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Processo n.º 1333/2013
2.ª Secção
Relator: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 88/2014:
«I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorridos o Ministério Público, B., S.A. e C., a primeira vem interpor recurso, em 06 de dezembro de 2013 (fls. 2225 a 2231), ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão proferido, em conferência, pela 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em 17 de julho de 2012 (fls. 2303 a 2330), que viria a ser alvo de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que, por sua vez, não foi admitido, tendo essa decisão sido reclamada e, por ter sido indeferida, alvo de anterior recurso para o Tribunal Constitucional, já decidido e transitado em julgado.
Nessa sede, a recorrente peticionou que fosse apreciada a constitucionalidade das «interpretações dos princípios constitucionais da presunção da inocência, “in dubio pro réu” [sic] (que quase se arvora em “in dubio pro autoritate” [sic] e da livre apreciação da prova que são inconstitucionais pois violam os artºs 32º, nºs 1, 2 e 5 da C.R.P. violando também, com essa errada interpretação, os artºs 18º, nº 2; 20º e 26º da C.R.P.» (fls. 2231).
2. Na medida em que a recorrente não especificou, de modo elucidativo, quais as concretas interpretações normativas que reputava de inconstitucionais – limitando-se a tecer considerações genéricas sobre o princípio da presunção da inocência e do princípio da livre apreciação da prova –, a Relatora proferiu despacho, em 14 de janeiro de 2014, nos termos do qual a convidou, nos termos do n.º 6 do artigo 75º-A da LTC, a vir aos autos aperfeiçoar o referido requerimento, indicando, designadamente, «qual ou quais as normas ou interpretações normativas que reputa de inconstitucionais, bem como quais as peças processuais e respetivas passagens em que suscitou a inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido» (fls. 2240).
Respondendo ao convite, a recorrente limitou-se a reiterar o que já havia dito no requerimento de interposição de recurso:
«2. Modestamente, e apesar de se aceitar o convite ínsito ao nº 6 do artº 75º da L.O.T.C. julga a recorrente ter já agido no âmbito desta exigência, mas, precisando aquilo que julga ser inconstitucional, reitera-se o que se entende que as interpretações dos preceitos dos artºs 124º nº 1 e 127º do Cód. Proc. Penal bem como os artºs 1º, nº 1, 13º e 223º do Cód. Penal são inconstitucionais por deixarem violados os princípios do “in dubio pro reu”, contraditório, presunção de inocência e o princípio da solidariedade e proibição de excessos dos artºs 32º, nº 1, 2 e 5, o artº 18º, nº 2, 20º e 26º da Constituição» (fls. 2244).
Mais alega ter invocado àquelas questões no Título VIII da sua motivação e nos §§ 1, 2, 3, 29 e 30 das conclusões de recurso interposto apenas perante o Supremo Tribunal de Justiça, que não foi admitido, com fundamento em inadmissibilidade.
Tudo visto, importa apreciar e decidir.
II – Fundamentação
3. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo”, proferido em 11 de dezembro de 2013 (fls. 2232), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que sempre seria forçoso apreciar o preenchimento de todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, n.º 2, da LTC.
Sempre que o Relator constate que não foram preenchidos os pressupostos de interposição de recurso, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
4. Regista-se que a recorrente veio corrigir, parcialmente, as insuficiências do requerimento de interposição de recurso, identificando – apenas em sede de requerimento de aperfeiçoamento – os preceitos legais dos quais entende terem sido extraídas interpretações normativas. Porém, mesmo após convidada para o efeito, a recorrente não logrou aperfeiçoar integralmente o seu requerimento, não tendo especificado quais as concretas interpretações normativas (alegadamente) aplicadas pelo tribunal recorrido que estariam viciadas de inconstitucionalidade. Ora, a explicitação – inequívoca e concludente – do teor das interpretações normativas que se elegem como objeto dos recursos de constitucionalidade é imposta não só pelo artigo 79º-C da LTC como pela jurisprudência unânime do Tribunal Constitucional.
Com efeito, este Tribunal só pode conhecer de questões normativas que tenham sido efetivamente aplicadas pelos tribunais recorridos. Como tal, para que este não se substitua aos tribunais recorridos – e antes se limite a exercer a sua função de órgão de recurso de uma questão já ponderada e decidida – torna-se indispensável que os recorrentes explicitem qual ou quais as concretas interpretações normativas (alegadamente) aplicadas, verbalizando quais os raciocínios interpretativos efetivamente produzidos pelas decisões de que se pretende recorrer. Neste caso, o recorrente não logrou fazê-lo, pois limitou-se a mencionar, de modo genérico e inconclusivo, que o tribunal teria aplicado certas “interpretações” em sentido contrário às vinculações jurídico-constitucionais, mas sem que, em momento algum, tivesse logrado identificar qual o conteúdo específico dessas mesmas interpretações.
Assim sendo, mais não resta do que concluir pela impossibilidade de conhecimento do objeto do pedido.
III – Decisão
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, decide-se não conhecer do objeto do presente recurso.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.»
2. Inconformada com a decisão proferida, a recorrente veio deduzir a seguinte reclamação, nos seguintes termos, que ora se sintetizam:
«10. A recorrente entende, salvo o devido respeito, que do conjunto do requerimento de interposição de recurso para este Superior Tribunal Constitucional e do esclarecimento prestado ao abrigo do n° 6 do art° 75°-A da L.O.T.C. cumpriu o necessário enquadramento formal para ver o seu recurso ser apreciado.
11. Deve assinalar-se que a distinção entre a invocação da inconstitucionalidade da decisão recorrida e a da inconstitucionalidade dos seus fundamentos normativos, a mais das vezes, e pese a certeza com que o Tribunal Constitucional parece diferenciar os planos, é de difícil separação.
12. Em rigor quando se questiona a constitucionalidade de uma decisão está-se, inseparavelmente, também a questionar a interpretação que o julgador faz das normas a que subsumiu a decisão.
13. Sem embargo de se entender os planos dialéticos e jurídico/axiomáticos diferentes, na realidade, a mais das vezes, estamos perante a mesma realidade de facto com, apenas, diversas perspetivas de abordagem, isto é:
14. O que se quer dizer é que, para ser admissível um recurso para o Tribunal Constitucional só a arguição da inconstitucionalidade de normas - que não de decisões judiciais - é aceitável, nesse recurso pode impugnar- se simplesmente uma certa interpretação de determinada norma (ou, o que vale o mesmo, esta última enquanto interpretada num certo sentido ou com uma certa dimensão), pois, então não se estará já a arguir (apenas) a inconstitucionalidade de uma decisão judicial, mas ainda, verdadeiramente, o seu suporte normativo, a norma que ela aplicou.
15. Ora, salvo sempre a referido respeito, quer parecer ao recorrente que no texto e conclusões do recurso que interpôs para este Constitucional Areópago da decisão da Relação se deu cumprimento suficiente (pelo menos) a este ónus.
16. Aliás, na sequência da leitura muito atenta da douta decisão sumária, ora em reclamação, é significativo que se considere já 'parcialmente' cumprido pela recorrente o escopo corretivo que lhe havia sido dirigido.
17. Ficando apenas por esclarecer/completar os raciocínios interpretativos efetivamente produzidos pelas decisões de que se pretendia recorrer.
18. Assim desvalorizando o contexto em que o recorrente procurou fundamentar o recurso de constitucionalidade - que fica reduzido nas sábias palavras do Exmo. Sr. Conselheiro Relator a algo com um contexto genérico e conclusivo - teria de ser votado ao estigma da inadmissibilidade por 'falta de forma' o que, numa perspetiva de busca de JUSTIÇA é absolutamente agastador:
19. À recorrente, não ver uma questão que quer ver decidida substantivamente por lapsos de forma ou adjetivos é muito similar a não ver justiça ser feita.
20. Acresce que, como já se referiu, é convicção do recorrente que, pelo menos de forma suficiente, - e essa suficiência afere-se pela convicção que lhe assiste este douto Tribunal Constitucional ter entendido o objeto e o objetivo do recurso - ter cumprido o exigente crivo da 'suscitação prévia da inconstitucionalidade de forma adequada' que, agora, em sede de decisão Sumária, lhe é dito não respeitada.
21. O que verdadeiramente se questiona é a interpretação de certa norma - num certo sentido e dimensão - de forma que, o que é posto em causa não é a decisão 'tout court' mas o seu suporte normativo, a norma que aplicou.
22. Anota-se que este douto e digno Areópago Constitucional já decidiu bastas vezes pela inconstitucionalidade da não admissão de recursos em sede penal por lapsos formais (vide por todos os Acórdãos deste Tribunal com os nºs 319/99; 265/2001, com força obrigatória geral; 428/2003 e 529/2003).
23. Pode assim invocar-se que, ao contrário da douta jurisprudência que tem expendido para aplicar em outros Tribunais, no seu caso concreto não utiliza e aproveita os conceitos que justificam a opção legislativa apontada no ponto anterior.
24. Quer com isto dizer-se que, embora redundante a porventura ambiciosos a douta decisão sumária reclamada é ela própria contrária á orientação dominante por assentar numa interpretação de vários artigos do processo civil (art.º's 6° e 7°) e da L.O.T.C. que subvertem os art°s 20°, 32°, n° 1 e 202° da C.R.P. pois eleva o patamar de exigência argumentativa a um nível de tal modo técnico que é inalcansável e, por essa dificuldade, é inibitório de se lhe aceder.
25. A dimensão normativa com que a questão 'da suscitação adequada da inconstitucionalidade' é usada e interpretada nas douta Decisão Sumária assenta num suporte normativo - o dos art°s 70° e 75° da L.T.C. que ofendem os art°s 202°, 13°,20° e 32° n° 1 todos da C.R.P ..
26. Não podendo, neste momento, deixar de se lembrar um já mais velho Acórdão do STJ:
'(..)a observância das regras (. .. ) tem de ser encarada com equilíbrio e sensatez de modo a que, sendo apercebido, num mínimo o desiderato do recurso, se não fruste com aspetos formais o objetivo principal de aplicar justiça'. Ac. STJ, Proc. 742/98 – 3ª, SASTJ, n° 27, 80).
27. Afinal jurisprudência que tem eco nos art.ºs 6° e 7° do Cód. Proc. Civil já invocados.
28. E, nessa medida, justificam esta Reclamação para a Conferência, momento jurisdicionalmente derradeiro para possibilitar, no âmbito do recurso interposto da decisão da Veneranda Relação, a possibilidade de, mim segundo grau de jurisdição, apreciar o uso que o Tribunal da Relação fez de vários princípios constitucionais pois,
29. Ao Direito Constitucional, garantido que assiste ao arguido de recorrer de sentenças condenatórias acresce o de recorrer de atos judiciais que no decurso do processo tenham como efeito a privação, a restrição da liberdade ou de qualquer outro dos seus direitos fundamentais, como é o do próprio Recurso.»
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público veio responder nos seguintes termos:
«1º
A arguida A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão da Relação de Lisboa que negou provimento ao recurso que interpusera da decisão condenatória proferida em 1.ª instância.
2º
No requerimento afirma:
“Mas estas considerações representam interpretações dos princípios constitucionais da presunção de inocência, «in dúbio pro réu» (que quase se arvora em «in dúbio pro autoritate») e da livre apreciação da prova que são inconstitucionais pois violam os art.ºs 32.º, n.ºs 1, 2 e 5 da C.R.P. violando também, com essa errada interpretação, os art.ºs 18.º, n.º 2, 20.º e 26.º da C.R.P..
Nesta conformidade deve o presente recurso de constitucionalidade ser admitido por ser de JUSTIÇA”.
3º
Perante esta “enunciação” da questão, a Exma Senhora Conselheira Relatora notificou a recorrente para indicar quais as normas ou interpretações normativas que reputava de inconstitucionais, bem como quais as peças processuais e respetivas passagens em que suscitara essa inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido.
4º
Respondeu ao convite afirmando:
“(…) mas, precisando aquilo que julga ser inconstitucional, reitera-se o que se entende que as interpretações dos preceitos dos art.ºs 124.º, n.º 1 e 127.º do Cód. Proc. Penal bem como os art.ºs 1.º, n.º 1, 13.º e 223.º do Cód. Penal são inconstitucionais por deixarem violados os princípios do «in dúbio pro reu», contraditório, presunção de inocência e o princípio da solidariedade e proibição de excessos dos art.ºs 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, o art.º 18.º, n.º 2, 20.º e 26.º da Constituição”.
5.º
Ora, como nos parece evidente e claramente se demonstra na douta Decisão Sumária, a recorrente mesmo após o convite limitou-se “a mencionar, de modo genérico e inconclusivo, que o tribunal teria aplicado certas “interpretações” em sentido contrário às vinculações jurídico-constitucionais, mas sem que, em momento algum, tivesse logrado identificar qual o conteúdo específico dessas mesmas interpretações”.
6.º
Na reclamação a recorrente nada diz que possa abalar os fundamentos da decisão reclamada, continuando, aliás, a desconhecer-se qual a efetiva questão de inconstitucionalidade normativa que a recorrente pretendia ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
7.º
Por tudo o exposto, deve indeferir-se a reclamação.
8.º
Poderíamos ainda acrescentar que tendo o recorrente afirmado que suscitou a questão da inconstitucionalidade “nas alegações para o STJ” – recurso esse para o Supremo Tribunal de Justiça que não foi admitido -, tal é irrelevante porque a decisão recorrida foi proferida pela Relação de Lisboa (vd. Artigo 1.º).»
Posto isto, importa apreciar e decidir.
4. Igualmente notificados para o efeito, os demais recorridos deixaram esgotar o prazo, sem que tenham vindo aos autos deduzir qualquer resposta.
II – Fundamentação
5. A reclamante nunca conseguiu identificar quais são as específicas interpretações normativas que reputa de inconstitucionais, explicitando porque é que o tribunal recorrido teria incorrido em “interpretações dos princípios constitucionais da presunção de inocência, «in dúbio pro réu» (que quase se arvora em «in dúbio pro autoritate») e da livre apreciação da prova”. Em sede de aperfeiçoamento, limitou-se a insistir que “entende que as interpretações dos preceitos dos art.ºs 124.º, n.º 1 e 127.º do Cód. Proc. Penal bem como os art.ºs 1.º, n.º 1, 13.º e 223.º do Cód. Penal são inconstitucionais”, mas nunca identifica que concretas interpretações normativas seriam contrárias à Lei Fundamental.
Perante a evidência da falta de identificação de um objetivo normativo especificado, mais não resta do que confirmar a decisão reclamada.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 7 de maio de 2014. – Ana Guerra Martins – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.