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Processo n.º 284/06
 
 3ª Secção
 Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
 
  
 
                                                                               
 
  
 Acordam, na 3ª Secção  do Tribunal Constitucional:
 
  
 
  
 
          1. Por sentença do Tribunal Judicial da Comarca de São Vicente de 7 de 
 Dezembro de 2004, de fls. 158, A. foi absolvido da prática do crime de furto 
 qualificado, previsto e punido no artigo 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2, e), por 
 referência ao artigo 202.º, alíneas d) e e), todos do Código Penal, pela qual 
 tinha sido acusado, e homologada a desistência da queixa apresentada pelo 
 ofendido quanto à prática de crime de furto simples, previsto e punido no artigo 
 
 203.º, n.º 1, do Código Penal sendo, consequentemente, declarado extinto o 
 procedimento criminal.
 
          Para o efeito, considerou-se o seguinte na referida sentença:
 
  
 
 “É, no entanto, de salientar que os bens furtados pelo arguido são no valor de 
 
 87,20 Euros.
 
          De acordo com o preceituado no artº 204.º, n.º 4, do C. P., «Não há 
 lugar à qualificação se a coisa furtada for de diminuto valor».
 
          Nos termos do disposto no artº 202.º, al. c), do C. P., «valor diminuto 
 
 é aquele que não exceder uma unidade de conta avaliada no momento da prática do 
 facto».
 
          No caso vertente, atendendo a que o valor dos bens furtados é inferior 
 a uma unidade de conta, não há lugar à qualificação do crime, nos termos 
 sobreditos.
 
          Destarte, resulta da factualidade provada o preenchimento pelo arguido 
 do sobredito elemento típico do tipo legal base do crime de furto simples.
 
          (…)
 
          Porém, no caso em apreço mostra-se que o ofendido, em audiência de 
 julgamento, manifestou o propósito de desistir do procedimento criminal.
 
          A tal desistência de queixa não se opôs o arguido (art. 116.º, n.º 2 do 
 Código Penal).
 
          Pelo exposto, sendo certo que o ilícito em questão tem natureza 
 semi-pública (cfr. n.º 3 do artigo 203.º do C. P.), homologo a desistência de 
 queixa apresentada pelo ofendido Manuel Luís Pereira Costa e, consequentemente, 
 declaro extinto o procedimento criminal.”
 
  
 
          Notificado da sentença, o Ministério Público recorreu para o Tribunal 
 da Relação de Lisboa que decidiu, por acórdão de 25 de Janeiro de 2006, de fls. 
 
 216, 'conceder provimento ao recurso, revogando (…) a sentença recorrida e 
 condenando o arguido, como autor material de um crime de furto qualificado, p. e 
 p. nos arts. 203.º e 204.º, n.º 2 alínea e), com referência ao art. 202.º als d) 
 e e), todos do Código Penal, na pena de dois anos de prisão, com execução da 
 mesma suspensa pelo período de 1 ano.'
 
          Na parte que agora releva, diz-se neste acórdão:
 
  
 
   'A) Primeira questão (qualificação do crime de furto)
 
 (…) Assente que a conduta descrita integra a prática de um crime de furto 
 simples, p. e p. no art. 203º CP, importa agora determinar se a mesma é ou não 
 subsumível à circunstância agravante ou modificativa prevista na alínea e), do 
 n.º 2, do art. 204.º, como se conclui na douta acusação.
 
   O art. 204.º CP parte do conceito de furto simples (cujos elementos 
 constitutivos se acabaram de analisar), utilizando para isso, simplesmente, a 
 palavra “furtar”.
 
   Enumera, de forma taxativa, as circunstâncias agravantes que qualificam o 
 furto e que, consequentemente, modificam a pena aplicável.
 
   Determina o art. 204.º n.º 2 al. e), do C.P. revisto, que:
 
   “Quem furtar coisa móvel alheia: penetrando em habitação, ainda que móvel, 
 estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, (…), por 
 escalamento ou chaves falsas; é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.”.
 
   O crime de furto é qualificado quando a conduta do agente preenche qualquer 
 uma das qualificativas previstas no art. 204.º do C.P. de 95. São elas, naquilo 
 que ao caso concreto interessa, a prática do crime com introdução em 
 estabelecimento comercial por escalamento; introdução em espaço fechado por 
 chaves falsas.
 
   O escalamento significa, designadamente, a introdução em casa ou em lugar 
 fechado dela dependente, por local não destinado normalmente à entrada. As 
 chaves falsas são, nomeadamente, quaisquer instrumentos que possam servir para 
 abrir fechaduras.
 
          No que diz respeito à desqualificação prevista, por força do n.º 4 do 
 artigo 204.º do Código Penal, dispõe tal normativo:
 
          «Não há lugar à qualificação se a coisa furtada for de diminuto valor.»
 
          E valor diminuto é aquele que não excede uma unidade de conta avaliada 
 no momento da prática do crime – alínea c) do artigo 202.º do Código Penal.
 
          Aquando da perpetração do referido crime (Setembro de 2002) o valor da 
 UC estava avaliado em € 79,81 – cfr. artigo 3.º, do Decreto-Lei n.º 323/2001, de 
 
 17 de Dezembro.
 
          Ora, sendo de € 87,20 o valor dos objectos furtados (ponto 4. da 
 matéria de facto), que ultrapassa o daquela UC não poderá, pois, 
 desqualificar-se o referido crime de furto.
 
          (…) Entendemos, salvo melhor opinião, que “aquela norma (artigo 202.º, 
 al. c), do CP) é explícita e esclarecedora, sendo perfeitamente determinável o 
 conteúdo do elemento valor, seja valor diminuto, seja valor elevado, seja valor 
 consideravelmente elevado. Dada a referência nele consignada, o conteúdo do 
 valor está previamente determinado pelo jogo do reenvio externo.
 
          Não se justifica, por isso, não a aplicar.
 
          Assim, porque inexistem causas que excluam a ilicitude do acto ou a 
 culpa do arguido, cometeu aquele o crime de furto qualificado por que vinha 
 acusado.”
 B)  Segunda questão – Natureza pública do crime de furto qualificado que não 
 permite desistência de queixa
 O crime de furto qualificado previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1, 
 
 204.º., n.º 2 alínea e), do aludido compêndio substantivo, reveste natureza 
 pública não dependendo da vontade do ofendido o prosseguimento do processo, pelo 
 que a declaração de desistência de queixa apresentada pelo ofendido Manuel Luís 
 Pereira Costa, não produz qualquer efeito, atendendo aos actos provados.'
 
  
 
          2. Inconformado, A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, 
 nos seguintes termos:
 
  
 
 “1. O recurso é interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 
 
 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (na redacção que lhe foi dada pela Lei 
 n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro);
 
 2. O arguido pretende ver apreciada a constitucionalidade da norma da alínea c) 
 do artigo 202.º do Código Penal (quando aplicável por força de um dos artigos do 
 capítulo II, do título II do Código Penal – nomeadamente, o artigo 204.º) com a 
 interpretação ou no sentido de vedar a aplicação da lei penal nova que, em 
 função do valor, transforma um crime público em crime semi-público (tendo havido 
 desistência da queixa apresentada). Dito de outro modo: é materialmente 
 inconstitucional, por aplicação, nomeadamente, do princípio da aplicação 
 retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável, a norma constante da alínea 
 c) do artigo 202.º do Código Penal, na medida em que veda a aplicação da lei 
 penal nova que atribui relevância à desistência de queixa, transformando em 
 crime semi-público um crime público;
 
 3. Tal norma, nos termos e com o sentido com que foi aplicada (pelo Tribunal da 
 Relação de Lisboa), além de violar o disposto no n.º 4 do artigo 2.º do Código 
 Penal, afronta directamente o princípio da aplicação retroactiva da lei penal 
 mais favorável, consagrado no n.º 4 do artigo 29.º da Constituição e, bem assim, 
 o princípio da necessidade da pena (n.º 2 do artigo 18.º) e, ainda, o princípio 
 da igualdade, consagrado no artigo 13.º do diploma fundamental;
 
 (…)”.
 
  
 
          3. Admitido o recurso, e como já constassem dos autos as alegações do 
 recorrente, foi o Ministério Público notificado para o efeito.
 
          São as seguintes as conclusões do recorrente:
 
  
 
 “1. À data da douta sentença de 1.ª instância, o valor dos objectos furtado é 
 inferior à Unidade de Conta em vigor.
 
 2. Os objectos furtados são de valor diminuto.
 
 3. Os factos que integram o tipo de ilícito continuam a ser puníveis, é certo, 
 mas com diferente regime penal, mais favorável ao arguido, nomeadamente, quanto 
 
 à pena aplicável em abstracto e quanto aos pressupostos processuais.
 
 4. O tipo de ilícito praticado foi o crime de furto simples.
 
 5. Tal ilícito criminal tem a natureza de crime semi-público.
 
 6. A nova lei ou o novo regime penal passa a fazer depender o procedimento de 
 queixa do ofendido, e, consequentemente, a considerar relevante a desistência de 
 queixa, sendo que o resultado da sua aplicação é equivalente ao que decorre de 
 uma lei que descriminaliza a conduta do arguido. A aplicação do novo regime 
 determina a não punição do arguido (vide: acórdão do Tribunal Constitucional n.º 
 
 677/98, proferido no processo  n.º 194/97).
 
 7. Tal crime admite a desistência de queixa.
 
 8. O ofendido manifestou, em audiência de julgamento, a vontade em desistir do 
 procedimento criminal.
 
 9. O arguido a tal não se opôs.
 
 10. O n.º 4 do artigo 29.º da CRP determina e exige a aplicação retroactiva da 
 lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido.
 
 11. A lei (ou o regime) que permite a desistência de queixa é mais favorável ao 
 arguido do que aquela que não o permite.
 
 12. O tribunal de 1.ª instância ao decidir como decidiu, fez uma aplicação 
 correcta da lei e do direito, na medida em que, segundo as disposições penais em 
 vigor, aplicou o regime que concretamente se mostrou ( e mostra) mais favorável 
 ao arguido (n.º 4, do artigo 2.º do Código Penal, em conjugação com o n.º 4 do 
 artigo 29.º da CRP).
 
 13. Pelo contrário, o Tribunal da Relação de Lisboa, decidindo em recurso, fez 
 uma errada interpretação e aplicação da lei e do Direito, ao atender apenas ao 
 momento da prática do facto e dessa forma fundamentar a punição do arguido à 
 revelia da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável ao arguido (n.º 4 
 do artigo 2.º do CP e n.º 4 do artigo 29.º da CRP).
 
 14. A norma da alínea c) do artigo 202.º do Código Penal (quando aplicável por 
 força de um dos artigos do capítulo II, do título II do Código Penal – 
 nomeadamente o artigo 204.º) é materialmente inconstitucional, por violação do 
 princípio da aplicação da lei penal de conteúdo mais favorável, quando ou se 
 interpretada no sentido de vedar a aplicação da lei penal nova que, em função do 
 valor, transforma em crime semi-público um crime público.”
 
  
 
          Por seu turno, o Ministério Público concluiu as suas alegações da 
 seguinte forma:
 
  
 
        “1 – Mantendo-se o regime legal definido na alínea c) do artigo 202.º do 
 Código Penal, segundo o qual o valor diminuto é aquele que não excede uma 
 unidade de conta avaliada no momento da prática do facto, não se coloca qualquer 
 questão de aplicação retroactiva de lei penal nova mais favorável, por virtude 
 da actualização trienal do montante da citada unidade de conta, ao abrigo de 
 legislação não penal sobre a matéria.
 
          2 – Inexistindo quaisquer violações de princípios ou normas 
 constitucionais, designadamente a do artigo 29.º, n.º 4, da Lei Fundamental, 
 deve o presente recurso improceder.”
 
  
 
          4. Cumpre começar por fixar o objecto do recurso, tendo em conta a 
 forma como o recorrente o apresenta no requerimento de interposição.
 
  
 
 É o seguinte o texto da norma impugnada pelo recorrente:
 
  
 Artigo 202.º
 
 (Definições legais)
 Para efeitos do disposto nos artigos seguintes considera-se:
 
 (…)
 c) Valor diminuto: aquele que não exceder uma unidade de conta avaliada no 
 momento da prática do facto;
 
 (…)
 
  
 
          O recorrente não incluiu no objecto do recurso, nem a norma que 
 consagra o princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável (seja 
 a constante do n.º 2, seja a constante do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal), 
 nem a que prevê a possibilidade de desistência da queixa, nos crimes em que o 
 procedimento criminal depende de queixa, como é o caso do furto simples (artigos 
 
 116º, n.º 2 e 203º, n.º 3 do Código Penal). Refere, todavia, que o preceito 
 acima transcrito é impugnado enquanto aplicável por força do disposto no artigo 
 
 204º do Código Penal, ou seja, enquanto relevante para a agravação do crime de 
 furto.
 
          Daqui não resulta, no entanto, qualquer obstáculo ao conhecimento do 
 recurso porque, no caso, constitui questão prévia à da admissibilidade da 
 desistência a questão de saber se o furto em causa deve ou não ser havido como 
 furto qualificado, o que, por força do disposto no n.º 4 do artigo 204º do 
 Código Penal, depende da interpretação e aplicação da norma da alínea c) do 
 referido artigo 202º.
 
          Nestes termos, o presente recurso tem por objecto a norma da alínea c) 
 do artigo 202º do Código Penal, aplicável ao crime de furto por força do n.º 4 
 do artigo 204º do mesmo Código, enquanto interpretada no sentido de considerar 
 relevante o valor da unidade de conta vigente à data da prática do facto, 
 impedindo a aplicação de lei posterior que o venha aumentar.
 O recorrente entende que esta interpretação é inconstitucional por violação do 
 princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, consagrado no 
 n.º 4 do artigo 29º da Constituição, do princípio da necessidade da pena (n.º 2 
 do artigo 18º) e do princípio da igualdade (artigo 13º).
 
  
 
          5. A reforma do Código Penal introduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 
 
 15 de Março, trouxe alterações significativas no tratamento dos crimes contra o 
 património (cfr., por exemplo, Teresa Pizarro Beleza e Frederico Lacerda da 
 Costa Pinto, A tutela penal do património após a revisão do Código Penal, 
 Lisboa, 1998, pp. 5 e segs. e 55 e segs.,  José de Faria Costa, Comentário 
 Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo II, Coimbra, 1999, anotação 
 ao artigo 202º, M. Maia Gonçalves, Código Penal Português, Anotado e Comentado, 
 
 17ª edição., Coimbra, 2005, pp.666 e segs.).
 
          Em particular no que respeita ao crime de furto, interessa agora 
 salientar que o furto simples passou de crime público a crime semi-público (cfr. 
 artigos 286º da versão inicial do Código Penal de 1982 e 203º, n.º 3, na 
 redacção resultante do Decreto-Lei n.º 48/95) e que foram definidos quatro 
 escalões relevantes para a respectiva punição.
 
          Para marcar os referidos escalões, o legislador, sem voltar ao sistema 
 de definir montantes fixos para o valor da coisa furtada, como sucedia no 
 domínio do Código Penal de 1886 (cfr. respectivo artigo 421º), optou por remeter 
 para o montante da 'unidade de conta'.
 Este valor determina-se, segundo o disposto no artigo 5º (cujo n.º 2 tem hoje a 
 redacção resultante do artigo 31º do Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de 
 Dezembro) do Decreto-Lei n.º 212/89, de 30 de Junho, por referência ao montante 
 da 'remuneração mínima mensal mais elevada' fixada para os trabalhadores por 
 conta de outrem vigente à data da prática do facto, e é actualizado 
 periodicamente, nos termos previstos no artigo 6º, n.º 1, do mesmo diploma. 
 Assim passou a constar expressamente, aliás, do artigo 3º da Lei n.º 65/98, de 2 
 de Setembro, que alterou o Código Penal.
 
          Pretendeu-se, por esta via, e em primeiro lugar, ultrapassar 
 dificuldades e incertezas existentes face à utilização, pela anterior redacção 
 do Código, de 'cláusulas gerais' para a definição das condições de agravação do 
 crime de furto (artigo 421º da versão inicial de Código Penal de 1982).
 
          Isto mesmo se explica, aliás, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 48/95: 'A 
 mais importante alteração reside no abandono do modelo vigente de recurso a 
 conceitos indeterminados ou de cláusulas gerais de valor enquanto critérios de 
 agravamento ou de privilégio, de modo a obviar as dificuldades que têm sido 
 reveladas pela jurisprudência e a que o legislador não se pode manter alheio. 
 Nesta conformidade, e sem regressar contudo ao velho modelo de escalões de valor 
 patrimonial prefixado, optou-se por uma definição quantificada de conceitos como 
 valor elevado, consideravelmente elevado e diminuto, enquanto fundamentos de 
 qualificação ou privilégio. Desta forma, pretende-se potenciar uma maior 
 segurança e justiça nas decisões'.
 
          Pretendeu-se ainda, e em segundo lugar, ao escolher como índice o valor 
 da unidade de conta (cfr. em especial pp. 322, 331, 345, 530 de Código Penal –  
 Actas e Projecto da Comissão de Revisão, publ. do Ministério da Justiça, Lisboa, 
 
 1993), criado pelo referido Decreto-Lei n.º 212/89, garantir a actualização 
 periódica dos montantes de referência, assim se ultrapassando dificuldades 
 decorrentes da erosão monetária.
 
          E, em terceiro lugar, ao definir como momento relevante para a 
 determinação do valor da unidade de conta o da 'prática do facto', pretendeu-se 
 garantir a correspondência substancial entre o valor da coisa furtada, fixado 
 com referência a esse mesmo momento, e a gravidade da respectiva punição, na 
 medida em que desse valor dependa.
 
          O texto actual dos artigos 5º e 6º, n.º 1, do citado Decreto-Lei n.º 
 
 212/89 é o seguinte:
 Artigo 5º
 
 1 – Em substituição da unidade de conta processual penal (UC) e da unidade de 
 conta de custas (UCC), é criada a unidade de conta processual (UC), à qual passa 
 a reportar-se qualquer referência lega às primeiras.
 
 2  –Entende-se por unidade de conta processual (UC) a quantia em dinheiro 
 equivalente a um quarto da remuneração mínima mensal mais elevada, garantida no 
 momento da condenação, aos trabalhadores por conta de outrem, arredondada, 
 quando necessário, para a unidade de euros mais próxima ou, se a proximidade for 
 igual, para a unidade de euros imediatamente inferior. 
 
  
 Artigo 6º 
 
 1 – Trienalmente, e com início em Janeiro de 1992, a UC considera-se 
 automaticamente actualizada nos termos previstos no artigo anterior a partir de 
 
 1 de Janeiro de 1992, devendo, para o efeito, atender-se sempre à remuneração 
 mínima que, sem arredondamento, tiver vigorado no dia 1 de Outubro do ano 
 anterior.
 
                   (…) 
 
  
 
          6. O artigo 202º do Código Penal, nas suas alíneas a), b) e c), optou, 
 portanto, por remeter para normas não penais a integração dos conceitos que 
 utiliza para a qualificação do furto: valor elevado, valor consideravelmente 
 elevado, valor diminuto. 
 Sobre a utilização desta técnica do 'reenvio externo', criticada por José de 
 Faria Costa  a pp. 12-13 da anotação acima referida, nomeadamente pela sua 
 
 'fragilidade de legitimação constitucional', já o Tribunal Constitucional teve a 
 oportunidade de se pronunciar no acórdão n.º 232/2002 (Diário da República, II 
 série, de 18 de Julho de 2002), a propósito do crime de burla qualificada, em 
 termos que importa recordar.
 Estava então em causa a questão da compatibilidade com o 'princípio da 
 legalidade penal, na dimensão da reserva de lei quanto às normas incriminadoras, 
 consagrado, conjugadamente, nos artigos 29º, n.º 1 (…) e 165º, n.º 1, alínea c), 
 da Constituição', problema que o Tribunal  apreciou da seguinte forma: 
 
 'Do mesmo modo, no caso dos autos,  a definição e a actualização do montante da 
 UC, operada pela remissão da norma do artigo 202º, alínea  b), do Código Penal,  
 não integra qualquer inovatória definição dos elementos relevantes do tipo legal 
 do crime em causa – o crime de burla qualificada – não deixando a descoberto 
 qualquer elemento essencial para a compreensão da conduta proibida ou para o 
 controlo democrático da incriminação.
 Ora, nem o conteúdo da proibição legal resulta das normas  atinentes à 
 determinação do montante da UC, nem a norma “remissiva” – do artigo 202º, alínea 
 
  b) – é uma norma em branco que delegue o poder de definir o conteúdo da 
 incriminação.
 Na verdade,  são as normas relativas à previsão e punição do crime de burla 
 qualificada que determinam o critério da ilicitude e orientam suficientemente os 
 destinatários dessas normas quanto às condutas que são efectivamente proibidas.
 Por outras palavras, que são (…) as do (…) acórdão 427/95, o cerne do proibido, 
 o núcleo essencial da conduta punível, o seu conteúdo de desvalor a respeito da 
 lesão ou colocação em perigo de bens jurídicos, é revelado na lei penal, 
 fundamentando-se na sua violação a culpa do agente.
 Assim, é evidente que a norma de índole técnico-económica que, em concreto 
 define e actualiza o montante da UC, não tem de estar subordinada ao princípio 
 da reserva de lei que vigora no âmbito do direito penal.
 A observância da reserva de lei é assegurada pelas normas incriminatórias do 
 tipo legal de crime em causa.'
 
  
 
          Não é esta a questão que, especificamente, está em causa no âmbito do 
 presente recurso. É, todavia, necessário partir deste juízo de não 
 inconstitucionalidade para apreciar o problema colocado pelo recorrente, já que 
 ficaria prejudicado por um entendimento de sinal contrário.
 
  
 
 7. Segundo o acórdão recorrido, em Setembro de 2002, ou seja, à data da prática 
 do crime pelo qual foi condenado o ora recorrente, furto de objectos avaliados 
 em 87,20 €, o valor da unidade de conta era de 79,81 €. (artigo 3º do 
 Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro).
 Conforme alega o recorrente, na altura da sentença (Dezembro de 2004), uma 
 unidade de conta tinha o valor de 89,00 €., em resultado do disposto no 
 Decreto-Lei n.º 320-C/2002, de 30 de Dezembro.
 
          Desta alteração do valor da unidade de conta retira o recorrente a 
 consequência de que, por exigência do princípio da aplicação retroactiva da lei 
 penal mais favorável, consagrado no n.º 4 do artigo 2º do Código Penal e no n.º 
 
 4 do artigo 29º da Constituição, deve ser considerado relevante o valor vigente 
 
 à data da sentença, como julgou a primeira instância, e não o que vigorava à 
 data da prática do facto, como entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa, em 
 aplicação do disposto na alínea c) do artigo 202º do Código Penal.
 
          Em apoio desta conclusão, o recorrente cita o acórdão n.º 677/98 
 
 (Diário da República, II série, de 4 de Março de 1999), no qual se julgou 
 inconstitucional, 'por violação do princípio da aplicação retroactiva da lei 
 penal mais favorável, consagrado no n.º 4 do artigo 29º da Constituição, a norma 
 constante do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal, na parte em que veda a 
 aplicação da lei penal nova que transforma em crime semi-público um crime 
 público, quando tenha havido desistência da queixa apresentada e trânsito em 
 julgado da sentença condenatória'.
 
          Para alcançar este julgamento, o acórdão n.º 677/98 considerou ser 
 irrelevante averiguar da natureza material ou processual 'da lei que transforma 
 um crime público em semi-público'. Entendeu que 'não pode extrair-se da natureza 
 jurídica que se atribua à nova lei uma decisão quanto à necessidade 
 constitucional da sua aplicação retroactiva. Esta decisão há-de resultar do 
 sentido e alcance da garantia constitucional em causa, bem como da virtualidade 
 revelada pelas normas que se sucedem no tempo para afectar a situação concreta 
 dos arguidos ou condenados. Ora, a nova lei é de tal modo relevante para a 
 situação concreta dos agentes, no caso sub iudice, que a sua aplicação levaria à 
 não punição'.
 
          E analisou ainda os fundamentos do princípio da aplicação retroactiva 
 da lei penal mais favorável, em termos que cabe relembrar:
 
          '3. É nos seus artigos 1º e 2º que o Código Penal estabelece as regras 
 relativas à aplicação no tempo das normas penais. A par do princípio “tempus 
 regit actum”, consagrado no nº 1 do artigo 2º (cfr. a primeira parte do nº 4 do 
 art. 29º da Constituição), cuja dimensão mais importante se concretiza na 
 irretroactividade da lei penal incriminadora (nº 1 do artigo 1º do Código Penal 
 e nº 3 do artigo 29º da Constituição), prescreve este diploma um outro 
 princípio, complementar do anterior, nos números 2 e 4 do seu artigo 2º: o da 
 retroactividade da lei mais favorável. 
 Distingue o Código Penal, quanto a este último ponto, duas hipóteses: a de o 
 facto, punível segundo a lei vigente no momento da sua prática, deixar de o ser, 
 porque a nova lei o eliminou do número das infracções (nº 2 do artigo 2º); e a 
 de “as disposições penais vigentes no momento da prática do facto” serem 
 
 “diferentes das estabelecidas em leis posteriores” (nº 4 do mesmo artigo 2º).
 Incluem-se, assim, na primeira as situações em que é eliminada a punibilidade de 
 um facto concreto, independentemente da via técnica através da qual se alcançou 
 tal resultado (eliminação da norma incriminadora, alteração da descrição do 
 facto típico, aditamento de uma nova causa de justificação ou de exculpação, ou 
 alargamento do âmbito de aplicação das já existentes...). Diferentemente, na 
 segunda contemplam-se os casos em que o facto, que era punível com base na lei 
 antiga, continua a ser punível à luz da lei nova, mas agora com diferente regime 
 penal (é alterada a pena que concretamente deve ser aplicada, são alteradas as 
 condições da suspensão da execução da pena, os casos ou os prazos em que pode 
 ser concedida a liberdade condicional, por exemplo).
 A esta distinção vem a corresponder uma diferente estatuição. Assim, por força 
 do nº 2 do artigo 2º, a aplicação da lei mais favorável, que elimina a 
 incriminabilidade do facto concreto praticado, acarreta uma não punição do 
 agente, e, em consequência, a cessação da execução da pena e dos efeitos penais 
 decorrentes de uma eventual condenação, ainda que transitada em julgado. Ao 
 invés, a aplicação da lei nova mais favorável, quando não afasta a 
 incriminabilidade do facto, está legalmente condicionada à não formação anterior 
 de caso julgado da sentença condenatória, nos termos do nº 4 do artigo 2º.
 Substancialmente, a diferença de regimes explicar-se-ia pela circunstância de 
 neste último caso não haver “uma nova avaliação quanto à natureza criminal do 
 facto, que permanece punível”, apenas se entendendo “que bastará para o reprimir 
 uma sanção mais leve ou que comporte efeitos penais menos graves” (MANUEL 
 ANTÓNIO LOPES ROCHA, “Aplicação da lei criminal no tempo e no espaço”, Jornadas 
 de Direito Criminal – o Novo Código Penal e Legislação Complementar, Lisboa, 
 
 1993, pág. 99).
 O problema de constitucionalidade suscitado reside em saber se é ou não conforme 
 com a Lei Fundamental a norma do nº 4 do artigo 2º do Código Penal de 1982, na 
 parte em que veda a aplicação da lei penal nova que transforma em crime 
 semi-público um crime público, quando tenha havido desistência da queixa 
 apresentada e trânsito em julgado da sentença condenatória.
 
 (…) 4. É no capítulo dedicado aos direitos, liberdades e garantias pessoais que 
 a Constituição consagra os princípios básicos relativos à “aplicação da lei 
 criminal” (artigo 29º). Entre eles, contam-se o princípio da legalidade, o 
 princípio da irretroactividade da lei incriminadora, o princípio da aplicação 
 retroactiva da lei penal mais favorável, o princípio ne bis in idem e o direito 
 
 à revisão da sentença e à indemnização em caso de condenação injusta.
 
  Na parte que agora nos importa considerar, o nº 4 do artigo 29º determina que 
 se aplicam “retroactivamente  as leis penais de conteúdo mais favorável ao 
 arguido”.
 
          Não se afigura difícil encontrar o fundamento substancial para esta 
 regra, que decorre directamente do princípio que a doutrina tem denominado da 
 necessidade das penas (ou da tutela penal) ou da máxima restrição das penas ( 
 Acórdão deste Tribunal nº 290/97, de 12 de Março de 1997, publ. no Diário da 
 República, II, de 15 de Maio de 1997 e FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE, “Direito 
 Penal – Questões fundamentais – a doutrina geral do crime”, em curso de 
 publicação, Coimbra, 1996, págs. 66 e segs.; MARIA FERNANDA PALMA, “Direito 
 Penal - Parte Geral”, Lisboa, 1994, pág. 65 e segs.; TERESA PIZARRO BELEZA, 
 
 ”Direito Penal”, 1º vol., 2ª ed., Lisboa, 1985, pág. 50 e segs.; JOSÉ SOUSA E 
 BRITO, “A lei penal na Constituição”, Estudos sobre a Constituição, 2º vol., 
 Lisboa, 178, págs. 199 e segs. e 222 e segs.; TAIPA DE CARVALHO, “Sucessão de 
 Leis Penais”, 2ª edição, Coimbra, 1997, págs. 102 e segs.).
 
  Resulta deste princípio a asserção de que a legitimidade das penas criminais 
 depende da sua necessidade, adequação e proporcionalidade, em sentido estrito, 
 para a protecção de bens ou interesses constitucionalmente tutelados; e o seu 
 valor assenta na verificação de que “qualquer criminalização e respectiva 
 punição” (ANABELA MIRANDA RODRIGUES, “A determinação da medida da pena privativa 
 de liberdade”, Coimbra, 1995, pág. 255) determina a restrição de direitos, 
 liberdades e garantias das pessoas (maxime, do direito à liberdade, consagrado 
 no nº 1 do artigo 27º da Constituição).  Ora, tal restrição só pode 
 justificar-se, nos termos do nº 2 artigo 18º, quando se mostre necessária para a 
 salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos
 
  Pode afirmar-se, assim, que a garantia da aplicação da lei penal mais favorável 
 se limita a exprimir, ou a traduzir, na matéria dos limites temporais da 
 aplicação da lei penal, o princípio da necessidade das penas. Na verdade, se, em 
 momento posterior à prática do facto, a pena se revela desnecessária, torna-se 
 constitucionalmente ilegítima.
 
  5. Como já se viu, a norma do nº 4 do artigo 2º do Código Penal foi 
 interpretada pelo Supremo Tribunal de Justiça no sentido de não permitir a 
 aplicação retroactiva da lei que transforma em crime semi-público um crime 
 público – lei que é, por isso, mais favorável – e de impedir, consequentemente, 
 a relevância da desistência da queixa apresentada.
 
          Apurado o fundamento do nº 4 do artigo 29º da Constituição, impõe-se a 
 conclusão de que se verifica uma contradição formal entre esta disposição e a 
 norma do nº 4 do artigo 2º do Código Penal, com o alcance com que foi aplicada 
 pelo acórdão recorrido (…).
 
 (…) Ora, a verdade é que, independentemente de outras considerações, se 
 considera que o respeito pelo núcleo essencial da garantia afirmada no nº 4 do 
 artigo 29º da Constituição implica, pelo menos, que o caso julgado da condenação 
 não afaste a aplicação retroactiva da lei nova descriminalizadora ou que produz 
 efeitos substancialmente análogos.
 Não estando em causa, neste processo, averiguar da conformidade constitucional 
 da não aplicação retroactiva da lei mais favorável a todos os casos 
 hipoteticamente abrangidos pelo nº 2 do artigo 4º do Código Penal, há que 
 entender que, na parte em que constitui objecto do presente recurso, esta norma 
 não respeita o conteúdo essencial do nº 4 do artigo 29º da Constituição. Com 
 efeito, se a nova lei passa a fazer depender o procedimento de queixa da 
 ofendida, e, consequentemente, a considerar relevante a desistência da queixa, o 
 resultado da sua aplicação é equivalente ao que decorre de uma lei que 
 descriminaliza, em sentido próprio, a conduta do agente. Num caso como no outro, 
 a aplicação da lei nova determinaria a não punição'.
 
  
 
 8. Não são, porém, comparáveis as situações colocadas nos dois recursos.
 
 É exacto que, em último caso, também agora se trata, afinal, de saber se pode ou 
 não relevar para efeitos de não punição (aqui, por extinção do procedimento 
 criminal) a desistência da queixa por parte do ofendido. E é igualmente exacto 
 que, também nos dois casos, a resposta a essa questão depende de se poder passar 
 a tratar como crime semi-público um crime que, quando foi praticado, constituía 
 um crime público.
 Sucede, todavia, que, no caso a que respeita o acórdão n.º 677/98 (e abstrai-se 
 agora da questão do caso julgado da decisão condenatória então em causa, que não 
 releva), se colocava efectivamente, nos termos ali desenvolvidos, uma questão de 
 sucessão de leis no tempo – a lei antiga, segundo a qual o crime então em causa 
 era um crime público, e a lei nova, de acordo com a qual o crime passou a ser 
 considerado como um crime semi-público –, que havia de ser abrangida pelo 
 referido princípio da aplicação retroactiva. 
 No caso presente, diferentemente, não ocorreu entre os dois momentos em causa – 
 o da prática do facto e o da condenação – qualquer alteração da lei penal 
 decisivamente aplicável, a alínea c) do artigo 202º do Código Penal, já que 
 sempre vigorou a regra de que o valor relevante da unidade de conta é o que 
 corresponder ao momento da prática do facto.
 Dir-se-á eventualmente que a inconstitucionalidade reside precisamente na 
 desconsideração da elevação do valor da unidade de conta, posterior à prática da 
 infracção; e que afecta, portanto, a parte da alínea c) do artigo 202º do Código 
 Penal que conduz a essa consequência.
 A verdade, no entanto, é que essa afirmação se não pode em caso algum justificar 
 com o princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, cuja razão 
 de ser foi já apontada, por transcrição do acórdão n.º 677/98.
 Com efeito, não se verificam as razões de tal aplicação retroactiva. O resultado 
 alcançado através do reenvio para a lei que fixa o valor da unidade de conta e, 
 em especial, para o regime definido para a respectiva actualização não assenta 
 em nenhuma alteração de perspectiva do legislador penal sobre o desvalor da 
 conduta incriminada; antes se explica, como se disse já, pela preocupação de 
 evitar as consequências que indirectamente pudessem resultar da erosão 
 monetária.
 Não tem assim cabimento, no caso, ir averiguar se as normas integradoras da 
 definição constante da alínea c) do artigo 202º do Código Penal, e, por essa 
 via, do n.º 4 do artigo 204º do mesmo Código – constantes dos artigos 5º e 6º, 
 n.º 1, do Decreto-Lei n.º 212/89 – adquirem ou não a natureza das normas 
 integradas, já que tal questão não tem relevo para o que agora interessa.
 Aplicar o valor vigente à data da condenação quebraria, como também se observou 
 já, a correspondência material que o legislador quis manter entre o valor da 
 coisa furtada, que não é reavaliada nesse momento, e a gravidade da punição do 
 furto.
 Só pode, assim, concluir-se que a norma constante da alínea c) do artigo 202º do 
 Código Penal, interpretada nos termos definidos, não viola, nem o princípio da 
 aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, nem, pelas mesmas razões, o 
 princípio da necessidade da pena.
 E não viola, seguramente, o princípio da igualdade, alegação que o recorrente 
 também não fundamenta.
 
  
 
 9. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.
 Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs. 
 Lisboa, 27 de Setembro de 2006
 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
 Gil Galvão
 Vítor Gomes
 Bravo Serra (Vencido, nos termos da declaração de voto junta)
 Artur Maurício
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 
  
 
  
 
                       Votei vencido, quer quanto ao conhecimento do objecto do 
 recurso, quer quanto ao juízo de não inconstitucionalidade formulado no aresto a 
 que a presente declaração se encontra apendiculada.
 
  
 
                       Assim:
 
  
 
                       1. Aquando do recurso interposto pelo Ministério Público 
 para o Tribunal da Relação de Lisboa e concernente à sentença proferida no 
 Tribunal de comarca de São Vicente, teve o ora recorrente oportunidade de 
 responder à motivação apresentada pela entidade então impugnante.
 
  
 
                       Todavia, nessa resposta, o ora recorrente não suscitou, a 
 meu ver, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, designadamente 
 reportada aos preceitos constantes das disposições conjugadas dos artigos 202º, 
 alínea c), 203º e 204º, números 2, alínea e), e 4, todos do Código Penal.
 
  
 
                       Ora, com o recurso então interposto da sentença prolatada 
 na 1ª instância, o que se pretendia discutir era, justamente, a questão de saber 
 se – muito embora existisse uma circunstância por via da qual a subtracção 
 indiciariamente cometida pelo arguido e que lhe era imputada na acusação, 
 conduzisse, em abstracto, a que a mesma fosse de considerar como 
 consubstanciando o cometimento de um crime de furto qualificado, tendo em conta 
 o facto de, atento o valor da coisa subtraída ao tempo da indiciária prática dos 
 factos (valor superior a uma unidade de conta), cobrar aplicação o disposto no 
 nº 4 do artº 203º, com referência à alínea c) do artº 202º, um e outro do Código 
 Penal, – tendo em atenção que, aquando da prolação da sentença, já tinha sido 
 alterado para quantitativo superior o valor dessa unidade, haveria, ou não, de 
 se atender a esse último quantitativo, para efeitos de se considerar como não 
 podendo o furto ser havido como qualificado e, sendo dada resposta afirmativa a 
 essa questão, se tomar em linha de conta a «desistência de queixa» apresentada 
 pelo ofendido. 
 
  
 
                       Nesse contexto, e em face do modo como se postava a 
 pretensão de recurso do Ministério Público, era absolutamente previsível que 
 fossem aqueles os normativos que haveriam de ser convocados pelo então 
 proferendo acórdão da 2ª instância.
 
  
 
                       Mas, sendo assim, recaía sobre o então recorrido e ora 
 recorrente, na resposta à motivação de recurso, impostar uma tal questão de 
 desarmonia constitucional.
 
  
 
                       O que não fez, podendo tê-lo feito. Por isso, tratando-se, 
 como se trata, de um recurso esteado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 
 
 28/82, de 15 de Novembro, tenho para mim que não foi cumprido o ónus consistente 
 na suscitação da questão de inconstitucionalidade, o que consequencia, também no 
 meu entender, que se não devesse tomar conhecimento do objecto da vertente 
 impugnação.
 
  
 
  
 
                       2. No que se prende com o juízo de não 
 inconstitucionalidade levado a efeito no presente acórdão, dissenti do mesmo, 
 cumprindo, brevitatis causa, indicar as razões dessa discordância.
 
  
 
                       Acompanho o que é referido neste aresto no sentido de o 
 problema se não poder colocar em sede de aplicação retroactiva da lei penal, 
 pois que o mesmo deve, antes, ser perspectivado como de «remessa» ou «reenvio» 
 para normas não penais de alguns conceitos integrativos do ilícito.
 
  
 
                       Mas, conquanto perfilhe aquele acompanhamento, na minha 
 visão, a questão, em termos substanciais, não se coloca em moldes diversos 
 daqueles casos em que a lei penal, ela mesma, especifica totalmente os elementos 
 do ilícito.
 
  
 
                       Ao jeito de exemplo, se porventura (como, de certo modo, 
 acontecia, no domínio do Código Penal de 1886) a «qualificação» do furto, inter 
 alia e por si só, dependesse do valor da coisa subtraída, explícita e 
 especificamente indicado na lei penal, caso, aquando do proferimento da sentença 
 condenatória, esse valor tivesse sido alterado em termos de «desqualificar» o 
 crime, certamente não se deixaria de atender a essa circunstância, 
 designadamente com relevância na determinação da moldura abstracta da pena e nas 
 causas extintivas do procedimento criminal, precisamente porque essa 
 
 «desqualificação» se afigurava como mais favorável ao arguido.
 
  
 
                       Ora, na minha óptica, a «remessa» ou «reenvio» para normas 
 não penais de um dos elementos do ilícito (ao menos para efeitos de se poder 
 atender à «desistência da queixa») concernente ao valor da coisa subtraída, não 
 pode conduzir a um «congelamento» desse elemento quanto ao tempo da prática do 
 ilícito, em termos de implicar uma desconsideração do reflexo de favorabilidade 
 que advém para quem praticar idêntica acção após ser alterado tal elemento – 
 visto que, então, ou não vai ser perseguido penalmente ou vai beneficiar de um 
 regime que se mostra mais favorável comparativamente àquele que se impunha a 
 quem praticou semelhante facto e foi condenado à «sombra» do regime existente 
 antes dessa alteração.
 
  
 
                       Nesta senda, sou do entendimento de que a interpretação 
 normativa levada a efeito pelo acórdão recorrido perante este Tribunal é 
 ofensiva do nº 4 do artigo 29º da Constituição.
 Bravo Serra