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Processo n.º 299/08
 
 2.ª Secção
 Relator: Conselheiro Mário Torres
 
  
 
  
 
                         Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
 
  
 
  
 
                         1. Relatório
 
                         O Município do Porto interpôs recurso excepcional de 
 revista, para o Supremo Tribunal Administrativo (STA), ao abrigo do artigo 150.º 
 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aprovado pela Lei 
 n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro, contra o acórdão do Tribunal Central 
 Administrativo Norte, de 1 de Fevereiro de 2007, que negou provimento ao recurso 
 jurisdicional interposto pelo recorrente da sentença do Tribunal Administrativo 
 e Fiscal do Porto, de 4 de Janeiro de 2006, que julgara procedente a acção 
 administrativa especial instaurada por A. e anulara, por padecer do vício de 
 incompetência, o despacho do Vereador do Pelouro da Juventude, Desporto, Euro 
 
 2004, Educação e Recursos Humanos da Câmara Municipal do Porto, de 15 de 
 Setembro de 2004, proferido no uso de competências delegadas pelo respectivo 
 Presidente da Câmara, que aplicara ao autor a pena disciplinar de 45 dias de 
 suspensão, com execução suspensa por dois anos.
 
                         As alegações apresentadas pelo recorrente foram 
 sintetizadas nas seguintes conclusões:
 
  
 
             “1. A jurisprudência invocada pelo aresto ora recorrido foi emitida 
 ao abrigo da legislação anterior.
 
             2. O Estatuto Disciplinar foi elaborado, em matéria de lei das 
 autarquias, na vigência da Lei n.º 79/77.
 
             3. Esta lei conferia à câmara municipal o poder de «superintender na 
 gestão e direcção do pessoal ao serviço do município», entendendo‑se caber 
 nesse os poderes de «nomear, contratar ou assalariar, promover, transferir, 
 louvar, punir, aposentar e exonerar os funcionários assalariados municipais».
 
             4. O presidente da câmara já gozava de competência disciplinar mesmo 
 antes de ser órgão autónomo – órgão municipal –, o que resulta do n.º 4 do 
 artigo 18.º do Estatuto Disciplinar.
 
             5. Hoje, de acordo com o artigo 68.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 
 
 169/99, «compete ao presidente da câmara municipal decidir todos os assuntos 
 relacionados com a gestão e direcção dos recursos humanos afectos aos serviços 
 municipais».
 
             6. A competência do presidente da câmara para a gestão e direcção 
 dos recursos humanos afectos aos serviços municipais é originária e exclusiva.
 
             7. O presidente da câmara é o órgão executivo singular do município.
 
             8. O poder de aplicação de sanções disciplinares é assunto 
 indissociável da gestão e direcção dos recursos humanos.
 
             9. O Estatuto Disciplinar não contraria, antes complementa, o 
 disposto no artigo 68.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 169/99.
 
             10. O Estatuto Disciplinar limita‑se a explicitar, mas não a 
 atribuir competências.
 
             11. Norma de atribuição de competência é o artigo 68.º, n.º 2, 
 alínea a), da Lei n.º 169/99.
 
             12. A matéria disciplinar não é especial relativamente à autárquica.
 
             13. É antes uma secção do direito autárquico, tal como a matéria 
 autárquica é uma secção do direito disciplinar.
 
             14. A Revisão de 1997, na nova redacção dada ao n.º 2 do artigo 
 
 243.º da CRP, esclareceu que, a haver alguma especificidade, ela seria sempre de 
 cariz autárquico.
 
             15. O resultado normativo que dê preferência, por especial ainda que 
 anterior, às normas do Estatuto Disciplinar face a normas autárquicas é 
 inconstitucional.
 
             16. O artigo 18.º do Estatuto Disciplinar, no entendimento 
 perfilhado pelo tribunal a quo, é inconstitucional por vulneração do comando da 
 parte final do artigo 243.º, n.º 2, da CRP.
 
             17. Uma interpretação que defende a extensão do âmbito do Estatuto 
 Disciplinar à atribuição e repartição de competências entre órgãos autárquicos 
 está, necessariamente, ferida de inconstitucionalidade.
 
             18. A Lei de Autorização Legislativa ao abrigo da qual foi emitido o 
 Estatuto Disciplinar (Lei n.º 10/83, de 13 de Agosto) não habilita o Governo a 
 legislar no âmbito da actual alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP, 
 respeitante ao Estatuto das Autarquias Locais, que abarca não só a organização 
 e as atribuições das autarquias, mas também a competência dos seus órgãos e a 
 estrutura dos seus serviços.
 
             19. A Lei n.º 10/83 somente confere ao Governo a possibilidade de 
 legislar ao abrigo das actuais alíneas d) e t) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP.
 
             20. A interpretação perfilhada pela sentença recorrida equivale a 
 aceitar que um decreto‑lei autorizado (no caso, o Estatuto Disciplinar) para uma 
 dada matéria reservada é apto a definir parte do regime jurídico respeitante a 
 outra matéria também reservada (no caso, o estatuto das autarquias locais), ao 
 abrigo do qual não foi emitida qualquer lei de autorização e que a Assembleia da 
 República entendeu ela própria regular (no caso a Lei n.º 169/99).”
 
  
 
                         Por acórdão de 13 de Fevereiro de 2008, o STA negou 
 provimento ao recurso jurisdicional, desenvolvendo, para o efeito, a seguinte 
 fundamentação:
 
  
 
             “III – O DIREITO
 
             A questão suscitada pelo recorrente e cuja relevância justifica o 
 presente recurso excepcional de revista é a de saber a quem cabe, na vigência 
 da Lei das Autarquias Locais n.º 169/99, de 18 de Setembro, a competência para 
 impor a aplicação de sanções disciplinares aos funcionários e agentes afectos 
 aos serviços municipais – se à câmara municipal, se ao seu presidente.
 
             Resulta da matéria provada que ao autor da presente acção, 
 funcionário da Câmara Municipal do Porto, com a categoria de técnico superior 
 consultor jurídico principal, foi aplicada, em 15 de Setembro de 2004, pelo (…) 
 Vereador do Pelouro da Juventude, Desporto, Euro 2004, Educação e Recursos 
 Humanos, ao abrigo de delegação de competência do (…) Presidente da Câmara do 
 Porto, a pena disciplinar de 45 dias de suspensão, com execução suspensa por 
 dois anos.
 
             Quer a sentença do TAF do Porto, quer o acórdão do TCA Norte que a 
 manteve, entenderam verificar‑se o invocado vício de incompetência do autor do 
 acto, por ser a Câmara Municipal do Porto, e não o seu Presidente, o órgão que 
 tem a seu cargo o exercício do poder disciplinar sobre os funcionários e agentes 
 municipais, competência que fundamentam no artigo 18.º do Estatuto Disciplinar, 
 aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, considerando que tal 
 preceito não foi revogado pela Lei n.º 18/91, de 12 de Junho, na redacção 
 conferida ao n.º 2 do artigo 53.º do Decreto‑Lei n.º 100/84, de 29 de Março 
 
 (LAL), nem pela posterior Lei n.º 169/99, de 16 de Setembro, como defendia o 
 Município.
 
             O recorrente Município continua a defender que, contrariamente ao 
 decidido, o despacho impugnado não padece de vício de incompetência, pois o (…) 
 Vereador, autor do acto impugnado, praticou‑o no uso de competência validamente 
 delegada pelo Presidente da Câmara, que, enquanto verdadeiro órgão autárquico, é 
 quem hoje detém, originariamente, a competência para decidir todos os assuntos 
 relacionados com a gestão e direcção dos recursos humanos afectos aos serviços 
 municipais, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 68.º da citada Lei n.º 
 
 169/99, sendo que o poder de aplicação de sanções disciplinares é assunto 
 indissociável da gestão e direcção dos recursos humanos.
 
             Defende ainda que o Estatuto Disciplinar não atribui competências, 
 limitando-se a explicitar as competências atribuídas pela lei própria, que é a 
 lei reguladora do quadro de competências, no caso a LAL n.º 169/99, e, por isso, 
 não contraria, antes complementa o disposto no citado artigo 68.º, n.º 2, alínea 
 a), dessa Lei, mas, a considerar‑se que o contraria, então deve considerar‑se 
 derrogado por ela.
 
             Cita, em seu apoio, o parecer do Prof. Doutor Mário Aroso de 
 Almeida, que juntou aos autos com as alegações de recurso para o TCA.
 
             Invoca, ainda, a inconstitucionalidade de eventual interpretação que 
 defenda que o artigo 18.º do Estatuto Disciplinar, como norma especial, não foi 
 revogado pela referida Lei n.º 169/99, por vulneração do comando da parte final 
 do artigo 243.º, n.º 2, da CRP, na redacção da Revisão de 1997 e ainda a 
 inconstitucionalidade da interpretação que defenda a extensão do âmbito do 
 Estatuto Disciplinar à atribuição e repartição de competências entre os órgãos 
 autárquicos, por falta de autorização legislativa para o efeito.
 
             Vejamos:
 
             À data da prática do acto punitivo aqui em causa, estava em vigor o 
 Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, 
 Regional e Local (doravante ED), aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 24/84, de 16 de 
 Janeiro.
 
             Como expressamente consta do seu artigo 1.º, o ED aplica‑se aos 
 funcionários e agentes da administração central, regional e local, apenas se 
 exceptuando do âmbito da sua aplicação os funcionários e agentes que possuam 
 estatuto especial.
 
             Portanto, não restam dúvidas que o ED se aplica aos funcionários e 
 agentes das autarquias.
 
             O ED foi emitido ao abrigo da autorização legislativa constante da 
 Lei n.º 10/83, de 13 de Agosto, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 168.º 
 da CRP/82, que respeita ao regime geral de punição das infracções disciplinares.
 
             Com efeito, nos termos do artigo 1.º, n.º 1, alínea b), da citada 
 Lei, o Governo é autorizado a legislar «em matéria de regime disciplinar da 
 função pública» e, nos termos do n.º 3 do mesmo preceito: «O regime a instituir 
 nos termos da alínea b) do n.º 1 visa introduzir alterações ao Decreto‑Lei n.º 
 
 191‑D/79, de 25 de Junho, por forma a redefinir factos ilícitos ou a definir 
 novas formas de ilícito de corrupção passíveis de sanção disciplinar, a 
 corrigir a dosimetria das penas em vigor e ainda a ultrapassar dificuldades de 
 execução e a integrar lacunas do Estatuto Disciplinar». (sublinhados nossos).
 
             Deve aqui referir‑se que o anterior Estatuto Disciplinar, aprovado 
 pelo Decreto‑Lei n.º 191‑B/79, de 25 de Junho, não se aplicava directamente às 
 autarquias locais em certas matérias, designadamente no que respeita à 
 competência disciplinar, porque o legislador, face às particularidades que 
 reveste o seu regime, designadamente à autonomia dos respectivos órgãos – embora 
 subordinados às leis gerais da República – julgou preferível a adaptação dessas 
 matérias por via regulamentar (cf. preâmbulo do citado diploma e seus artigos 
 
 1.º, n.º 2, e 19.º). Só que esse regulamento não chegou a ver a luz do dia, 
 embora se previsse, no n.º 1 do citado artigo 19.º do referido ED, um prazo de 
 
 180 dias para a sua publicação.
 
             O novo ED, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, 
 que veio substituir o anterior (considerado, aliás, pelo legislador … «um 
 diploma de transição, cuja substituição virá a ser feita, oportunamente, no 
 
 âmbito da reforma administrativa em curso e da projectada Lei de Bases da Função 
 Pública» – cf. preâmbulo do ED/79), pretendeu resolver todas as lacunas e 
 dúvidas suscitadas na aplicação e execução daquele, designadamente no que 
 respeita à administração local, e ainda concentrar num único diploma todo o 
 regime disciplinar dos funcionários e agentes de todos os sectores da 
 Administração Pública (administração central, regional e local), apenas 
 excluindo do seu âmbito os casos específicos em que existisse um estatuto 
 próprio (por exemplo, os casos dos Magistrados Judiciais e do Ministério 
 Público, da Polícia Judiciária, da PSP e da GNR e dos Militares).
 
             Aliás, essa intenção legislativa foi claramente manifestada no 
 preâmbulo do ED/84, quando, a certa altura, se refere «Visa ainda a presente 
 revisão ultrapassar dificuldades de execução (…), bem como integrar lacunas 
 suscitadas na aplicação do Estatuto Disciplinar. Observa‑se ainda que, com a 
 presente revisão, o Estatuto Disciplinar é aplicável, em toda a sua extensão, à 
 administração local. Finalmente, sublinha‑se que a presente revisão não 
 constitui uma reformulação global do Estatuto, ficando a dever‑se à preocupação 
 de evitar a dispersão do regime disciplinar por legislação extravagante, a 
 revogação do Decreto‑Lei n.º 191‑D/79, de 25 de Junho».
 
             Evidentemente que, passando a partir do ED de 1984 a existir um 
 
 único regime disciplinar para todos os funcionários e agentes da Administração 
 Pública, incluindo os da administração local, era nessa lei disciplinar que 
 devia ser definida, como foi, a competência disciplinar sobre aqueles 
 funcionários e agentes.
 
             Assim, o referido Estatuto, sendo um conjunto normativo que 
 estabelece todo o regime da disciplina na função pública, contém, naturalmente 
 normas sobre a «Competência Disciplinar», que são as que integram o seu 
 Capítulo III (artigos 16.º a 21.º), a saber::
 
  
 
 “Artigo 16.º
 
 (Princípio geral)
 
             A competência disciplinar dos superiores envolve sempre a dos seus 
 inferiores hierárquicos dentro do serviço.
 
  
 Artigo 17.º
 
 (Competência disciplinar sobre os funcionários e agentes da administração 
 central e regional)
 
             1. A pena da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º é da competência de 
 todos os funcionários e agentes em relação aos que lhes estejam subordinados.
 
             2. A aplicação das penas previstas nas alíneas b) a d) do n.º 1 do 
 artigo 11.º é da competência dos secretários‑gerais e dos directores‑gerais e 
 equiparados, nomeadamente dos dirigentes dos institutos públicos.
 
             3. Se os responsáveis pelos serviços directamente dependentes dos 
 membros do Governo não possuírem a categoria antes referida, a competência para 
 a aplicação das penas previstas no número anterior poderá ser neles delegada 
 pelo membro do Governo competente.
 
             4. A aplicação das penas expulsivas referidas nas alíneas e) e f) do 
 n.º 1 do artigo 11.º e da pena de cessação da comissão de serviço referida no 
 n.º 2 do mesmo artigo é da competência exclusiva dos membros do Governo e dos 
 secretários regionais nas regiões autónomas em cada caso competentes.
 
  
 Artigo 18.º
 
 (Competência disciplinar sobre os funcionários e agentes ao serviço das 
 autarquias locais e das associações e federações de municípios)
 
             1. A competência disciplinar sobre os funcionários e agentes das 
 autarquias locais e das associações e federações de municípios pertence aos 
 respectivos órgãos executivos.
 
             2. (…)
 
             3. Os órgãos executivos das autarquias locais e das associações e 
 federações de municípios têm competência:
 
             a) Para aplicação aos funcionários e agentes dos respectivos 
 quadros privativos de todas as penas disciplinares previstas no n.º 1 do artigo 
 
 11.º;
 
             b) Para a aplicação aos funcionários do quadro geral administrativo 
 que se encontrem ao seu serviço das penas disciplinares de repreensão e multa;
 
             c) Para aplicação da pena de cessação da comissão de serviço.
 
             4. Os presidentes dos órgãos executivos têm competência para 
 repreender qualquer funcionário ou agente ao serviço da autarquia.
 
  
 Artigo 19.º
 
 (Competência disciplinar sobre o pessoal dos serviços municipalizados)
 
             É da competência dos respectivos conselhos de administração a 
 aplicação ao pessoal dos serviços municipalizados das penas disciplinares 
 previstas no n.º 1 do artigo 11.º, bem como da pena de cessação da comissão de 
 serviço.
 
  
 Artigo 20.º
 
 (Assembleias distritais)
 
             1. Enquanto subsistirem as assembleias distritais, aplicar‑se‑á ao 
 respectivo pessoal, transitoriamente, o disposto neste diploma, cabendo ao 
 governador civil exercer as competências cometidas aos órgãos executivos.
 
             2. Das decisões do governador civil proferidas no exercício da 
 competência a que se refere o número anterior apenas cabe recurso contencioso.
 
  
 Artigo 21.º
 
 (Competência disciplinar sobre os funcionários e agentes dos governos civis)
 
             1. Compete aos governadores civis a aplicação aos funcionários e 
 agentes que prestem serviço nos governos civis das penas até à de suspensão, 
 inclusive.
 
             2. Compete ao Ministro da Administração Interna a aplicação das 
 penas previstas nas alíneas d) a f) do n.º 1 do artigo 11.º”
 
  
 
             Ora, existindo uma lei disciplinar em matéria de função pública, o 
 referido ED, e aplicando‑se essa lei, em toda a sua extensão, à administração 
 local, é nela que se deve procurar, em primeiro lugar, a competência disciplinar 
 sobre os funcionários e agentes da administração abrangidos por esse diploma.
 
             Como vimos, a competência disciplinar sobre os funcionários e 
 agentes ao serviço das autarquias estava prevista no transcrito artigo 18.º do 
 ED, que é claro quanto a essa matéria.
 
             Face ao citado preceito, a competência disciplinar sobre os 
 funcionários e agentes das autarquias locais está centrada no órgão executivo da 
 autarquia (n.º 1), cabendo, nesse campo, ao presidente desse órgão executivo 
 apenas a competência para repreender qualquer funcionário ou agente ao serviço 
 da autarquia (n.º 4).
 
             Refere o recorrente que, existindo dois órgãos executivos nas 
 autarquias, um colegial, a Câmara Municipal, outro singular, o Presidente da 
 Câmara, é a este que se refere o n.º 1 do artigo 18.º
 
             Os órgãos municipais constam da Lei das Autarquias Locais, e o 
 artigo 2.º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, aqui aplicável, define quais 
 são os órgãos do município, nele não se referindo, como tal, o Presidente da 
 Câmara.
 
             Com efeito, ali se refere o seguinte:
 
  
 
 “Artigo 2.º
 
 (Órgãos)
 
             1. Os órgãos representativos da freguesia são a assembleia de 
 freguesia e a junta de freguesia.
 
             2. Os órgãos representativos do município são a assembleia 
 municipal e a câmara municipal.”
 
  
 
             Sendo que a assembleia municipal é o órgão deliberativo do município 
 
 (artigo 41.º da LAL) e a câmara municipal é o órgão executivo colegial do 
 município, sendo constituída por um presidente e por vereadores (artigo 56.º, 
 n.º 1, da LAL). Sendo igualmente estes dois os órgãos municipais reconhecidos 
 constitucionalmente (cf. artigo 252.º da CRP/82 e o actual artigo 239.º da CRP).
 
             Portanto, face à lei em vigor à data do acto impugnado, o Presidente 
 da Câmara não era, como ainda não é, um órgão de iure do município, sendo a 
 Câmara Municipal o único órgão executivo do município referido na lei, tal como 
 acontecia face às anteriores LAL. O que não quer dizer que o Presidente da 
 Câmara não exerça, no âmbito das suas competências, próprias e delegadas, 
 funções executivas de grande relevo. Mas a lei não o reconheceu ainda como órgão 
 municipal e, não o fazendo a lei, não pode o intérprete atribuir‑lhe tal 
 qualificação.
 
             Isto sem prejuízo de se reconhecer que as competências atribuídas na 
 LAL ao Presidente da Câmara, nomeadamente as executivas, têm vindo a aumentar 
 substancialmente, daí que seja considerado por alguns autores como um verdadeiro 
 
 órgão municipal, mas isso, como se referiu, não lhe atribui, só por si, essa 
 qualificação e, para o que nos interessa, em nada altera a sua competência 
 disciplinar, que continua a ser apenas a prevista no artigo 18.º, n.º 4, do ED.
 
 *
 
             Pretende, porém, o recorrente que o artigo 18.º do ED se deve 
 considerar derrogado, senão pela Lei n.º 18/91, que alterou a LAL de 1984, 
 aprovada pelo Decreto‑Lei n.º 100/84, de 12 de Janeiro, e transferiu para o 
 Presidente da Câmara o poder de superintendência na gestão e direcção dos 
 recursos humanos, que dantes era competência da Câmara Municipal, pelo menos, 
 pela Lei n.º 169/99, que, no artigo 68.º, n.º 2, alínea a), veio atribuir ao 
 Presidente da Câmara competência para «decidir todos os assuntos relacionados 
 com a gestão e direcção dos recursos humanos afectos aos serviços municipais».
 
             Daí conclui, em síntese, que o Presidente da Câmara é hoje o 
 verdadeiro órgão executivo do município, o topo da hierarquia municipal, e, 
 como tal, detendo os poderes de gestão e direcção dos recursos humanos afectos 
 aos serviços municipais, terá de deter, necessariamente, também o poder 
 disciplinar sobre os funcionários e agentes da administração local.
 
             Com todo o respeito, a tese do recorrente não se pode sufragar.
 
             Em primeiro lugar e como é sabido, a competência disciplinar, na 
 vertente mais importante, que é a competência para aplicar sanções (existe a 
 outra vertente, que é a da acção disciplinar, para que são competentes todos os 
 superiores hierárquicos relativamente aos seus subalternos – cf. artigo 39.º do 
 ED/84), nem sempre está atribuída a um superior hierárquico, numa organização 
 administrativa hierarquizada.
 
             Com efeito, como resulta da análise do direito comparado e tem sido 
 referido abundantemente na doutrina administrativa, se é certo que todos os 
 superiores hierárquicos têm competência para instaurar a acção disciplinar 
 relativamente aos seus subalternos, nem todos têm competência para a decidir e 
 pode até essa competência para aplicação de sanções disciplinares ser atribuída 
 a um órgão externo à hierarquia, normalmente um órgão colegial (v. g., um 
 conselho disciplinar).
 
             Assim, a competência para aplicar sanções às infracções apuradas em 
 processo disciplinar pode pertencer ao próprio superior hierárquico que mandou 
 instaurar o processo, mas pode também pertencer a outro de mais alto grau 
 hierárquico (em ambos os casos estamos perante a chamada disciplina 
 hierarquizada), ou mesmo a um órgão externo à hierarquia, cujas decisões sejam 
 de per si executórias ou vinculem o superior que tenha de executá‑las (é a 
 chamada disciplina jurisdicionalizada).
 
             Igualmente tal competência pode, por lei, estar concentrada no chefe 
 da hierarquia, com excepção das chamadas penas morais (repreensão e 
 advertência) e, por vezes, com possibilidade de delegação de certas penas em 
 determinados superiores subalternos, ou pode estar desconcentrada pelos vários 
 graus da hierarquia, de acordo com o grau de gravidade da pena a aplicar [Vide, 
 a este propósito, o Prof. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 
 
 9.ª edição, 1972, pp. 799 e 804, e Princípios Fundamentais do Direito 
 Administrativo, 1996, p. 318 e seg., e também os Profs. Esteves de Oliveira, 
 Direito Administrativo, p. 395, e Paulo Otero, Conceito e Fundamento da 
 Hierarquia Administrativa, p. 59].
 
             Ou seja, o superior hierárquico que tem o poder de direcção de um 
 determinado serviço, emanando ordens sobre matéria de serviço para os 
 subalternos cumprirem, pode não ter, ou não ter toda, a competência para os 
 punir em caso de desobediência a essas ordens ou em caso de qualquer outra 
 infracção disciplinar; basta que tal competência seja atribuída por lei a outro 
 superior hierárquico de grau mais elevado ou mesmo a um órgão externo à 
 hierarquia.
 
             O que demonstra, contrariamente ao defendido pelo recorrente, que a 
 competência disciplinar, na vertente competência para punir, não é 
 indissociável do poder de direcção, típico da hierarquia, já que, por um lado, 
 não supõe, necessariamente, uma relação hierárquica entre quem aplica a sanção e 
 quem é sancionado e, por outro, mesmo nos casos de disciplina hierarquizada, nem 
 todos os superiores hierárquicos com poder de direcção (o poder de direcção não 
 existe só no dirigente máximo, pode estender‑se a outros dirigentes de grau 
 intermédio) têm competência para aplicar sanções disciplinares aos subalternos, 
 além da mera repreensão.
 
             Se tal implica um enfraquecimento do poder de direcção do superior 
 hierárquico é questão que não cabe ao tribunal apreciar, sendo certo que não é 
 difícil descobrir bons argumentos a favor da atribuição da competência para 
 punir, sobretudo no que respeita às penas mais graves, v. g. as penas 
 expulsivas, a um único órgão colegial, de preferência externo à hierarquia 
 
 (maiores garantias de imparcialidade e de isenção, mais paz nas relações 
 internas com reflexos no funcionamento dos serviços). Haverá, certamente, também 
 bons argumentos contra (maior demora no processo de decisão, eventual maior 
 dificuldade de compreensão da situação ou falta da disponibilidade exigida se 
 se tratar de órgão ou agente da hierarquia sobrecarregado com outras 
 competências), mas, como é óbvio, caberá ao legislador, de iure condendo, se 
 for caso, ponderar todos os prós e os contras em cada situação.
 
             De qualquer modo, sempre se dirá que o superior hierárquico com 
 poderes de direcção não fica destituído de competência disciplinar pelo facto 
 de estar atribuída a um seu superior hierárquico ou a um órgão externo à 
 hierarquia o poder de punir, uma vez que sempre subsiste a sua competência para 
 aplicar penas morais (repreensão e advertência – cf. artigo 17.º, n.º 1, do 
 ED/84) e até outras penas quando a lei a prevê, sendo que terá sempre 
 competência para o exercício, em geral, da acção disciplinar, que a lei 
 assegura a qualquer superior hierárquico, relativamente aos subalternos (cf. 
 artigo 39.º do ED/84) e que é pressuposto necessário do exercício da competência 
 para punir. Assim, se bem que esta última competência seja considerada, por 
 razões óbvias, a mais importante dentro do poder disciplinar, a verdade é que 
 ela só pode ser exercida se previamente for instaurada a acção disciplinar pelo 
 superior hierárquico.
 
             E se pode existir poder de direcção sem competência disciplinar para 
 aplicar sanções além da repreensão, por maioria de razão pode existir poder de 
 superintendência sem existir competência disciplinar para punir, pois o poder de 
 superintendência é menos forte que o poder de direcção, traduzindo‑se apenas 
 numa faculdade de emitir directivas ou recomendações, no fundo num «poder de 
 mera orientação» [cf. o Prof. Freitas do Amaral, Curso de Direito 
 Administrativo, 1986, vol. I, p. 713].
 
             A diferença, do ponto de vista jurídico, entre ordens, por um lado, 
 e directivas e recomendações, por outro, consiste em que as ordens são 
 comandos concretos, específicos e determinados, que impõem a necessidade de 
 adoptar imediata e completamente uma certa conduta, enquanto as directivas são 
 orientações genéricas, que definem imperativamente os objectivos a cumprir 
 pelos seus destinatários, mas que lhes deixam liberdade de decisão quanto aos 
 meios a utilizar e às formas a adoptar para atingir esses objectivos. Por sua 
 vez, as recomendações são conselhos emitidos sem a força de qualquer sanção para 
 a hipótese do não cumprimento [cf., por ex., neste sentido, os acórdãos do STA, 
 de 27 de Março de 2003, rec. 68/03, e de 24 de Março de 2004, rec. 1407/02].
 
             E sendo o poder de superintendência um poder de mera orientação, não 
 se vislumbra como a atribuição desse poder, ao Presidente da Câmara, sobre a 
 gestão e direcção dos recursos humanos afectos aos serviços municipais, pela 
 Lei n.º 18/91, poderia afectar a competência disciplinar definida no artigo 18.º 
 do ED. Aliás, a jurisprudência deste STA já teve oportunidade de se pronunciar 
 sobre esta concreta questão, tendo decidido que: «A competência disciplinar da 
 Câmara Municipal não resultava da atribuição a este órgão daquela competência de 
 
 ‘superintendência na gestão e direcção do pessoal ao serviço da autarquia’ – 
 que, aliás, o n.º 1 do artigo 52.º da versão originária do Decreto‑Lei n.º 
 
 100/84 considerava ‘tacitamente delegada no presidente da câmara’, sem que daí 
 derivasse também a delegação da competência disciplinar da câmara municipal – 
 mas antes e exclusivamente das aludidas regras do artigo 18.º do Estatuto 
 Disciplinar. O que, de resto, bem se compreende se se considerar a 
 
 ‘superintendência’ como o ‘poder de orientação’ (assim, Diogo Freitas do Amaral, 
 Curso de Direito Administrativo, vol. I, 1986, p. 713). Consequentemente, a 
 transferência desse poder de orientação, em que se traduz a superintendência, 
 por imposição legal ‘tacitamente delegado’ (no sentido de que esta figura não 
 representa uma delegação de poderes propriamente dita, mas antes uma forma de 
 desconcentração originária, na qual o delegante nada delega, porque, sem 
 necessidade de qualquer delegação, o poder de decidir pertence ope legis ao 
 impropriamente chamado delegado, cf. autor e obra citados, p. 667), nenhuma 
 repercussão podia ter e nenhuma repercussão teve na repartição de competência 
 disciplinar entre aqueles dois órgãos, tal como estava e continua a estar 
 definida no artigo 18.º do Estatuto Disciplinar, que, neste aspecto, não sofreu 
 qualquer derrogação.» [cf. acórdão do STA, de 5 de Maio de 1999, rec. 41 514].
 
             Resta‑nos acrescentar que, para a boa compreensão desta matéria, 
 importa também ter presente que uma coisa é a hierarquia decorrente da 
 repartição de competências funcionais entre os órgãos ou agentes de uma pessoa 
 colectiva pública, ou seja, a relação orgânica dos agentes com a Administração, 
 atingindo‑os não como trabalhadores, mas como titulares de um órgão 
 administrativo, com vista à realização do mesmo interesse, o interesse público 
 
 (hierarquia em sentido restrito), e outra é a hierarquia que respeita à relação 
 de serviço que os agentes mantêm com a Administração, relação que os obriga a 
 respeitar, enquanto trabalhadores, as ordens da entidade patronal, sob pena de 
 responsabilidade disciplinar (hierarquia em sentido amplo) [cf., a este 
 propósito, o Prof. Esteves de Oliveira, Direito Administrativo, p. 390].
 
             Ora, as leis orgânicas, que estabelecem as competências dos órgãos 
 das pessoas colectivas públicas, quer no âmbito da administração central e 
 regional, quer no âmbito da administração local, entre as quais as LAL, ao 
 repartirem as competências funcionais entre esses órgãos, situam‑se no plano da 
 hierarquia em sentido restrito e não no plano da hierarquia em sentido amplo, 
 tal como atrás definidas, pelo que não têm que contemplar e em regra não 
 contemplam as competências disciplinares, que são, por isso, tratadas 
 separadamente, normalmente em legislação específica, tendencialmente abrangente 
 da maioria dos trabalhadores da Administração Pública, como é o caso do ED/84.
 
             Mas, sendo assim e tendo em conta tudo o anteriormente exposto, não 
 pode afirmar‑se, como afirma o recorrente, que do poder de superintendência na 
 gestão e direcção do pessoal dos recursos humanos, atribuído ao Presidente da 
 Câmara Municipal pela Lei n.º 18/91, de 12 de Janeiro, e mesmo do poder de 
 decidir todos os assuntos relacionados com a gestão e direcção dos recursos 
 humanos afectos aos serviços municipais, decorre, inevitavelmente, a sua 
 competência para aplicar sanções disciplinares aos funcionários e agentes 
 desses serviços.
 
             Antes há que concluir que, nem a Lei n.º 18/91, nem a Lei n.º 
 
 169/99, vieram definir a competência disciplinar na administração local, nem 
 tinham de o fazer, por não ser o local próprio para o efeito, mas sim o Estatuto 
 Disciplinar da função pública, que, por isso, nenhuma delas revogou, nem 
 expressa, nem inequivocamente.
 
             Na verdade, nada se refere nos respectivos preâmbulos, nem resulta 
 dos trabalhos preparatórios [cf. reuniões plenárias de 7 de Março de 1991 e de 2 
 de Julho de 1998, Diário da Assembleia da República, n.º 51, de 8 de Março de 
 
 1991, e n.º 102, de 3 de Julho de 1999, respectivamente], que aponte no sentido 
 da revogação do citado artigo 18.º do ED, ou sequer qualquer discussão relativa 
 
 à competência disciplinar nas autarquias, o que, conjuntamente com tudo o 
 anteriormente exposto, demonstra, à evidência, que as alterações introduzidas 
 por aquelas Leis nas competências do Presidente da Câmara não visaram alterar a 
 sua competência disciplinar expressamente prevista no artigo 18.º do ED.
 
             E porque as competências definidas na LAL têm um campo de aplicação 
 distinto da competência disciplinar, não se coloca a hipótese de revogação do 
 artigo 18.º do ED/84 pelas referidas LAL, pelo que fica prejudicada a 
 apreciação da alegada inconstitucionalidade de uma eventual interpretação que 
 concluísse que o ED, como norma especial, prevaleceria sobre a LAL, por 
 vulneração do artigo 243.º, n.º 2, da actual CRP, interpretação que teria de 
 ter como pressuposto que a LAL dispôs sobre competência disciplinar do 
 Presidente da Câmara, o que, pelas razões expendidas, não acontece.
 
             Finalmente, quanto à também alegada inconstitucionalidade do artigo 
 
 18.º do ED/84, por falta de autorização legislativa:
 
             Segundo o recorrente, a Lei de Autorização Legislativa n.º 10/83, de 
 
 13 de Agosto, ao abrigo da qual foi emanado o ED/84, somente conferiu ao Governo 
 a possibilidade de legislar ao abrigo das actuais alíneas d) e t) do n.º 1 do 
 artigo 165.º da CRP, não o habilitando a legislar no âmbito da actual alínea q) 
 do referido preceito legal, respeitante ao Estatuto das Autarquias Locais, que 
 abarca não só a organização e as atribuições da autarquia, mas também a 
 competência dos seus órgãos e a estrutura dos seus serviços, pelo que uma 
 interpretação do Estatuto Disciplinar que estenda o seu âmbito de aplicação às 
 competências dos órgãos da autarquia padece de falta de autorização 
 legislativa.
 
             Não assiste também aqui razão ao recorrente.
 
             Como já se referiu atrás, embora possa existir, e em regra existe, 
 uma relação íntima entre as competências funcionais dos órgãos e agentes de uma 
 pessoa colectiva pública e as competências disciplinares eventualmente 
 atribuídas a esses órgãos ou agentes sobre os respectivos subalternos, já que 
 ambas assentam, em princípio, na estrutura hierarquizada da Administração, 
 trata‑se, como ficou já suficientemente evidenciado, de competências que 
 respeitam a matérias distintas, e que, por isso, são, em regra, objecto de 
 consagração em diplomas distintos.
 
             Aliás, que são distintas as matérias, revela‑o desde logo o facto 
 de, sendo ambas competência reservada da Assembleia da República, o regime geral 
 de punição das infracções disciplinares e respectivo processo estar previsto em 
 alínea distinta das matérias relativas às competências funcionais dos seus 
 
 órgãos, v. g. o estatuto das autarquias locais (cf. alíneas d) e q), 
 respectivamente, do actual n.º 1 do artigo 165.º da CRP e correspondentes às 
 alíneas d) e s), respectivamente, do artigo 168.º, n.º 1, da CRP/82).
 
             Ora, a autorização legislativa constante do artigo 1.º, n.º 1, 
 alínea b), da Lei n.º 10/83, que esteve na base do referido ED, aprovado pelo 
 Decreto‑Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, foi emitida ao abrigo da referida 
 alínea d) do n.º 1 do artigo 168.º da CRP/82, e, portanto, como dela consta, 
 para o Governo legislar em «matéria do regime disciplinar da função pública», 
 função pública onde se incluem também os funcionários e agentes da administração 
 local, e não em matéria do Estatuto das Autarquias Locais. E foi o que o Governo 
 fez, aprovando o Estatuto Disciplinar/84. O Governo não extravasou, pois, o 
 
 âmbito da autorização legislativa que lhe foi concedida.
 
             Face a tudo o anteriormente exposto, o recurso não merece 
 provimento.”
 
  
 
                         O Município do Porto interpôs recurso deste acórdão para 
 o Tribunal Constitucional, tendo, na resposta ao convite para aperfeiçoamento 
 do requerimento de interposição do recurso, precisado que este era interposto 
 apenas com base na alínea b) [abandonando, assim, a invocação também da alínea 
 f), constante daquele requerimento] do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de 
 Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, 
 aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela 
 Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), e tinha por objecto a apreciação de 
 
 “uma inconstitucionalidade orgânica de cariz originário”, por violação do artigo 
 
 168.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), na versão da 
 revisão constitucional de 1982, então vigente (correspondente ao actual artigo 
 
 165.º, n.º 2), e de “uma inconstitucional material de natureza superveniente”, 
 por violação do artigo 243.º, n.º 2, da CRP, na versão da revisão constitucional 
 de 1997, da norma constante do artigo 18.º, n.ºs 1, 3 e 4, do Estatuto 
 Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e 
 Local (EDFAACRL), aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, 
 interpretada, como o fez o acórdão recorrido, como norma atributiva e definidora 
 de competências no seio das autarquias locais.
 
                         O recorrente apresentou alegações, no termo das quais 
 formulou as seguintes conclusões:
 
  
 
             “A) O fundamento do presente recurso é a inconstitucionalidade do 
 artigo 18.°, n.ºs 1 e 4, do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da 
 Administração Central, Regional e Local, na concreta interpretação efectuada no 
 acórdão do Supremo Tribunal Administrativo sob recurso, de 13 de Fevereiro de 
 
 2008.
 
             B) O recorrente sustenta essa inconstitucionalidade em dois 
 fundamentos distintos, a saber: uma inconstitucionalidade orgânica e formal de 
 cariz originário; e outra inconstitucionalidade material de natureza 
 superveniente.
 
             C) Quanto à primeira, se se considerar que o artigo 18.º do Estatuto 
 Disciplinar é uma instância definidora da competência no seio das autarquias 
 locais, como inequivocamente faz o tribunal a quo, então, existe 
 inconstitucionalidade orgânica e formal por defeito de autorização.
 
             D) Enquanto regra pertencente a um decreto‑lei autorizado, o artigo 
 
 18.º viola o objecto da respectiva Lei de Autorização Legislativa (a saber, a 
 Lei n.º 10/83, de 13 de Agosto), sendo inconstitucional, nos termos do artigo 
 
 165.º, n.º 2, da Constituição (artigo 168.°, n.º 2, na versão da Lei 
 Constitucional n.º 1/82, vigente ao tempo da emissão daquele decreto‑lei e da 
 norma constante do artigo 18.º).
 
             E) A Lei n.º 10/83 só conferia autorização para se legislar ao 
 abrigo da alínea d) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição (referente ao 
 
 «regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos actos 
 ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo») e ao abrigo da 
 alínea u) do mesmo artigo e número (relativa às «bases do regime e âmbito da 
 função pública»).
 
             F) Se a Lei n.º 10/83 quisesse permitir, autorizar ou dizer fosse o 
 que fosse quanto à distribuição de competências dos órgãos e membros de órgãos 
 de autarquias locais teria de contemplar também a então alínea r) do n.º 1 do 
 artigo 168.º (concernente ao «estatuto das autarquias locais, incluindo o regime 
 das finanças locais»), mas não contemplou.
 
             G) Na medida em que se interprete a norma do artigo 18.º do Estatuto 
 Disciplinar como norma definidora de competência dos órgãos das autarquias 
 locais, então, nessa precisa interpretação, essa norma está letalmente ferida de 
 inconstitucionalidade orgânica e formal, por violação dos requisitos de 
 parametricidade definidos para os decretos‑leis autorizados no artigo 165.°, 
 n.º 2, da Constituição (à época, artigo 168.º, n.º 2).
 
             H) Quanto à segunda, a interpretação da norma do artigo 18.° do 
 Estatuto Disciplinar como uma norma definidora de competência realizada pelo 
 tribunal a quo implica a sua consideração como uma lex specialis relativamente 
 
 à legislação organizatória das autarquias, a Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro.
 
             I) Desde a Revisão Constitucional de 1997 que a Constituição 
 estabelece a prevalência das especificidades autárquicas sobre o estatuto 
 disciplinar dos funcionários públicos, inicialmente, e até 1997, no então artigo 
 
 244.º, n.º 2, da Constituição, equiparando os funcionários públicos autárquicos 
 aos restantes funcionários, depois de 1997, na nova redacção do n.º 2 do actual 
 artigo 243.º, pondo em realce «as adaptações necessárias nos termos da lei».
 
             J) A haver alguma prevalência, ela há‑de ser do estatuto das 
 autarquias sobre o estatuto dos funcionários, o estatuto disciplinar há‑de ter 
 em conta as particularidades e especificidades das autarquias locais e 
 nomeadamente, claro está, do seu quadro organizatório.
 
             K) A interpretação efectuada pelo tribunal a quo – e a convocação do 
 critério da preferência da lei especial que ela necessariamente incorpora e 
 comporta – viola o conteúdo material da directiva do artigo 243.º, n.º 2, da 
 Constituição, ex professo pensada para a questão controvertida.
 
             L) O carácter inconstitucional da solução normativa adoptada no 
 acórdão recorrido fica ainda mais a nu se se explicitarem as premissas 
 essenciais em que assenta este acórdão.
 
             M) Não pode aceitar‑se a conclusão constante do acórdão recorrido de 
 que a lei não reconhece o presidente da câmara como órgão municipal.
 
             N) E muito menos pode aceitá‑la, apenas e só porque o n.º 2 do 
 artigo 2.° da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro – repetindo o disposto no artigo 
 
 250.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) – escreve que «os órgãos 
 representativos do município são a assembleia municipal e a câmara municipal», 
 nada dispondo, nesse preceito, quanto ao presidente da câmara.
 
             O) Uma coisa é definir quais são os órgãos representativos do 
 município; outra, bem diferente, é assumir que só os ditos órgãos 
 
 «representativos» é que podem ser juridicamente qualificados como órgãos 
 executivos do município.
 
             P) Quando a Constituição e a lei identificam ou «isolam» os órgãos 
 representativos do município, não quiseram nem poderiam, humana ou 
 razoavelmente, querer fazer um elenco exaustivo de todos os órgãos de urna 
 autarquia, executivos ou não.
 
             Q) Como, de há muito, defende Diogo Freitas do Amaral – «(n)ão é 
 pelo facto de a Constituição ou as leis qualificarem o Presidente como órgão, ou 
 não, que ele efectivamente é ou deixa de ser órgão do município (…)», mas antes 
 que «(...) ele será órgão ou não conforme os poderes que a lei lhe atribuir no 
 quadro do estatuto jurídico do município».
 
             R) O artigo 68.º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, é ilustrativo 
 quanto baste da extensão e da natureza dos poderes que a lei, na economia dos 
 poderes que reconhece aos órgãos autárquicos, actualmente confere ao presidente 
 da câmara.
 
             S) Reconhecer ao Presidente da Câmara Municipal a detenção das mais 
 precípuas funções executivas sem lhe reconhecer a evidência da sua natureza de 
 
 órgão jurídico‑administrativo só pode relevar de um estrito e radical 
 formalismo.
 
             T) Nada no sistema jurídico exige ou reclama que um órgão, para o 
 ser, careça de uma criação legal ad hoc.
 
             U) Não deixa, aliás, de ser estranho ou caricato que, aceitando‑se 
 um movimento tendencial e historicamente comprovado de transferência de 
 competências confiadas à Câmara para o Presidente de Câmara, a lei corroborasse 
 um processo de transferência de competências de um «órgão» para um «não órgão».
 
             V) A especial forma de designação do concreto titular desse 
 
 «órgão/não órgão» depõe, do ponto de vista político, constitucional e 
 administrativo, no sentido de o qualificar como órgão de pleno e constituído 
 direito.
 
             W) O presidente da câmara municipal não é eleito pelo colégio em que 
 se integra e a que preside, mas eleito directamente pelo voto popular.
 
             X) Em caso de vitória, ipso jure e sem possibilidade de qualquer 
 remoção, «É presidente da câmara municipal o primeiro candidato da lista mais 
 votada (…)» (artigo 57.º, n.º 1, da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro).
 
             Y) A especial forma de designação do presidente da câmara – por 
 eleição directa, sem possibilidade de remoção – está umbilicalmente ligada à 
 natureza das competências que lhe estão confiadas e, obviamente, à assunção 
 jurídica, política e administrativa da sua qualidade de órgão.
 
             Z) Não pode seguir‑se a argumentação segundo a qual «(...) as 
 competências definidas na LAL têm um campo de aplicação distinto da 
 competência disciplinar (...)» (cf. página 17 do Acórdão de 13 de Fevereiro de 
 
 2008), tratando‑se «(...) de competências, que respeitam a matérias distintas, e 
 que, por isso, são, em regra, objecto de consagração em diplomas distintos» (cf. 
 página 18 do Acórdão de 13 de Fevereiro de 2008).
 
             AA) Não é exacto afirmar a separação de matérias (a que corresponde 
 a separação de diplomas) nos moldes referidos pelo acórdão recorrido, donde 
 resultaria que a «(...) gestão e direcção dos recursos humanos afectos aos 
 serviços municipais (...)» (cf. alínea a) do n.º 2 do artigo 68.° da Lei n.º 
 
 169/99, de 18 de Setembro), nada teria que ver com a competência disciplinar 
 sobre os funcionários e agentes das autarquias locais (cf. artigo 8.° do 
 Decreto‑Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro).
 
             BB) Não corresponde à verdade que a Lei n.º 169/99, de 18 de 
 Setembro, reportando‑se ao um campo de aplicação próprio e estanque, não se 
 dirija – em nenhuma medida – às questões disciplinares.
 
             CC) A competência disciplinar constitui uma modalidade da gestão dos 
 recursos humanos.
 
             DD) Isso mesmo resulta inequívoco e patente do teor da Lei n.º 
 
 169/99, de 18 de Setembro, em especial do n.º 2 do artigo 70.°, que respeita à 
 possibilidade de delegação (e subdelegação) de competências de gestão e 
 direcção dos recursos humanos no pessoal dirigente, onde o legislador refere a 
 prática de «(...) todos os actos relativos à aposentação de funcionários, com 
 excepção da aposentação compulsiva (...)» (alínea j)).
 
             EE) De acordo com a alínea e) do n.º 1 do artigo 11.° do Decreto‑Lei 
 n.º 24/84, de 16 de Janeiro, a aposentação compulsiva consubstancia uma das seis 
 penas disciplinares previstas pelo Estatuto Disciplinar.
 
             FF) Há uma norma da Lei n.º 169/99 que, a propósito da competência 
 de direcção e gestão de recursos humanos, regula a «delegabilidade» de uma 
 sanção disciplinar!
 
             GG) Os fundamentos da tese do recorrente demonstram a absoluta 
 constitucionalidade da solução normativa por si propugnada.
 
             HH) O Estatuto Disciplinar foi elaborado, em matéria de lei das 
 autarquias, na vigência da Lei n.º 79/77.
 
             II) Esta lei conferia à câmara municipal o poder de «superintender 
 na gestão e direcção do pessoal ao serviço do município», entendendo‑se caber 
 nesse os poderes de «nomear, contratar ou assalariar, promover, transferir, 
 louvar, punir, aposentar e exonerar os funcionários e assalariados municipais».
 
             JJ) O presidente da câmara já gozava de competência disciplinar 
 mesmo antes de ser órgão autónomo – órgão municipal –, o que resulta do n.º 4 do 
 artigo 18.º do Estatuto Disciplinar.
 
             KK) Hoje, de acordo com o artigo 68.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 
 
 169/99, «compete ao presidente da câmara municipal decidir todos os assuntos 
 relacionados com a gestão e direcção dos recursos humanos afectos aos serviços 
 municipais».
 
             LL) A competência do presidente da câmara para a gestão e direcção 
 dos recursos humanos afectos aos serviços municipais é originária e exclusiva.
 
             MM) O presidente da câmara é o órgão executivo singular do 
 município.
 
             NN) O poder de aplicação de sanções disciplinares é assunto 
 indissociável da gestão e direcção dos recursos humanos.
 
             OO) O Estatuto Disciplinar não contraria, antes complementa, o 
 disposto no artigo 68.°, n.° 2, alínea a), da Lei n.º 169/99.
 
             PP) O Estatuto Disciplinar limita‑se a explicitar, mas não a 
 atribuir competências.
 
             QQ) Norma de atribuição de competência é o artigo 68.º, n.º 2, 
 alínea a), da Lei n.º 169/99.
 
             RR) A matéria disciplinar não é especial relativamente à autárquica.
 
             SS) É, antes, uma secção do direito autárquico, tal como a matéria 
 autárquica é uma secção do direito disciplinar.
 
             TT) A interpretação da norma do artigo 18.° do Estatuto Disciplinar 
 efectuado pelo aqui recorrente é absolutamente conforme à Constituição, já o 
 mesmo não se passa com a solução normativa derivada da interpretação efectuada 
 no acórdão recorrido.
 
             UU) Tal solução normativa, na medida em que encara o artigo 18.º do 
 Estatuto Disciplinar enquanto norma atributiva‑constitutiva de competência dos 
 
 órgãos autárquicos, é inconstitucional orgânica e formalmente, por falta de 
 autorização para legislar em matéria de estatuto das autarquias locais, 
 designadamente, de repartição da respectiva competência interna.
 
             VV) E é materialmente inconstitucional por – ao considerar a norma 
 resultante do artigo 18.º como uma norma definidora de competência e convocar o 
 critério da preferência da lei especial relativamente à lei geral da repartição 
 de órgãos autárquicos – violar o cânon constante do n.º 2 do artigo 243.º da 
 Constituição, que estabelece a prevalência das especificidades autárquicas sobre 
 o estatuto disciplinar dos funcionários públicos.
 
             Termos em que requer que sejam consideradas inconstitucionais as 
 normas constantes do artigo 18.º, n.ºs 1 e 4, do Estatuto Disciplinar dos 
 Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, na concreta 
 interpretação efectuada no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo sob 
 recurso, de 13 de Fevereiro de 2008 e, assim, desaplicadas do caso dos autos.”
 
  
 
                         O recorrido contra‑alegou, sustentando a improcedência 
 do recurso.
 
                         Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
 
  
 
                         2. Fundamentação
 
                         2.1. Como é sabido, não compete ao Tribunal 
 Constitucional, no âmbito dos recursos de constitucionalidade para ele 
 interpostos, tomar posição sobre a correcção da interpretação do direito 
 ordinário efectuada pelas instâncias, designadamente na decisão recorrida, mas 
 tão‑só apreciar se essa interpretação – assumida como um dado da questão de 
 constitucionalidade – viola, ou não, normas ou princípios constitucionais.
 
                         Surge, assim, como deslocado, todo o esforço, em que o 
 recorrente consumiu a maior parte da sua argumentação, no sentido de sustentar a 
 tese de que o artigo 18.º do EDFAACRL se deveria considerar revogado pelo artigo 
 
 68.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro.
 
  
 
                         2.2. O recorrente sustenta que o artigo 18.º, n.ºs 1, 3 
 e 4, do EDFAACRL, interpretado – como o foi no acórdão recorrido – no sentido 
 de, relativamente aos funcionários municipais, ser a câmara municipal que detém 
 competência para aplicar sanções disciplinares, com excepção da pena de 
 repreensão, que pode ser aplicada pelo presidente desse órgão executivo, padece 
 de “inconstitucionalidade orgânica e formal de cariz originário”, por a Lei n.º 
 
 10/83, de 13 de Agosto – que concedeu a autorização legislativa ao abrigo da 
 qual o Decreto‑Lei n.º 24/84, que aprovou o EDFAACRL, foi emitido – apenas 
 invocar as alíneas d) e u) do n.º 1 do artigo 168.º da CRP, na versão de 1982, 
 então vigente, que inseriam na reserva relativa de competência legislativa da 
 Assembleia da República as matérias do “regime geral de punição das infracções 
 disciplinares” e das “bases do regime e âmbito da função pública”, mas já não a 
 alínea r) do mesmo preceito, concernente ao “estatuto das autarquias locais, 
 incluindo o regime das finanças locais”, matéria a que respeitariam as citadas 
 regras do artigo 18.º do EDFAACRL, se interpretadas – como o foram – como normas 
 definidoras de competência dos órgãos das autarquias locais.
 
                         A Lei n.º 10/83, invocando os artigos 164.º, alínea e), 
 
 168.º, n.ºs 1, alíneas d) e u), e 2, e 169.º, n.º 2, da CRP, na versão de 1982, 
 então vigente, autorizou o Governo a legislar “em matéria de regime disciplinar 
 da função pública” (artigo 1.º, n.º 1, alínea b)), precisando o n.º 3 deste 
 artigo 1.º que “o regime a instituir nos termos da alínea b) do n.º 1 visa 
 introduzir alterações ao Decreto‑Lei n.º 191‑D/79, de 25 de Junho, por forma a 
 redefinir os factos ilícitos ou a definir novas formas de ilícito de corrupção 
 passíveis de sanção disciplinar, a corrigir a dosimetria das penas em vigor e 
 ainda a ultrapassar dificuldades de execução e a integrar lacunas do Estatuto 
 Disciplinar”.
 
                         Esta autorização abarcava, inequivocamente, a edição de 
 norma como a do questionado artigo 18.º do EDFAACRL.
 
                         Recorde‑se que o Decreto‑Lei n.º 191‑D/79, cuja 
 alteração foi autorizada, aprovara o anterior Estatuto Disciplinar dos 
 Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, o qual, no 
 artigo 19.º, declarava que o disposto no capítulo em que se inseria (dedicado à 
 competência disciplinar) seria “aplicável na Administração Autárquica nos termos 
 previstos em diploma regulamentar a publicar no prazo de cento e oitenta dias” 
 
 (n.º 1) e que “até à entrada em vigor do diploma previsto no número anterior, 
 continuará a aplicar‑se o artigo 572.º do Código Administrativo, para o efeito 
 do que se consideram incluídas na previsão do seu n.º 1 todas as penas 
 constantes do n.º 1 do artigo 11.º deste Estatuto e na do seu n.º 2 as de 
 repreensão e multa”. Ora, conjugando esta disposição com a do artigo 572.º do 
 Código Administrativo [que atribuía aos corpos administrativos competência, no 
 n.º 1, para a aplicação, aos funcionários dos seus quadros privativos, das penas 
 dos n.ºs 1 a 7 do artigo 564.º (a que se fizeram equivaler todas as penas do n.º 
 
 1 do artigo 11.º do EDFAACRL de 1979), e, no n.º 2, para a aplicação, aos 
 funcionários do quadro geral que se encontrassem ao seu serviço, das penas dos 
 n.ºs 1 a 3 do mesmo artigo 564.º (a que se fizeram corresponder as penas de 
 repreensão e multa), acrescentando o § único que “o presidente da câmara 
 municipal tem competência para advertir e repreender qualquer funcionário 
 municipal”], resulta que, relativamente aos funcionários municipais, era da 
 competência do “corpo administrativo” (câmara municipal) a aplicação de todas as 
 penas constantes do n.º 1 do artigo 11.º, podendo o presidente da câmara 
 municipal aplicar a pena de repreensão (ou advertência).
 
                         Na autorização legislativa para alteração do regime 
 disciplinar dos funcionários da Administração Local não poderia deixar de estar 
 inserida a matéria relativa à definição da correspondente competência 
 disciplinar, isto é, designadamente, a definição de quais os órgãos dessa 
 Administração competentes para aplicar cada tipo de pena disciplinar. 
 Tratava‑se de matéria que se prendia de modo directo com a definição do regime 
 geral de punição das infracções disciplinares e de uma parte das bases do 
 regime e âmbito da função pública, só indirectamente e de modo reflexo 
 respeitando ao estatuto das autarquias locais, na parte em que este estatuto 
 abrange a definição da competência dos órgãos das autarquias. Sendo o propósito 
 primordial da projectada intervenção legislativa a revisão de todo o regime 
 disciplinar da função pública, de que a função autárquica constituía uma parte, 
 compreende‑se que a lei de autorização legislativa se tenha limitado a invocar 
 as alíneas d) e u) do n.º 1 do artigo 168.º da CRP então vigente. Da omissão de 
 referência à alínea r) do mesmo preceito não é lícito retirar – porque tal seria 
 flagrantemente contraditório como o objectivo visado – que o Parlamento não quis 
 conceder autorização ao Governo para regular o regime disciplinar dos 
 funcionários da Administração Local num ponto tão central como o da definição da 
 competência punitiva dos respectivos órgãos.
 
                         Conclui‑se, assim, que a Lei n.º 10/83 encerra 
 credencial parlamentar bastante para a edição, pelo Governo, da norma do artigo 
 
 18.º do EDFAACRL de 1984, pelo que não se verifica o vício de 
 
 “inconstitucionalidade orgânica e formal de cariz originário” que o recorrente 
 arguiu.
 
                         Ao que sempre se poderia acrescentar que tal norma, na 
 parte relevante para o presente recurso – isto é, na parte em que atribui à 
 câmara municipal, e não ao seu presidente, competência para aplicar a um 
 funcionário municipal a pena de suspensão –, não se reveste de carácter 
 inovatório, pois já resultava do artigo 572.º do Código Administrativo e foi 
 mantida em vigor pelo EDFAACRL de 1979, pelo que, também por esta razão, 
 improcederia a acusação de inconstitucionalidade orgânica.
 
                         Refira‑se, por último, quanto a este ponto, embora o 
 recorrente não tenha questionado o cumprimento adequado da definição do sentido 
 da autorização legislativa, que este Tribunal, pelos Acórdãos n.ºs 257/97, 
 
 380/98, 743/98 e 491/99, sempre entendeu que o n.º 3 do artigo 1.º da Lei n.º 
 
 10/83 não violava o n.º 2 do artigo 168.º da CRP, na versão então vigente, por 
 falta de definição de sentido preciso da autorização legislativa.
 
  
 
                         2.3. A segunda questão de inconstitucionalidade 
 suscitada pelo recorrente respeita a alegada “inconstitucionalidade material de 
 natureza superveniente”, decorrente de a revisão constitucional de 1997, no n.º 
 
 2 do artigo 243.º, ter aditado ao teor primitivo do n.º 2 do correspondente 
 artigo 244.º das anteriores versões (“é aplicável aos funcionários e agentes da 
 administração local o regime dos funcionários e agentes do Estado”) a expressão 
 
 “com as adaptações necessárias, nos termos da lei”.
 
                         Da introdução deste inciso retira o recorrente a 
 afirmação da prevalência das leis organizatórias das autarquias locais 
 
 (Decreto‑Lei n.º 100/84, de 29 de Março, na redacção dada pelo Decreto‑Lei n.º 
 
 18/91, de 12 de Junho, e Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro), designadamente do 
 artigo 68.º, n.º 2, alínea a), desta última Lei, que, ao atribuir ao presidente 
 da câmara o poder de tomar todas as decisões relacionadas com a gestão dos 
 recursos humanos afectos aos serviços municipais, o teria reconhecido como o 
 
 órgão executivo autárquico dotado de genérica competência disciplinar.
 
                         Já se disse que não compete ao Tribunal Constitucional 
 tomar posição quanto à questão de saber se esta última norma determinou a 
 revogação do artigo 18.º, n.ºs 1, 3 e 4, do EDFAACRL de 1984. Constata‑se apenas 
 que a jurisprudência administrativa – tal como veio a decidir o acórdão ora 
 recorrido – nunca aderiu a essa tese: o acórdão do STA, de 5 de Maio de 1999, 
 proc. n.º 41 514, decidiu que o Decreto‑Lei n.º 100/84, na redacção dada pelo 
 Decreto‑Lei n.º 18/91, não revogou os artigos 18.º e 75.º, n.º 4, do EDFAACRL de 
 
 1984 (pelo que o presidente da câmara municipal não era competente para aplicar 
 a pena de aposentação compulsiva), no mesmo sentido (quanto à primeira 
 proposição) tendo decidido o acórdão do Tribunal Central Administrativo, de 2 de 
 Março de 2000, proc. n.º 3597/99; os acórdãos do Tribunal Central Administrativo 
 Norte, de 23 de Setembro de 2004, proc. n.º 126/04, e de 22 de Novembro de 2007, 
 proc. n.º 1592/05.3BRPRT, tomaram idêntica decisão face à Lei n.º 169/99; e o 
 acórdão deste mesmo Tribunal, de 3 de Abril de 2008, proc. n.º 1887/05.6BEPRT, 
 fê‑lo quer face ao diploma de 1991 quer face ao diploma de 1999.
 
                         Ora, o entendimento de que esses diplomas organizatórios 
 das autarquias locais não revogaram a lei, tida por especial, constante do 
 EDFAACRL de 1984, em nada contende com o preceito constitucional invocado – o 
 artigo 243.º, n.º 2, na versão de 1997 –, pois neste apenas se possibilita que o 
 legislador, se o entender, introduza alterações ao regime dos funcionários e 
 agentes do Estado quando aplicado aos funcionários e agentes da Administração 
 Local.
 
                         É claramente improcedente a tentativa de transformar 
 esta norma meramente habilitadora de uma intervenção deixada à liberdade do 
 legislador ordinário numa regra de absoluta prevalência dos diplomas 
 organizatórios autárquicos sobre o regime disciplinar da função pública, tanto 
 mais que, neste regime, constante do EDFAACRL, o legislador, justamente no 
 questionado artigo 18.º, introduziu já a adaptação que considerou adequada 
 quando tratou de definir a competência disciplinar relativamente aos 
 funcionários da Administração Local.
 
  
 
                         3. Decisão
 
                         Em face do exposto, acordam em:
 
                         a) Não julgar inconstitucionais as normas constantes do 
 artigo 18.º, n.ºs 1, 3 e 4, do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes 
 da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 24/84, 
 de 16 de Janeiro, interpretadas no sentido de que compete à câmara municipal a 
 aplicação de sanções disciplinares aos funcionários e agentes da autarquia, com 
 excepção da pena de repreensão, que pode ser aplicada pelo presidente desse 
 
 órgão executivo; e, consequentemente,
 
                         b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão 
 recorrida, na parte impugnada.
 
                         Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em 
 
 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
 Lisboa, 23 de Setembro de 2008.
 Mário José de Araújo Torres 
 Benjamim Silva Rodrigues
 João Cura Mariano
 Joaquim de Sousa Ribeiro
 Rui Manuel Moura Ramos