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Processo n.º 445/06
 
 2.ª Secção
 Relator: Conselheiro Mário Torres
 
  
 
  
 
                                  Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do 
 Tribunal Constitucional,
 
  
 
  
 
                                  1. A. vem “requerer a aclaração” da decisão 
 sumária do relator, de 22 de Maio de 2006, que decidiu, no uso da faculdade 
 conferida pelo n.º 1 do artigo 78.º‑A da Lei de Organização, Funcionamento 
 e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de 
 Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro 
 
 (LTC), não conhecer do objecto do recurso. No entanto, esse pretenso pedido de 
 esclarecimento configura verdadeira reclamação para a conferência, nos termos do 
 n.º 3 do mesmo preceito, e como tal deve ser tratada (neste sentido, cf., por 
 
 último, os Acórdãos n.ºs 282/2006 e 283/2006).
 
  
 
                                  1.1. A decisão sumária reclamada tem o seguinte 
 teor:
 
  
 
                  “1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional contra o 
 acórdão da Tribunal da Relação de Lisboa, de 6 de Abril de 2006, que negou 
 provimento a recurso por ela interposto contra o acórdão do Tribunal Colectivo 
 da 3.ª Vara Criminal de Lisboa, de 15 de Julho de 2004, que a condenara, pela 
 prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º, 
 n.º 1, e 218.º, n.º 2, alínea a), com referência ao artigo 202.º, alínea b), 
 todos do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão.
 
                  O requerimento de interposição de recurso para o Tribunal 
 Constitucional é do seguinte teor:
 
  
 
                  «– O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do 
 artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações que lhe foram 
 introduzidas pela Lei n.º 143/85, de 26 de Novembro, pela Lei n.º 85/89, de 7 
 de Setembro, pela Lei n.º 88/95, de 1 de Setembro, e pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 
 de Fevereiro – Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal 
 Constitucional.
 
                  – Pretende‑se ver apreciada a constitucionalidade das normas 
 dos artigos 127.º, 340.º, 369.º, 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, alínea c), 410.º, 
 n.º 2, alíneas a), b) e c), 412.º, n.º 3, ex vi artigo 430.º, n.º 1, todos do 
 Código de Processo Penal, com a interpretação com que foram aplicadas na 
 decisão recorrida do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, que violam 
 directa e explicitamente o disposto nos artigos 32.º, n.ºs 1 e 2, 20.º, n.º 1, e 
 
 13.º, todos da Constituição da República Portuguesa.
 
                  Na verdade, e como se retira ex abundanti das alegações de 
 recurso e, maxime, conclusões de págs. 41 a 47, a decisão recorrida violou as 
 mais elementares regras de ónus da prova. De facto, esta é, notoriamente, 
 insuficiente, aleatória, contraditória, não isenta, incerta e até improvável. 
 Mais,
 
                  – Partiu de um pressuposto e preconceito errado, admitindo como 
 
 “ponto de partida” indemonstrado que a arguida exercia “práticas de 
 adivinhação”, sem sequer definir, concretamente tais “práticas”, como se prova, 
 até à exaustão, nas múltiplas transcrições, mormente a fls. 1, 2, 3 e 4 do seu 
 recurso.
 
                  Aliás, conforme se extrai das alegações de recurso, a fls. 6, 
 
 “(...) a convicção do tribunal, nesta situação, tenha de ser essencialmente 
 assente em elementos racionais e objectivável, a fim de afastar toda e qualquer 
 dúvida razoável, sob pena de se estar a entrar no campo de pura subjectividade, 
 onde os bons fundamentos da decisão dificilmente conseguem encontrar eco no seio 
 da comunidade...”.
 
                  – Nenhuma prova minimamente consistente e credível – 
 testemunhal ou documental – quer no tangente à actividade de “práticas de 
 adivinhação” da arguida, quer das alegadas “entregas” de dinheiro pelas 
 assistentes, foi efectivamente produzida se se pretender ver com “olhos de ver” 
 a referida (não) prova produzida e as declarações das testemunhas arroladas.
 
                  A decisão recorrida baseou‑se em pressupostos indemonstrados e 
 até indemonstráveis (“práticas de adivinhação”, “fragilidade psíquica de ordem 
 emotiva das assistentes”, “pormenores relacionados com o falecimento do pai da 
 assistente B.”) (vide conclusão 5.ª do recurso). Donde se conclui que toda esta 
 matéria, devidamente sindicada no recurso, devia ter‑se dado como não provada.
 
                  In casu, com a sua interpretação foi postergado e violado o 
 princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP, que proíbe o arbítrio, 
 a distinção irrazoável entre arguido e assistentes sem qualquer fundamento 
 material, atenta a particular especificidade e delicadeza da situação em causa.
 
                  O Tribunal utilizou ab initio dois pesos e duas medidas.
 
                  – São inúmeras as transcrições feitas no recurso ora recorrido 
 que, por manifestamente redundantes e economia de esforço, nos permitimos 
 dispensar de enumerar (vide conclusões 1.ª a 9.ª do recurso).
 
                  – Também aqui a interpretação da norma do n.º 2 do artigo 374.º 
 
 (10.ª conclusão do recurso) conduz directa e explicitamente à infracção do 
 sufragado no n.º 2 do artigo 32.º e n.º 1 do artigo 13.º (princípio da 
 igualdade), ambos da CRP, mormente no âmbito da protecção deste princípio nas 
 suas diversas dimensões (proibição de arbítrio, proibição de discriminação, 
 proibição de diferenciação).
 
                  Está‑se aqui perante uma inconstitucionalidade material, por 
 violação do princípio da igualdade, dada a ausência de fundamento material 
 suficiente por falta de razoabilidade e consonância com o sistema 
 constitucional.
 
                  Embora o princípio da igualdade não proíba que a lei estabeleça 
 distinções, não pode deixar em claro a existência de arbítrio (nas decisões) e 
 discriminação, como no caso sub judice, no tratamento que mereceu pelo Tribunal 
 a quo a arguida e as assistentes.
 
                  – Pretende‑se ver apreciada a norma do n.º 3 do artigo 127.º do 
 Código de Processo Penal na sua interpretação que, alegadamente, foi caprichosa, 
 arbitrária e discricionária. De facto, conforme está, até enfastiadamente, 
 descrito nas alegações de recurso, o julgador, ao apreciar livremente a prova, 
 ao procurar através dela atingir a verdade material, alegadamente não recorreu 
 
 às regras de experiência comum nem utilizou, como método de avaliação na 
 aquisição do conhecimento, critérios objectivos, genericamente susceptíveis de 
 motivação e controlo.
 
                  Estamos mais uma vez perante uma inconstitucionalidade, por 
 violação das garantias de defesa do arguido, consagradas no n.ºs 1 e 2 do artigo 
 
 32.º da CRP, uma vez que a norma constante do artigo 127.º do Código de Processo 
 Penal foi alegadamente interpretada no sentido de admitir que o princípio da 
 livre apreciação da prova se baseou em pressupostos indemonstrados e 
 indemonstráveis (pré‑conceitos), não devidamente motivada e fundamentada (13.ª 
 conclusão do recurso).
 
                  – Igualmente, pretende‑se ver apreciada a constitucionalidade 
 da norma do artigo 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do Código de Processo 
 Penal, com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida do Tribunal 
 da Relação de Lisboa, por violação directa e explícita das normas 
 constitucionais, uma vez que foi cerceado, de modo evidente, o direito de defesa 
 da recorrente.
 
                  De facto, também aqui, aquando da impugnação da matéria de 
 facto, a recorrente indicou e concretizou, exaustiva e abundantemente, os 
 segmentos da decisão recorrida que não estão de harmonia com o que vem defendido 
 no n.º 2 do artigo 32.º da CRP, sendo, grosseiramente, violado o princípio in 
 dubio pro reo, ínsito no n.º 2 do artigo 32.º da CRP, sindicado na 18.ª 
 conclusão do recurso recorrido [sic], uma vez que todos os factos julgados 
 relevantes para a prova recolhida não puderam ser subtraídos a uma “dúvida 
 razoável” do tribunal, não podendo portanto serem considerados provados. Aliás, 
 existia uma vinculação do tribunal à necessidade e dever de reunir todas as 
 provas, o que não foi realizado. Donde se infere que a falta delas (provas) não 
 possa de modo algum desfavorecer a posição da arguida e ora recorrente: um non 
 liquet na questão da prova tem de ser valorado a favor daquela. É com este 
 sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo.
 
                  Pretende‑se, ainda, ver apreciada a constitucionalidade das 
 normas dos artigos 412.º, n.º 3, ex vi artigo 430.º, n.º 1, ambos do Código de 
 Processo Penal, com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida do 
 Tribunal da Relação, sendo que foram focados no recurso, pormenorizada e 
 especificadamente, os aspectos da matéria de facto que a recorrente considerou 
 incorrectamente julgados.
 
                  – Idem, no que concerne à constitucionalidade da interpretação 
 do artigo 410.º, n.º 2, alínea c) (existência de erro notório na apreciação da 
 prova), em virtude de os factos enumerados como provados e não provados não 
 serem uma sequência lógica e natural da prova produzida (Acórdão do STJ, V, 3, 
 
 210, de 16 de Outubro de 1997) (conclusão 23.ª das alegações de recurso).
 
                  – Igualmente, pretende‑se que seja apreciada a 
 constitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 369.º do Código de Processo 
 Penal, uma vez que o Tribunal a quo se escusou, no que concerne à medida da 
 sanção aplicada, a valorar a ausência de antecedentes criminais da recorrente, 
 com violação directa e notória das garantias de defesa da recorrente ínsitas no 
 n.º 2 do artigo 32.º da CRP.
 
                  – Finalmente seja escrutinada a constitucionalidade das normas 
 dos artigos 191.º e 193.º do Código de Processo Penal, com a interpretação com 
 que foi aplicada na decisão do Tribunal da Relação, por violação directa e 
 explícita das mesmas normas constitucionais, uma vez que não foram correctamente 
 aplicados os princípios da legalidade e adequação ínsitos naqueles incisos 
 legais (25.ª conclusão do recurso).
 
                  Tais interpretações daquelas normas violam, directa, clara e 
 explicitamente, os princípios constitucionais consagrados nos n.ºs 5, 1 e 2 do 
 artigo 32.º da CRP, sendo que aquela questão de constitucionalidade já havia 
 sido suscitada a fls. 46 e conclusão 18.ª das alegações de recurso endereçadas 
 ao Tribunal da Relação, mormente quando se referiu: “(...) foi grosseiramente 
 violado o princípio in dubio por reo ínsito no n.º 2 do artigo 32.º da CRP, 
 donde se deve retirar um non liquet na questão da prova que foi sempre valorada 
 pelo tribunal a favor das assistentes”.»
 
                  
 
                  O recurso foi admitido pelo Desembargador Relator do Tribunal 
 da Relação de Lisboa, decisão que, como é sabido, não vincula o Tribunal 
 Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da Lei de Organização, Funcionamento e 
 Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de 
 Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro – 
 LTC). E, de facto, entende‑se que o recurso não é admissível, o que possibilita 
 a prolação de decisão sumária, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º‑A da LTC.
 
  
 
                  2. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, 
 a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da 
 inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade 
 constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas, 
 hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o 
 sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões de 
 inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si 
 mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a 
 inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é 
 imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é 
 discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual 
 depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, 
 por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda 
 hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por 
 relevantes às particularidades do caso concreto.
 
                  Por outro lado, tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da 
 alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua 
 admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão 
 de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo 
 processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão 
 recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 
 
 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio 
 decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo 
 recorrente.
 
                  Acresce que, quando o recorrente questiona a conformidade 
 constitucional de uma interpretação normativa, deve identificar essa 
 interpretação com o mínimo de precisão, não sendo idóneo, para esse efeito, o 
 uso de fórmulas como «na interpretação dada pela decisão recorrida» ou 
 similares. Com efeito, constitui orientação pacífica deste Tribunal a de que 
 
 (utilizando a formulação do Acórdão n.º 367/94) «ao suscitar‑se a questão de 
 inconstitucionalidade, pode questionar‑se todo um preceito legal, apenas parte 
 dele ou tão‑só uma interpretação que do mesmo se faça. (...) [E]sse sentido 
 
 (essa dimensão normativa) do preceito há‑de ser enunciado de forma que, no caso 
 de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua 
 decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os 
 operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido 
 com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, violar a 
 Constituição.»
 
  
 
                  3. No presente caso, a recorrente não suscitou, perante o 
 tribunal recorrido, de forma processualmente adequada, qualquer questão de 
 inconstitucionalidade normativa, jamais tendo identificado, com o mínimo de 
 precisão, as interpretações normativas que reputava inconstitucionais, 
 limitando‑se, em rigor, a imputar directamente a violação das normas e 
 princípios constitucionais à própria decisão judicial, mais precisamente à 
 decisão de valoração das provas, o que, manifestamente, não constitui objecto 
 idóneo de recurso de constitucionalidade.
 
                  Para comprovar as precedentes considerações, basta reproduzir 
 as conclusões da motivação do recurso da recorrente para o Tribunal da Relação, 
 onde, directa ou indirectamente, se faz alusão a normas ou princípios 
 constitucionais:
 
  
 
                  «10 – De tudo o que antecede, profusa e abundantemente, fluí 
 que o douto acórdão recorrido não revelou um procedimento lógico seguido pelo 
 tribunal na formação da decisão, contrariando e violando o n.º 2 do artigo 
 
 374.º do Código de Processo Penal.
 
                  11 – A indicação das provas exigidas pela parte final do n.º 2 
 do artigo 374.º do Código de Processo Penal deve ser compreendida nos seus 
 antecedentes históricos, o que não foi tido em consideração pelo tribunal a 
 quo.
 
                  12 – Foi também violado o n.º 3 do artigo 365.º do Código de 
 Processo Penal em virtude de os meios de prova que serviram para formar a 
 convicção do tribunal terem sido inadequadamente apurados.
 
                  13 – A livre convicção do julgador não poderá ser uma 
 convicção puramente subjectiva. Essa convicção só existirá quando o tribunal 
 convencer‑se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. Essa é 
 a leitura que deve ter a norma inserta no artigo 127.º do Código de Processo 
 Penal, que foi, assim, explicitamente desrespeitada pelo tribunal, no caso em 
 análise, em que os meios de prova produzidas foram, manifestamente, 
 insuficientes.
 
                  14 – Foi infringido o n.º 1 do artigo 128.º do Código de 
 Processo Penal por ter sido aceite pelo tribunal prova produzida por 
 testemunhas sem um conhecimento directo dos factos.
 
                  15 – O acórdão recorrido é nulo, dado que não teve em conta o 
 depoimento da única testemunha arrolada pela arguida, violando, assim, o 
 disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal.
 
                  16 – Foi também infringido o disposto no n.º 1 do artigo 340.º 
 do Código de Processo Penal por o tribunal não ter procedido ex officio à 
 peritagem do valor das jóias objecto de apreensão para daí extrapolar o valor 
 atribuído às mesmas.
 
                  17 – Foi violado o n.º 2, alíneas a), b) e c), do artigo 410.º 
 do Código de Processo Penal.
 
                  18 – Foi grosseiramente violado o princípio in dubio pro reo, 
 
 ínsito no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, donde se 
 deve retirar um non liquet na questão da prova que foi sempre valorada pelo 
 tribunal a favor das assistentes.
 
                  19 – Escasseiam elementos que, podendo e devendo ser 
 apreciados pelo tribunal, se tornavam necessários à descoberta da verdade 
 material.
 
                  20 – Houve contradição insanável da fundamentação por ter 
 inexistido um raciocínio lógico‑dedutivo na apreciação dos factos que deveria 
 ter conduzido à absolvição da arguida por falta ou insuficiência de provas.
 
                  21 – Perante as inúmeras dúvidas que ao longo da audiência de 
 discussão e julgamento foram suscitadas pelos depoimentos das testemunhas, o 
 tribunal optou por decidir contra a arguida, em sentido contrário do que 
 decidiu o acórdão do STJ, de 7 de Julho de 1999, em clara violação do princípio 
 in dubio pro reo.
 
                  22 – Por conseguinte, pretende‑se que seja feita a renovação de 
 toda a produção de prova, à excepção dos factos fundamentados nos artigos 18.º, 
 
 19.º, 22.º, 34.º, 36.º, 37.º, 38.º, 40.º, 43.º, 44.º e 45.º, nos termos do 
 disposto no artigo 412.º, n.º 3, ex vi artigo 430.º, n.º 1, ambos do Código de 
 Processo Penal.
 
                  23 – Também existiu erro notório na apreciação da prova, 
 contrariando o disposto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), por «quando os 
 factos enumerados como provados e não provados não sejam uma sequência lógica e 
 natural da prova produzida (acórdão do STJ, de 16 de Outubro de 1997, Acórdãos 
 do Supremo Tribunal de Justiça, ano V, tomo 3, p. 210) [sic].
 
                  24 – Foram violados o n.º 4 do artigo 97.º e n.º 2 do artigo 
 
 327.º do Código de Processo Penal.
 
                  25 – Foram ainda violados os princípios da legalidade e da 
 adequação e proporcionalidade, ínsitos, respectivamente, nos artigos 191.º e 
 
 193.º do Código de Processo Penal.
 
                  26 – Não foi devidamente ponderado pelo tribunal a quo o facto 
 de a arguida não ter, nem antes nem depois do processo sub judice, quaisquer 
 antecedentes criminais, conforme se retira do seu certificado de registo 
 criminal junto aos autos.
 
                  27 – Por não ter sido obtida prova capaz e suficiente, não 
 foram preenchidos os elementos típicos do crime de burla qualificado previsto e 
 punido pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alínea a), com referência ao 
 artigo 202.º, alínea b), ambos do Código de Processo Penal.
 
                  28 – Cessados os pressupostos daquele crime, consequentemente, 
 deve o pedido de indemnização civil ser considerado improcedente, por não 
 provado.»
 
  
 
                  Como é patente, em parte alguma a recorrente imputa a qualquer 
 norma ou interpretação normativa minimamente identificada a violação de normas e 
 princípios constitucionais. É à própria actividade judicial de valoração da 
 prova que é reportada a violação de princípios legais e constitucionais, o que – 
 repete‑se – não é idóneo a abrir a via ao recurso de constitucionalidade.
 
  
 
                  4. Em face do exposto, decide‑se, ao abrigo do n.º 1 do artigo 
 
 78.º‑A da LTC, não conhecer do objecto do presente recurso, por 
 inadmissibilidade.”
 
                  
 
                                  1.2. A reclamação da recorrente apresenta a 
 seguinte fundamentação:
 
  
 
                  “– Pese embora se reconheça que tudo quanto se expendeu no 
 requerimento de interposição de recurso para esse Altíssimo Tribunal seja algo 
 prolixo e difuso, não entende a ora recorrente que, como se escreve na douta 
 decisão aclaranda, a actividade judicial de valoração da prova seja, em 
 absoluto, inidónea para abrir a via ao recurso de fiscalização concreta de 
 constitucionalidade. Com efeito,
 
                  – Parece ser relativamente pacífica a jurisprudência desse 
 Tribunal que, por norma, se deve entender, entre o mais, «um critério de 
 decisão» eleito por quem teve de aplicar a lei. Ou seja,
 
                  – Norma poderá ser, não só norma material escrita stricto 
 sensu, mas também um critério de decisão que resulte de normas materiais 
 escritas ou dos princípios que delas se possam extrair.
 
                  – Aliás, não foi por certo, por acaso, que o falecido e saudoso 
 Mestre Antunes Varela escreveu «A força vinculativa especial de que goza o caso 
 julgado era manifestamente empolado, e de certo modo desvirtuado, pelo antigos 
 autores, ao afirmarem que a sentença fazia do branco preto e do quadrado redondo 
 
 (facit de albo nigrum aequat quadrata rotundis) ou mudava o falso em verdadeiro 
 
 (falsumque mutat in vero)» (in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, 1985, pág. 
 
 705, in fine).
 
                  – Assim sendo, o que se pretende ver esclarecido é se, in casu, 
 a valoração da prova escapa imune a qualquer e toda a fiscalização concreta de 
 constitucionalidade, desde que os restantes pressupostos legais se mostrem 
 verificados.”
 
  
 
                                  1.3. As recorridas queixosas não responderam, 
 mas o recorrido Ministério Público apresentou resposta no sentido de que “a 
 decisão reclamada é perfeitamente clara e insusceptível de gerar dúvida 
 objectiva nos respectivos destinatários”, “pelo que carece ostensivamente de 
 fundamento o pedido de «aclaração» deduzido”.
 
                                  Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
 
  
 
                                  2. A recorrente não impugna, em rigor, o 
 fundamento da decisão sumária de não conhecimento: não ter suscitado, perante o 
 tribunal recorrido, a inconstitucionalidade de qualquer norma ou interpretação 
 normativa minimamente identificada, imputando a violação de normas de direito 
 ordinário e de princípios constitucionais directamente à própria actividade 
 judicial de valoração da prova, em si mesma considerada.
 
                                  Interroga agora a recorrente se a actividade 
 judicial de valoração da prova pode ser idónea para abrir a via ao recurso de 
 fiscalização concreta da constitucionalidade. A resposta é, obviamente, 
 negativa, atendendo á natureza não normativa dessa “actividade”, em si mesma 
 considerada, inseparável das específicas particularidades do caso concreto.
 
                                  Diferente seria a situação se, precedendo essa 
 actividade decisória, o tribunal formulasse critérios normativos, dotados de 
 generalidade e abstracção, e se a violação de normas ou princípios 
 constitucionais fosse imputada a esses critérios. Mas não foi isso o que ocorreu 
 no presente caso, em que jamais a recorrente identificou, com o mínimo de 
 densidade, esses hipotéticos critérios, limitando‑se a criticar a concreta 
 actividade de valoração da prova produzida no caso, o que – repete‑se – não 
 constitui objecto idóneo de recurso de constitucionalidade.
 
  
 
                                  3. Em face do exposto, acordam em indeferir a 
 presente reclamação.
 
                                  Custas pela recorrente, fixando‑se a taxa de 
 justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
 Lisboa, 27 de Junho de 2006.
 Mário José de Araújo Torres 
 Paulo Mota Pinto
 Rui Manuel Moura Ramos