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Processo n.º 65/02
 
 3ª Secção
 Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
 
  
 Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
 
  
 
  
 
          1. A., LDA., instaurou contra o ESTADO PORTUGUÊS uma acção “para 
 efectivação de responsabilidade civil extracontratual” (petição inicial) por 
 actos ilícitos de gestão pública, pedindo a sua condenação no pagamento da 
 quantia de Esc. 257.313.983$00, acrescida de juros à taxa legal.
 
          Em síntese, a autora alegou que, tendo iniciado as obras destinadas à 
 instalação de um estabelecimento de cultura de rodovalho, devidamente aprovado e 
 licenciado, foram as mesmas suspensas por assim ter sido determinado por 
 despacho do Presidente da Comissão de Coordenação da Região Norte, de 28 de 
 Outubro de 1991, despacho esse que veio a ser anulado, por sofrer do vício de 
 falta de fundamentação de facto, pelo acórdão do Supremo Tribunal Administrativo 
 de 9 de Maio de 1995 (cfr. fls. 43), acórdão que considerou ficar 
 
 “consequentemente prejudicada a revisão por este Supremo Tribunal  da apreciação 
 que a (...) sentença (...) fez dos restantes vícios que lhe foram imputados” 
 
 (violação de lei, erro sobre os pressupostos de facto e errada fundamentação de 
 direito).
 
          Assim, a autora pretende ser indemnizada pelos prejuízos que sofreu em 
 virtude da paralisação dos trabalhos, decorrentes, conforme alega, do despacho 
 anulado, e que nunca puderam ser retomados.
 Por sentença do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, de 29 de Maio de 
 
 1998, de fls. 982, a acção foi julgada improcedente.
 Inconformada, a autora recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo. Para o 
 que agora especialmente releva, nas alegações de recurso (nesta parte, 
 rectificadas a fl. 1029, cfr. despacho de fls. 1065), a recorrente sustentou que 
 
 'Na interpretação que o Tribunal  faz, o artigo 2º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 
 
 48.051, de 21.11.67 seria inconstitucional por violação material do disposto nos 
 artigos 22º e  271º da Constituição' (cfr. conclusão 34ª, a fls. 1016-1017).
 Por acórdão de 13 de Fevereiro de 2001, de fls. 1031, o Supremo Tribunal 
 confirmou a sentença recorrida, sem todavia se pronunciar sobre a questão de 
 constitucionalidade colocada pela recorrente.
 Para o efeito, deu como assente a seguinte matéria de facto: 
 
  
 
 'Na douta sentença recorrida foram dados como assentes os seguintes factos: 
 
 1-A A. pretendeu instalar um estabelecimento de cultura de rodovalho, localizado 
 no lugar de Cojo, freguesia de Vila Chã, concelho de Vila do Conde; 
 
 2 - Elaborou, para tanto, um projecto que teve avaliação e parecer favorável dos 
 seguintes organismos: Comissão de Coordenação da Região Norte, Câmara Municipal 
 de Vila do Conde, Serviço Nacional de Parques, Reservas e Conservação da 
 Natureza; Junta de Freguesia de Vila Chã; Capitania do Porto de Vila do Conde; 
 Direcção-Geral dos Cuidados de 
 Saúde Primários; Instituto Nacional de Investigação das Pescas; 
 
 3 - O referido projecto foi aprovado e licenciado pela Direcção-Geral de Portos 
 e pela Direcção-Geral de Pescas nos termos constantes de fls. 16 a 19 do 
 processo; 
 
 4 - Em 7/X/1991, foram iniciadas as obras de construção, após comunicação feita 
 
 às diversas entidades, com um mês de antecedência; 
 
 5 - Em 28/X/1991, por despacho proferido o Presidente da Comissão de Coordenação 
 da Região Norte solicitou ao Director-Geral de Portos que fosse mandado proceder 
 ao embargo imediato da obra em execução pela autora de construção de um 
 estabelecimento de cultura de rodovalho, localizado no lugar de Cojo, freguesia 
 de Vila Chã, concelho de Vila do Conde; 
 
 6 - Foi dado como reproduzido o documento de fls. 32 dos autos; 
 
 7 - A obra foi embargada conforme consta do documento junto a fls. 40 dos autos; 
 
 
 
 8 - A autora recorreu contenciosamente dos despachos do Presidente da Comissão 
 de Coordenação da Região e do Director-Geral dos Portos, de 8/X/1991 e 
 
 29/X/1991, vindo o Supremo Tribunal Administrativo a anular o despacho de 
 
 28/X/1991 nos termos constantes do respectivo acórdão junto a fls. 43 a 50 e 
 onde, nomeadamente, se pode ler: “…contrariamente ao decidido na sentença, o 
 despacho de 28/10/91 padece de vício de forma, por falta de fundamentação de 
 facto, o que leva à sua anulação, ficando consequentemente prejudicada a revisão 
 por este Supremo Tribunal da apreciação que a mesma sentença igualmente faz dos 
 restantes vícios que lhe foram ainda imputados. Procedem, pois, nesta medida, as 
 alegações da recorrente. Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso 
 jurisdicional, se revoga a sentença impugnada, decretando-se em sua substituição 
 a anulação do despacho de 28/X/91, pelo apontado vício de forma. Sem custas”; 
 
 9 - O embargo referido em 7 determinou a paralisação de todo o empreendimento; 
 
 10 - A autora pagou ao empreiteiro a quem foi adjudicada a obra de construção 
 civil das instalações do projecto (Sociedade de Construções Gomes do Monte, 
 Lda., com sede na Rua Gomes de Amorim, 585, Apart. 18, 4.991 Póvoa de Varzim) o 
 montante de 10.000.000$00; 
 
 11 - O referido valor destinou-se a pagar a instalação do estaleiro de obras e 
 vedação da área de construção destas e materiais de construção; 
 
 12 - Tais instalações e materiais, dado o decorrer do tempo, ficaram 
 inutilizáveis umas e extraviaram-se outras; 
 
 13 - O ano de arranque da exploração seria o de 1993, se não ocorresse o 
 embargo; 
 
 14 - Os resultados líquidos previsíveis seriam: 1993 - 7.119.000$00; l994 – 
 
 111.511.000$00; 1995 – 97.763.068$00 
 
  
 Tendo por base estes factos, o tribunal “a quo” absolveu o réu Estado do pedido 
 por a autora não ter conseguido provar os requisitos da ilicitude e do dano'. 
 
  
 
          Recorde-se que, no julgamento da matéria de facto (a fls. 968 e 969), 
 haviam sido dado como não provados os quesitos 2º e 8º do questionário, com o 
 seguinte teor: 
 
          '2º. Com a elaboração de estudos de biotecnologia e de viabilidade 
 económica-financeira  do projecto dispendeu a autora PTE 12.000.000$00?
 
          8º. A autora destruiu a duna nos termos referidos a fls. 215 e 218 dos 
 autos, documentos que aqui dou por integralmente reproduzidos, sendo essa a 
 razão de se ter determinado o embargo referido na alínea g) da especificação? 
 
 [Trata-se, respectivamente, de um 'Memorando da visita efectuada à A.(…) 
 realizada pela Comissão de Coordenação da região Norte em 25 de Fevereiro de 
 
 1992, e do embargo em causa nestes autos, documentado a fls. 40].
 
  
 Quanto ao direito aplicável, o Supremo Tribunal Administrativo  julgou da 
 seguinte forma:
 
          «A recorrente funda o seu pedido de indemnização no despacho do Sr. 
 Presidente da Comissão de Coordenação Regional Norte de 28/10/91 que ordenou o 
 embargo da obra a que procedia para construção de um estabelecimento de cultura 
 de rodovalho localizado no lugar de Cojo, Facho, Freguesia de Chã, concelho de 
 Vila do Conde, despacho aquele que fora anulado por acórdão do STA de 9/5/1995 
 já transitado em julgado.
 
          Segundo a recorrente, os prejuízos adviriam de tal embargo ter 
 paralisado todo o investimento.
 
          Tal qual como vem delineada a acção proposta pela recorrente, a mesma 
 baseia-se na responsabilidade civil extracontratual do Estado pela prática de 
 acto ilícito de gestão pública.
 
          Este tipo de responsabilidade está prevista e regulada no DL. N.º 
 
 48.051, de 21 de Novembro de 1967.
 
          Regula tal diploma legal três tipos de responsabilidade: a baseada em 
 acto de gestão pública ilícito culposo (arts. 2º a 7º), a baseada em factos 
 casuais e fundamentada no risco (artº 8º) e, finalmente, a responsabilidade por 
 factos lícitos (artº 9º).
 
          Alicerçando-se a recorrente, como acima se referiu, na responsabilidade 
 civil extracontratual por acto ilícito culposo praticado pelo réu, não se 
 compreende porque é que na conclusão 36ª das suas alegações, a recorrente vem 
 pugnar pela violação do  artº 9º do DL. N.º 48.051, pois neste preceito apenas 
 se prevê a responsabilidade da Administração Pública pela prática de actos 
 lícitos.
 
          Mas nesta mesma conclusão defende a recorrente que a sentença recorrida 
 viola os arts. 271º da CRP e 2º, 4º e 6º do DL. N.º 48.051.
 
          Ao absolver o recorrido do pedido, o tribunal “a quo” baseou-se na não 
 verificação da ilicitude do acto imputado ao Estado.
 
          Nos termos do art. 2º nº 1 do DL. N.º 48.051 “o Estado e demais pessoas 
 colectivas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos 
 destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, 
 resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos 
 ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse 
 exercício”.
 
          Resulta do teor deste preceito que a responsabilidade civil 
 extracontratual do Estado por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou 
 agentes corresponde, no essencial, ao conceito civilista da responsabilidade 
 civil extracontratual por factos ilícitos prevista no artº 483º nº 1 do Código 
 Civil.
 
          Os pressupostos para este tipo de responsabilidade sãos os seguintes: 
 a) o facto; b) a ilicitude; c) a culpa; d) o dano, e; e) o nexo de causalidade 
 
 (Ac. do STA de 16/2/2000-rec. N.º 41.507, de 6/7/2000-rec. N.º 46.005 de 
 
 10/10/2000-rec. N.º 40.576).
 
          Para surgir o dever de indemnizar têm de se verificar cumulativamente 
 estes requisitos, pelo que faltando um deles, desaparecerá tal dever.
 
          No caso dos autos, está só em causa a não verificação da ilicitude, 
 pois que o objecto do recurso jurisdicional é a sentença recorrida e foi isto 
 que nela foi decidido.
 
          O conceito de ilicitude está verificado no artº 6º do DL. N.º 48.051, 
 onde se refere que “se consideram ilícitos os actos jurídicos que violem as 
 normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos 
 materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem 
 técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração”.
 
          A redacção deste preceito inculca que onde haja um acto ilegal aí mora, 
 também, a ilicitude (Marcelo Caetano, Manual, 9ª ed., II, pag. 1201).
 
          Mas nem sempre assim será.
 
          Como adverte Gomes Canotilho, temos de precaver-nos contra a completa 
 equiparação da ilegalidade à ilicitude, sugerida pela redacção do artº 6º. 
 Segundo este autor “a violação dos preceitos jurídicos não é, por si só, 
 fundamento bastante da responsabilidade. Quer se exija a violação de direitos 
 subjectivos, quer a violação dum dever jurídico ou funcional para com o lesado, 
 quer ainda uma falta da administração, faz-se intervir sempre um elemento 
 qualificador e definidor de uma relação mais íntima do indivíduo prejudicado com 
 a administração do que a simples legalidade e regularidade do funcionamento dos 
 
 órgãos administrativos” (O Problema da responsabilidade do Estado por actos 
 lícitos, págs. 74 e 7).
 
          Esta posição perfilhada por Gomes Canotilho é, também, defendida por 
 Margarida Baeta Cortês, na sua tese de mestrado, inédita, sobre a 
 responsabilidade da administração por actos ilícitos, seguida nos Pareceres do 
 Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República nºs 46/80 e 183/81, in, 
 respectivamente, BMJ, 306, pág. 63 e ss. E BMJ,316, pág. 57 e ss.) e sufragada 
 por este tribunal (Acs. do STA de 5/3/1998-rec. N.º 30.840 e de 9/11/2000-rec. 
 N.º 46.441).
 
          São duas as razões fundamentais que sustentam esta tese.
 
          Assim, e por um lado, radica na consideração de que nem toda a 
 ilegalidade implica ilicitude, para efeitos indemnizatórios. Designadamente, há 
 ilegalidades veniais (ex.: o vício de forma e a incompetência rationae personae) 
 que não abrem direito a indemnização (Prosper Weil, Les Conséquences de 
 l’annulation d’un acte administratif, pág. 255; Georges Vedel, Droit 
 Administratif, 3ª ed., pág. 271; René Chapus, Droit administratif géneral, I, 5ª 
 ed., pág. 850).
 
          Depois, e por outro, funda-se no princípio que se plasma, 
 designadamente, na 1ª parte do nº 1 do artº 2º do DL. N.º 48.051: os actos 
 inquinados por “vício de forma” raramente poderiam ofender direitos dos 
 particulares e, em princípio, também não ofenderiam interesses protegidos por 
 disposições legais destinadas a proteger tais interesses, já que as normas 
 prescritivas de “formas” em direito administrativo nunca (ou muito raramente) 
 visariam proteger directamente os interesses económicos dos particulares, e 
 muito menos visariam fazê-lo através da atribuição de uma indemnização.
 
          No caso dos autos, de falta de fundamentação de um acto administrativo, 
 as normas que impõem tal fundamentação visam, fundamentalmente, facilitar a 
 impugnação dos actos administrativos (Cfr. Vieira de Andrade, O dever da 
 fundamentação expressa de actos administrativos, págs. 65 e ss.) e não proteger 
 um bem jurídico cuja violação implique conferir aos particulares o direito a uma 
 indemnização, se tais normas forem violadas.
 
          Há, pois, que concluir, como o julgador “a quo” muito bem o fez, não se 
 verificar, no caso sub judice, o requisito da ilicitude.
 
          Em concordância com tudo o exposto, improcedendo todas as conclusões 
 das alegações da recorrente, nega-se provimento ao presente recurso 
 jurisdicional e confirma-se a sentença recorrida.»
 
  
 
          2. De novo inconformada, a autora recorreu para o Tribunal 
 Constitucional, “ao abrigo da alínea b) do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de 
 Novembro, para apreciação da questão da constitucionalidade material do artigo 
 
 2º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48.051, de 21.11.1967, por violação do disposto 
 nos artigos 22º e 271º da Constituição da República Portuguesa, que suscitou na 
 
 34ª conclusão das alegações de recurso (rectificada em 08.02.2000)”.
 
  
 
          Notificadas para o efeito, as partes apresentaram alegações.
 
  
 
          Quanto à recorrente, veio sustentar a “inconstitucionalidade do artigo 
 
 2º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48.051, de 21 de Novembro de 1967, por violação do 
 disposto nos artigos 22º e 271º da Constituição da República Portuguesa, na 
 interpretação que o acórdão recorrido faz do identificado preceito legal, no 
 sentido de que um acto administrativo ilegal por falta de fundamentação não gera 
 responsabilidade civil do Estado, por não ser acto ilícito susceptível de ser 
 pressuposto da responsabilidade civil extracontratual por acto de gestão 
 pública”, concluindo da seguinte forma:
 
  
 
 «1ª A recorrente iniciou obra de construção de estabelecimento licenciado pelo 
 Estado.
 
 2ª O Estado determinou o embargo, por acto administrativo anulado por falta de 
 fundamentação.
 
 3ª O Estado não provou, em sede de acção, os fundamentos que invocava para o 
 embargo, nem alegou qualquer outro fundamento para embargo.
 
 4ª A recorrente teve prejuízos decorrentes do embargo decretado, conforme está 
 provado nos autos.
 
 5ª O artigo 2º do Decreto-Lei n.º 48.051, de 21.11.1967, é inconstitucional, por 
 violação do disposto nos artigos 22º e 271º da Constituição, na interpretação de 
 que do seu âmbito se exclui todo e qualquer acto administrativo ilegal, por 
 falta de fundamentação.
 
 6ª O artigo 2º do Decreto-Lei n.º 48.051, de 21.11.1967, é inconstitucional, por 
 violação do disposto nos artigos 22º e 271º da Constituição, na interpretação de 
 que nunca há dever de indemnizar, em caso de acto administrativo ilegal, por 
 ausência de fundamentação, cujo conteúdo represente a interdição, suspensão ou, 
 por qualquer forma, vedação de exercício de actividade privada assente em prévia 
 permissão administrativa.
 
 7ª O douto acórdão recorrido violou, pois, por errada interpretação e aplicação 
 o disposto nos artigos 22º e 271º da Constituição, no sentido em que interpretou 
 o artigo 2º do Decreto-Lei n.º 48.051, de 21.11.1967, 483º do Código Civil.”
 
  
 Juntou, com as alegações, um parecer jurídico.
 
  
 
          O Ministério Público contra-alegou, tendo a final concluído nos 
 seguintes termos:
 
  
 
 “1º - Não viola o princípio constitucional da responsabilidade de entidades 
 públicas, consagrado no artigo 22º da Constituição a interpretação normativa que 
 
 – cindindo os puros conceitos de ilegalidade e ilicitude do acto administrativo 
 
 – exige que os direitos e interesses do particular, pretensamente lesados, se 
 situem no círculo de interesses tutelados pela disposição legal infringida, 
 aplicando e adaptando ao domínio do direito administrativo a teoria do ‘fim 
 protegido’, consagrado no artigo 483º do Código Civil.
 
 2º - Incumbe aos tribunais, na interpretação e aplicação do direito 
 infraconstitucional, identificar o bem protegido pela disposição legal 
 desrespeitada pelo acto administrativo anulado, de modo a determinar se certo 
 vício procedimental ou formal do acto administrativo deve implicar, no 
 circunstancialismo do caso concreto, ilicitude material, traduzida na violação 
 de direitos ou interesses contidos no horizonte de responsabilização da norma.
 
 3º - Não constitui interpretação inconstitucional das normas que definem os 
 pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado a que se traduz 
 em considerar que não é materialmente ilícito o acto administrativo 
 deficientemente fundamentado, relativamente à pretensa lesão de direito 
 decorrente de um licenciamento precário, temporário e condicionado, não 
 cumprindo o lesado o ónus de especificar, como fundamento da pretensão 
 indemnizatória deduzida, factos demonstrativos da lesão substancial do seu 
 direito e do respeito pelos condicionalismos que lhe foram impostos no referido 
 acto de licenciamento.
 
 4º - Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
 
  
 
  
 
          3. Cumpre começar por fixar o objecto do recurso. 
 
          É o seguinte o texto da norma impugnada:
 
  
 
  
 Artigo 2º
 
 1.            O Estado e demais pessoas colectivas respondem civilmente perante 
 terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas 
 a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente 
 praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das 
 suas funções e por causa desse exercício.
 
  (...)
 
  
 
          O acórdão recorrido, interpretando restritivamente este preceito – 
 assim afastando a equiparação 'sugerida', como afirma, pelo artigo 6º do mesmo 
 Decreto-Lei n.º 48.051 entre 'ilegalidade' e 'ilicitude', entre acto ilícito e 
 acto que viole “as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais 
 aplicáveis (...)”, considerou que um acto administrativo ilegal por falta de 
 fundamentação não pode ser considerado “acto ilícito” para o efeito de gerar 
 responsabilidade civil do Estado por actos ilícitos.
 
          Em síntese, relembre-se, o Supremo Tribunal Administrativo excluiu a 
 verificação do pressuposto da ilicitude – o que é naturalmente suficiente para 
 afastar a procedência do pedido de indemnização baseado em responsabilidade 
 civil por acto ilícito – por duas razões. 
 Em primeiro lugar, e em abstracto, porque 'nem toda a ilegalidade implica 
 ilicitude, para efeitos indemnizatórios. Designadamente, há ilegalidades veniais 
 
 (ex.: o vício de forma e a incompetência rationae personae) que não abrem 
 direito a indemnização' e ainda porque, como decorre do princípio plasmado na 
 primeira parte do n.º 1 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 48.051, 'os actos 
 inquinados por 'vício de forma' raramente poderiam ofender direitos dos 
 particulares', e, 'em princípio, também não ofenderiam interesses protegidos por 
 disposições legais destinadas a proteger tais interesses, já que as normas 
 prescritivas de 'formas' em direito administrativo nunca (ou muito raramente) 
 visariam proteger directamente os interesses económicos dos particulares, e 
 muito menos visariam fazê-lo através da atribuição de uma indemnização'.
 
          Em segundo lugar, porque, no caso concreto, o vício em causa – 'falta 
 de fundamentação de um acto administrativo' – decorre da violação de normas que 
 
 'visam, fundamentalmente, facilitar a impugnação dos actos administrativos (…) e 
 não proteger um bem jurídico cuja violação implique conferir aos particulares o 
 direito a uma indemnização, se tais normas forem violadas'.
 Constitui, então, o objecto do presente recurso a norma do n.º 1 do artigo 2º 
 acima transcrito, interpretada no sentido de que um acto administrativo anulado 
 por falta de fundamentação é insusceptível, absolutamente e em qualquer caso, de 
 fazer incorrer o Estado em responsabilidade civil extra-contratual por acto 
 ilícito, norma que a recorrente acusa de violar o disposto nos artigos 22º e 
 
 271º da Constituição
 Não envolve qualquer alteração de análise a circunstância de a norma em causa 
 constar de um diploma anterior à Constituição de 1976, uma vez que a verificação 
 de que se não manteve com a entrada em vigor da referida Constituição implica um 
 juízo de inconstitucionalidade (n.º 2 do artigo 290º da Constituição e, por 
 exemplo, acórdão n.º 29/84, Acórdãos do Tribunal Constitucional, p. 431 e segs., 
 ou, especificamente para este diploma, o Parecer da Comissão Constitucional n.º 
 
 22/79, Pareceres da Comissão Constitucional, 9º, p. 39 e segs.)   
 
  
 
          4. Como é sabido, não cabe no âmbito do  recurso de fiscalização 
 concreta da constitucionalidade analisar a questão em causa do ponto de vista do 
 direito ordinário aplicável. 
 
          Não cabe, pois, ao Tribunal Constitucional censurar ou concordar – 
 sempre do ponto de vista do direito ordinário, repita-se – com a distinção 
 adoptada pelo acórdão recorrido entre ilegalidade e ilicitude para efeitos de 
 preenchimento do pressuposto da ilicitude no âmbito da responsabilidade civil do 
 Estado (da Administração, no caso) por acto ilícito; nem tão pouco discutir se a 
 questão da natureza formal do vício com base no qual o acto foi anulado se 
 deverá analisar a propósito do pressuposto da ilicitude ou, antes, do nexo de 
 causalidade (como, por exemplo, sustenta RUI MEDEIROS, Ensaio sobre a 
 Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos, Coimbra, 1992, págs. 
 
 169 e 206 e segs.; ver ainda a explicação da alternativa, por exemplo, em VIEIRA 
 DE ANDRADE, Panorama Geral da Responsabilidade 'Civil' da Administração Pública 
 em Portugal, in  La Responsabilidad Patrimonial de los Poderes Públicos, III 
 Colóquio Hispano-Luso de Derecho Administrativo, Madrid, 1999, pág. 39 e segs., 
 pág. 49 ou em CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime Geral da Responsabilidade 
 Civil da Administração, Cadernos de Justiça Administrativo, n.º 40, Julho/Agosto 
 
 2003, pág18 e segs., maxime pág. 27). 
 
          Cumpre-lhe apenas tomar como objecto deste recurso a norma tal como ela 
 foi interpretada e aplicada, no caso, pelo Supremo Tribunal Administrativo.
 
          Como se disse já, o Supremo Tribunal Administrativo optou por afastar 
 uma interpretação do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 48.051 que  equipare 
 ilegalidade e ilicitude (sustentada entre nós por  exemplo por MARCELO CAETANO, 
 Manual de Direito Administrativo, vol. II, 9ª edição, reimp., Coimbra, 1980, 
 pág. 1225, ou ANTUNES VARELA, nota 1. da pág. 536, vol. I, Das Obrigações em 
 Geral, 10ª edição, Coimbra, 2000), adoptando um conceito de ilicitude que 
 aproxima a responsabilidade do Estado (por actos de gestão pública) da 
 responsabilidade civilística (cfr. n.º 1 do artigo 483º do Código Civil), e 
 exigindo que a ilegalidade se traduza na violação de direitos subjectivos do 
 lesado ou, pelo menos, de interesses cuja protecção a norma violada se destina a 
 proteger. 
 
          Seguiu, assim, como aliás expressamente afirma, a orientação 
 preconizada por GOMES CANOTILHO (O problema da Responsabilidade do Estado por 
 Actos Lícitos, Coimbra, 1974, pág. 73 e segs.), autor que, reconhecendo embora 
 que 'no nosso direito positivo, facilmente se constata que o ilícito definido no 
 artigo 6º do Decreto-Lei n.º 48 051 (…) é mais amplo que o ilícito civil 
 definido no art. 483º do Cód. Civil', sustenta que não se deve adoptar uma 
 
 'completa equiparação da ilegalidade à ilicitude, possivelmente sugerida pela 
 redacção do citado art. 6º (…)', antes se deve exigir 'uma relação mais íntima 
 do indivíduo prejudicado para com a administração do que a simples legalidade e 
 regularidade do funcionamento dos órgãos administrativos', ou por MARGARIDA 
 CORTEZ (Responsabilidade Civil da Administração por Actos Administrativos 
 Ilegais e Concurso de Omissão Culposa do Lesado, Coimbra, pág. 65 e segs., em 
 particular pág. 74 e segs.).
 
          Aceitando portanto esta distinção, o acórdão recorrido concluiu que 
 dificilmente constituirá ilicitude (para efeitos de responsabilidade civil da 
 Administração) uma ilegalidade resultante de um vício formal, em geral, e, em 
 caso algum, a que decorra da falta de fundamentação, porque a norma que a exige 
 não se destina a proteger o interesse dos destinatários de actos 
 administrativos.
 
          Também não vem ao caso discutir esta conclusão, quer quanto à inclusão 
 da falta de fundamentação entre os vícios de forma, quer quanto aos interesses 
 que as normas de procedimento administrativo que a impõem realmente têm em vista 
 proteger.
 
          Sempre se observa, todavia, que o n.º 4 do artigo 268º (n.º 3, na 
 versão anterior à revisão constitucional de 1997) da Constituição inclui entre 
 as garantias dos administrados o dever de fundamentação [ao qual, por exemplo, 
 MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, 
 I, 2ª edição., Lisboa, 2006, pág.152, consideram corresponder um direito 
 fundamental dos particulares, 'de natureza análoga aos direitos, liberdades e 
 garantias (art. 17º CRP)]' “expressa e acessível” dos actos administrativos que 
 
 “afectem direitos ou interesses legalmente protegidos”; e que, se é certo que as 
 normas sobre fundamentação não dispõem sobre os interesses substanciais que os 
 actos em causa possam afectar, não é menos certo que o “fim último” com que a 
 Constituição consagra tal obrigação é “a garantia de valores substanciais”, 
 entre os quais se conta “a protecção dos direitos dos particulares” (VIEIRA DE 
 ANDRADE, O Dever da Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Coimbra, 
 
 1991, pág. 219). Como este autor escreve, “os preceitos relativos ao dever de 
 fundamentação formal são afinal aquilo que parecem ser: normas de acção que 
 regulam o comportamento administrativo em função de um conjunto multipolar de 
 interesses, incluindo interesses dos administrados, que nessa medida são 
 juridicamente protegidos”.
 
          
 
          5. E igualmente se observa que é útil relacionar a norma em apreciação 
 neste recurso com outras normas de direito ordinário (ter-se-á tão somente em 
 conta o direito vigente até à data do acórdão recorrido) respeitantes a 
 determinadas consequências da anulação de actos administrativos com base, como é 
 agora o caso, em falta de fundamentação; em particular, com certas regras 
 relativas à execução – ou inexecução – da sentença anulatória.
 
          Tal como sucede em outras hipóteses que agora não interessam (outros 
 vícios de forma, ou incompetência, por exemplo) do que se costuma designar por 
 actos renováveis, a execução de uma sentença que os anule pode consistir na 
 prática de um segundo acto que mantenha o sentido da decisão substancial que o 
 primeiro continha, naturalmente corrigindo o vício que determinou a anulação.
 
          Como se sabe, tem-se colocado o problema de saber se deve ser atribuída 
 eficácia retroactiva ao segundo acto (cfr. a evolução da doutrina e da 
 jurisprudência referida, a este propósito, por FREITAS DO AMARAL,  A Execução 
 das Sentenças dos Tribunais Administrativos, 2ª edição., Coimbra, pág. 90 e 
 segs.).
 
          A lei veio resolver expressamente este ponto. Com efeito, o artigo 128º 
 do Código do Procedimento Administrativo, do mesmo passo que definiu a regra de 
 que 'têm eficácia retroactiva os actos administrativos (…) que dêem execução a 
 sentenças dos tribunais, anulatórias de actos administrativos'' (n.º 1 e al. b) 
 respectiva), ressalvou dessa regra a hipótese de se tratar de actos 
 administrativos praticados em execução de sentenças anulatórias de 'actos 
 renováveis” (mesma al. b), in fine).
 
          Esta ressalva, todavia, apenas foi acrescentada com a alteração que o 
 Decreto-Lei n.º 6/96, de 31 de Janeiro, introduziu ao Código de Procedimento 
 Administrativo, ele próprio, aliás, aprovado por um diploma posterior ao embargo 
 
 (decretado em 28 de Outubro de 1991), o Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de 
 Novembro.
 
          Já todavia se tratava desta questão, naturalmente, quer na doutrina, 
 quer na jurisprudência. A controvérsia – que, note-se, nem tem relevância para o 
 julgamento do presente recurso, uma vez que não foi praticado novo acto de 
 embargo, em execução do acórdão anulatório – pode ver-se, por exemplo, em MÁRIO 
 ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES, J. PACHECO DE AMORIM, Código do 
 Procedimento Administrativo, 2ª edição., Coimbra, 1997, pág. 621-622). 
 Conclui-se, pois, mesmo discordando de AFONSO QUEIRÓ (que sustentava a 
 irretroactividade do novo acto, sob pena de frustração da 'reintegração da ordem 
 jurídica violada', de inutilização do recurso de anulação e de afastamento de 
 
 'efectiva sanção jurídica' para 'a actuação ilegal da Administração' – Revista 
 de Legislação e de Jurisprudência, ano 119º, págs. 302-303.) que, ainda que um 
 acto anulado por vício formal venha a ser repetido com o mesmo conteúdo 
 decisório, 'a verdade é que, 'enquanto o acto ilegal não for renovado, a sua 
 anulação obriga a considerá-lo como nunca tendo existido' (FREITAS DO AMARAL, 
 op.cit., pág. 92). 
 
  Finalmente, também interessa relembrar o regime então definido para a 
 inexecução ilegítima da sentença anulatória do acto inválido por falta de 
 fundamentação, que se encontrava abrangida pelo artigo 11º do Decreto-Lei n.º 
 
 256-A/77, de 17 de Junho, e que, nos termos ali determinados, previa a hipótese 
 de conduzir a uma indemnização resultante de responsabilidade civil da 
 Administração.  
 
          A interpretação do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 48.051 que é 
 questionada no âmbito deste recurso leva a que se exclua em absoluto a 
 possibilidade de indemnização de qualquer prejuízo que, porventura, se possa 
 ligar causalmente a um acto anulado por falta de fundamentação, mesmo não tendo 
 nunca sido praticado novo acto, em execução da decisão anulatória, podendo 
 sê-lo, nem se demonstrando que o efeito do acto invalidado podia ter sido 
 produzido por uma conduta alternativa lícita.
 
          E leva igualmente a que fique sem qualquer consequência uma eventual 
 recusa ilegítima, por parte da Administração, da execução da sentença 
 anulatória, à luz do regime acima descrito.
 
  
 
          6. A recorrente sustenta a inconstitucionalidade da norma em 
 apreciação, acusando-a de violar o 'disposto nos artigos 22º e 271º da 
 Constituição da República Portuguesa'.
 
          Não é a primeira vez que o Tribunal Constitucional se vê confrontado 
 com a alegação de inconstitucionalidade por violação do artigo 22º da 
 Constituição. É, todavia, a primeira vez que lhe é colocada a questão de que 
 trata o presente recurso.
 
          Com efeito, no acórdão n.º 153/90 (Diário da República, II série, de 7 
 de Setembro de 1990), o Tribunal Constitucional analisou o artigo 22º da 
 Constituição, concluindo que não abrangia a responsabilidade contratual do 
 Estado.
 No acórdão  n.º 107/92 (Diário da República, II série, de 15 de Julho de 1992), 
 observou que 'no artigo 22º consagra-se, na verdade, o princípio da 
 responsabilidade do Estado pelos danos causados aos cidadãos, ao menos quando 
 esses danos hajam sido causados por actos ilícitos'.
 
  No acórdão n.º 45/99 (Diário da República, II série, de 26 de Março de 1999) 
 afirmou, sempre a propósito de uma questão diferente da que agora está em causa, 
 que «o que naquele artigo 22º se postula é a regra da responsabilidade civil do 
 
 'Estado e demais entidades públicas (…) por acções ou omissões praticadas no 
 exercício das suas funções e por causa desses exercício'», e disse, acolhendo «o 
 dizer de J.J. Gomes Canotilho (anotação ao Acórdão de 9 de Outubro de 1990 do 
 Supremo Tribunal Administrativo, em Revista de Legislação e de Jurisprudência, 
 ano 124, p. 86),[que] ali não apenas se estabelece a 'a garantia institucional 
 da responsabilidade directa do Estado (…) como se reconhece o direito do 
 particular à reparação indemnizatória e ou compensatória no caso de lesão de 
 direitos, liberdades e garantias'».
 
          Mais recentemente, nos acórdãos n.ºs 236/2004 (Diário da República, II 
 série, de 4 de Junho de 2004) e 5/2005 (Diário da República, II série, de 18 de 
 Abril de 2005), e salientando as dificuldades suscitadas pela interpretação do 
 referido artigo 22º, o Tribunal considerou que este preceito veio 
 constitucionalizar o princípio da responsabilidade civil do Estado e demais 
 entes públicos, em particular no que respeita à responsabilidade da 
 Administração. 
 
          Escreveu-se, então, no citado acórdão n.º 236/2004:
 
 «6  –  A norma do artigo 22º da Constituição de 76 constitui uma inovação 
 relativamente aos textos constitucionais anteriores, elevando a nível 
 supra-legal (constitucional) princípios que até então haviam apenas sido 
 acolhidos no direito infraconstitucional, maxime no Decreto-Lei nº 48051.
 Ela veio a ser inscrita na Parte I da CRP, referente aos “Direitos e deveres 
 fundamentais”, e no Título I  que contempla os “Princípios gerais” sobre a 
 matéria.
 Trata-se, pois, de uma norma que respeita aos direitos, liberdades e garantias, 
 o que, obviamente, não basta – como não basta a sua qualificação como princípio 
 geral - para uma caracterização rigorosa do tipo de norma em causa. Com efeito, 
 como assinala Maria Lúcia Amaral (“Responsabilidade do Estado e dever de 
 indemnizar do legislador” p. 430) “(...) estas mesmas normas podem ser ainda de 
 tipos diversos consoante atribuem ou não atribuem verdadeiros direitos 
 subjectivos aos particulares”.»
 Também já a Comissão Constitucional se vira confrontada com o (então) n.º 1 do 
 artigo 21º da Constituição (cfr. Parecer n.º 22/79, já citado, em especial a 
 pág. 51 e segs.); mas igualmente a propósito de questão diferente da que nos 
 ocupa.
 
  
 
 7. Segundo o artigo 22º da Constituição, “O Estado e as demais entidades 
 públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos 
 seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no 
 exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação 
 dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízos para outrem”.
 
 É controverso o significado preciso da consagração desta regra na Constituição.
 Assim, e em síntese, encontram-se opiniões no sentido de que aquele preceito 
 consagra um princípio geral (BARBOSA DE MELO, Responsabilidade Civil 
 Extra-contratual do Estado – Não cobrança de derrama pelo Estado, Colectânea de 
 Jurisprudência, ano XI, tomo IV – 1986, pág. 33 e segs., maxime pág. 36) ou “uma 
 garantia institucional” (VIEIRA DE ANDRADE, Panorama cit, pág. 52 e Os Direitos 
 Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3ª edição, Coimbra, 2004, pág. 
 
 144,  MARIA LÚCIA AMARAL, Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do 
 Legislador, Coimbra, 1998, pág. 439 e segs., ou MARGARIDA CORTEZ, 
 Responsabilidade cit., pág. 23 e segs.) que carece de ser concretizada pelo 
 legislador ordinário; nomeadamente, caberia no âmbito da sua liberdade de 
 conformação a definição dos pressupostos da obrigação de indemnizar. Em todo 
 caso, tal liberdade sempre teria como limite o respeito pelo 'núcleo essencial' 
 da garantia, ou seja, não poderia ser exercida de forma a contrariar, desde 
 logo, o próprio princípio da responsabilidade.
 Diferentemente, há quem sustente que a concretização de tal princípio se tem de 
 encontrar na “conexão de normativos constitucionais” relativos “ao estatuto 
 orgânico-funcional dos órgãos do Estado”, sob pena de se desvirtuar a natureza 
 de “direito subjectivo fundamental” do direito consagrado no artigo 22º, 
 garantindo-lhe assim a “aplicabilidade directa” que lhe impõe o n.º 1 do artigo 
 
 18º da Constituição (MANUEL AFONSO VAZ, A Responsabilidade Civil do Estado, 
 Considerações breves sobre o seu estatuto constitucional pags. 4 e segs.). 
 Nomeadamente, para a responsabilidade da Administração por actos ilícitos 
 haveria que entender o artigo 22º em conjunto com o artigo 271º da Constituição, 
 para encontrar o “âmbito material” dessa responsabilidade. 
 GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 
 
 3ª edição., Coimbra, pág. 170) afirmam expressamente que 'na falta de lei 
 concretizadora, o art. 22º é uma norma directamente aplicável (…)'; JORGE 
 MIRANDA (A Constituição e a Responsabilidade Civil do Estado, Boletim da 
 Faculdade de Direito, sep. de Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério 
 Soares, pág. 928 e segs.,  e JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição 
 Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, pág. 209 e segs.), MARIA DA GLÓRIA 
 GARCIA (A Responsabilidade Civil do Estado e demais Pessoas Colectivas Públicas, 
 Lisboa, 1997, pág. 53 e segs.) ou RUI MEDEIROS (Ensaio sobre a Responsabilidade 
 Civil do Estado por actos Legislativos, Coimbra, 1992, pág. 92 e segs.), por 
 exemplo, sustentam  que se trata de 'um direito de natureza análoga à dos 
 direitos, liberdades e garantias' (cfr. artigo 17º da Constituição), 
 directamente aplicável (artigo 18º, n.º 1) e sujeito ao respectivo regime.
 
  
 
          8. Ora, seja qual for a opção tomada nesta controvérsia, a verdade é 
 que não é compatível com o artigo 22º da Constituição uma interpretação do 
 artigo 2º do Decreto-Lei n.º 48.051 que exclua sempre e em qualquer caso a 
 responsabilidade do Estado por danos verificados na sequência de um acto 
 administrativo anulado por falta de fundamentação, quando a sentença anulatória 
 não for executada e não for praticado novo acto, sem o vício que determinou a 
 anulação, com o fundamento de que se não verifica nunca o pressuposto da 
 ilicitude do acto.
 
          E isto se diz sem embargo de se não excluir a possibilidade de o pedido 
 de indemnização vir a ser julgado improcedente por não verificação de qualquer 
 dos pressupostos da responsabilidade civil.
 A absoluta insusceptibilidade de ressarcimento desses danos não permite, para 
 utilizar as palavras do acórdão n.º 236/2004, cumprir 'a principal função do 
 instituto da responsabilidade civil – a função reparadora – que especialmente 
 garante aos particulares o ressarcir de danos causados por actos praticados 
 pelos titulares dos órgãos, funcionários e agentes do estado e das entidades 
 públicas'.
 
          Assim, quer se entenda que o direito à indemnização previsto no artigo 
 
 22º da Constituição é um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias, 
 quer se considere que ali se encontra apenas uma 'garantia institucional', 
 sempre se chega à inconstitucionalidade da norma que constitui o objecto do 
 presente recurso. 
 Na primeira perspectiva, porque implicaria uma restrição não admitida pelo n.º 2 
 do artigo 18º; na segunda, porque, ao afectar o próprio princípio da 
 responsabilidade do Estado, excederia o âmbito da liberdade de conformação do 
 legislador, afectando o 'núcleo essencial' de tal garantia.
 
  
 
          9. Nestes termos, decide-se:
 
  
 a)               Julgar inconstitucional, por violação do princípio da 
 responsabilidade extra-contratual do Estado, consagrado no artigo 22º da 
 Constituição, a norma constante do artigo 2º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48.051, 
 de 21 de Novembro de 1967, interpretada no sentido de que um acto administrativo 
 anulado por falta de fundamentação é insusceptível, absolutamente e em qualquer 
 caso, de ser considerado um acto ilícito, para o efeito de poder fazer incorrer 
 o Estado em responsabilidade civil extra-contratual por acto ilícito;
 b)               Consequentemente, conceder provimento ao recurso, determinando 
 a reformulação da decisão recorrida de acordo com o presente juízo de 
 inconstitucionalidade.
 Lisboa, 2 de Março de 2007
 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
 Gil Galvão
 
                                    Vítor Gomes (com declaração anexa)
 
                                              Bravo Serra (com declaração 
 idêntica à 
 
                              formulada pelo Ex.mo Senhor Conselheiro Vítor 
 Gomes)
 Artur Maurício
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 
  
 
  
 
                  Acompanho a decisão e o essencial dos seus fundamentos, com o 
 esclarecimento de que entendo que o artigo 22.º da Constituição não impede que, 
 independentemente do que a lei ordinária disponha quanto à eficácia retroactiva 
 dos actos renovadores de actos contenciosamente anulados, se atribua relevância 
 excludente da indemnização à “conduta alternativa lícita” da Administração, 
 mesmo quanto aos efeitos produzidos medio tempore. 
 Vítor Gomes