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Processo n.º 537/99                                       
 Plenário
 Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
 
          
 
  
 Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
 
  
 
  
 I
 O pedido e os seus fundamentos
 
  
 
  
 
 1.            O Provedor de Justiça veio, ao abrigo do disposto no artigo 281º, 
 n.º 2, alínea d), da Constituição da República Portuguesa, requerer a apreciação 
 e declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas 
 contidas no artigo 5º do Decreto-Lei n.º 547/74, de 22 de Outubro.
 
  
 
                  As normas em causa, na sua versão originária, tinham o seguinte 
 teor:
 
  
 Artigo 5º
 
  
 
 1.            O rendeiro tem o direito de remir o contrato, tornando-se dono da 
 terra pelo pagamento do preço que for fixado pela comissão arbitral.
 
 2.            Este preço será determinado pelo valor potencial da terra, 
 excluídas as benfeitorias, tendo em conta o estado em que se encontrava a terra 
 no início do contrato.
 
 3.            Depositado na Caixa Geral de Depósitos o montante do preço 
 referido no número anterior, e paga a respectiva sisa, a comissão arbitral 
 efectuará a transferência, a favor do rendeiro, dos bens remidos.
 
 4.            As certidões ou fotocópias notariais da deliberação da comissão 
 referida no número anterior são havidas, para todos os efeitos, como escrituras 
 públicas.
 
  
 
  
 
  
 
 2.            A fundamentação do pedido é, em síntese, a seguinte:
 
  
 
                  – O n.º 1 do artigo em análise cria um direito real de 
 aquisição a favor do rendeiro, nos casos de arrendamento rural em que as terras 
 tenham sido dadas de arrendamento no estado de incultas e se tenham tornado 
 produtivas por acção do rendeiro.
 
  
 
                  – Este direito de remição viola a garantia constitucional de 
 propriedade privada prevista no artigo 62º da Constituição, dado que este 
 preceito estabelece que apenas podem existir limitações ao direito de 
 propriedade privada por requisição e expropriação por utilidade pública com base 
 na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.
 
  
 
                  – No caso, verifica-se a ablação de um direito de um particular 
 a favor de outro particular, não havendo qualquer utilidade pública que o 
 justifique, dado não existirem quaisquer fins públicos mas apenas fins privados 
 que se destinam a proporcionar ao rendeiro e à sua família o direito às 
 benfeitorias realizadas e a evitar o seu despejo das terras.
 
  
 
                  – Estas finalidades são já atingidas por outras medidas 
 previstas no mesmo diploma: o regime da propriedade das benfeitorias (artigo 2º) 
 e a limitação dos casos de resolução do contrato de arrendamento, por parte do 
 senhorio (artigo 4º). Assim, a privação do direito de propriedade do senhorio, 
 contra a sua vontade, revela-se desproporcionada face aos fins que se pretende 
 obter.
 
  
 
                  – O direito de propriedade privada tem natureza análoga aos 
 
 “direitos, liberdades e garantias”, pelo que as restrições se devem limitar ao 
 necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente 
 protegidos, o que não se verifica no caso.
 
  
 
                  – O direito de remição do rendeiro viola quer o princípio da 
 exigibilidade, quer o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, dado 
 que a ablação do direito de propriedade do senhorio é excessiva em relação aos 
 fins prosseguidos e estes podem ser atingidos por outros meios menos onerosos.
 
  
 
  
 
 3.            Notificado do pedido, nos termos e para os efeitos do disposto nos 
 artigos 54º, 55º e 56º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), veio o 
 Primeiro-Ministro pronunciar-se no sentido da não inconstitucionalidade da 
 norma, alegando, fundamentalmente, o seguinte:
 
  
 
                  – O direito de propriedade privada é um direito fundamental de 
 natureza económica, que não pode ser concebido de forma unilateral, como mero 
 direito de defesa oponível aos poderes públicos. A sua tutela faz-se nos termos 
 da Constituição e da lei, não implicando a interdição da intervenção reguladora 
 dos poderes públicos.
 
  
 
                  – Essa intervenção dos poderes públicos deve ter em conta a 
 função social que a Constituição atribui a esse direito, função neste caso 
 inserida na complexa estrutura das formas de propriedade dos meios de produção 
 constitucionalmente estabelecida.
 
  
 
                  – O normativo em causa insere-se numa transição de um estado 
 autoritário e corporativo para um estado de direito democrático, na qual eram 
 desadequadas as formas tradicionais de exploração da terra e o disposto no 
 Código Civil em matéria de remição nos casos de renda perpétua e renda 
 vitalícia, resultando a intervenção legislativa da necessidade de proteger o 
 mais débil em lugar do mais forte.
 
  
 
                  – O pedido funda-se numa concepção pré-constitucional do 
 direito de propriedade, ignorando a função social deste direito. Sendo elemento 
 essencial do direito de propriedade o direito a não ser privado dela, esse 
 direito a não ser privado da propriedade não é um direito absoluto, mas um 
 direito a não ser arbitrariamente privado de propriedade e a ser indemnizado ou 
 compensado no caso de desapropriação.
 
  
 
                  – No caso, existe um nítido e claro fundamento social, de resto 
 constitucionalmente previsto e explanado, que suporta a medida legislativa. Esse 
 suporte constitucional resulta, nomeadamente, dos preceitos contidos na alínea 
 d) do artigo 9º, nas alíneas a), b) e g) do artigo 81º, no artigo 88º, na alínea 
 b) do n.º 1 do artigo 93º, nos artigos 94º e 95º e no n.º 1 do artigo 96º. E a 
 intervenção legislativa em causa poderia ainda fundamentar-se no princípio geral 
 contido no artigo 2º da Constituição.
 
  
 
                  – Da conjugação destas normas resulta o suporte constitucional 
 da existência de um interesse público suficientemente preciso e relevante que 
 fundamenta a restrição do direito de propriedade. A medida não é, portanto nem 
 arbitrária nem excessiva, mas pelo contrário necessária, adequada, legítima, 
 admissível e razoável face ao fim de interesse público relevante que o Governo 
 constitucionalmente é chamado a concretizar.
 
  
 
  
 
 4.            O requerente solicita, de forma genérica, a declaração de 
 inconstitucionalidade “do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 547/74, de 22 de 
 Outubro”.
 
  
 
                  Apesar de o artigo 5º conter quatro números, a questão de 
 constitucionalidade suscitada no pedido coloca-se exclusivamente quanto ao 
 disposto no primeiro deles. O que efectivamente se questiona é a conformidade à 
 Constituição do direito do rendeiro a “remir o contrato, tornando-se dono da 
 terra”, mediante o pagamento de um determinado preço ao proprietário/senhorio. 
 Ora, é o n.º 1 do artigo 5º que contém tal norma.
 
  
 
                  Assim sendo, a análise da constitucionalidade do artigo 5º 
 centrar-se-á, em exclusivo, na norma contida no seu n.º 1. As normas dos n.ºs 2 
 a 4 serão tratadas como instrumentais relativamente ao n.º 1, no sentido de 
 serem abrangidas por uma eventual declaração de inconstitucionalidade.
 
  
 
                  O requerente pede a declaração de inconstitucionalidade, com 
 força obrigatória geral, da norma identificada, por entender, com fundamento nos 
 artigos 18º, n.º 2, e 62º da Constituição, que existe uma restrição 
 
 “desproporcionada, excessiva e injusta” do direito de propriedade privada.
 
  
 
  
 
 5.            Discutido em Plenário o memorando apresentado pelo Presidente do 
 Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 63º, n.º 1, da LTC, e fixada a 
 orientação do Tribunal, cumpre agora decidir de harmonia com o que então se 
 estabeleceu. 
 
  
 
  
 II
 Questão prévia.
 A vigência da norma do n.º 1 do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 547/74
 
  
 
  
 
 6.            Antes de conhecer da questão da conformidade constitucional da 
 norma contida no n.º 1 do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 547/74, importa, em 
 primeiro lugar, averiguar se esta norma ainda vigora, uma vez que, desde a sua 
 aprovação, ocorreram diversas alterações ao regime jurídico do arrendamento 
 rural.
 
                  A questão da vigência é analisada tanto no pedido como na 
 resposta do órgão autor da norma, concluindo-se, em ambos os articulados, por 
 uma resposta positiva. É também essa a posição que o Tribunal adopta, pela 
 seguinte ordem de razões:
 
  
 
                  Em primeiro lugar, porque a legislação posterior em matéria de 
 arrendamento rural nunca revogou expressamente o artigo 5º do Decreto-Lei n.º 
 
 547/74.
 
  
 
                  Com efeito, o artigo 48º da Lei 76/77, de 29 de Setembro, 
 revogou apenas o artigo 3º daquele diploma, além de estabelecer que a 
 competência atribuída às comissões arbitrais nos artigos 5º, 7º e 8º transitava 
 para os tribunais de comarca. O restante conteúdo do Decreto-Lei n.º 547/74 
 manteve-se em vigor, sendo dado ao Governo um prazo de 6 meses para proceder à 
 sua revisão (n.º 1 do artigo 48º); mas tal revisão não chegou a ser efectuada. O 
 esgotamento desse prazo de seis meses não determina a cessação da vigência do 
 diploma, dado não se tratar de uma lei temporária nem resultar da redacção do 
 referido n.º 1 do artigo 48º a consequência de caducidade do Decreto-Lei n.º 
 
 547/74.
 
  
 
                  E não consta igualmente do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25 de 
 Outubro, que aprovou o actual Regime do Arrendamento Rural (doravante, RAR), 
 qualquer disposição expressamente revogatória do Decreto-Lei n.º 547/74.
 
  
 
                  Em segundo lugar, porque se entende não ter existido revogação 
 tácita ou indirecta do Decreto-Lei n.º 547/74.
 
  
 
                  Na verdade, o diploma sub iudice não contém o regime geral do 
 arrendamento rural, sendo antes apenas aplicável, nos termos do seu artigo 1º, a 
 um grupo especial de casos de arrendamento, em que “as terras foram dadas de 
 arrendamento no estado de incultas ou de mato e se tornaram produtivas mediante 
 o trabalho e investimento do rendeiro”, ou seja, a casos em que o rendeiro 
 tornou o solo cultivável e fez plantações (isto é, efectuou trabalhos de 
 melhoramento e modificação do solo) que influenciaram, decisiva e positivamente, 
 a produtividade da terra.
 
  
 
                  Ora, a Lei n.º 76/77 ressalvou expressamente a vigência desse 
 regime especial e o RAR não contém normas especificamente dirigidas aos casos 
 delimitados pelo artigo 1º do Decreto-Lei n.º 547/74.
 
  
 
                  Por aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 7º do Código 
 Civil, deve, pois, concluir-se que as regras especiais contidas no Decreto-Lei 
 n.º 547/74 não foram revogadas pelo regime geral instituído pelo RAR.
 
  
 
                  É este, aliás, o entendimento perfilhado no Acórdão de 14 de 
 Janeiro de 1993 do Tribunal da Relação de Évora (publicado em Colectânea de 
 Jurisprudência, 1993, Ano XVIII-Tomo 1, p. 263) que se pronunciou no seguinte 
 sentido:
 
  
 
 “Por ser lei especial, o Decreto-Lei n.º 547/74, de 22 de Outubro, não foi 
 revogado pelo Decreto-Lei n.º 385/88, de 25 de Outubro.
 Assim os contratos de arrendamento de terrenos incultos para serem desbravados e 
 cultivados, celebrados ao abrigo do disposto naquele Decreto-Lei n.º 547/74, 
 continuam a reger-se pelo regime jurídico contido neste diploma legal.”.
 
  
 
  
 
                  Diga-se, por último, que este entendimento é ainda pressuposto 
 na Lei n.º 108/97, de 16 de Setembro, que, no seu artigo 3º, dispõe que “para os 
 efeitos do disposto no Decreto-Lei n.º 547/74 […], presume-se que as terras 
 foram dadas de arrendamento no estado de incultas ou em mato se não houver 
 contrato escrito ou ele for omisso quanto ao estado de terras e o arrendamento 
 subsistir há mais de 50 anos”.
 
  
 
                  Deve, deste modo, considerar-se que o regime especial criado 
 pelo Decreto-Lei n.º 547/74 não foi revogado por legislação posterior 
 
 (designadamente, o RAR) e que esse diploma (salvo o disposto no seu artigo 3º) 
 continua a ser o regime legal aplicável às situações de arrendamento rural em 
 que “as terras foram dadas de arrendamento no estado de incultas ou de mato e se 
 tornaram produtivas mediante o trabalho e investimento do rendeiro”.
 
  
 
  
 
 7.            Não se deixará, também, de salientar que a norma questionada 
 consta de um diploma aprovado pelo Governo provisório, na vigência da Lei 
 Constitucional n.º 3/74, de 14 de Maio, ou seja, anteriormente à Constituição de 
 
 1976, e que, nos termos do artigo 290º, n.º 2, da Constituição, o direito 
 ordinário anterior se mantém em vigor, excepto quando exista contrariedade 
 material com a Constituição [cfr., neste sentido, entre outros, o Acórdão n.º 
 
 231/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional (doravante, ATC), 27º vol., p. 205 
 ss].
 
  
 
                  A questão da vigência da norma confunde-se, assim, neste plano, 
 com a questão da sua compatibilidade material com a Constituição, que é uma 
 questão de constitucionalidade, cuja resolução compete ao Tribunal 
 Constitucional (cfr. os Acórdãos n.º 2/84, n.º 20/84, n.º 29/84, n.º 313/85, n.º 
 
 202/86, n.º 429/89, e, mais recentemente, o Acórdão n.º 187/01, todos em ATC, 
 respectivamente, 2º vol., p. 198 ss, 385 ss e 431 ss; 6º vol., p. 563 ss; 7º 
 vol. - II, p. 947 ss; 13º vol. - II, p. 1237 ss; e 50º vol., p. 29 ss).
 
  
 
                  Ora, o problema jurídico-constitucional suscitado no presente 
 processo diz respeito à alegada incompatibilidade entre a norma questionada e o 
 direito de propriedade, constitucionalmente tutelado no artigo 62º da Lei 
 Fundamental e que, na sua dimensão essencial, tem natureza análoga aos direitos, 
 liberdades e garantias, não podendo deixar de ser tida como 
 inconstitucionalidade material essa eventual violação do direito de propriedade.
 
  
 
                  Nesta perspectiva, a questão da “vigência” da norma acaba por 
 ser a questão da sua constitucionalidade, que o Tribunal Constitucional tem 
 agora que conhecer.
 
  
 
  
 III
 Fundamentação
 
  
 
  
 A)           Âmbito de aplicação e finalidades do Decreto-Lei n.º 547/74
 
  
 
  
 
 8.            As situações reguladas pelo n.º 1 do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 
 
 547/74 são, como já se disse, casos de arrendamento rural em que, nos termos do 
 artigo 1º do mesmo diploma, “as terras foram dadas de arrendamento no estado de 
 incultas ou de mato e se tornaram produtivas mediante o trabalho e investimento 
 do rendeiro”.
 
  
 
                  A aplicabilidade da norma em análise supõe a existência de 
 benfeitorias efectuadas pelo rendeiro e que são propriedade deste, nos termos do 
 artigo 2º do mesmo Decreto-Lei.
 
  
 
                  O Decreto-Lei n.º 547/74 não só pretendeu garantir o direito do 
 rendeiro às benfeitorias realizadas como também consolidar o vínculo entre o 
 rendeiro e a terra por este cultivada. As razões para tal solução legal 
 encontram-se patentes no próprio diploma e estão directamente relacionadas com 
 as especificidades de um certo tipo de exploração agrícola, delimitado – ao que 
 tudo indica – no tempo e no espaço.
 
  
 
                  Afigura-se particularmente relevante para a apreciação da 
 questão suscitada determinar o âmbito de aplicação da norma em causa, tendo 
 especialmente em conta as circunstâncias históricas e sociais que a antecederam 
 e as que ocorriam à data da sua aprovação.
 
  
 
                  O Decreto-Lei n.º 547/74 teve fundamentalmente como finalidade 
 a resolução de um problema antigo de precariedade da posição contratual do 
 rendeiro, que se registava com maior gravidade em algumas explorações agrícolas 
 de certas zonas do país, e que motivara, duas décadas antes, a aprovação do 
 Decreto-Lei n.º 39917, de 23 de Novembro de 1954.
 
  
 
                  Com efeito, ele não visa regular todos e quaisquer casos de 
 arrendamento de terras incultas mas apenas os já existentes à data da sua 
 aprovação, que o Decreto-Lei n.º 39917 disciplinara, de forma ineficaz – é o que 
 decorre claramente do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 547/74, de onde se extrai o 
 seguinte trecho:
 
  
 
 “Em certas zonas do país, particularmente no Ribatejo e na península de Setúbal, 
 existem situações em que a terra inculta foi totalmente aproveitada por famílias 
 de agricultores que, com base em contratos de arrendamento, a desbravaram, 
 cultivaram e valorizaram, nela se fixando com carácter de permanência. […].
 A disciplina jurídica de tais situações era a do arrendamento rural que não 
 contemplava a situação específica de as terras se encontrarem incultas e daí 
 terem-se verificado, desde há dezenas de anos, graves problemas de justiça 
 social, quando o senhorio requeria o despejo ou exigia aumentos de renda […].
 Em 23 de Novembro de 1954 foi publicado o Decreto-Lei n.º 39917, em que, a 
 propósito dos casos da Quinta da Torre, do concelho de Palmela, e Fernão Ferro, 
 do concelho do Seixal, se estatuiu o princípio de que as benfeitorias feitas nas 
 referidas condições eram propriedade de quem as realizou ou dos seus sucessores 
 na respectiva posse ou fruição.
 
 […]
 Não obstante, a situação continuou até hoje e importa ter em conta que a 
 apropriação, pelo dono da terra, das benfeitorias feitas pelos rendeiros e bem 
 assim o despejo destes das terras que eles ou os seus antepassados cultivaram e 
 onde muitas vezes têm a sua habitação constituem uma forma injusta de exploração 
 da terra e uma violação dos princípios elementares de justiça social.
 Esta situação […] tem de cessar imediatamente, o que se leva a efeito através do 
 presente diploma […].” [itálico aditado].
 
  
 
  
 
                  No mesmo sentido aponta o artigo 1º do citado Decreto-Lei, que 
 delimita o âmbito de aplicação do diploma por referência aos “casos de 
 arrendamento rural em que as terras foram dadas de arrendamento no estado de 
 incultas ou de mato e se tornaram produtivas mediante o trabalho e o 
 investimento do rendeiro”.
 
  
 
                  Esta conclusão é ainda reforçada pelo facto de o diploma em 
 análise pretender resolver o problema que esteve na origem do Decreto-Lei n.º 
 
 39917, de 1954, e este se aplicar unicamente a situações de arrendamento já 
 existentes, ou seja, aos rendeiros que, na data de entrada em vigor do diploma, 
 cultivavam as propriedades por ele visadas, situadas nos concelhos de Palmela e 
 Seixal (esta ideia foi confirmada pelo Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral 
 da República, no parecer ao Processo n.º 185/83, publicado no DR, II Série, de 
 
 25 de Maio de 1984).
 
  
 
                  Por outro lado, decorre expressamente do preâmbulo do 
 Decreto-Lei n.º 547/74 que as situações de arrendamento rural abrangidas se 
 circunscrevem espacialmente a “certas zonas do país, particularmente no Ribatejo 
 e na península de Setúbal”, em que se procedeu à “divisão de herdades em 
 courelas” (pequenas porções de terra, normalmente de formato longo e estreito) e 
 estas “foram entregues à exploração directa de pequenos agricultores”.
 
  
 
                  Trata-se de uma situação de exploração da terra com 
 características especiais, qualificada como “fenómeno de colonização espontânea” 
 pelo preâmbulo do Decreto-Lei n.º 39917, que ocorreu entre o final do século XIX 
 e o início do século XX na zona do distrito de Setúbal (cfr. o enquadramento 
 histórico constante do parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da 
 República acima citado). Segundo o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 39917, foi o 
 esforço destes agricultores que tornou cultiváveis os “solos arenosos” e “pouco 
 produtivos” da região da “margem esquerda do Tejo”.
 
  
 
                  Ainda segundo o mesmo preâmbulo, estas explorações agrícolas 
 
 “apresentam um valor económico, traduzido na mobilização de recursos, até então 
 inactivos, e um interesse social, representado pela estabilidade de vida de 
 apreciável número de famílias rurais”. Daí a preocupação do legislador em evitar 
 
 “o desaparecimento desses núcleos de povoamento” e dar “às famílias fixadas a 
 estabilidade indispensável à continuação do processo iniciado de valorização da 
 terra”.
 
  
 
                  Essa “colonização” (deve, a propósito, salientar-se que o 
 preâmbulo da Portaria n.º 489/77, de 1 de Agosto se refere ainda aos rendeiros 
 como “colonos-rendeiros”) revestiu diversas formas, tais como o aforamento, a 
 venda e o arrendamento, mas foram as situações de arrendamento que suscitaram o 
 problema da instabilidade da exploração e que o Decreto-Lei n.º 39917 e o 
 Decreto-Lei n.º 547/74 procuraram resolver. Como esclarece o preâmbulo do 
 Decreto-Lei n.º 39917:
 
  
 
 “Em relação à maior parte da área colonizada, em que a terra foi adquirida por 
 compra ou aforamento, o problema da estabilidade da exploração está resolvido. 
 Outro tanto, porém, não sucede com os casos, aliás ainda frequentes [em 1954], 
 em que a posse foi titulada por arrendamento.
 
 […]
 
 À data do arrendamento os terrenos encontravam-se incultos e cobertos de mato 
 alto, circunstância que, aliada à natural pobreza dos solos e à ausência de água 
 para rega, conduzia a valores da terra bastante diminutos.
 
 […]
 Quando agora o senhorio requer o despejo ou exige aumentos de renda 
 correspondentes ao rendimento das benfeitorias, que, afinal, foram fruto do 
 trabalho e de investimentos exclusivamente da conta dos arrendatários, 
 encontram-se estes absolutamente desprotegidos em face da vigente legislação 
 sobre arrendamento, inadequada para regular fenómenos de colonização.
 
 […].”.
 
  
 
  
 
                  A limitação espacial do âmbito do diploma é compreensível não 
 só numa perspectiva social mas também económica, atendendo a que o objectivo era 
 contrariar o subaproveitamento agrícola das terras e este problema se punha com 
 especial acutilância na zona do distrito de Setúbal. Como assinala Maria João 
 Costa Macedo (Geografia da reforma agrária, Europa-América, 1985, p. 20 e 21), o 
 problema da “reduzida percentagem de solos susceptíveis de utilização agrícola” 
 era tão grave no distrito de Setúbal que, aí, a cultura agrícola parecia “estar 
 quase condenada”. O estudo desta autora confirma ainda a especial situação das 
 zonas geográficas identificadas pelo preâmbulo do Decreto-Lei n.º 547/74, em 
 função da reduzida área média das explorações agrícolas existentes (obra citada, 
 p. 108 e 262).
 
  
 
                  Por outro lado, importa realçar que o Decreto-Lei n.º 547/74 
 tem por contexto histórico a “reforma agrária” que ocorreu em Portugal em meados 
 da década de setenta mas enquadrando-se num período (1974) de iniciativas 
 reformistas moderadas que visaram a “penalização do abandono e do insuficiente 
 aproveitamento” dos solos agrícolas. Só numa fase posterior (em 1975 e 76) se 
 procedeu a uma intervenção estatal nas explorações agrícolas, ocupações, 
 expropriações e nacionalizações (António Barreto, Anatomia de uma revolução – a 
 reforma agrária em Portugal 1974-1976, Europa-América, 1987, p. 98 a 103, 193 e 
 
 256 a 258).
 
  
 
                  Aliás, as explorações agrícolas visadas pelo diploma em análise 
 correspondem a áreas de pequena dimensão, diferenciando-se das que constituíram 
 o objecto da reforma agrária (explorações capitalistas latifundiárias) – cfr. 
 Afonso de Barros, A reforma agrária em Portugal: das ocupações de terras à 
 formação das novas unidades de produção, Instituto Gulbenkian de Ciência, 1979, 
 p. 145 e 146.
 
  
 
                  Utilizando a síntese de António Barreto (obra citada, p. 258), 
 o Decreto-Lei n.º 547/74 pretendeu contrariar o “subaproveitamento dos solos 
 agrícolas” e revela “uma vontade de justiça social ao permitir aos rendeiros […] 
 o acesso à propriedade nas terras que arrotearam e valorizaram durante anos”. 
 Esse objectivo legal, de consolidação da posição jurídica do rendeiro face à 
 terra por este cultivada, reduz-se – como se viu – a um certo tipo de 
 explorações agrícolas, delimitadas no tempo e no espaço.
 
  
 
                  Tendo como líquido que o âmbito de aplicação temporal da norma 
 se limita aos arrendamentos então vigentes, há-de reconhecer-se – e apesar do 
 que se disse – que a letra da lei não especifica qualquer delimitação espacial 
 da norma, diferentemente do que sucedia com o Decreto-Lei n.º 39917, onde eram 
 expressamente referidas as propriedades “Quinta da Torre” e “Foros de Fernão 
 Ferro” (corpo do artigo 1º).
 
  
 
  
 
 9.            De todo o modo, ainda que se não delimite o âmbito de aplicação do 
 Decreto-Lei n.º 547/74 nos exactos termos do Decreto-Lei n.º 39917, hão-de 
 necessariamente ter-se como geograficamente muito circunscritas as situações 
 abrangidas na previsão da norma.
 
  
 
                  Note-se que está em causa – reafirma-se – um conjunto restrito 
 de arrendamentos rurais em que, cumulativamente, a terra (i) tenha sido dada de 
 arrendamento em estado de mato ou inculta e (ii) se tenha tornado produtiva 
 mediante o trabalho e o investimento do rendeiro (neste sentido, cfr. o Acórdão 
 da Relação de Lisboa, de 23 de Março de 1977, e os Acórdãos da Relação de Évora, 
 de 18 de Abril de 1978 e de 30 de Maio de 1978 (todos publicados em Colectânea 
 de Jurisprudência, respectivamente, 1977, Ano II-Tomo 2, p. 387; 1978, Ano 
 III-Tomo 2, p. 579; e 1978, Ano III-Tomo 4, p. 1388).
 
  
 
                  Acresce que o direito de remição consagrado no n.º 1 do artigo 
 
 5º do Decreto-Lei n.º 547/74 não é atribuído a todos os arrendatários rurais mas 
 apenas aos “pequenos agricultores” (terminologia do preâmbulo) que cultivem a 
 terra directamente ou através de membro do seu agregado familiar – vide, neste 
 sentido, o Acórdão da Relação de Évora, de 14 de Março de 1978 (Colectânea de 
 Jurisprudência, 1978, Ano III-Tomo 2, p. 544). Estão, assim, em causa apenas as 
 explorações agrícolas de tipo familiar, correspondentes ao conceito legal 
 hodierno de “agricultor autónomo” (cfr. a definição constante do n.º 4 do artigo 
 
 3º da Lei n.º 109/88, de 26 de Setembro, adoptada pelo RAR, através da remissão 
 material constante do artigo 39º desde último diploma).
 
  
 
                  Por outro lado, com alto grau de probabilidade, parte dos 
 contratos de arrendamento abrangidos pelo Decreto-Lei n.º 547/74 em que não 
 houve remição terão entretanto caducado, uma vez que já passaram 31 anos desde a 
 aprovação do diploma e a transmissão por morte da posição jurídica de 
 arrendatário só se opera uma vez (excepto se ela se deferir ao cônjuge 
 sobrevivo, caso em que se transmite, uma segunda vez, aos parentes ou afins do 
 primitivo arrendatário) – artigo 23º do RAR.
 
  
 
                  Num contexto em que se visa, de acordo com o preâmbulo, fazer 
 cessar uma “forma injusta de exploração da terra” e uma “violação dos princípios 
 elementares de justiça social”, consolidando a posição jurídica do rendeiro 
 relativamente à terra que cultiva, poderia entender-se que o direito de 
 aquisição da propriedade da terra contido no n.º 1 do artigo 5º do Decreto-Lei 
 n.º 547/74 se configura como uma forma de solucionar um conflito de direitos de 
 propriedade: por um lado, o direito de propriedade da terra e, por outro, o 
 direito de propriedade das benfeitorias realizadas, este expressamente atribuído 
 ao rendeiro.
 
  
 
  
 
 10.          Poderia, então, tender-se a aproximar este caso das situações de 
 acessão industrial, em particular das reguladas no artigo 1340º, n.º 1, do 
 Código Civil, nos termos do qual a realização de obras, sementeiras e 
 plantações, que tiverem trazido à totalidade do prédio maior valor do que este 
 tinha antes, confere ao seu autor a faculdade de adquirir a propriedade do 
 prédio mediante o pagamento de uma indemnização.
 
  
 
                  Essa aproximação justificar-se-ia não apenas por uma hipotética 
 situação de conflito de direitos como também pelo desvio, em ambos os tipos de 
 casos, à regra segundo a qual a realização de benfeitorias por pessoa diferente 
 do proprietário da coisa dá apenas lugar ao levantamento dessas benfeitorias 
 
 (quando possam ser levantadas sem detrimento da coisa) e a um direito de 
 indemnização (cfr. artigos 1273º a 1275º, 1046º, 1138º e 1450º do Código Civil e 
 artigo 15º do Regime do Arrendamento Rural, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 
 
 385/88).
 
  
 
                  A verdade, porém, é que só aparentemente as situações de 
 remição e de acessão industrial são semelhantes.
 
  
 
                  Em primeiro lugar, a dificuldade em conciliar os direitos em 
 presença surge, no caso da remição, devido a acto do próprio rendeiro, ao fazer 
 cessar, por sua iniciativa, a relação jurídica de arrendamento.
 
  
 
                  Em segundo lugar, no caso da remição, os direitos de 
 propriedade não surgem em planos independentes, como sucede na acessão. Nesta 
 não existe um nexo jurídico entre a pessoa e a coisa beneficiada, ao contrário 
 do que acontece na remição, que pressupõe uma relação jurídica validamente 
 constituída (o contrato de arrendamento rural), anterior ao facto aquisitivo, em 
 que os direitos e deveres das partes se encontram previamente fixados.
 
  
 
                  Por último, no caso da remição não há rigorosamente um conflito 
 de direitos que demande, como na acessão, a ablação de um direito em favor do 
 outro – os direitos, no caso, podem subsistir sem contenderem um com o outro.
 
  
 
                  A resolução da questão de constitucionalidade deverá, pois, 
 assentar numa linha argumentativa diversa da que subjaz ao Acórdão n.º 205/00 
 deste Tribunal (ATC, 47º vol., p. 117 ss), que precisamente se pronunciou sobre 
 a constitucionalidade do disposto no artigo 1340º, n.ºs 1 e 4, do Código Civil.
 
  
 
  
 B)           O fundamento constitucional da limitação ao direito de propriedade 
 contida na norma questionada
 
  
 
  
 
 11.          Embora o direito fundamental de propriedade privada, previsto no 
 artigo 62º da Constituição, esteja integrado no Título III da Parte I da 
 Constituição (Direitos e deveres económicos, sociais e culturais), o Tribunal 
 Constitucional tem afirmado repetidamente que este direito é, numa certa 
 dimensão, um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, 
 sendo-lhe nessa medida aplicável o respectivo regime, nos termos do artigo 17º 
 da Constituição.
 
  
 
                  Dessa dimensão do direito de propriedade privada que tem 
 natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, faz, seguramente, parte o 
 direito de cada um a não ser privado de modo arbitrário da sua propriedade – e, 
 ainda assim, tão só com base na lei e mediante o pagamento de justa 
 indemnização.
 
                  Neste sentido tem, aliás, decidido, de modo uniforme, o 
 Tribunal – cfr. os Acórdãos n.º 1/84, n.º 14/84 e n.º 329/99 (ATC, 
 respectivamente, 2º vol., p. 173 e 339 ss, e 44º vol., p. 129 ss), para além do 
 já citado Acórdão n.º 187/01.
 
  
 
  
 
 12.          O requerente questiona a conformidade constitucional da norma em 
 apreço, na medida em que esta configura uma “ablação de um direito de um 
 particular a favor de outro particular” e a Constituição só permitiria 
 limitações a este direito “por requisição e expropriação por utilidade pública”.
 
  
 
                  É manifesto que não estamos perante um caso de expropriação por 
 utilidade pública. No seu sentido técnico, a expropriação não abrange todos os 
 casos em que a um particular pode ser retirada a propriedade. Como se escreveu 
 no já mencionado Acórdão n.º 205/00:
 
  
 
 “A expropriação não é um conceito equivalente ao de desapropriação forçada ou de 
 ablação de direitos sobre coisas, em todas as modalidades que estas figuras 
 podem apresentar. Não são actos de expropriação, por exemplo (a não ser num 
 sentido demasiado lato, desprovido de interesse prático), os mecanismos de 
 desapossamento destinados a assegurar a execução coactiva das obrigações do 
 devedor através da penhora e venda forçada de bens em processo civil, nem os 
 actos de apreensão e confisco ditados por razões penais ou de segurança.
 A expropriação é um modo de aquisição de direitos sobre coisas que tem em vista 
 proporcionar o aproveitamento directo dos bens pela entidade expropriante, 
 sempre que a sua utilização se torna necessária para realizar determinados fins 
 de interesse geral (obras públicas, reforma agrária, controlo da economia, 
 protecção do património, entre os mais frequentes). É um acto, portanto, que 
 assenta na prevalência da utilidade administrativa de um bem, para o Estado ou 
 para outra entidade com atribuições de interesse público, em confronto com a 
 utilidade que ele representa para o seu detentor particular. Nisso reside a 
 justificação do sacrifício imposto ao direito do proprietário e, 
 simultaneamente, a raiz do perfil histórico da expropriação como ponto de tensão 
 especialmente sensível nas relações entre o poder público e os direitos 
 individuais.”.
 
  
 
                  A norma questionada no presente processo visa permitir a um 
 particular (o rendeiro) a aquisição da propriedade da terra por ele cultivada e 
 não proporcionar a uma entidade com atribuições de interesse público o 
 aproveitamento directo da terra, para realização de fins de utilidade pública. 
 Não pode, assim, qualificar-se a situação em presença como expropriação por 
 utilidade pública.
 
  
 
                  Em todo o caso, não pode subscrever-se a interpretação do 
 artigo 62º da Constituição, feita pelo requerente, segundo a qual a expropriação 
 e a requisição são os únicos limites constitucionalmente admissíveis ao direito 
 de propriedade.
 
  
 
                  Se o n.º 2 do artigo 62º estabelece as condições a que obedece 
 a expropriação, dele não decorre que essa seja a única limitação admissível ao 
 direito garantido no n.º 1 do mesmo preceito. Na verdade, aqui apenas se 
 estabelece que tal direito é garantido “nos termos da Constituição”, devendo 
 naturalmente o alcance desta garantia ser compatibilizado com outros valores 
 constitucionalmente consagrados.
 
  
 
                  Ou seja: a Lei Fundamental não impede a existência de outras 
 limitações ou restrições ao direito de propriedade (incluindo actos “ablativos”) 
 para além das que resultam da expropriação e da requisição.
 
  
 
                  O que a Constituição proíbe é, desde logo, a ablação do direito 
 de propriedade, sem que os actos que a consubstanciam estejam suficientemente 
 ancorados em outras normas ou princípios constitucionais dos quais resulte a 
 necessidade da ablação da propriedade.
 
  
 
                  Neste sentido se pronunciaram – reportando-se a limitações ao 
 direito de propriedade –, os Acórdãos n.º 391/02 e n.º 491/02 (ATC, 
 respectivamente, 54º vol., p. 323 ss e 173 ss), com apoio na doutrina e na 
 jurisprudência constitucional anterior, que se dispensa aqui de reproduzir. 
 Destaca-se da primeira decisão o seguinte:
 
  
 
 “A tutela constitucional do direito à propriedade não significa, porém, que o 
 legislador não possa consagrar em determinados casos limitações ou restrições a 
 esse direito […]. Com efeito, não é incompatível com a tutela constitucional da 
 propriedade a compressão desse direito, desde que seja identificável uma 
 justificação assente em princípios e valores também eles com dignidade 
 constitucional, que tais limitações ou restrições se afiguram necessárias à 
 prossecução dos outros valores prosseguidos e na medida em que essas limitações 
 se mostrem proporcionais em relação aos valores salvaguardados. […].
 Na ordem axiológica constitucional é possível, pois, encontrar fundamento 
 legítimo para a restrição de dimensões mais ou menos abrangentes do direito de 
 propriedade. Com efeito, consubstanciando a Constituição uma multiplicidade de 
 valores, há que proceder à compatibilização e harmonização desses valores, o que 
 implicará, em determinados casos, compressões ou afectações, em face de uma 
 ponderação de interesses assente em critérios também eles constitucionalmente 
 relevantes. Não é, portanto, procedente sustentar […] que a Constituição apenas 
 admite limitações ao direito de propriedade no caso de expropriação por 
 utilidade pública […].”.
 
  
 
  
 
                  À tutela do direito de propriedade consagrada na Lei 
 Fundamental não subjaz, portanto, uma concepção absoluta deste direito – a 
 extensão da protecção é necessariamente limitada pela complexa ordem de valores 
 constitucional. O que a este propósito transparece da Constituição é um novo 
 conceito do direito de propriedade que transcende as velhas concepções do 
 liberalismo oitocentista, como se salientou no Acórdão n.º 76/85 (ATC, 5º vol., 
 p. 207 ss):
 
  
 
 “[...] a velha concepção clássica da propriedade, o jus utendi ac abutendi 
 individualista e liberal, foi, nomeadamente, nas últimas décadas deste século, 
 cedendo o passo a uma concepção nova daquele direito em que avulta a sua função 
 social.”.
 
  
 
  
 
                  
 Ora, esta outra concepção pode considerar-se relevante nos casos de propriedade 
 sobre os meios de produção – como acontece na situação em apreço – pelas 
 seguintes razões.
 
  
 
                  Em primeiro lugar, quando está em causa a propriedade no sector 
 produtivo do país, é nítido o relevo da dimensão social do direito de 
 propriedade privada porque a utilização racional dos elementos produtivos 
 
 (nomeadamente, de um elemento radicalmente escasso, porque não reprodutível, 
 como é o caso da terra) tem efeitos que de algum modo ultrapassam a esfera de 
 interesses do seu proprietário. Os elementos produtivos são bens geradores de 
 rendimentos e de desenvolvimento económico, cujos benefícios não são apropriados 
 apenas pelo proprietário, mas se estendem a toda a colectividade. Essa 
 circunstância leva também a que a ordenação da propriedade dos meios de produção 
 
 – observando embora as garantias constitucionais do direito de propriedade – 
 tenha consequências colectivas em termos de distribuição do rendimento e, 
 portanto, de justiça social.
 
  
 
                  Ambos os aspectos referidos – a promoção do desenvolvimento 
 económico e da justiça na distribuição do rendimento – estão claramente 
 incluídos entre as tarefas fundamentais do Estado, consagradas no artigo 9º da 
 Constituição, nomeadamente, na sua alínea d).
 
  
 
                  Em segundo lugar, a especial densidade que o nosso texto 
 constitucional confere à estrutura económica do país leva a que a chamada 
 
 “Constituição Económica” seja uma fonte importante de limitações ao alcance do 
 direito de propriedade. Tais limitações podem assumir especialmente relevância 
 no que toca à propriedade rural, dado que os artigos 93º a 98º espelham um 
 objectivo constitucional de transformação da realidade agrícola e florestal, 
 admitindo, explicitamente, constrangimentos à propriedade fundiária, incluindo a 
 forma extrema de privação total.
 
  
 
                  A interacção entre a constituição económica e a garantia da 
 propriedade foi profusamente analisada por este Tribunal (e, antes dele, pela 
 Comissão Constitucional: veja-se, por exemplo, o Parecer n.º 32/82, publicado em 
 Pareceres da Comissão Constitucional, 21º vol., INCM, 1985, p. 63 ss, e o 
 Acórdão da Comissão Constitucional n.º 460, publicado em apêndice ao Diário da 
 República, de 23 de Agosto de 1983), a propósito da remição da colonia – 
 questão, de algum modo, semelhante à que aqui se analisa. De entre a 
 jurisprudência em questão, destaca-se o seguinte trecho do Acórdão n.º 404/87 
 
 (ATC, 10º vol., p. 391 ss):
 
  
 
 “[A pretensa violação da garantia do direito de propriedade pela remição da 
 colonia] é afastada quando se considere tal garantia, consignada no artigo 62º 
 da Constituição, não isoladamente, mas no contexto global da lei fundamental. Na 
 verdade, se essa garantia exclui em princípio, atenta a sua mesma natureza e o 
 seu núcleo essencial (cf., de resto, artigo 62º, n.º 2), a possibilidade de um 
 particular obter coactivamente de outro a alienação em seu favor de coisa 
 pertencente ao primeiro (e a uma hipótese deste tipo, há-de reconhecer-se, se 
 reconduz o direito de remição em causa), ela não pode, todavia, deixar de 
 compaginar-se com os princípios constitucionais dos quais decorrem mais ou menos 
 extensos limites, ou a possibilidade de mais ou menos extensas restrições, ao 
 seu conteúdo e alcance – e tais princípios dão suficiente cobertura à restrição 
 ou limite em que se traduz o direito de remição da terra concedida ao 
 colono-rendeiro. Por outras palavras: o direito de propriedade só se acha 
 garantido, como se diz no próprio artigo 62º, n.º 1, «nos termos da 
 Constituição», mas estes termos autorizam aquela restrição ou limite a esse 
 direito.
 Que é assim resulta logo do sentido geral das normas e princípios 
 constitucionais relativos à reforma agrária, apontando eles, como apontam, para 
 um profunda «transformação das estruturas fundiárias» e para a transferência 
 progressiva da posse útil da terra para aqueles que a trabalham, e resulta 
 depois, especificamente, do artigo 101º, n.º 2, que na sua redacção primitiva 
 determinou a extinção do regime de colonia e na actual redacção o proíbe 
 
 [artigos 93º, n.º 1, alínea b), e 96º, n.º 2, do actual texto da Constituição]. 
 Nesta disposição, atenta aquela ideia genérica inspiradora da reforma agrária e 
 a natureza das situações constituídas através do contrato de colonia, não pode, 
 com efeito, deixar de ver-se, no mínimo, uma base constitucional bastante para o 
 legislador conceder aos colonos-rendeiros o direito de porem termo ao contrato 
 de colonia através da remição da propriedade da terra onde implantaram 
 benfeitorias, o que vale dizer, a «expropriarem» a terra em seu proveito. Que aí 
 se verifica uma excepcional restrição do direito de propriedade do senhorio é 
 inquestionável; só que se trata, atento o que fica dito, de uma restrição que, 
 porque «prevista na Constituição», cabe no elenco daquelas que a mesma consente, 
 nos termos do seu artigo 18º, n.º 2.”.
 
  
 
  
 
                  A invocação que aqui se faz da remição da colonia afigura-se 
 inteiramente pertinente.
 
  
 
                  É sabido, com efeito, que, depois de o Decreto-Lei n.º 47937, 
 de 15 de Setembro de 1967, ter proibido a celebração futura da colonia 
 
 (mantendo, no entanto, as situações pré-existentes), a Constituição determinou, 
 no seu artigo 101º, n.º 2 (versão originária), a extinção do regime da colonia. 
 E na sequência desta prescrição constitucional, o Decreto Regional n.º 13/77/M, 
 de 18 de Outubro, estabeleceu, no artigo 3º, um direito de remição em favor do 
 colono-rendeiro. Essa norma foi objecto de um juízo de não inconstitucionalidade 
 em diversos acórdãos deste Tribunal (cfr., entre outros, o já mencionado Acórdão 
 n.º 404/87), apesar de se reconhecer que “a remição da propriedade do solo, 
 oponível unilateralmente ao respectivo dono, é algo que afecta em cheio o 
 direito de propriedade deste último” (citado Acórdão n.º 404/87).
 
  
 
                  Ora, é patente alguma semelhança entre a remição da colonia e a 
 remição do arrendamento rural admitida na norma aqui em apreciação: em ambos os 
 casos está em causa uma “transmissão forçada” do direito de propriedade sobre a 
 terra, do proprietário de raiz para o cultivador; em ambos os casos existe uma 
 especial responsabilidade do cultivador em dotar a terra de condições 
 produtivas; e em ambos os casos a intervenção legislativa ocorreu num momento de 
 transição constitucional, visando transformar as formas de utilização produtiva 
 da terra em favor do cultivador. Isto não obstante – há que reconhecê-lo – o 
 respaldo constitucional da remição da colonia ter derivado, em grande parte, do 
 referido artigo 101º, n.º 2, da Constituição, sem que no entanto se tenha 
 deixado de ponderar os comandos constitucionais relativos à política agrícola.
 
  
 
                  É também sabido que o mesmo artigo 101º, n.º 2, da Constituição 
 proibiu ainda o regime de aforamento, onde se podem distinguir dois direitos de 
 propriedade (cfr. José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais, 4.ª edição, 
 Coimbra Editora, 1983, p. 572 ss), sendo certo que à data da aprovação da 
 Constituição já estavam extintos os foros, relativos aos prédios rústicos, por 
 força do Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de Março.
 
  
 
                  Nesse diploma, determina-se a transferência ope legis do 
 domínio directo dos prédios para o titular do domínio útil (artigo 1º, n.º 1), 
 sem que se conceda, em termos gerais, ao titular do domínio directo qualquer 
 indemnização – esta só está prevista nos casos em que o titular do domínio 
 directo seja pessoa singular com rendimento mensal inferior ao salário mínimo 
 mensal nacional (artigo 2º, n.º 1).
 
  
 
                  Ora, a posição de rejeição de formas de exploração da terra de 
 reconhecida injustiça social – enfiteuse e colonia – que o legislador 
 constituinte assume alicerça-se claramente em valores de protecção do 
 cultivador, plasmados na Constituição (cfr. artigos 93º, n.º 1, e 96º).
 
  
 
                  E não é ousado admitir-se que essa mesma rejeição e esses 
 mesmos valores legitimam constitucionalmente o disposto no artigo 5º, n.º 1, do 
 Decreto-Lei n.º 547/74, tendo em conta a precariedade da situação jurídica do 
 arrendatário rural que, nos termos do regime geral do arrendamento rural, 
 poderia ser despejado, com perda das benfeitorias por ele realizadas numa terra 
 que fora dada de arrendamento inculta e onde se instalara com carácter de 
 permanência.
 
  
 
  
 C)           As exigências do princípio da proporcionalidade, em sentido amplo
 
  
 
  
 
 13.          Estabelecida a existência de um fundamento constitucional legítimo 
 para a prevalência do direito do rendeiro face ao direito do 
 proprietário/senhorio resultante do disposto no n.º 1 do artigo 5º do 
 Decreto-Lei n.º 547/74, importa ainda verificar se a norma em causa, enquanto 
 permite que o rendeiro se torne dono da terra, respeita o princípio da 
 proporcionalidade.
 
  
 
                  No Acórdão n.º 634/93 (ATC, 26º vol., p. 205 ss), o Tribunal 
 Constitucional caracterizou o princípio da proporcionalidade nos seguintes 
 termos:
 
  
 
 “[...] o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: 
 princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e 
 garantias devem revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins 
 visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente 
 protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser 
 exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros 
 meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa 
 medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas 
 excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).”.
 
  
 
  
 
                  O princípio da adequação ou idoneidade exige, pois, que as 
 medidas restritivas “sejam aptas a realizar o fim visado com a restrição ou 
 contribuam para o alcançar” (Jorge Reis Novais, As restrições aos direitos 
 fundamentais não expressamente previstas na Constituição, Coimbra Editora, 2003, 
 p. 731). De acordo com este controlo de aptidão, devem apenas considerar-se 
 inidóneas as medidas restritivas cujos efeitos sejam “indiferentes, inócuos ou 
 até negativos, tomando como referência a aproximação do fim prosseguido com a 
 restrição” (obra citada, p. 738).
 
  
 
  
 
 14.          No caso sub iudice, o legislador teve por objectivo impedir a 
 apropriação pelo senhorio das benfeitorias realizadas pelo rendeiro e o despejo 
 deste das terras por si cultivadas, onde, muitas vezes, tinha habitação (cfr. 
 preâmbulo do Decreto-Lei n.º 547/74). Ora, o artigo 5º do mencionado 
 Decreto-Lei, ao atribuir ao rendeiro o direito de remir o arrendamento, 
 tornando-se proprietário do solo, obsta à apropriação das benfeitorias pelo 
 senhorio e, fundamentalmente, permite que o rendeiro se mantenha na propriedade 
 por ele cultivada. E, assim sendo, a solução legal questionada não pode 
 considerar-se inadequada aos fins visados pelo legislador.
 
  
 
                  No que se refere ao princípio da exigibilidade, o que está em 
 causa, como se disse no acima mencionado Acórdão n.º 187/01, é proceder a “uma 
 avaliação in concreto da relação empírica entre as medidas e os seus previsíveis 
 efeitos, à luz dos fins prosseguidos, para apurar a previsível maior ou menor 
 consecução dos objectivos pretendidos, perante as alternativas disponíveis”. 
 Trata-se, assim, de uma tarefa de comparação entre as alternativas, para avaliar 
 qual delas se apresenta menos onerosa ou restritiva.
 
  
 
                  Recorde-se, a propósito, que o requerente invoca a violação 
 dessa vertente do princípio da proporcionalidade, com a alegação de que a medida 
 questionada é desnecessária, por existirem meios menos gravosos de tutela dos 
 interesses do rendeiro, previstos no próprio Decreto-Lei n.º 547/74: a 
 consagração de que as benfeitorias são propriedade do rendeiro (n.º 1 do artigo 
 
 2º) e a limitação da possibilidade de o senhorio resolver o contrato de 
 arrendamento aos casos em que o rendeiro não pague a renda em dois anos 
 consecutivos ou em que o rendeiro prejudique gravemente a potencialidade 
 produtiva da terra (n.º 1 do artigo 4º).
 
  
 
                  Ora, quanto à primeira medida, não se apresenta ela, em si 
 mesma, como uma solução adequada. Isto, desde logo, porque não evita que o 
 rendeiro seja desapossado das benfeitorias, caso cesse o contrato de 
 arrendamento e aquelas não possam ser separadas do solo. Restar-lhe-ia apenas o 
 direito a ser indemnizado. Neste sentido se pronunciam Jorge Aragão Seia, Manuel 
 Costa Calvão e Cristina Aragão Seia (Arrendamento rural, 4ª edição, Almedina, 
 
 2003, p. 113):
 
  
 
 “O rendeiro é sempre indemnizado pelas benfeitorias. É porque de duas uma: ou 
 ele faz as benfeitorias de acordo com ambas as partes, e estamos em presença de 
 um acordo de liberdade contratual e então tem direito à sua indemnização, ou ele 
 pode, em caso de denúncia do contrato, ser indemnizado pelas benfeitorias que 
 fez em caso de não as poder levantar.”.
 
  
 
  
 
                  Por outro lado, os interesses do rendeiro tutelados pela norma 
 não se resumem à obtenção do valor patrimonial das benfeitorias, abrangendo, 
 ainda, a estabilização da sua posição jurídica, como medida de justiça social, 
 pondo fim ao que se considera ser uma forma injusta de exploração dos solos.
 
  
 
                  E, sendo assim, não se vê que outros meios se pudessem 
 equacionar para salvaguarda daqueles interesses, designadamente num quadro de 
 arrendamento rural, com cláusulas especialmente protectoras da posição do 
 rendeiro.
 
  
 
                  Finalmente, impõe-se confrontar a medida ablativa sub iudice 
 com o princípio da proporcionalidade, em sentido estrito, ou seja, avaliar se a 
 medida e os fins obtidos se situam numa “justa medida”, ou se, pelo contrário 
 aquela é desproporcionada ou excessiva em relação a estes fins (cfr. J. J. Gomes 
 Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª 
 edição revista, vol. I, Coimbra Editora, 2007, p. 393).
 
  
 
                  A este propósito, o requerente sustenta que o n.º 1 do artigo 
 
 5º do Decreto-Lei n.º 547/74 viola o princípio da proporcionalidade em sentido 
 estrito, qualificando a ablação do direito de propriedade do senhorio como 
 
 “desproporcionada, excessiva e injusta”.
 
  
 
                  Para que se possa concluir se a norma questionada respeita o 
 princípio da proporcionalidade impõe-se averiguar se o prejuízo que ela causa ao 
 senhorio (ablação do direito de propriedade) é ou não desproporcionado em 
 relação ao benefício que com ela se espera obter (consolidação da posição 
 jurídica do rendeiro relativamente à terra que cultiva e às benfeitorias nela 
 realizadas).
 
  
 
                  Não se discute a gravidade do sacrifício imposto ao senhorio – 
 a remição do arrendamento afecta de forma extrema o direito de propriedade do 
 dono da terra.
 
  
 
                  Todavia, tal não basta para suportar a posição assumida pelo 
 requerente.
 
  
 
                  Recorde-se que a medida em causa de algum modo se configura 
 como sucedânea da que se previa no Decreto-Lei n.º 39917. Neste, as terras eram 
 expropriadas (expropriação por utilidade pública) e adjudicadas à Junta de 
 Colonização Interna; o valor das terras expropriadas era aquele que teriam no 
 estado de incultas, apenas acrescido das benfeitorias realizadas pelos 
 proprietários; seria também por esse valor que as terras seriam posteriormente 
 vendidas aos cultivadores.
 
  
 
  
 
                  Ou seja, enquanto no regime do Decreto-Lei n.º 39917 a 
 transmissão da propriedade para os cultivadores era intermediada por uma 
 expropriação e uma venda, no regime do Decreto-Lei n.º 547/74, ela é feita 
 através de uma relação directa proprietário/arrendatário, com o exercício do 
 direito de remição concedido ao arrendatário. Em ambos os casos, o senhorio 
 perde o direito de propriedade; em ambos os casos, o valor a pagar ao 
 proprietário (a indemnização ou o preço, respectivamente) corresponde ao valor 
 das terras no estado de incultas.
 
  
 
                  Ora, neste contexto, tratando-se de arrendamento rural em que 
 as terras tenham sido dadas de arrendamento no estado de incultas e se tenham 
 tornado produtivas por acção do rendeiro, o valor das benfeitorias realizadas 
 nas terras por acção do rendeiro não pode ser contabilizado como prejuízo do 
 senhorio. O prejuízo do senhorio apenas pode corresponder à perda do valor da 
 propriedade, excluídas as benfeitorias.
 
  
 
                  Caso o rendeiro pretenda remir o arrendamento (o exercício do 
 direito de remição é facultativo), a perda da propriedade da terra é compensada 
 pelo pagamento ao senhorio de um preço (n.º 2 do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 
 
 547/74). E esse preço não pode considerar-se injusto, em face dos critérios do 
 citado n.º 2.
 
  
 
                  Sendo grave o sacrifício imposto ao senhorio, tal não deixa de 
 implicar que se avalie essa gravidade “em associação com a importância e a 
 imperatividade das razões que a justificam” (cfr. Jorge Reis Novais, obra 
 citada, p. 755).
 
  
 
                  Ora, no caso, como resulta do que atrás se disse, são, à luz da 
 Constituição, de extrema relevância as razões que justificam a medida, numa 
 linha que decorre dos já citados artigos 93º, n.º 1, alínea b), e 96º, n.º 1, da 
 Constituição.
 
  
 
                  Escrevem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (obra citada, p. 
 
 1049), em comentário ao artigo 93º da Lei Fundamental:
 
  
 
 “Entre os vários intervenientes nas relações de produção agrícolas, a 
 Constituição só cuida dos trabalhadores rurais e dos agricultores (n.º1/b). Essa 
 preferência traduz a prevalência dos interesses dos que «trabalham a terra» 
 
 (mesmo preceito) e dos «cultivadores» (artigo 96º-2) sobre os interesses dos 
 proprietários fundiários, os quais cedem perante aqueles (artigos 94º e 96º). 
 
 […].
 Esta preferência pelo direito do trabalho e da exploração agrícola directa sobre 
 o direito de propriedade fundiária bem como a protecção especial devida aos 
 pequenos e médios agricultores (que são coerentes com os valores gerais da 
 Constituição) não podem deixar de ser valorizadas no plano da interpretação das 
 normas da «constituição agrícola» e do seu desenvolvimento legislativo.”.
 
  
 
  
 
  
 
                  Face à nossa ordem constitucional de valores, o direito de 
 aquisição da propriedade conferido ao rendeiro pela norma questionada não pode, 
 assim, qualificar-se como excessivo ou injusto.
 
  
 
                  E, a este propósito, deve, ainda, ter-se presente que, nas 
 situações em que a avaliação da limitação ou restrição pelo critério da 
 proporcionalidade se revele complexa, como poderá ser o caso, o Tribunal 
 Constitucional tem reconhecido ao legislador uma prerrogativa de avaliação ou 
 crédito de confiança, reservando a sua intervenção apenas para as situações de 
 ultima ratio.
 
  
 
                  Escreveu-se no já citado Acórdão n.º 187/01:
 
  
 
 “[…] não pode deixar de reconhecer-se ao legislador – diversamente da 
 administração – […] uma “prerrogativa de avaliação”, como que um “crédito de 
 confiança”, na apreciação, por vezes difícil e complexa, das relações empíricas 
 entre o estado que é criado através de uma determinada medida e aquele que dela 
 resulta e que considera correspondente, em maior ou menor medida, à consecução 
 dos objectivos visados com a medida […]. Tal prerrogativa da competência do 
 legislador na definição dos objectivos e nessa avaliação […] afigura-se 
 importante sobretudo em casos duvidosos, ou em que a relação medida-objectivo é 
 social ou economicamente complexa, e a objectividade dos juízos que se podem 
 fazer (ou suas hipotéticas alternativas) difícil de estabelecer.
 
 […] em casos destes, em princípio, o Tribunal não deve substituir uma sua 
 avaliação da relação, social e economicamente complexa, entre o teor e os 
 efeitos das medidas, à que é efectuada pelo legislador, e que as controvérsias 
 geradoras de dúvida sobre tal relação não devem, salvo erro manifesto de 
 apreciação – como é, designadamente (mas não só), o caso de as medidas não serem 
 sequer compatíveis com a finalidade prosseguida –, ser resolvidas contra a 
 posição do legislador.
 
 […] a própria averiguação jurisdicional da existência de uma 
 inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade por uma 
 determinada norma, depende justamente de se poder detectar um erro manifesto de 
 apreciação da relação entre a medida e seus efeitos, pois aquém desse erro deve 
 deixar-se na competência do legislador a avaliação de tal relação, social e 
 economicamente complexa.”.
 
  
 
  
 
  
 
                  Também no caso em apreço a qualificação da ablação do direito 
 de propriedade do senhorio como “justa medida” pressupõe uma avaliação material 
 que se encontra muito próxima dos limites do poder jurisdicional, na fronteira 
 com o poder legislativo. Ora, atenta a ponderação dos valores em jogo, supra 
 desenvolvida, e não constituindo erro manifesto de apreciação a opção tomada 
 pelo legislador com a aprovação do n.º 1 do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 547/74, 
 entende-se que, igualmente aqui, o legislador deve beneficiar do mencionado 
 crédito de confiança, tudo concorrendo para se julgar isenta de 
 inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade, a norma 
 em causa.
 
  
 
  
 
  
 IV
 Decisão
 
  
 
  
 
 15.          Face ao exposto, o Tribunal Constitucional decide não declarar a 
 inconstitucionalidade da norma contida no n.º 1 do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 
 
 547/74, de 22 de Outubro.
 
  
 Lisboa, 6 de Março de 2007
 Maria Helena Brito
 Mário José de Araújo Torres
 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
 Vítor Gomes
 Rui Manuel Moura Ramos
 Benjamim Rodrigues
 Bravo Serra
 Maria Fernanda Palma
 Gil Galvão
 Maria João Antunes
 Paulo Mota Pinto
 
                                           Carlos Pamplona de Oliveira – vencido 
 conforme declaração que junto.
 Artur Maurício
 
  
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 
  
 
  
 Vencido, pelas razões que passo sumariamente a expor:
 I
 O Decreto-Lei n.º 547/74 de 22 de Outubro, em que se inscreve a norma em apreço, 
 apresenta, no seu preâmbulo, a seguinte justificação:
 
  
 
 1. Em certas zonas do País, particularmente no Ribatejo e na península de 
 Setúbal, existem situações em que a terra inculta foi totalmente aproveitada por 
 famílias de agricultores que, com base em contratos de arrendamento, a 
 desbravaram, cultivaram e valorizaram, nela se fixando com carácter de 
 permanência. Normalmente, tratou-se de divisão de herdades em courelas, que 
 foram entregues à exploração directa de pequenos agricultores.
 
  A disciplina jurídica de tais situações era a do arrendamento rural que não 
 contemplava a situação específica de as terras se encontrarem incultas e daí 
 terem-se verificado, desde há dezenas de anos, graves problemas de justiça 
 social, quando o senhorio requeria o despejo ou exigia aumentos de renda, tendo 
 em conta o rendimento das benfeitorias que haviam sido fruto do trabalho e de 
 investimentos exclusivos dos rendeiros.
 Em 23 de Novembro de 1954 foi publicado o Decreto-Lei n.º 39917, em que, a 
 propósito dos casos da Quinta da Torre, do concelho de Palmela, e Fernão Ferro, 
 do concelho do Seixal, se estatuiu o princípio de que as benfeitorias feitas nas 
 referidas condições eram propriedade de quem as realizou ou dos seus sucessores 
 na respectiva posse ou fruição. O Supremo Tribunal de Justiça, ao julgar sobre a 
 inconstitucionalidade daquele diploma, invocada pelos proprietários, decidiu 
 negativamente, acolhendo o princípio estabelecido no referido diploma legal. 
 
 2. Não obstante, a situação continuou até hoje e importa ter em conta que a 
 apropriação, pelo dono da terra, das benfeitorias feitas pelos rendeiros e bem 
 assim o despejo destes das terras que eles ou os seus antepassados cultivaram e 
 onde muitas vezes têm a sua habitação constituem uma forma injusta de exploração 
 da terra e uma violação dos princípios elementares de justiça social. 
 Esta situação, que está em manifesta oposição com os princípios do programa do 
 Governo Provisório, tem de cessar imediatamente, o que se leva a efeito através 
 do presente diploma, que não só atribui ao rendeiro o direito às benfeitorias, 
 como cria as condições para, à semelhança dos aforamentos, se poderem extinguir 
 os contratos existentes, através da consolidação, na pessoa do rendeiro, do 
 direito da propriedade do solo, mediante remição. [...]
 
  
 No artigo 1º do diploma dispõe-se:
 
  
 Artigo 1º
 Os casos de arrendamento rural em que as terras foram dadas de arrendamento no 
 estado de incultas ou em mato e se tornaram produtivas mediante o trabalho e 
 investimento do rendeiro regem-se, além do disposto na lei sobre o arrendamento 
 rural, pelas disposições especiais constantes dos artigos seguintes.
 
  
 A norma acabada de transcrever revela que o diploma se aplica em todo o 
 território nacional. Esta conclusão não é contrariada pela leitura do referido 
 relatório, de onde ressalta que, face às particulares circunstâncias históricas 
 e políticas do momento ('os princípios do programa do Governo Provisório'), o 
 legislador visou fazer extinguir os contratos 'em que as terras foram dadas de 
 arrendamento no estado de incultas ou em mato e se tornaram produtivas mediante 
 o trabalho e investimento do rendeiro', generalizando, para esse efeito, o 
 regime já anteriormente adoptado no Decreto-Lei n.º 39 917 de 23 de Novembro de 
 
 1954 em determinados casos localizados. Fê-lo – curiosamente –, com a 
 justificação de que tal regime se apresentava comprovadamente compatível com a 
 Constituição (de 1933, ainda em vigor) – 'o Supremo Tribunal de Justiça, ao 
 julgar sobre a inconstitucionalidade daquele diploma, invocada pelos 
 proprietários, decidiu negativamente, acolhendo o princípio estabelecido no 
 referido diploma legal'.
 Ora, se não parece lícito duvidar de que o regime assim criado passaria a 
 aplicar-se a todos os 'casos de arrendamento rural em que as terras foram dadas 
 de arrendamento no estado de incultas ou em mato e se tornaram produtivas 
 mediante o trabalho e investimento do rendeiro', em todo o território nacional, 
 igualmente não oferece dúvida de que se tratava de uma medida destinada a 
 corrigir uma situação que, no entender do legislador de 1974, constituía 'uma 
 forma injusta de exploração da terra e uma violação dos princípios elementares 
 de justiça social', que teria 'de cessar imediatamente', através da 
 
 'consolidação, na pessoa do rendeiro, do direito da propriedade do solo, 
 mediante remição.'
 Não é, assim, possível acompanhar o acórdão na parte em que circunscreve o 
 
 âmbito de aplicação do diploma a certas zonas do território continental, 
 designadamente àquelas que já eram abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 39 917 de 23 
 de Novembro de 1954, diploma que, aliás, se deve ter por revogado, sem 
 necessidade de menção expressa, pelo decreto-lei de 1974.
 II
 Por razões que radicam precisamente no alargamento das situações que o diploma 
 visava regular, face ao que passava com o diploma de 1954, também não acompanho 
 o julgamento que resulta do acórdão quanto à vigência da norma em apreço.
 Com efeito, o aludido regime especial encontra a sua justificação, como se viu, 
 na vontade de extinguir (fazer 'cessar imediatamente') as situações que 
 importariam 'violação dos princípios elementares de justiça social'; tais 
 situações decorreriam da concreta conformação do regime de arrendamento rural 
 então existente, e não é admissível pensar que o legislador post-revolução 
 achasse necessário manter esta solução, depois de, ele próprio, ter construído 
 um quadro legal que, de forma estável e permanente, disciplinasse, de acordo com 
 as novas orientações políticas, o arrendamento rural, resultado que 
 inevitavelmente rejeitaria a tal 'forma injusta de exploração da terra' 
 determinante da 'violação dos princípios elementares de justiça social'. 
 De resto, esse momento chegou três anos depois, com a aprovação da Lei n.º 76/77 
 de 29 de Setembro, que passou a disciplinar o Arrendamento Rural, e revogou 
 
 'toda a legislação existente sobre arrendamento rural' (artigo 53º LAR), com 
 excepção de situações aqui irrelevantes, como os arrendamentos para fins 
 florestais e os arrendamentos em que o Estado era senhorio na zona de 
 intervenção da Reforma Agrária, que seriam alvo de legislação especial (artigo 
 
 47º LAR). 
 
 É neste cenário legislativo que se sistematiza o artigo 48º desta Lei n.º 76/77, 
 ao proclamar:
 
  
 Artigo 48.º
 
 1. O Governo, no prazo máximo de seis meses e através de decreto-lei, procederá 
 
 à revisão do Decreto-Lei n.º 547/74, de 22 de Outubro. 
 
 2. Fica desde já revogado o artigo 3.º do diploma referido no número anterior.
 
 3. A competência atribuída às comissões arbitrais nos artigos 5.º, 7.º e 8.º do 
 referido diploma passa a caber ao tribunal da comarca da residência do 
 arrendatário, aplicando-se ao processo as normas gerais.
 
  
 Acontece que o Governo, 'no prazo máximo de seis meses e através de 
 decreto-lei', não procedeu à revisão do de 22 de Outubro. Aliás, nunca se 
 procedeu a essa revisão.
 A omissão tem, a meu ver, a seguinte consequência: o Decreto-Lei n.º 547/74 
 perdeu a sua vigência, quer se entenda que foi revogado pela cláusula geral 
 revogatória constante do artigo 53º da LAR já citado – uma vez que o Governo não 
 quis disciplinar, com especialidade, a matéria –, quer se entenda que a nova Lei 
 tratou in totum do arrendamento rural, caducando, pelo decurso do aludido prazo, 
 a possibilidade de se manter no ordenamento jurídico uma regulamentação especial 
 quanto a esta matéria, quer finalmente se entenda que o n.º 1 do artigo 48º deve 
 ser interpretado como uma norma revogatória sujeita a um certo prazo e a uma 
 determinada condição, que produziu os seus efeitos revogatórios com o decurso do 
 prazo sem que a condição se tivesse verificado.
 Divirjo, portanto, do julgamento quanto à vigência da norma.
 III
 Todavia, admitindo que, por hipótese, a norma se mantinha em vigor, igualmente 
 não acompanho o acórdão quanto à questão da sua conformidade constitucional, 
 resolvida através da constatação de que 'o que a Constituição proíbe é, desde 
 logo, a ablação do direito de propriedade, sem que os actos que a consubstanciam 
 estejam suficientemente ancorados em outras normas ou princípios constitucionais 
 dos quais resulte a necessidade da ablação da propriedade', ou pela transposição 
 dos condicionamentos ao exercício do direito da propriedade para a própria 
 subsistência do direito. É que, por um lado, diversamente do que sucede com o 
 aforamento e a colonia (artigo 96º n.º 2 CR), a Constituição não contém uma 
 proibição expressa do tipo de arrendamento 'censurado' no Decreto-Lei n.º 547/74 
 de 22 de Outubro. Por outro lado, uma vez que este tipo de arrendamento continua 
 a ser admitido pelo regime de arrendamento rural em vigor, seria incompreensível 
 que o mesmo regime que permite a constituição de tais relações jurídicas, 
 preveja simultaneamente a sua extinção, através da 'consolidação, na pessoa do 
 rendeiro, do direito da propriedade do solo, mediante remição', para pôr fim a 
 
 'uma forma injusta de exploração da terra e uma violação dos princípios 
 elementares de justiça social'.
 
  
 Carlos Pamplona de Oliveira