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Processo n.º 641/07
 
 3ª Secção
 Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
 
 
 Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
 
 
 I. Relatório 
 
 
 
 1. O magistrado do Ministério Público deduziu acusação contra A. e B. pela 
 prática de factos que integram crime de detenção ilícita de material de guerra, 
 previsto e punido, no que se refere ao primeiro arguido, pelos artigos 82° e 
 
 83°, n° 1, alínea b), do Código de Justiça Militar, com referência ao artigo 7° 
 do mesmo Código e 202° do Código Penal, e, no que respeita ao segundo arguido, 
 pelos artigos 82° e 83°, n° 2, alínea a), do Código de Justiça Militar, com 
 referência ao artigo 7° do mesmo Código e 202°, alínea b), do Código Penal. 
 
  
 A acusação refere-se à prática de factos que se encontram descritos do seguinte 
 modo: 
 
  
 No dia 6 de Dezembro de 2005 foi encontrado na posse do arguido, A., no Campo de 
 Santa Clara, em Lisboa, e no interior da sua residência, sita Rua …, n° .., em 
 Almeirim, o seguinte:
 No Campo de Santa Clara:
 
 - 2 (dois) Sabres Baioneta para Espingarda automática “G-3”, no valor de 37,78 
 euros;
 
 - 7(sete) Sabres de vários modelos para “MAUSER”, no valor de 6 4,55 euros;
 
 - 3 (três) Bússolas militares, sendo 1 MARK 1 e 2 SILVA - Ranger, no valor de 6 
 
 679,80 euros;
 
 - 1 (um) Binóculos militares “Oficine Gauleo”, sem valor determinado;
 Na sua residência:
 
 - 2 (dois) Sabres Baioneta para Espingarda automática “G-3”, no valor de 37,78 
 euros;
 
 - 11 (onze) Sabres de vários modelos para “MAUSEK” , no valor de 7,15 euros;
 
  tudo valor global de 767,06 euros.
 No dia 7 de Dezembro de 2005, na Calçada … nº …, em Lisboa, foi encontrado na 
 posse do arguido, B., o seguinte:
 
 - 11 (onze) fustes (Guarda-mão) para Espingarda automática “G -3”, no valor de 
 
 0,11;
 
 -11 (onze) punhos de Espingarda automática “G-3” no valor de 0,11 euros;
 
 - 1 (uma) coronha madeira para Espingarda automática “G-3”, sem valor 
 determinado 
 
 - 7 (sete) Sabres Baioneta para arma “BRAUNBESS”, sem valor determinado;
 
 - 7 (sete) Sabres Baioneta para “FBP”, no valor de 35 euros,
 
 - 1 (um) Sabre Baioneta para “AK 47” e 2 (dois) de arma desconhecida, no valor 
 de 15 euros;
 
 - 40 (quarenta) Sabres Baioneta para Espingarda automática “G-3”, no valor de 
 
 755,60 euros;
 
 - 31 (trinta e um) carregadores para Espingarda automática “G-3 “, no valor de 
 
 77,19 euros;
 
 - 23 (vinte e três) carregadores para Espingarda automática “G-3”, no valor de 
 
 57,27 euros;
 
 - 5 (cinco) carregadores para Metralhadora “UZI”, sem valor determinado;
 
 - 2 (dois) carregadores para “Walther” , no valor de 54,26 euros;
 
 - 1 (um) carregador para “EBP”, sem valor determinado;
 
 - 7 (sete) fitas de munições, no valor de 17.457,93 euros;
 
 - 3 (três) carregadores curvos para arma desconhecida, sem valor determinado;
 
 - 1 (uma) Caixa com 480 parafusos tipo 1, 222 parafusos tipo 2, 238 parafusos 
 tipo 3, 29 cavilhas tipo 4, 11 fitas com 50 elos cada e 205 elos, relativos à 
 Espingarda Automática “G-3”, no valor global de 613,91 euros;
 
 - 1 (um) Tapa-chamas para pistola automática ‘BREDA”, sem valor terminado; 
 
 - 4 (quarenta e três) Tapa-chamas para Espingarda automática “G-3”, no valor de 
 
 9,89 euros; 
 
 - 4 (quatro) aparelhos de pontaria para Morteiro, sem valor determinado;
 
 - 5 (cinco) aparelhos de pontaria, sem valor determinado;
 
 - 2 (duas) ; granadas sem valor determinado;
 
 - 22 (vinte e duas) munições 12 mm, sem valor determinado;
 
 - 21 (vinte e uma) munições 20 mm, sem valor determinado;
 
 - 1 (um) conjunto para “G-3” constituído por culatra, cabeça da culatra, 
 percutor e respectiva mola do Artº 7, sem valor determinado;
 
 - 1 (uma) culatra para FMP 6.74 mm, no valor de 1 euro; 
 
 - 1 (um) percutor 11.73, no valor de 17,95 euros; 
 
 - 1 (uma) caixa com quantidade indiscriminada de elos para Metralhadora 
 
 “BROWNING”, sem valor determinado;
 
 - 1 (um) colete anti-bala e 1 placa de trauma, no valor de 1000 euros; 
 
 - 76 (setenta e seis) bússolas militares, no valor de 15.960 euros;
 tudo no valor global de 36.085,28 euros.
 Os arguidos agiram com vontade livre e consciente, bem sabendo que não podiam 
 ter consigo os referidos objectos, por serem material de guerra, não terem 
 autorização legal para tanto, estando cientes de que a sua detenção constituiu, 
 em abstracto, um risco para a integridade física e para a vida de terceiros.
 Sabiam que a sua conduta era proibida e criminalmente punida”
 
  
 Remetidos os autos à 1ª Vara Criminal de Lisboa, o juiz, com invocação do 
 disposto no artigo 311°, n.º 2, alínea a), e n.º 3,  do Código de Processo 
 Penal, decidiu não aceitar a acusação nos seguintes termos:
 
  
 A) Não receber a acusação deduzida pelo Ministério Público contra os arguidos A. 
 e B. porquanto a mesma se revela manifestamente infundada, na medida em que faz 
 uma interpretação do artigo 82° do CJM desajustada com o disposto no artigo 18º, 
 n° 2, da Constituição Portuguesa, incriminando a posse de material de guerra 
 cuja perigosidade não afecta minimamente o bem jurídico tutelado pelo ilícito em 
 causa;
 B) E também porque se funda no artigo 82° do CJM, preceito legal que deverá 
 ter-se como inconstitucional, com todas as consequências legais, por violador do 
 disposto no artigo 18°, n.º 2, da Constituição Portuguesa na medida em que as 
 penas previstas para as condutas tipificadas nessa norma, mostram-se 
 desajustadas, e desproporcionadas à culpa do agente do crime, atento o bem 
 jurídico tutelado pelo ilícito em causa.
 
  
 Tendo-se operado, por essa forma, a desaplicação da referida norma do artigo 82° 
 do CJM, o Ministério Público veio interpôr recurso obrigatório para o Tribunal 
 Constitucional, formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:
 
  
 
 1. O crime do artigo 82º do Código de Justiça Militar apenas admite a forma 
 dolosa e visa a tutela de bens jurídicos que têm a ver com a capacidade militar 
 e a defesa nacional, mas também com o património das Forças Armadas e 
 equiparadas, conforme resulta da sua inserção na secção IV, do capitulo V, do 
 titulo II do referido Código.
 
 2. Qualquer acção voluntária que, reunindo os demais elementos constitutivos 
 tenha por objecto qualquer do material referido no artigo 7º do Código de 
 Justiça Militar, está apta a preencher o tipo legal definido no artigo 82º do 
 mesmo Código e a violar os bens jurídicos tutelados pela incriminação.
 
 3. O legislador ordinário goza de suficiente liberdade para criminalizar certos 
 e determinados comportamentos e com a severidade que entender por conveniente, 
 apenas merecendo censura do ponto de vista constitucional se o fizer de forma 
 manifestamente excessiva e arbitrária.
 
 4. Não assume tal forma, não violando por isso a norma do artigo 18º, nº 2, da 
 Constituição, ou qualquer outra, a norma do artigo 82º do Código de Justiça 
 Militar, tal como foi desaplicada na decisão recorrida.
 
  
 Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
 
  
 II. Fundamentação
 
  
 
  
 
 2. Em causa está, no presente processo, a eventual inconstitucionalidade da 
 norma do artigo 82º do Código de Justiça Militar, por violação do artigo 18º, nº 
 
 2, da Constituição da República, numa dupla vertente: quando interpretada no 
 sentido de que  permite  incriminar o agente por detenção de material de guerra 
 quando a perigosidade desse material não afecta minimamente o bem jurídico 
 tutelado; e no que se refere à fixação da respectiva moldura penal, no ponto em 
 que estabelece penas desajustadas e desproporcionadas à culpa do agente do 
 crime, atento ainda o bem jurídico tutelado.
 
  
 O referido preceito, sob a epígrafe «Comércio ilícito de material de guerra», 
 dispõe o seguinte:
 
  
 Aquele que importar, fabricar, guardar, comprar, vender ou puser à venda, ceder 
 ou adquirir a qualquer título, transportar, distribuir, detiver, usar ou trouxer 
 consigo material de guerra, conhecendo essa qualidade e sem que para tal esteja 
 autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da 
 autoridade competente, é punido com as penas previstas no artigo seguinte.
 
  
 Por sua vez, as penas aplicáveis são, por efeito da remissão constante da parte 
 final da norma, as que se encontram previstas no subsequente artigo 83º para o 
 crime de furto de material de guerra e que estão fixadas em penas de  prisão de 
 
 1 a 4 anos quando a coisa furtada for de valor  diminuto,  de 2 a 8 anos quando 
 a coisa furtada for de valor elevado, e de 4 a 10 anos quando a coisa furtada 
 for de valor consideravelmente elevado ou tiver sido subtraída penetrando o 
 agente em edifício ou em outro local fechado, por meio de arrombamento, 
 escalamento ou chaves falsas ou tendo-se ele introduzido furtivamente ou 
 escondido com a intenção de furtar.
 
  
 
 É, por outro lado, o artigo 7º do CJM que, para efeito do que se dispõe nesse 
 Código, discrimina o que se entende por material de guerra, norma que, pelo 
 relevo de que se reveste para a matéria em discussão, se justifica também 
 transcrever:
 
  
 Para efeito do presente Código, considera-se material de guerra:
 a)   Armas de fogo portáteis e automáticas, tais como espingardas, carabinas, 
 revólveres, pistolas, pistolas-metralhadoras e metralhadoras, com excepção das 
 armas de defesa, caça, precisão e recreio, salvo se pertencentes ou afectas às 
 Forças Armadas ou outras forças militares;
 b)  Material de artilharia, designadamente:
 i) Canhões, obuses, morteiros, peças de artilharia, armas anticarro, 
 lança-foguetões, lança-chamas, canhões sem recuo; 
 ii) Material militar para lançamento de fumo e gases;
 c)   Munições destinadas às armas referidas nas alíneas anteriores;
 d)  Bombas, torpedos, granadas, incluindo as fumígeras e as submarinas, potes de 
 fumo, foguetes, minas, engenhos guiados e bombas incendiárias; 
 e)   Aparelhos e dispositivos para uso militar especialmente concebidos para a 
 manutenção, activação, despoletagem, detonação ou detecção dos artigos 
 constantes da alínea anterior; 
 f)   Material de direcção de tiro para uso militar, designadamente:
 i) Calculadores de tiro e aparelhos de pontaria em infravermelhos e outro 
 material para pontaria nocturna;
 ii) Telémetros, indicadores de posição e altímetros;
 iii) Dispositivos de observação electrónicos e giroscópios, ópticos e
 acústicos;
 iv) Visores de pontaria, alças para canhão e periscópios para o material citado 
 no presente artigo; 
 g)   Veículos especialmente concebidos para uso militar e em especial:
 i) Carros de combate;
 ii) Veículos de tipo militar, couraçados ou blindados, incluindo os anfíbios;
 iii) Trens blindados;
 iv) Veículos militares com meia lagarta;
 v) Veículos militares para reparação dos carros de combate;
 vi) Reboques especialmente concebidos para o transporte das munições referidas 
 nas alíneas c) e d); 
 h)   Agentes tóxicos ou radioactivos, designadamente:
 i) Agentes tóxicos biológicos ou químicos e radioactivos adaptados para 
 produzir, em caso de guerra, efeitos destrutivos nas pessoas, nos animais ou nas 
 colheitas;
 ii) Material militar para a propagação, detecção e identificação das substâncias 
 mencionadas na subalínea anterior;
 iii) Material de protecção contra as substâncias mencionadas na subalínea i);
 i)    Pólvoras, explosivos e agentes de propulsão líquidos ou sólidos, 
 nomeadamente: 
 i) Pólvoras e agentes de propulsão líquidos ou sólidos especialmente concebidos 
 e fabricados para o material mencionado nas alíneas c), d) e na alínea anterior;
 ii) Explosivos militares;
 iii) Composições incendiárias e congelantes para uso militar;
 j)   Navios de guerra de qualquer tipo e seus equipamentos especializados, tais 
 como:
 i) Sistemas de armas e sensores;
 ii) Equipamentos especialmente concebidos para o lançamento e contramedidas de 
 minas;
 iii) Redes submarinas;
 iv) Material de mergulho;
 l)    Aeronaves militares de qualquer tipo e todos os seus equipamentos e 
 sistemas de armas;
 m)  Equipamentos para as funções militares de comando, controlo, comunicações e 
 informações;
 n)   Aparelhos de observação e registo de imagens especialmente concebidos para 
 uso militar;
 o)  Equipamentos para estudos e levantamentos hidrográficos, oceanográficos e 
 cartográficos de interesse militar;
 p) Partes e peças especializadas do material constante do presente artigo, desde 
 que tenham carácter militar;
 q)  Máquinas, equipamento e ferramentas exclusivamente concebidas para o estudo, 
 fabrico, ensaio e controlo das armas, munições e engenhos para uso 
 exclusivamente militar constantes do presente artigo;
 r)   Qualquer outro bem pertencente às Forças Armadas ou outras forças militares 
 cuja falta cause comprovados prejuízos à operacionalidade dos meios.
 
  
 No caso vertente, a decisão recorrida ponderou que o tipo legal do artigo 82° do 
 CJM constitui um crime de natureza estritamente militar que visa tutelar o 
 perigo inerente à diminuição da capacidade militar e de defesa nacional, pelo 
 que só as condutas ilícitas que fossem adequadas, segundo um princípio de 
 proporcionalidade, a causar um dano ao bem jurídico tutelado é que poderiam 
 integrar a norma incriminadora. E, nesse sentido, uma interpretação que leve a 
 incluir no tipo de crime o comércio de objectos militares  que, em si, não sejam 
 susceptíveis de afectar directa ou indirectamente os interesses que são 
 protegidos pela norma, mostrar-se-ia inconstitucional, por violação do disposto 
 no artigo 18°, n° 2, da Constituição.
 
  
 Numa segunda linha de argumentação, o juiz igualmente sustenta que a moldura 
 penal prevista para o mencionado crime, encontrando-se definida em função do 
 valor de mercado dos objectos, por efeito da remissão feita para as situações 
 aplicáveis ao furto de material de guerra, é também desconforme com o princípio 
 que decorre do  artigo 18°, n° 2, da Constituição, na medida em que a pena não é 
 referenciada ao bem jurídico tutelado mas a uma realidade diversa, e não é, por 
 isso, ajustada à culpa do agente do crime.
 
  
 
 É nesta dupla ordem de considerações que repousa a recusa de aplicação de norma 
 com a consequente rejeição da acusação.
 
  
 
 3. Deve começar por afirmar-se que não cabe ao Tribunal Constitucional verificar 
 a correcção da qualificação jurídica que conduziu à subsunção dos factos 
 indiciários que são imputados aos arguidos no tipo legal do artigo 82° do CJM, 
 pelo que a única questão que cabe dilucidar, no âmbito do presente recurso, é 
 apenas a de se saber se a norma em causa, na interpretação dada pelo tribunal 
 recorrido, padece do invocado vício de inconstitucionalidade.
 
  
 O mencionado artigo 18º, n.º 2, da Lei Fundamental determina que a « [A] lei só 
 pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente 
 previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para 
 salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
 
  
 
 À luz deste enunciado, entende-se serem pressupostos materiais de legitimidade 
 das restrições ao exercício de direitos, liberdades e garantias, a exigência de 
 previsão constitucional expressa da respectiva restrição, a vinculação da 
 restrição à necessidade de salvaguardar um outro direito, liberdade e garantia, 
 e, bem assim, a  subordinação das leis restritivas a um princípio da 
 proporcionalidade, o que desde logo significa, num sentido estrito, que os meios 
 legais restritivos devem situar-se numa justa medida e não poderão ser 
 desproporcionados ou excessivos em relação aos fins que se pretende obter (Gomes 
 Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 
 Coimbra, 4ª edição, págs. 391-393).
 
  
 Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem reiteradamente reconhecido que a 
 Constituição acolhe, nesse artigo 18º, n.º 2, os princípios da necessidade e da 
 proporcionalidade das penas e das medidas de segurança, aceitando o princípio – 
 que constitui um afloramento do Estado de Direito democrático – de que as 
 sanções penais, por serem as que, em geral, maiores sacrifícios impõem aos 
 direitos fundamentais, devem ser evitadas, na existência e na medida, sempre que 
 não se demonstre a sua necessidade (cfr. o acórdão n° 494/03 e a abundante 
 jurisprudência nele citada)
 
  
 A esse propósito, o Tribunal tem sublinhado que « [...] O direito penal, 
 enquanto direito de protecção, cumpre uma função de ultima ratio. Só se 
 justifica, por isso, que intervenha para proteger bens jurídicos – e se não for 
 possível o recurso a outras medidas de política social, igualmente eficazes, mas 
 menos violentas do que as sanções criminais. É, assim, um direito enformado pelo 
 princípio da fragmentariedade, pois que há-de limitar-se à defesa das 
 perturbações graves da ordem social e à protecção das condições sociais 
 indispensáveis ao viver comunitário. E enformado, bem assim, pelo princípio da 
 subsidiariedade, já que, dentro da panóplia de medidas legislativas para 
 protecção e defesa dos bens jurídicos, as sanções penais hão-de constituir 
 sempre o último recurso» (acórdão n° 108/99). Poderá assim concluir-se como se 
 ponderou também no acórdão 99/02, que “ [...] as medidas penais só são 
 constitucionalmente admissíveis quando sejam necessárias, adequadas e 
 proporcionadas à protecção de determinado direito ou interesse 
 constitucionalmente protegido, e só serão constitucionalmente exigíveis quando 
 se trate de proteger um direito ou bem constitucional de primeira importância e 
 essa protecção não possa ser suficiente e adequadamente garantida de outro 
 modo”.
 
  
 Não pode perder-se de vista, em todo o caso, como também tem sido frequentemente 
 afirmado, que o juízo de constitucionalidade se não pode confundir com um juízo 
 sobre o mérito da lei, pelo que não cabe ao Tribunal Constitucional 
 substituir-se ao legislador na determinação das opções políticas sobre a 
 necessidade ou a conveniência na criminalização de certos comportamentos” 
 
 (assim, designadamente, o Acórdão n.º 99/02).
 
  
 Como observa Sousa e Brito (A lei penal na Constituição, Estudos sobre a 
 Constituição, 2º volume, pág. 218), é “evidente que o juízo sobre a necessidade 
 do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador, ao qual se 
 há-de reconhecer, também neste matéria, um largo âmbito de discricionariedade. A 
 limitação da liberdade de conformação legislativa, nestes casos, só pode, pois, 
 ocorrer quando a punição criminal se apresente como manifestamente excessiva”.
 
  
 Em suma, aceitando-se que, «também em matéria de criminalização, o legislador 
 não beneficia de uma margem de liberdade irrestrita e absoluta, devendo 
 manter-se dentro das balizas que lhe são traçadas pela Constituição», o certo 
 que, «no controlo do respeito pelo legislador dessa ampla margem de liberdade de 
 conformação, com fundamento em violação do princípio da proporcionalidade, o 
 Tribunal Constitucional só deve proceder à censura das opções legislativas 
 manifestamente arbitrárias ou excessivas» (assim, o citado acórdão nº 99/02, na 
 linha de uma firme orientação jurisprudencial).
 
  
 
 4. Revertendo ao caso concreto, importa notar que a decisão recorrida questiona, 
 em primeiro lugar, a qualificação como material de guerra, para efeito da norma 
 incriminadora do artigo 82º do CJM, de objectos militares que, em si, não 
 apresentam qualquer perigosidade para os interesses da capacidade militar e da 
 defesa nacional, e, assim, não são passíveis de porem em causa o bem jurídico 
 tutelado pelo tipo legal de crime.
 
  
 E seria esse o caso dos autos, visto que a acusação se refere à posse, pelos 
 arguidos, de material que aparentemente seria inócuo do ponto de vista do seu 
 potencial risco para o exercício da função militar.
 
  
 Sabe-se que o punctum saliens dos crimes estritamente militares se encontra na 
 natureza dos bens jurídicos violados, os quais hão-de ser, naturalmente, bens 
 jurídicos militares. Essa ilação, que o Tribunal Constitucional já retirara em 
 relação aos crimes essencialmente militares (acórdão nº 271/97, publicado no 
 Diário da República, I Série-A, de 15 de Maio de 1997), surge agora mais 
 reforçada com o recurso à figura do crime de natureza estritamente militar, com 
 assento no texto constitucional (artigo 213º da CRP), e que apresenta um cunho 
 mais restritivo relativamente àquele anterior conceito. Crimes essencialmente 
 militares eram aqueles que afectavam bens ou interesses que fossem, no 
 essencial, militares, permitindo abranger os factos que violavam algum dever 
 militar ou ofendiam a segurança e disciplina das Forças Armadas, ainda que não 
 se tratasse de dever exclusivamente militar ou de uma ofensa directa desses 
 valores; o crime estritamente militar implica que os bens ou interesses 
 protegidos pelo tipo legal sejam exclusivamente ou integralmente militares 
 
 (Vitalino Canas/Ana Luisa Pinto/Alexandra Leitão, Código de Justiça Militar 
 Anotado, Coimbra, 2004, págs. 16-17).
 O direito penal militar – como sublinha Figueiredo Dias – deverá ser assim 
 entendido como um direito de tutela de bens jurídicos militares, isto é, daquele 
 conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam à função militar 
 específica. E nessa medida, como acrescenta o mesmo autor, o «direito penal 
 militar não poderá constituir um outro direito penal, mas deverá limitar-se a 
 ser um direito penal comum, só especializado pelos específicos bens jurídicos 
 que lhe cumpre proteger e pela específica àrea de tutela em que os princípios da 
 dignidade e da necessidade penais têm de actuar» (Justiça Militar, in «Colóquio 
 Parlamentar Promovido pela Comissão de Defesa Nacional», edição da Assembleia da 
 República, 1995, pág. 26).
 O artigo 1º, n.º 2, do CJM limita-se a fornecer um conceito meramente formal de 
 crime estritamente militar, definindo-o como «o facto típico, ilícito e culposo 
 lesivo dos interesses militares da defesa nacional e dos demais que a 
 Constituição comete às Forças Armadas e como tal qualificado por lei».
 
  
 De entre os crimes qualificados como estritamente militares encontram-se, no 
 Capítulo V da Parte Especial, os «crimes contra a capacidade militar e a defesa 
 nacional», em que se inserem, na secção IV, o «extravio, furto e roubo de 
 material de guerra». Aqui se inclui, na norma do artigo 82º, já anteriormente 
 transcrita, o «comércio ilícito de material de guerra», que abarca a importação, 
 fabrico, guarda, compra, venda, cedência ou aquisição, a qualquer título, de 
 material de guerra, bem como o transporte, distribuição ou posse desse material.
 
  
 O já mencionado artigo 7º do CJM explicita o que se entende por material de 
 guerra, para efeitos do disposto nesse Código, e, portanto, também, para efeito 
 da incriminação prevista no artigo 82º, incluindo nesse elenco para além de uma 
 grande diversidade de equipamentos, aparelhos e dispositivos para uso militar 
 
 (aí se compreendendo armas de fogo, material de artilharia, munições, aeronaves, 
 navios e veículos especialmente concebidos para uso militar), as partes e peças 
 especializadas de todo o material discriminado nesse preceito «desde que tenham 
 carácter militar» (alínea p)) e, bem assim, «qualquer outro bem pertencente às 
 Forças Armadas ou outras forças militares cuja falta cause comprovados prejuízos 
 
 à operacionalidade dos meios» (alínea r)).
 Embora a acusação do Ministério Público se tenha limitado a efectuar uma 
 remissão genérica para o disposto no artigo 7º do CJM, para efeito de integração 
 dos factos na norma incriminadora do artigo 82º, sem especificar a definição 
 legal em que se poderá enquadrar cada um dos objectos que foram encontrados na 
 posse dos arguidos, poderá subentender-se a consideração de que se tratava, na 
 generalidade dos casos, de componentes de armas de fogo, que, como tal, seriam 
 subsumíveis na cláusula geral da alínea p) do artigo 7º.
 
  
 Não se vê, em todo o caso, que a posse ou detenção, por particulares, fora das 
 condições legais e sem prévia autorização da entidade competente, de partes e 
 peças especializadas de material de guerra, se encontre desprovida de relevo 
 jurídico penal, do ponto de vista do bem jurídico que é tutelado pela norma do 
 artigo 82º do CJM.
 
  
 Basta notar que o bem jurídico protegido, no crime de comércio ilícito de 
 material de guerra, não se reduz apenas a um potencial perigo que possa resultar 
 para a integridade do território ou a segurança das populações da detenção 
 incontrolada de material de guerra por parte de pessoas que não integrem o corpo 
 hierarquizado das Forças Armadas; mas reporta-se também à diminuição da 
 capacidade militar, com a consequente perda de operacionalidade, que deriva da 
 apropriação por terceiros de material que deve estar exclusivamente afecto aos 
 fins de defesa nacional. Assim se compreende que o crime de comércio ilícito de 
 material de guerra se encontre sistematizado na rubrica dos «crimes contra a 
 capacidade militar e a defesa nacional» e, especialmente, nos crimes de 
 
 «extravio, furto e roubo de material de guerra», a par de outros tipos legais em 
 que se pune o desvio ou a apropriação indevida de material pertencente às Forças 
 Armadas.
 
  
 
 É nessa linha de entendimento que poderá explicar-se que a lei considere como 
 material de guerra, para efeitos do disposto no Código, quaisquer bens 
 pertencentes às Forças Armadas ou outras forças militares «cuja falta cause 
 comprovados prejuízos à operacionalidade dos meios» (artigo 7º, alínea r)), o 
 que vem demonstrar que a prática do crime de comércio ilícito de material de 
 guerra não está necessariamente dependente da qualidade específica ou potencial 
 perigosidade dos objectos.
 
  
 Neste enquadramento sistemático, poderá ainda dizer-se que a punição do comércio 
 ilícito de material de guerra surge como também uma forma indirecta de prevenir 
 as actuações negligentes que conduzam ao desencaminhamento de material de guerra 
 das instalações militares, bem como as situações de subtracção fraudulenta ou 
 roubo de material de guerra.
 
  
 Seja como for, mesmo a admitir-se que estamos apenas perante um crime de perigo 
 abstracto – tal como preconiza a decisão recorrida –, em que o está em causa é a 
 mera probabilidade de um dano por efeito da existência de um comportamento 
 potencialmente perigoso (a detenção de material de guerra), a  questão da 
 eficácia ou idoneidade dos objectos constituiria um elemento do tipo legal de 
 crime, de tal modo que se essa qualidade não existir, em concreto, não ocorre 
 também o perigo que constitui o motivo da punição (neste sentido, quanto ao caso 
 paralelo do artigo 275º do Código Penal, Paula Ribeiro Faria, Comentário 
 Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra, 1999, pág. 894).
 
  
 Então estaríamos, não perante um problema de constitucionalidade mas de mera 
 qualificação jurídica, competindo ao tribunal de julgamento, no uso dos poderes 
 que conferem o artigo 311º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, não 
 aceitar a acusação com fundamento na indevida subsunção jurídica dos factos na 
 norma.
 
  
 Em qualquer caso, como se deixou já esclarecido, a opção legislativa quanto à 
 incriminação das condutas tipificadas no citado artigo 82º só poderia 
 considerar-se constitucionalmente ilegítima quando pudesse apresentar-se como 
 manifestamente excessiva ou desproporcionada, sendo que fora dessa situação 
 limite haverá sempre que respeitar a liberdade de conformação do legislador, 
 pois é a ele que a Constituição confia, nos termos do artigo 165º, n.º 1, alínea 
 c), a tarefa de «definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos 
 pressupostos». Não estando, de nenhum modo, demonstrada a manifesta 
 desproporcionalidade da previsão normativa, também por esta razão não poderia 
 considerar-se como violado o disposto no artigo 18º, n.º 2, da Constituição.
 
  
 Por todo o exposto, não se vê motivo para declarar a inconstitucionalidade da 
 norma do artigo 82º do CJM com o invocado fundamento da violação do princípio da 
 proporcionalidade.   
 
  
 
 5. Cabe ainda analisar uma segunda linha de argumentação segundo  a qual a norma 
 do mesmo artigo 82° deve ter-se como inconstitucional, por violação do disposto 
 no artigo 18°, n.º 2, da Constituição da República, na medida em que as penas 
 previstas para as condutas nela tipificadas se mostram desajustadas e 
 desproporcionadas à culpa do agente do crime, atento o bem jurídico tutelado 
 pelo ilícito em causa. 
 
  
 Neste ponto, a decisão recorrida assenta na ideia de que a norma do artigo 82º 
 do CJM, ao punir um crime de perigo abstracto através da remissão para o artigo 
 subsequente, que se refere ao crime de furto de material de guerra, está a 
 utilizar uma moldura penal que se reporta a um crime contra o património – em 
 que o bem jurídico tutelado é a propriedade – e que não constitui a estatuição 
 ajustada para um tipo legal que pretende proteger um outro bem jurídico, que 
 será o da potencial perigosidade para afectar a capacidade militar e a defesa 
 nacional. Deste modo, a medida da pena legalmente fixada não seria a adequada à 
 culpa do agente.
 
  
 Todas as precedentes considerações já expendidas a propósito da primeira questão 
 de constitucionalidade permitem desde logo afastar semelhante entendimento.
 
  
 Na verdade, o crime de comércio ilícito de material de guerra insere-se no 
 Capitulo V da Parte Especial do CJM, atinente aos «crimes contra a capacidade 
 militar e a defesa nacional», numa secção referente a «extravio, furto e roubo 
 de material de guerra» (artigos 81º a 84º). Essa inserção sistemática coloca o 
 crime de comércio ilícito de material de guerra no elenco dos ilícitos penais 
 que são susceptíveis de pôr em causa a operacionalidade da função militar, assim 
 se compreendendo que o tipo legal surja interligado a outras normas 
 incriminadoras que caracterizam tradicionalmente os crimes contra o património. 
 Por outro lado, não deixa de ser relevante, no plano de uma interpretação 
 teleológica do preceito, que no âmbito dos «crimes contra a capacidade militar e 
 a defesa nacional» se posicionem também – ao lado dos crimes contra o património 
 militar, em que se enquadra o comércio ilícito de material de guerra –, os 
 crimes de dano em bens militares ou de interesse militar (secção III – artigos 
 
 79º e 80º), também estes tidos como ilícitos que visam proteger o património.
 
  
 Neste contexto legal, tudo indica que o legislador configurou os «crimes contra 
 a capacidade militar e a defesa nacional», pelo menos numa das suas componentes, 
 como sendo crimes contra a propriedade militar, aí inserindo quer o dano quer a 
 apropriação ilícita de bens militares.
 
  
 Não causa estranheza, neste plano de consideração, que a medida das penas seja 
 definida em função do prejuízo patrimonial que constitua a consequência ou o 
 efeito normal da actuação ilícita, referenciando-se a moldura penal ao valor da 
 coisa furtada.
 
  
 A opção legislativa de indexar as penas do crime de comércio ilícito de material 
 de guerra ao previsto para o crime de furto tem neste plano toda a 
 razoabilidade, já que se trata de punir situações que podem elas próprias 
 derivar da apropriação indevida de material de guerra e em que, por outro lado, 
 se tem em vista censurar criminalmente os efeitos negativos que esse tipo de 
 ilícito pode gerar no funcionamento e operacionalidade da instituição militar.
 
  
 Por outro lado, tratando-se de um tipo legal que o legislador integra no elenco 
 dos crimes contra o património militar, compreende-se que dentro da dosimetria 
 intra-sistemática se estabeleça uma relativa unidade de valoração no que se 
 refere às diferentes molduras penais.
 
  
 De todo o modo, como se deixou já exposto, só quando a punição pudesse 
 considerar-se manifestamente excessiva ou desproporcionada – o que obviamente 
 não sucede no caso em apreço – é que poderia entender-se como verificada a 
 violação do princípio da proporcionalidade, tal como é acolhido no citado artigo 
 
 18º, n.º 2, da Constituição.
 
  
 Também não existe, por isso, motivo para declarar a inconstitucionalidade da 
 norma do artigo 82º do CJM no que se refere fixação da respectiva moldura penal.
 
  
 III – Decisão
 
  
 Termos em que acordam em conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma da 
 decisão recorrida em conformidade com o decidido quanto à questão de 
 constitucionalidade.
 
  
 Sem custas 
 Lisboa, 5 de Março de 2008
 Carlos Fernandes Cadilha
 Vítor Gomes
 Ana Maria Guerra Martins
 Gil Galvão