Mário José de Araújo Torres