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Processo n.º 1163/07
 
 1.ª Secção
 Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
 
 
 Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
 
 
 I – Relatório
 
 1. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Administrativo e 
 Fiscal de Lisboa intentou acção declarativa de condenação contra A. pedindo a 
 sua condenação no pagamento de 6.381.217$00, acrescidos de juros de mora, a 
 titulo de compensação indemnizatória fixada no artigo 170.º do Regulamento da 
 Academia Militar.
 O tribunal absolveu o réu do pedido, dizendo, no que ora importa:
 
 “Não há qualquer dúvida de que o artigo 170.° n.ºs 1 e 2 da Portaria n.° 425/91, 
 de 24/5 determina a obrigação de indemnizar dos CFO eliminados da frequência da 
 Academia. 
 Contudo, o Réu acusa este Regulamento de inconstitucionalidade por violação do 
 princípio da hierarquia dos actos normativos previsto no artigo 112.°, n.ºs 6 e 
 
 7 da Constituição da República Portuguesa. 
 Vejamos. 
 
 ‘O regulamento é sempre um acto normativo da administração sujeito à lei e 
 complementar da lei. ‘
 Significa isto que a lei tem absoluta prioridade sobre os regulamentos, 
 traduzindo o princípio da preeminência da lei. 
 O Artigo 112.º, n.° 6 da CRP proíbe expressamente os regulamentos modificativos, 
 suspensivos ou revogatórios da lei. 
 Daqui decorre que nunca um regulamento poderá alterar, substituir ou revogar uma 
 norma de grau hierárquico superior, a isso o impedindo o princípio do 
 congelamento do grau hierárquico. 
 O Regulamento que aqui nos interessa satisfaz o princípio da precedência da lei 
 uma vez que há nela referência à lei habilitante. 
 Contudo, estabeleceu, por via regulamentar, a obrigação de pagamento de uma 
 indemnização cuja previsão não vem referida, em abstracto ou em concreto, no 
 Estatuto da Academia Militar, aprovado pelo DL n.° 302/88, de 02/09. 
 Diferente seria acaso este Estatuto previsse uma sanção para o aluno da AM que 
 reprovasse dois anos, remetendo o montante concreto da indemnização para 
 regulamento. 
 Mas não é assim. 
 A previsão da indemnização decorre tão só do regulamento, violando assim o 
 princípio constitucional plasmado no artigo 112.°, n.° s 6 e 7 da CRP que define 
 a hierarquia das normas. 
 Note-se que a Portaria n.° 425/91, de 24 de Maio, que aprovou o Regulamento da 
 Academia Militar, destinava-se ao ‘desenvolvimento da orgânica e seu 
 funcionamento’ do Estatuto, sendo certo que a previsão de tão gravosa sanção 
 como aquela que foi aplicada ao Réu não se enquadra no âmbito de diploma 
 regulamentar. 
 A decisão do Senhor Chefe do Estado Maior do Exército que justifica o pedido 
 formulado nesta acção funda-se, assim, em norma regulamentar que viola o 
 disposto no artigo 112.°, n°s 6 e 7 da CRP, razão pela qual terá a acção que 
 improceder.” 
 O Exmo. Magistrado do Ministério Público interpôs então recurso obrigatório para 
 o Tribunal Constitucional.
 Notificado para alegar, o Procurador-Geral-Adjunto junto deste Tribunal concluiu 
 pelo seguinte modo:
 
 “1.º
 A norma constante do artigo 170°, n.ºs 1 e n.º 2, da Portaria n° 425/91, de 
 
 24/05, enquanto determina a obrigação de os alunos da CFO, eliminados da 
 frequência da Academia, restituírem ao Estado o valor dos benefícios 
 patrimoniais recebidos durante a infrutífera formação, na pressuposição de um 
 aproveitamento escolar que não se verificou, não traduz qualquer outorga a uma 
 norma regulamentar do poder de alterar, suspender, interpretar ou derrogar 
 normas legais anteriores, pelo que não afronta o n.º 5 do artigo 112° da 
 Constituição. 
 
 2.º
 Não se situando tal matéria, atinente à definição de vinculações patrimoniais 
 dos alunos do CFO perante a ‘Fazenda Nacional’, no âmbito de uma ‘reserva 
 material de lei’, por a mesma se incluir no elenco constitucional das matérias 
 cuja disciplina inicial tem de constar necessariamente de normas legais, o dito 
 regime jurídico não afronta o princípio constitucional da primariedade ou 
 precedência de lei, proclamado pelo n° 7 do artigo 112° da Constituição de 
 República Portuguesa. ” 
 O Recorrido não contra-alegou.
 Cumpre apreciar e decidir.
 II – Fundamentação
 A) Definição do parâmetro
 Analisada a decisão a quo resulta que se teve em conta a redacção do artigo 
 
 112.º anterior à Lei Constitucional n.º 1/2004 (que procedeu à renumeração 
 daquele preceito em função da eliminação do anterior n.º 5, respeitante às leis 
 gerais da República).
 Assim, referindo-se a decisão a quo ao n.º 6 do artigo 112.º, como proibindo 
 
 “expressamente os regulamentos modificativos, suspensivos ou revogatórios da 
 lei”, o preceito visado corresponde ao actual n.º 5. De igual modo, a referência 
 ao n.º 7, enquanto critério fundamentante do juízo de constitucionalidade 
 pode-se legitimamente pressupor como correspondendo ao actual n.º 6 do preceito 
 citado.
 Encontrando-se definido o parâmetro pela forma acabada de expor, é de apreciar a 
 existência de eventual inconstitucionalidade orgânica do artigo 170.º, n.ºs 1 e 
 
 2 da Portaria n.º 425/91, de 24 de Maio, à luz do que dispunha o artigo 112.º, 
 n.ºs 6 e 7, da Constituição da República Portuguesa, na redacção anterior à Lei 
 Constitucional n.º 1/2004.
 B) Da questão de constitucionalidade
 A decisão recorrida considerou que o disposto no artigo 170.º, n.ºs 1 e 2 da 
 Portaria n.º 425/91, na medida em que estabeleceu, por via regulamentar, a 
 obrigação de pagamento de uma indemnização cuja previsão não vem referida na lei 
 
 – Estatuto da Academia Militar, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 302/88, de 2 de 
 Setembro, violaria o normativo constante do artigo 112.º, n.ºs 6 e 7 da 
 Constituição, na redacção anterior à Lei Constitucional n.º 1/2004, tendo, 
 consequentemente, desaplicado tal preceito.
 O artigo 170.º, n.ºs 1 e 2 da Portaria n.º 425/91 tem a seguinte redacção:
 Artigo 170.º
 Indemnizações
 
 1 – Os alunos do CFO eliminados da frequência da AM ficam obrigados a indemnizar 
 a Fazenda Nacional, no montante a estabelecer pelo CEME, sob proposta do 
 comandante para cada aluno que seja eliminado.
 
 2 – A indemnização referida é calculada com base nas remunerações e abonos 
 recebidos pelos alunos durante a sua permanência na AM, incluindo os custos da 
 alimentação, do alojamento, do fardamento, das publicações de apoio de ensino e 
 outros que tenham sido suportados pelo Estado.
 A aludida portaria, tendo como normas habilitantes o artigo 6.º, n.º 1, do 
 Decreto-Lei n.º 48/86, de 13 de Março, que definiu o quadro legal regulador do 
 enquadramento dos estabelecimentos militares do ensino superior no sistema 
 universitário português, bem como o artigo 27.º, do Decreto-Lei n.º 302/88, de 2 
 de Setembro, que aprovou o Estatuto da Academia Militar, procedeu à aprovação do 
 Regulamento da Academia Militar.
 O referenciado Decreto-Lei n.º 302/88 prevê, no seu artigo 24.º, o seguinte:
 Artigo 24.º
 Condições de eliminação da frequência
 
 1 – Os alunos dos cursos de formação de oficiais são eliminados da frequência 
 por:
 a) Opção própria;
 b) Falta de aptidão militar;
 c) Motivos disciplinares;
 d) Falta de aproveitamento escolar;
 e) Incapacidade física.
 
 2 – A eliminação da frequência é da exclusiva competência do Comando das AM.
 
 3 – As condições de eliminação da frequência são pormenorizadas no Regulamento 
 da AM.
 Invoca-se na decisão recorrida que a sanção aplicada ao Recorrido não se 
 enquadra no âmbito do diploma regulamentar, extravasando-o, pelo que violaria o 
 consignado no artigo 112.º, n.ºs 6 e 7, da Constituição da República Portuguesa. 
 
 
 O artigo 112.º, n.º 6, da Constituição, na redacção considerada, estabelecia que 
 
 “Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a 
 actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, 
 modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.” Já o então n.º 7 
 previa que “[o]s regulamentos do Governo revestem a forma de decreto 
 regulamentar quando tal seja determinado pela Lei que regulamentam, bem como no 
 caso dos regulamentos independentes.”
 Na perspectiva da decisão recorrida a matéria constante do artigo 170.º, n.ºs 1 
 e 2, da aludida portaria não deteria habilitação bastante na lei que regulamenta 
 
 (“estabeleceu (…) a obrigação de pagamento de uma indemnização cuja previsão não 
 vem referida” no respectivo diploma legal habilitante”). Por outro lado, e face 
 
 à “gravosa sanção” nela prevista, não poderia tal matéria ser objecto de 
 normação primária regulamentar.
 Mas, na verdade, assim não é.
 O regulamento em causa apresenta como título legal habilitante o disposto no n.º 
 
 1, do artigo 6.º, do Decreto-Lei n.º 48/86, de 13 de Março, e o n.º 1, do artigo 
 
 27.º, do Decreto-Lei n.º 302/88, de 2 de Setembro.
 E, mais especificamente, o mencionado artigo 170.º, n.ºs 1, e 2, da Portaria n.º 
 
 425/91 – ao estabelecer a obrigação de os alunos dos Cursos de Formação e 
 Oficiais eliminados da frequência da Academia Militar indemnizarem a Fazenda 
 Nacional – encontra o suporte habilitante no já transcrito artigo 24.º, n.º 3, 
 do Decreto-Lei n.º 302/88 – (“As condições de eliminação da frequência são 
 pormenorizadas no Regulamento da Academia Militar”).
 Assim colocada a questão, é admissível considerar que a portaria de que vimos 
 curando é um mero regulamento de execução, assim o sendo também, e, 
 consequentemente, a norma constante do artigo 170.º, na medida em que seja de 
 considerar condições de eliminação, a “pormenorizar” em regulamento, o 
 circunstancialismo atinente às consequências relativas a essa eliminação, como 
 seja o dever de restituir ao Estado pelas despesas em que incorreu com a 
 formação do aluno que, pelos motivos elencados, vem a ser eliminado da 
 frequência da AM.
 Nessas circunstâncias, o Regulamento em apreço detém habilitação legal bastante. 
 Será de concluir, como o faz a decisão recorrida, que a norma do artigo 170.º, 
 n.ºs 1, e 2, de tal regulamento disciplina matéria reservada à lei (e, portanto, 
 insusceptível de tratamento primário em norma regulamentar)? Uma resposta 
 afirmativa a esta questão implicaria a conclusão de que a norma que vimos 
 apreciando se encontra ferida de inconstitucionalidade orgânica por violação do 
 princípio da precedência de lei, desrespeitando a “reserva legal material” 
 enquanto correspondendo a um espaço que apenas admite, relativamente às matérias 
 nele compreendidas, regulamentos estritamente executivos e instrumentais (cfr. 
 Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 
 
 3.ª Edição revista, Coimbra Editora, 1993, p. 515).
 Escreveu-se no Acórdão n.º 74/84 deste Tribunal (publicado nos Acórdãos do 
 Tribunal Constitucional, vol. 4.º, pág. 54), citando Afonso Queiró (Teoria dos 
 Regulamentos, in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXVII, p. 17), o 
 seguinte:
 
 “A reserva de Lei constitui […] limite do poder regulamentar: a Administração 
 não poderá emitir regulamentos (independentes ou autónomos) no domínio dessa 
 reserva. Os únicos regulamentos que nas matérias reservadas à lei se admitem são 
 os regulamentos de execução (…)”.
 No dizer de Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 
 
 7.ª ed., p. 842), “é um princípio de grande relevância no caso de reenvios 
 normativos da lei para a administração no sentido de esta executar ou 
 complementar os seus preceitos. Sempre que a lei autoriza ou habilita a 
 administração a complementar ou executar os seus preceitos, isso não significa a 
 elevação dos regulamentos ao escalão legislativo, pois tal é expressamente 
 proibido pelo princípio da tipicidade das leis (cfr. artigo 112.º, n.º6).”
 
  Atentas as matérias sujeitas a reserva legislativa, seja a referente à 
 Assembleia da República (absoluta e relativa), seja a referente ao Governo, 
 verifica-se, no entanto, que das mesmas não consta a definição das condições de 
 eliminação da frequência da AM, nomeadamente a obrigação de proceder ao 
 pagamento de uma indemnização ao Estado que mais não é do que o ressarcimento 
 pelas despesas tida com a frequência do aluno. Não se trata, assim, ao invés do 
 que sustenta a decisão recorrida, de uma gravosa sanção, e sim de um dever de 
 restituir. 
 O montante a indemnizar, calculado por referência às “remunerações e abonos 
 percebidos pelos alunos durante a sua permanência na AM, incluindo os custos da 
 alimentação, do alojamento, do fardamento, das publicações de apoio de ensino e 
 outros que tenham sido suportados pelo Estado”, atende às despesas que o Estado 
 assumiu por conta da expectativa de uma frequência com sucesso da AM seguida 
 pela incorporação na respectiva carreira. Logrando-se esta expectativa, 
 entende-se a consagração do dever de restituir tais montantes.
 Não se verifica, portanto, intromissão regulamentar na reserva material de lei, 
 constituindo o Regulamento da Academia Militar, na parte respeitante ao artigo 
 
 170.º, n.ºs 1 e 2, diploma estritamente executivo e instrumental das respectivas 
 normas legais habilitantes.
 
  E, ainda que se entendesse que “nas condições de eliminação” não se incluem 
 necessariamente as consequências relativas a essa eliminação, ainda assim, o 
 legislador regulamentar não estava impedido de, complementando o regime, de o 
 estabelecer no diploma regulamentar em análise, uma vez que não incluía matéria 
 da reserva de lei.
 Assim sendo, contrariamente ao decidido, o regime jurídico referenciado não 
 afronta o artigo 112.º, n.ºs 6 e 7 da Constituição da República Portuguesa, na 
 numeração resultante da Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro.
 III – Decisão
 Nestes termos, acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional, em dar 
 provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida no que concerne ao juízo de 
 inconstitucionalidade formulado.
 Sem custas.
 Lisboa, 25 de Setembro de 2008
 José Borges Soeiro
 Maria João Antunes
 Carlos Pamplona de Oliveira
 Gil Galvão
 Rui Manuel Moura Ramos