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Processo n.º 535/04
 
 2.ª Secção
 Relator: Conselheiro Mário Torres
 
                                                                             
 
                    Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
 
  
 
  
 
                                     1. Relatório
 
                                     Em 10 de Outubro de 2002, foi comunicada 
 pela Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Oliveira de Azeméis ao 
 representante do Ministério Público no Tribunal Judicial da mesma comarca a 
 situação de duas menores, A. e B., de 14 e 15 anos de idade, respectivamente, 
 cada uma já mãe de um filho, sendo pai de ambos C., que, segundo suspeitas, 
 poderia andar a aliciar outras menores para a prática de relações sexuais.
 
                                     Em 14 de Outubro de 2002, o representante do 
 Ministério Público no Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira de Azeméis, 
 considerando a situação descrita susceptível de integrar a prática de um crime 
 de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 172.º, n.º 2, do 
 Código Penal, em relação à menor A., e de um crime de actos sexuais com 
 adolescentes, previsto e punido pelo artigo 174.º do mesmo Código, em relação à 
 menor B., ilícitos que possuem natureza semi‑pública, entendeu, porém, que, no 
 caso, apesar de não ter sido apresentada queixa, o interesse das vítimas, ambas 
 menores de 16 anos, justificava a instauração de procedimento criminal contra o 
 denunciado, nos termos do artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal, até porquanto da 
 prática dos factos participados resultou a gravidez das menores.
 
                                     Determinada, assim, a instauração de 
 inquérito, foi o mesmo, em 3 de Dezembro de 2002, remetido ao Ministério 
 Público da comarca de Albergaria‑a‑Velha, por ser a territorialmente 
 competente, tendo o respectivo magistrado, por despacho de 17 do mesmo mês, 
 através de despacho fundamentado, reiterado a intervenção oficiosa inicial do 
 Ministério Público, nos termos do artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal. Esse 
 despacho é do seguinte teor:
 
 “I. Aqui se deixa consignado, aliás na esteira do decidido no primeiro despacho 
 do Ministério Público elaborado neste inquérito, ainda nos serviços do 
 Ministério Público em Oliveira de Azeméis, que se iniciou o procedimento 
 criminal contra o arguido no estrito cumprimento da norma do artigo 178.°, n.° 
 
 4, do Código Penal (que reproduz a do artigo 113.°, n.° 6, do mesmo diploma), ou 
 seja, entendendo que o «interesse das vítimas» – ambas com menos de 16 anos à 
 data dos eventos – vem a impor que se inicie o inquérito contra o arguido, 
 independentemente da queixa apresentada por quem de direito (seus pais e 
 representantes legais).
 Aqui, o interesse da vítima é o da garantia das melhores condições para o seu 
 desenvolvimento integral, que é uma obrigação constitucional da sociedade e do 
 Estado (artigo 69.° da CRP), sendo a sua defesa colocada nas mãos do Ministério 
 Público, magistratura que, de resto, tem por função estatutária – artigo 3.°, 
 n.° 1, alínea a), do Estatuto do Ministério Público – representar os interesses 
 dos menores, mesmo quando não coincidentes com os dos seus representantes 
 legais.
 Aos magistrados do Ministério Público cabe a responsabilidade de, mesmo se o 
 procedimento criminal depender de queixa, na sua inexistência, garantir que o 
 sistema funcione no sentido de a justiça penal ter intervenção quando, atendendo 
 aos interesses do menor com menos de 16 anos, a deva ter.
 Este preceito – artigo 178.°, n.° 4 – é de grande importância em casos como o 
 presente em que o pretenso «abuso sexual de menores» terá ocorrido em contextos 
 intrafamiliares, atentos os constrangimentos familiares, económicos e culturais 
 que sempre derivam do facto de estarmos a falar de situações encobertadas pelo 
 próprio universo familiar mais próximo das vítimas.
 Assim sendo, o processo iniciou‑se validamente, num caso em que está em causa a 
 prática de crime contra a autodeterminação sexual, que deixou de ser, após a 
 revisão de 1995 do Código Penal, um crime contra os valores e interesses da 
 vida em sociedade para se transformar, e muito bem, num crime contra as pessoas 
 
 – aqui, protege‑se a autodeterminação sexual, não face a condutas que 
 representem a extorsão de contactos sexuais por forma coactiva ou análoga, mas 
 face o condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da 
 vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento 
 da sua personalidade.
 A lei acaba por presumir iuris et de iure que a prática de actos sexuais com 
 menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o desenvolvimento global 
 
 (e o menor é um sistema) do próprio menor.
 Fica, desta forma, devidamente fundamentada, na sequência do 1.° despacho 
 proferido nos autos, a legitimidade do Ministério Público para iniciar o 
 procedimento criminal in casu.”
 
  
 
                                     Terminado o inquérito, foi, em 7 de Maio de 
 
 2003, deduzida acusação pelo Ministério Público contra C. e D., imputando ao 
 primeiro a autoria material, em concurso real, de forma consumada e continuada, 
 de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelos artigos 30.º, 
 n.º 2, 172.º, n.º 2, e 177.º, n.º 3, e de um crime de actos sexuais com 
 adolescentes, previsto e punido pelos artigos 30.º, n.º 2, 174.º e 177.º, n.º 3, 
 e à segunda a autoria material, de forma consumada e continuada, de um crime de 
 lenocínio de menores, previsto e punido pelos artigos 176.º, n.º 3, e 177.º, n.º 
 
 1, alínea a), todos do Código Penal, por os autos indiciarem suficientemente 
 que:
 
  
 
 “O arguido conheceu a menor A., nascida no dia 15 de Janeiro de 1988, em Maio de 
 
 2000, num bar em Pinheiro de Bemposta, onde esta foi acompanhada de sua irmã 
 E..
 Continuou a encontrar a menor, então com 12 anos de idade, nas noites de Sábado 
 para Domingo nesse mesmo bar e na Discoteca adjacente («…»), com ela 
 conversando.
 Em Junho de 2000, a menor passou a ir fazer limpezas a casa do arguido, sita em 
 Albergaria‑a‑Velha (T0 no edifício …), aos sábados, aí indo também lavar roupa e 
 passar a ferro.
 Em Agosto de 2000, a menor foi viver para uma outra casa do arguido, também em 
 Albergaria‑a‑Velha (Rua … ), com o consentimento da sua mãe, a arguida D., 
 passando a aí pernoitar.
 Nesse apartamento, o arguido teve a primeira relação sexual de cópula completa 
 com a menor, tendo, antes disso, um relacionamento que se caracterizava por 
 carícias e beijos mútuos próprios de um trato amoroso.
 Passou então o arguido a ter relações de cópula completa com a menor, levando e 
 trazendo‑a da Escola, deixando‑a ficar em casa da mãe quando ia para Lisboa em 
 trabalho, contando como contava com o consentimento da mãe da menor.
 Viveu o arguido com a A. até Janeiro de 2002, altura em que o seu relacionamento 
 cessou, tendo ainda vivido juntos na actual residência do arguido (…, em 
 Albergaria‑a‑Velha).
 A A. veio a engravidar na sequência do relacionamento sexual que encetou com o 
 arguido, tendo desta relação nascido, em 8 de Setembro de 2002, uma criança do 
 sexo feminino de nome F., registada como filha da menor A. e do arguido.
 Entretanto, o arguido havia conhecido a menor B., nascida em 26 de Novembro de 
 
 1986, como amiga da A., em princípios do ano de 2001.
 A menor era recebida assiduamente em casa do arguido, que com ela privava de 
 forma cativante.
 O relacionamento prosseguiu de tal forma que, em Janeiro de 2002, o arguido 
 convidou a menor B. para ir viver com ele, tendo começado a relacionar‑se 
 sexualmente com a dita menor, então com 15 anos de idade, passando, a partir 
 dessa altura, a viver com ela, mantendo relações de cópula completa com a menor 
 que apenas cessaram quando souberam que a B. estava grávida.
 Deste relacionamento, veio a nascer, em 23 de Setembro de 2002, uma criança do 
 sexo feminino de nome G., registada como filha da menor B. e do arguido.
 O arguido não ignorava as idades das duas menores quando começou a relacionar‑se 
 sexualmente com elas.
 O arguido bem sabia, por isso, que as menores não tinham capacidade para avaliar 
 e valorar os actos sexuais que praticavam, sabendo que elas não se determinavam 
 livremente em termos sexuais, inexperientes que eram nessa matéria de índole 
 sexual.
 Nomeadamente, a menor B. era desconhecedora, por força da sua idade e natural 
 imaturidade a ela inerente, do que significava, realmente, uma vivência a dois, 
 debaixo do mesmo tecto, como se de um casal se tratasse.
 A B. usufruía de uma vivência sem futuro e ilusória e de facilidades de índole 
 económica que lhe foram proporcionadas pelo arguido por forma a que a mesma, 
 prematuramente, tenha optado por deixar de estudar e de investir na sua formação 
 como pessoa autónoma e em fase de crescimento.
 A mãe da menor A., a arguida D., soube do relacionamento sexual existente entre 
 a filha e o arguido, pelo menos desde o Natal de 2000.
 Nessa altura, a arguida passou a fazer a limpeza da casa do arguido, onde vivia 
 ao mesmo tempo a sua filha.
 A arguida recebia dinheiro do arguido para fazer face às suas despesas. 
 A arguida nada fez para impedir o relacionamento entre a filha e o arguido, 
 tendo antes facilitado, como pessoa que, sendo titular do poder paternal e que, 
 efectivamente, o exercia relativamente à sua filha, a continuação dessa vivência 
 tão precoce para uma criança, durante o tempo em que esta tinha 12 e 13 anos de 
 idade.
 Agiram os arguidos de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que 
 praticavam actos punidos e proibidos por lei.”
 
  
 
                                     Não tendo sido requerida instrução, o 
 processo seguiu para julgamento.
 
                                     Antes do início da audiência, os pais da 
 ofendida B. apresentaram o requerimento de fls. 288 a 290, no qual declaravam 
 desistir da queixa contra o arguido, e este apresentou a contestação de fls. 306 
 a 213, na qual, como “questão prévia”, suscitou a questão da ilegitimidade do 
 Ministério Público por, tratando‑se de crimes semi‑públicos, os representantes 
 legais das menores não terem apresentado queixa e já ter expirado o prazo de 6 
 meses, a contar da data em que tiveram conhecimento dos factos e do seu autor, 
 de que dispunham para o efeito (artigos 113.º e 178.º, n.º 1, do Código Penal e 
 
 49.º, n.º 1, do CPP) e por não constar dos autos qualquer despacho dos 
 representantes do Ministério Público com a legalmente exigível fundamentação 
 expressa das razões por que entendiam que, no caso, o interesse das vítimas 
 impunha o exercício da acção penal, ao abrigo do disposto no artigo 178.º, n.º 
 
 4, do Código Penal.
 
                                     No início da audiência de julgamento, em 24 
 de Setembro de 2003, o Juiz Presidente do Tribunal Colectivo ditou para a acta 
 despacho a indeferir aquela desistência de queixa, por tal direito assistir à 
 própria vítima, que já perfizera os 16 anos de idade (artigo 113.º, n.ºs 1, 3 e 
 
 5, do Código Penal), e não aos seus pais, e a desatender a questão prévia da 
 ilegitimidade do Ministério Público suscitada na contestação do arguido, por 
 resultar do artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal          que o Ministério 
 Público, nos casos excepcionais aí previstos, tem a faculdade de dar início ao 
 procedimento criminal independentemente de queixa.
 
                                     No decurso da audição da arguida D., esta 
 declarou pretender desistir do procedimento criminal contra o arguido C. quanto 
 ao crime em que é ofendida a sua filha A., relativamente à qual exercia em 
 exclusivo o poder paternal, de acordo com decisão proferida pelo Tribunal 
 Judicial de Oliveira de Azeméis. E, de seguida, a ofendida B. e os seus pais 
 declararam desistir do procedimento criminal contra o arguido. Face à não 
 oposição do arguido e do representante do Ministério Público, o Juiz Presidente 
 do Tribunal Colectivo ditou para a acta despacho a considerar válidas as 
 desistências e a declarar extinto o procedimento criminal contra o dito 
 arguido. Prosseguindo o julgamento apenas contra a arguida, veio esta a ser 
 absolvida, por acórdão do Tribunal Colectivo da Comarca de Albergaria‑a‑Velha, 
 de 29 de Setembro de 2003, por se ter considerado que não haviam sido provados 
 os factos integradores do crime de lenocínio por que vinha acusada.
 
                                     Entretanto, o magistrado do Ministério 
 Público que, por despacho do Vice‑Procurador‑Geral da República, de 6 de Outubro 
 de 2003, fora designado para passar a intervir no processo, interpôs recurso, 
 para o Tribunal da Relação de Coimbra, do despacho que julgara válidas as 
 desistências de queixa e extinto o procedimento criminal contra o arguido, 
 terminando a respectiva motivação com a formulação das seguintes conclusões:
 
                   “1.ª – Presentemente, os crimes contra a liberdade e 
 autodeterminação sexual previstos no Código Penal têm, em regra, natureza 
 semi‑pública, uma vez que o procedimento criminal depende de queixa do ofendido 
 ou de outras pessoas.
 
                   2.ª – É o caso dos crimes de abuso sexual de crianças e de 
 actos sexuais com adolescentes, previstos e punidos, respectivamente, pelos 
 artigos 172.º, n.º 2, e 177.º, n.º 3, do Código Penal e 174.º e 177.º, n.º 3, do 
 mesmo diploma, de que se achava acusado o arguido C.
 
                   3.ª – A ideia subjacente, que foi particularmente cara, 
 nomeadamente à Reforma de 1995, traduz‑se no facto de se considerar que a 
 intervenção do direito penal, neste domínio, pode ser mais prejudicial que 
 benéfica, na perspectiva da vítima, sendo, por vezes, preferível o esquecimento 
 do que a publicidade e, mesmo, o escândalo.
 
                   4.ª – Excepciona‑se, porém, nos termos do artigo 178.°, n.º 1, 
 com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 99/2001, de 25 de Agosto, quando 
 de qualquer desses crimes resultar suicídio ou morte da vítima e quando o crime 
 for praticado contra menor de 14 anos e o agente tenha legitimidade para 
 requerer procedimento criminal, por exercer sobre a vítima poder paternal, 
 tutela ou curatela ou a tiver a seu cargo. Neste último caso, existe a 
 possibilidade de o Ministério Público suspender provisoriamente o processo, 
 tendo em conta o interesse da vítima, ponderado com auxílio de um relatório 
 social (n.ºs 2 e 3) .
 
                   5.º – Sem prejuízo desta possibilidade, e quando os crimes 
 forem praticados contra menor de 16 anos de idade, pode o Ministério Público 
 dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impuser (n.º 4, também do 
 artigo 178.º).
 
                   6.ª – Na sequência, aliás, do consagrado na disposição geral 
 do artigo 113.°, n.º 6.
 
                   7.ª – Ora, no caso sub judice, foi o Ministério Público que, 
 depois de ter tido conhecimento dos factos em causa, através de uma participação 
 da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Oliveira de Azeméis, deu 
 início ao procedimento criminal contra o arguido C., ao abrigo da norma do 
 artigo 178.°, n.º 4, do Código Penal, invocando o interesse das vítimas, 
 menores de 16 anos, que ficaram ambas grávidas do arguido, e fundamentando a sua 
 posição (cfr. a fls. 6 e também a fls. 125).
 
                   8.ª – Em momento algum do processo, os representantes legais 
 das menores ofendidas apresentaram queixa contra o arguido ou manifestaram 
 vontade em fazê-lo.
 
                   9.ª – Pelo que não tinham legitimidade para, no início da 
 audiência do julgamento, desistirem da queixa contra o arguido.
 
                   10.ª – O mesmo se verifica em relação à menor B., que tem 
 agora já 16 anos de idade.
 
                   11.ª – É que, nos termos do artigo 116.º, n.º 2, do Código 
 Penal, só o queixoso, isto é, quem tenha legitimamente exercido o direito de 
 queixa, pode desistir da queixa.
 
                   12.ª – Ora, tendo o presente processo sido iniciado, 
 oficiosamente, pelo Ministério Público, no interesse das vítimas, o respectivo 
 procedimento criminal deixou de estar na disponibilidade das ofendidas ou dos 
 seus representantes legais (cf., nesse sentido, o acórdão da Relação do Porto, 
 de 31 de Janeiro de 2001, in Colectânea de Jurisprudência, ano XXVI, tomo 1, p. 
 
 232).
 
                   13.ª – Nesta conformidade, as desistências de queixa 
 apresentadas teriam de ser consideradas irrelevantes.
 
                   14.ª – Mal andou, por conseguinte, o Tribunal colectivo, ao 
 considerá‑las válidas e relevantes, declarando, em consequência, e sem mais, 
 extinto o procedimento criminal contra o referido arguido, sem ter em atenção a 
 forma como se tinha iniciado o processo e sem cuidar se tais desistências iam de 
 encontro aos interesses das menores ou se, pelo contrário, visavam outro tipo 
 de interesses.
 
                   15.ª – Do mesmo modo, discordamos completamente da posição 
 assumida pelo Ministério Público, em sede de julgamento, ao ter promovido que 
 se declarassem válidas as referidas desistências de queixa.
 
                   16.ª – Para além do mais, não se vê que o interesse das 
 menores justificasse o passar uma esponja sobre o sucedido, uma vez que estamos 
 perante uma situação clara de predominância do interesse do procedimento 
 criminal sobre o do segredo, dado que a divulgação dos factos foi tão extensa, 
 nomeadamente na comunicação social, que já não há, neste momento, intimidade 
 alguma a preservar ou danos acrescidos a evitar (Numa situação algo idêntica, 
 vide o acórdão da Relação de Coimbra, de 26 de Fevereiro de 2003, no proc. n.° 
 
 3910/02, da 2.ª Secção, sendo relator o Desembargador Barreto do Carmo).
 
                   17.ª – Por outro lado, não deixa de ser chocante que o 
 arguido, homem maduro, com 62 anos, pai de filhos, que exibia poder económico, 
 não tenha sido submetido a julgamento pelos factos gravíssimos pelos quais se 
 encontrava suficientemente indiciado, apenas devido às desistências de queixa 
 que, ilegitimamente, os representantes legais das menores apresentaram, sendo 
 certo que, no caso da menor A., a sua representante legal foi a sua mãe, D., 
 co‑arguida neste mesmo processo, acusada de um crime de lenocínio de menores, 
 previsto e punido pelos artigos. 176.º, n.º 3, e 177.º, n.º 1, alínea a), do 
 Código Penal.
 
                   18.ª – O Tribunal Colectivo interpretou, assim, em nosso 
 entender, erroneamente a lei e, devido a essa deficiente interpretação, 
 violou, entre outros, os artigos 178.º, n.°s 1 e 4, 116.º n.° 2, e 113.º, n.° 6, 
 todos do Código Penal.”
 
  
 
                                     O arguido, na sua resposta perante o 
 Tribunal da Relação de Coimbra, formulou as seguintes conclusões:
 
  
 
                   “A) Nunca o princípio da subordinação hierárquica poderá ser 
 entendido no sentido de o Ministério Público poder, através do magistrado 
 titular do processo, declarar, expressa e ponderadamente, em audiência de 
 julgamento, que não se opõe à desistência de queixa e, volvidos alguns dias, vir 
 esse mesmo corpo de Magistratura, pela mão de um Procurador substituto, declarar 
 que não se conforma com a decisão do Colectivo que acolheu a sua própria 
 promoção, num autêntico venire contra factum proprium, fazendo do processo um 
 uso manifestamente reprovável, a configurar abuso de direito e litigância de má 
 fé.
 
                   B) Com uma tal interpretação, as normas dos artigos 2.º, n.º 
 
 2, 68.º, n.º 1, e 76.º, n.ºs 1 e 3, do Estatuto do Ministério Público e do 
 artigo 401.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal seriam materialmente 
 inconstitucionais, por violação do artigo 219.º da CRP.
 
                   C) Os crimes previstos nos artigos 172.º e 174.º do Código 
 Penal têm natureza semi‑pública, dado que o procedimento criminal depende de 
 queixa do ofendido ou dos demais titulares desse direito estabelecidos no artigo 
 
 113.º do mesmo diploma.
 
                   D) Isso radica no facto de estes crimes terem a ver muito 
 particularmente com a esfera de intimidade da vítima e se privilegiar o 
 interesse desta, a ela cabendo decidir se ao mal do crime lhe convém juntar o 
 que pode ser o mal do desvelamento da sua intimidade e da consequente 
 estigmatização processual.
 
                   E) O elemento lógico‑sistemático de interpretação conduz à 
 conclusão de que se o legislador pretendesse conferir natureza pública àqueles 
 crimes na hipótese prevista no n.º 4 do artigo 178.º do Código de Processo 
 Penal, tê‑la‑ia colocado como terceira alínea do n.º 1 da mesma norma, 
 juntamente com as duas situações em que tais ilícitos assumem, sem quaisquer 
 dúvidas, tal natureza.
 
                   F) Tendo em conta a imprescindível conjugação com o n.º 1, a 
 redacção do n.º 4 do citado artigo 178.º significa que, tratando‑se de menor de 
 
 16 anos e o interesse da vítima o impuser, o Ministério Público não tem de 
 esperar que quem de direito apresente queixa para dar início ao procedimento.
 
                   G) Aquela previsão legal foi estabelecida para os casos em que 
 o Ministério Público, tendo conhecimento da prática do ilícito sobre menor de 
 
 16 anos, porventura antes mesmo dos progenitores, e perante a gravidade da 
 situação, dá início ao procedimento por forma a, em tempo útil, fazer a recolha 
 de provas ou indícios que, com o decorrer do tempo ou a acção humana, corriam o 
 risco de se perder, por entender que o interesse da vítima o impõe.
 
                   H) Mas isso não significa que se tenha afastado a 
 possibilidade de a vítima, ou os seus legais representantes, decidirem o que é 
 mais relevante para o interesse daquela: se o prosseguimento da acção penal, se 
 o recato e esquecimento que melhor se atingem sem ela.
 
                   I) Neste caso, o impulso processual do Ministério Público 
 determinado nos termos do disposto no citado artigo 178.º, n.º 4, tem natureza 
 subsidiária, ficando, por isso, sujeito aos interesses do menor ofendido.
 
                   J) Assim entendido, o disposto no n.º 4 do artigo 178.º 
 permite que o Ministério Público dê início ao processo e o faça prosseguir 
 quando os titulares do poder paternal não exercerem o direito de queixa por 
 razões censuráveis, na medida em que, neste caso, terá sempre a possibilidade, 
 quando não mesmo o dever, de inibir, limitar ou suspender o exercício do poder 
 paternal nos termos do disposto nos artigos 194.º e 199.º da OTM.
 
                   L) Não é inaceitável que os progenitores, titulares e em pleno 
 exercício do direito de queixa, venham pôr termo ao procedimento criminal por 
 entenderem que essa é a atitude que melhor defende os interesses do menor, que 
 justificaram a natureza semi‑pública deste tipo de crimes, e o Ministério 
 Público, teimosamente, os procure contrariar, insistindo no seu prosseguimento 
 movido por razões ou interesses que podem não coincidir com o das vítimas.
 
                   M) Tanto mais quanto é certo que o Ministério Público nunca 
 terá a mesma capacidade dos progenitores para fazer uma adequada avaliação da 
 concreta solução que os interesses do menor justificam, sendo certo ainda que, 
 embora esgrimindo com o interesse da vítima, o Ministério Público pode ser 
 tentado, como no caso dos autos, a agir em defesa de um qualquer interesse 
 público ou de determinada política criminal que ultrapassem o âmbito do caso 
 concreto e secundarizem os interesses que a lei, em primeira linha, visou 
 proteger.
 
                   N) Os artigos 113.º, n.º 6, e 178.º, n.º 4, interpretados no 
 sentido de que os crimes assumem natureza pública, estão feridos de 
 inconstitucionalidade na medida em que destarte se veria um pressuposto da 
 perseguição penal fixado por critérios de mera oportunidade do Ministério 
 Público, não estabelecidos na lei e judicialmente incontroláveis, o que viola o 
 artigo 29.º da Lei Fundamental, por traduzir um desvio do princípio da 
 legalidade na aplicação de reacções criminais.
 
                   O) Por outro lado, o entendimento de que, nas situações 
 previstas no artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal, os crimes de abuso sexual de 
 crianças e de actos sexuais com adolescentes mantêm a natureza semi‑pública, mas 
 que o procedimento criminal deixa de estar na disponibilidade das ofendidas ou 
 dos seus representantes legais, ainda que estes não estejam judicialmente 
 inibidos do exercício do poder paternal, viola os direitos fundamentais do 
 titular dos interesses que o legislador pretendeu proteger com aqueles tipos 
 legais de crime, quais sejam os direitos à integridade pessoal e à reserva da 
 intimidade da vida privada.
 
                   P) Um tal entendimento redundaria na inconstitucionalidade 
 material dos artigos 113.º, n.º 6, e 178.º, n.º 4, do Código Penal, por violação 
 do disposto nos artigos 25.º, n.º 1, e 26.º n.º 1, da Constituição da República 
 Portuguesa.”
 
  
 
                                     Por acórdão de 10 de Março de 2004, o 
 Tribunal da Relação de Coimbra concedeu provimento ao recurso do Ministério 
 Público, revogando em consequência o despacho recorrido, por não ser admissível 
 a desistência de queixa, devendo o julgamento prosseguir para a apreciação dos 
 factos imputados ao arguido. Essa decisão baseou‑se na seguinte fundamentação:
 
  
 
 “Já no Rec. n.º 1035/98, de 3 de Fevereiro de 1999, desta Relação, em que fomos 
 relator, se decidiu:
 
 «A questão está, assim, em saber se, face ao artigo 178.º, n.º 2, do Código 
 Penal, como se entendeu no despacho recorrido, o Ministério Público carece de 
 legitimidade para acusar por os pais da ... (artigo 113.º do Código Penal) não 
 terem exercido o direito de queixa, ou se, como entende o Ministério Público, o 
 poder de iniciar o inquérito engloba o direito de acusar.
 Foi imputado ao arguido a prática do crime do artigo 172.º, n.º 1, do Código 
 Penal. Esta norma prevê: quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 
 
 14 anos, ou o levar a praticá‑lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena 
 de prisão de 1 a 8 anos.
 
                   É esta a redacção actual da mesma norma, já que a alteração 
 introduzida pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, a manteve, alterando apenas 
 os n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo.
 
                   Por sua vez, o artigo 178.º, n.º 1, quer na actual redacção 
 quer na anterior (dado não ter sido alterado pela referida Lei), estatui que: O 
 procedimento criminal pelos crimes previstos nos artigos 163.º a 165.º, 168.º e 
 
 171.º a 175.º depende de queixa, salvo quando de qualquer deles resultar 
 suicídio ou morte da vitima.
 
                   E o n.º 2 do mesmo artigo referia, antes daquela alteração: 
 Nos casos previstos no número anterior, quando a vítima for menor de 12 anos, 
 pode o Ministério Público dar início ao processo se especiais razões de 
 interesse público o impuserem.
 
                   Com a Lei n.º 65/98 passou este n.º 2 a ter a seguinte 
 redacção: Nos casos previstos no número anterior, quando o crime for praticado 
 contra menor de 16 anos, pode o Ministério Público dar início ao procedimento 
 se o interesse da vítima o impuser.
 
                   Há que aplicar ao caso a redacção anterior à Lei n.º 65/98, já 
 que os factos terão sido praticados em 20 de Fevereiro de 1998, data em que a 
 vítima ainda não tinha 12 anos.
 
                   Ninguém põe em causa que o interesse público impunha que o 
 Ministério Público desse início ao processo. Não é essa, pois, a questão 
 suscitada.
 
                   Quanto à questão objecto do recurso:
 A favor da tese defendida no despacho recorrido poderíamos fazer uma observação: 
 conhecendo o legislador, como não podia deixar de conhecer, a tradicional 
 distinção entre crimes particulares, semi‑públicos e públicos e que a queixa é 
 uma condição objectiva de procedibilidade, porque introduziu, pelo Decreto‑Lei 
 n.º 48/95, de 15 de Março, a redacção referida no n.º 2 do artigo 178.º, em que 
 reduziu a necessidade de queixa apenas ao início do processo?
 
                   Mas pelo mesmo Decreto‑Lei introduziu também o n.º 5 do artigo 
 
 113.º, em que usa semelhante fórmula, e, pela Lei n.º 65/98, introduziu o seu 
 n.º 6, em que refere: quando o procedimento criminal depender de queixa, o 
 Ministério Público pode, nos casos previstos na lei, dar início ao procedimento 
 quando o interesse da vítima o impuser.
 
                   Se atendermos às razões do referido artigo 113.º, n.º 5 
 
 (quando o direito de queixa não puder ser exercido porque a sua titularidade 
 caberia apenas, no caso, ao agente do crime...) somos levados a concluir que 
 foi intenção do legislador caracterizar de público tal crime, já que, nesse 
 caso, nunca poderia haver o exercício do direito de queixa e então o início do 
 procedimento seria um acto inútil se tal procedimento não pudesse conduzir à 
 acusação.
 
                   Essa intenção resulta também explicitamente da exposição de 
 motivos da Proposta de Lei n.º 92/VI (Diário da Assembleia da República, II 
 Série‑A, de 24 de Fevereiro de 1994), em que se diz: Uma outra nota que acentua 
 a protecção do menor é a possibilidade de o Ministério Público, sempre que 
 especiais razões de interesse público o justifiquem, poder desencadear a acção 
 penal quando a vítima for menor de 12 anos. O sublinhado é nosso. Não se fala 
 apenas em dar início ao processo mas sim em desencadear a acção penal.
 
                   Trata‑se de um reforço da protecção do menor, atenta a sua 
 especial vulnerabilidade e a falta de protecção familiar, de que pode estar 
 carecido, como refere Maia Gonçalves. Se a finalidade de tal norma é proteger o 
 menor da carência de protecção familiar, isto é, de quem teria o direito de 
 queixa, não se compreenderá que se deixe ficar a acção penal dependente dessa 
 queixa que se quis suprir.
 
                   E aquando da discussão na Assembleia da República da Proposta 
 que veio a dar lugar à Lei n.º 65/98, pela voz autorizada do Ministro da 
 Justiça: sendo, em regra, semi-públicos, os crimes sexuais podem actualmente ser 
 perseguidos, independentemente de queixa, por iniciativa do Ministério Público, 
 quando especiais razões de interesse público o impuserem e a vítima for menor de 
 
 12 anos.
 
                   Parece‑nos, assim, que outro entendimento não teve o 
 legislador.
 
                   Mas há outros argumentos.
 
                   Desde logo, a Constituição atribui ao Ministério Público a 
 função de exercer a acção penal.
 
                   Mas que significa tal função? A lei não o define.
 
                   Diz Germano M. da Silva (Curso de Processo Penal, I vol., pág. 
 
 228 e seguintes): O Decreto‑Lei n.º 35 007 parecia dar à acção penal o sentido 
 de promoção do processo penal em sentido estrito, isto é, da fase judicial do 
 processo e traduzir‑se na actuação do Ministério Público em juízo, que se 
 iniciaria com a acusação. O Decreto‑Lei n.º 605/75 não utilizava a expressão 
 acção penal e antes promoção do processo penal e assim sucede também com o 
 CPP/87. Segundo o artigo 1.º do CPP/29 “a todo o crime (ou contravenção) 
 corresponde uma acção penal, que será exercida nos termos deste Código”. 
 Compreende no conceito toda a actividade dirigida a obter a punição do réu; 
 compreendendo nessa actividade a de todas as pessoas que, cada uma na sua esfera 
 de acção, cooperam para se obter aquele fim.
 
                   Não é unívoco o conceito de acção penal. Umas vezes equivale a 
 processo – e será o seu sentido mais amplo –, outras vezes a promoção da 
 actividade judicial no processo – e será o seu sentido mais restrito –, e 
 outras ainda corresponderá à mera prossecução da actividade processual.
 
                   Sendo assim, a fórmula usada pelo legislador no Decreto‑Lei 
 n.º 48/95 nem é, afinal, nada de extraordinário por corresponder à nossa 
 tradição legislativa.
 
                   Por outro lado, e isso parece‑nos decisivo, se é certo que o 
 critério para a distinção entre crimes públicos, semi-públicos e particulares é 
 essencialmente pragmático (são públicos aqueles em que a lei não exige queixa, 
 semi-públicos aqueles em que exige queixa e particulares os que exigem queixa e 
 acusação), certo é que é a natureza dos interesses que está subjacente àquela 
 distinção. Ora, se é a lei que expressamente faz depender do interesse público 
 que o Ministério Público possa iniciar o processo, mais não está do que a 
 definir como público ou semi-público tal crime.
 
                   Aliás, outro raciocínio se poderá fazer:
 
                   Se os crimes sexuais, como resulta do artigo 178.º, n.º 1, 
 são, em princípio, semi-públicos (dependem de queixa e já não de acusação 
 particular), o que o n.º 2 faz é deixar de exigir a queixa e como semi-público, 
 em que a queixa foi suprida, já o Ministério Público sempre terá legitimidade 
 para acusar. Ou seja, o raciocínio do despacho recorrido só teria 
 verdadeiramente sentido se o crime fosse particular, se fosse exigida a acusação 
 particular, o que não é.
 
                   Assim sendo, outra conclusão não se poderá extrair do artigo 
 
 178.º, n.º 2, do Código Penal que não seja a de que a possibilidade de o 
 Ministério Público iniciar o processo criminal, independentemente de queixa, 
 torna‑o parte legítima para acusar, independentemente dessa mesma queixa. O 
 interesse público subjacente a tal possibilidade supera o interesse particular 
 típico da necessidade de queixa.».
 
  
 
 *
 
       A situação não era a mesma, mas o sentido da decisão já ali se descortina. 
 
 
 
       O que ali se discutia era se o Ministério Público podia, no caso, acusar, 
 aqui o que se discute é se pode haver desistência da queixa. Mas as razões 
 acabam por ser as mesmas.
 
                   Agora, para este caso especial da desistência de queixa, 
 acresce ainda o disposto no artigo 116.º, n.º 2, do Código Penal. Se não houve 
 queixosos, precisamente porque não houve queixa, porque legalmente não era 
 precisa, como é que se pode aceitar com válida a desistência de queixa?
 
                   Repare‑se que, pela acusação, os actos imputados ao arguido C. 
 se iniciaram, em relação à A., em Agosto de 2000, quando esta tinha 12 anos, e 
 que os actos relacionados com a B. se iniciaram em Janeiro de 2002, quando esta 
 tinha 15 anos.
 
                   Não faz qualquer sentido que (como, aliás, se decidiu no 
 primeiro despacho na referida audiência – supra alínea d)) o Ministério 
 Público possa dar início ao procedimento criminal e deduzir acusação, 
 independentemente de queixa, e se venha admitir como relevante esta mesma 
 desistência. Seria tornar inútil tal possibilidade, seria subverter o espírito e 
 os fins que a lei pretendeu atingir e seria menosprezar os interesses que a lei 
 pretendeu proteger.
 
                   Poder‑se‑á dizer que, neste caso, e em relação à menor A., a 
 titular do direito de queixa (a mãe da menor) não é a agente dos crimes cuja 
 desistência foi aceite (os do arguido C.). Mas não é bem assim. É que aquela é 
 também arguida por crime relacionado com os crimes do arguido. Os actos de 
 fomentar, favorecer ou facilitar, de que é acusada, são precisamente referidos 
 aos actos do arguido.
 
                   E este entendimento, salvo melhor opinião, não é interpretar 
 extensivamente o texto da lei. A lei é clara ao estatuir regime próprio quando 
 o interesse da vítima o impuser.
 
                   Neste caso, os eventuais interesses das vítimas que poderiam 
 existir (o segredo dos factos, o evitar do escândalo e a exposição pública) 
 estão e foram, em concreto, não só ultrapassados pela realidade, mas sobretudo 
 pelo superior interesse das vítimas.
 
 *
 
                   E não há aqui qualquer natureza subsidiária, no sentido de que 
 o Ministério Público intervém enquanto e só porque o menor não quer ou não 
 pode fazer queixa. É subsidiária no sentido de que se substitui, 
 definitivamente, ao menor. O interesse público, subjacente às referidas normas 
 legais, não é subsidiário dos interesses particulares. Não se trata de qualquer 
 critério de mera oportunidade, como é bem evidente. É uma razão de política 
 criminal. É o interesse público que está em causa.
 
                   Como diz Maia Gonçalves (anotação ao n.º 6 do artigo 113.º): 
 
 «este dispositivo veio permitir que os crimes semi-públicos, em casos previstos 
 na lei, como os dos artigos 152.º, n.º 2, e 178.º, n.º 2, passem a ter natureza 
 de públicos...».
 
 *
 
                   Nada impede que o Ministério Público, como órgão da 
 administração da justiça (artigo 219.º, n.º 1, da CRP), sujeito ao princípio da 
 subordinação hierárquica (artigo 219.º, n.º 4, da CRP) e tendo como uma das 
 funções primordiais defender a legalidade, possa interpor recurso duma decisão 
 com um sentido que, antes, um seu agente tinha defendido.
 
                   É perfeitamente admissível uma ordem superior que mande seguir 
 uma determinada interpretação legal de entre várias possíveis.
 
                   Nem tal integra o conceito de venire conta factum proprium. O 
 Ministério Público não é um interessado duma certa decisão.
 O recurso tem, pois, de proceder.
 Nestes termos, revogando‑se o despacho recorrido, por não admissível a 
 desistência de queixa, deverá o julgamento prosseguir para apreciação dos factos 
 imputados ao arguido C..”
 
  
 
                                     É contra este acórdão que, pelo arguido, vem 
 interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de 
 Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional 
 
 (aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela 
 Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro – LTC), o presente recurso, visando a 
 
 “apreciação da inconstitucionalidade das normas, aplicadas pela decisão posta 
 em crise, ínsitas no n.º 6 do artigo 113.º e no n.º 4 do artigo 178.º, ambos do 
 Código Penal, com a interpretação que delas é feita naquele aresto, por violação 
 do disposto nos artigos 25.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, e 29.º, todos da Constituição 
 da República Portuguesa”, questão de inconstitucionalidade que teria sido 
 suscitada na sua resposta à motivação do recurso interposto pelo Ministério 
 Público.
 
                                     Neste Tribunal Constitucional, o recorrente 
 apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
 
  
 
                   “A) Os crimes previstos nos artigos 172.º e 174.º do Código 
 Penal têm natureza semi‑pública, dado que o procedimento criminal depende de 
 queixa do ofendido ou dos demais titulares desse direito estabelecidos no artigo 
 
 113.º do mesmo diploma.
 
                   B) Isso radica no facto de estes crimes terem a ver muito 
 particularmente com a esfera de intimidade da vítima e se privilegiar o 
 interesse desta, a ela cabendo decidir se ao mal do crime lhe convém juntar o 
 que pode ser o mal do desvelamento da sua intimidade e da consequente 
 estigmatização processual.
 
                   C) O elemento lógico‑sistemático da interpretação conduz à 
 conclusão de que se o legislador pretendesse conferir natureza pública àqueles 
 crimes na hipótese prevista no n.º 4 do artigo 178.º do Código de Processo 
 Penal, tê‑la‑ia colocado como terceira alínea do n.º 1 da mesma norma, 
 juntamente com as duas situações em que tais ilícitos assumem, sem quaisquer 
 dúvidas, tal natureza.
 
                   D) Tendo em conta a imprescindível conjugação com o n.º 1, a 
 redacção do n.º 4 do citado artigo 178.º significa que, tratando‑se de menor de 
 
 16 anos e o interesse da vítima o impuser, o Ministério Público não tem de 
 esperar que quem de direito apresente queixa para dar início ao procedimento.
 
                   E) Aquela previsão legal foi estabelecida para os casos em que 
 o Ministério Público, tendo conhecimento da prática do ilícito sobre menor de 
 
 16 anos, porventura antes mesmo dos progenitores, e perante a gravidade da 
 situação, dá início ao procedimento por forma a, em tempo útil, fazer a recolha 
 de provas ou indícios que, com o decorrer do tempo ou a acção humana, corriam o 
 risco de se perder, por entender que o interesse da vítima o impõe.
 
                   F) Mas isso não significa que se tenha afastado a 
 possibilidade de a vítima, ou os seus legais representantes, decidirem o que é 
 mais relevante para o interesse daquela: se o prosseguimento da acção penal, se 
 o recato e esquecimento que melhor se atingem sem ela.
 
                   G) Neste caso, o impulso processual do Ministério Público 
 determinado nos termos do disposto no citado artigo 178.º, n.º 4, tem natureza 
 subsidiária, ficando, por isso, sujeito aos interesses do menor ofendido.
 
                   H) Assim entendido, o disposto no n.º 4 do artigo 178.º 
 permite que o Ministério Público dê início ao processo e o faça prosseguir 
 quando os titulares do poder paternal não exercerem o direito de queixa por 
 razões censuráveis, na medida em que, neste caso, terá sempre a possibilidade, 
 quando não mesmo o dever, de inibir, limitar ou suspender o exercício do poder 
 paternal nos termos do disposto nos artigos 194.º e 199.º da OTM.
 
                   I) Não é inaceitável que os progenitores ou o próprio ofendido 
 maior de 16 anos, titulares e em pleno exercício do direito de queixa, venham 
 pôr termo ao procedimento criminal por entenderem que essa é a atitude que 
 melhor defende os interesses do menor, que justificaram a natureza semi‑pública 
 deste tipo de crimes, e o Ministério Público, teimosamente, os procure 
 contrariar, insistindo no seu prosseguimento movido por razões ou interesses 
 que podem não coincidir com o das vítimas.
 
                   J) Tanto mais quanto é certo que o Ministério Público nunca 
 terá a mesma capacidade dos progenitores ou do próprio ofendido para fazer uma 
 adequada avaliação da concreta solução que os interesses do menor justificam.
 
                   L) A entender‑se de outro modo abrir‑se‑ia a hipótese de, 
 esgrimindo embora com o interesse da vítima, o Ministério Público poder ser 
 tentado, como no caso dos autos, a agir em defesa de um qualquer interesse 
 público ou de determinada política criminal que ultrapassem o âmbito do caso 
 concreto e secundarizem os interesses que a lei, em primeira linha, visou 
 proteger.
 
                   M) Salvo melhor entendimento, é inconstitucional, por violação 
 do artigo 29.° da Constituição da República Portuguesa, a interpretação dos 
 artigos 113.º, n.º 6, e 178.º, n.º 4, do Código Penal, segundo a qual, na 
 situação prevista nesta última norma, os crimes de abuso sexual de crianças e 
 de actos sexuais com adolescentes assumem a natureza pública, na medida em que, 
 destarte, se veria um pressuposto da perseguição penal fixado por critérios de 
 mera oportunidade do Ministério Público, não estabelecidos na lei e 
 judicialmente incontroláveis, traduzindo um desvio dos princípios da legalidade 
 e da tipicidade na aplicação de reacções criminais.
 
                   N) Por outro lado, é inconstitucional, por violação dos 
 artigos 25.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a 
 interpretação dos artigos 113.º, n.º 6, e 178.º, n.º 4, do Código Penal, segundo 
 a qual, na situação prevista nesta última norma, os crimes de abuso sexual de 
 crianças e de actos sexuais com adolescentes mantêm a natureza semi‑pública, mas 
 o procedimento criminal deixa de estar na disponibilidade dos ofendidos ou dos 
 seus representantes legais, ainda que estes não estejam judicialmente inibidos 
 do exercício do poder paternal, do ponto em que abre a porta à violação de 
 direitos fundamentais do titular dos interesses que o legislador pretendeu 
 proteger com aqueles tipos legais de crime, quais sejam os direitos à 
 integridade pessoal e à reserva da intimidade da vida privada.”
 
  
 
                                     O representante do Ministério Público junto 
 do Tribunal Constitucional contra‑alegou, concluindo:
 
  
 
                   “1 – Goza o legislador ordinário de ampla discricionariedade 
 relativamente à possibilidade de criminalizar determinadas condutas, por razões 
 de necessidade ou conveniência, ditadas pelo interesse público, no âmbito de 
 políticas criminais a prosseguir.
 
                   2 – Tal discricionariedade abrange as condições de 
 procedibilidade, não lhe estando vedado, relativamente a determinadas categorias 
 de crimes, em optar por soluções não totalmente enquadráveis nos regimes 
 próprios e típicos das infracções penais, no que respeita à sua divisão em 
 públicas, semi‑públicas e particulares.
 
                   3 – Não viola qualquer norma ou princípio constitucional uma 
 interpretação normativa dos preceitos dos n.º 6 do artigo 113.º e n.º 4 do 
 artigo 178.º, ambos do Código Penal, segundo a qual o Ministério Público pode 
 exercer o respectivo procedimento criminal em nome do interesse da vítima menor 
 de 16 anos de idade, face a razões de política criminal e de interesse público, 
 não podendo aquele extinguir‑se por desistência de queixa do ofendido, que não a 
 apresentou.
 
                   4 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
 
  
 
                                     Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
 
  
 
                                     2. Fundamentação
 
  
 
                                     2.1. Na redacção originária do Código Penal 
 de 1982, os “crimes sexuais” integravam a Secção II (artigos 201.º a 218.º) do 
 Capítulo I (Dos crimes contra os fundamentos ético‑sociais da vida social) do 
 Título III (Dos crimes contra valores e interesses da vida em sociedade) da 
 Parte Especial desse Código, dispondo o artigo 211.º, sob a epígrafe 
 Necessidade de queixa:
 
  
 
                   “1. Nos crimes previstos nos artigos antecedentes [violação, 
 violação da mulher inconsciente, cópula mediante fraude, estupro, atentado ao 
 pudor com violência, atentado ao pudor com pessoa inconsciente, homossexualidade 
 com menores e cópula ou atentado ao pudor relativamente a pessoas detidas ou 
 equiparadas], o procedimento criminal depende de queixa do ofendido, do cônjuge 
 ou de quem sobre a vítima exerce o poder paternal, tutela ou curatela.
 
                   2. O disposto no número anterior não se aplica quando a vítima 
 for menor de 12 anos, o facto for cometido por meio de outro crime que não 
 dependa de acusação ou queixa, quando o agente seja qualquer das pessoas que nos 
 termos do mesmo número anterior tenha legitimidade para requerer procedimento 
 criminal ou ainda quando do crime resulte ofensa corporal grave, suicídio ou 
 morte da vítima.”
 
  
 
                                     Foi a revisão desse Código operada pelo 
 Decreto‑Lei n.º 48/95, de 15 de Março, publicado no uso da autorização 
 legislativa concedida pela Lei n.º 35/94, de 15 de Setembro, que introduziu 
 significativas alterações nesta matéria, transferindo‑a do Título relativo aos 
 crimes contra valores e interesses da vida em sociedade para o Título dedicado 
 aos Crimes contra as pessoas (Título I da Parte Especial), em Capítulo criado de 
 novo (Capítulo V – Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual), 
 integrado pelos artigos 163.º a 179.º, dispondo o artigo 178.º (correspondente 
 ao primitivo artigo 211.º), sob a epígrafe Queixa, que:
 
  
 
                   “1. O procedimento criminal pelos crimes previstos nos artigos 
 
 163.º a 165.º, 167.º, 168.º e 171.º a 175.º [coacção sexual, violação, abuso 
 sexual de pessoa incapaz de resistência, fraude sexual, actos exibicionistas, 
 abuso sexual de crianças, abuso sexual de adolescentes e dependentes, estupro e 
 actos homossexuais com menores], depende de queixa, salvo quando de qualquer 
 deles resultar suicídio ou morte da vítima.
 
                   2. Nos casos previstos no número anterior, quando a vítima for 
 menor de 12 anos, pode o Ministério Público dar início ao processo se especiais 
 razões de interesse público o impuserem.”
 
  
 
                                     A Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, alterou a 
 redacção deste n.º 2, que passou a dispor:
 
  
 
                   “2. Nos casos previstos no número anterior, quando o crime for 
 praticado contra menor de 16 anos, pode o Ministério Público dar início ao 
 procedimento se o interesse da vítima o impuser.”
 
  
 
                                     Finalmente, a Lei n.º 99/2001, de 25 de 
 Agosto, procedeu à reformulação global do preceito, que passou a dispor:
 
  
 
                   “1. O procedimento criminal pelos crimes previstos nos artigos 
 
 163.º a 165.º, 167.º, 168.º e 171.º a 175.º depende de queixa, salvo nos 
 seguintes casos:
 
                   a) Quando de qualquer deles resultar suicídio ou morte da 
 vítima;
 
                   b) Quando o crime for praticado contra menor de 14 anos e o 
 agente tenha legitimidade para requerer procedimento criminal, por exercer sobre 
 a vítima poder paternal, tutela ou curatela ou a tiver a seu cargo.
 
                   2. Nos casos previstos na alínea b) do número anterior, pode o 
 Ministério Público decidir‑se pela suspensão provisória do processo, tendo em 
 conta o interesse da vítima, ponderado com o auxílio de relatório social.
 
                   3. A duração da suspensão pode ir até ao limite máximo de 3 
 anos, após o que há lugar a arquivamento, em caso de não aplicação de medida 
 similar por infracção da mesma natureza ou de não sobrevir naquele prazo queixa 
 por parte da vítima, nos casos em que possa ser admitida.
 
                   4. Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3, e quando os crimes 
 previstos no n.º 1 forem praticado contra menor de 16 anos, pode o Ministério 
 Público dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impuser.”
 
  
 
                                     2.2. Da referida evolução legislativa 
 resulta que enquanto na redacção originária do Código Penal o procedimento 
 criminal pelos crimes em causa dependia, em regra, de queixa, excepto se a 
 vítima fosse menor de 12 anos, o facto fosse cometido por meio de outro crime 
 que não dependesse de acusação ou queixa, o agente fosse qualquer das pessoas 
 que tinha legitimidade para requerer procedimento criminal ou do crime tivesse 
 resultado ofensa corporal grave, suicídio ou morte da vítima, a partir da 
 revisão de 1995, a par das situações (que continuam a ser a regra) em que o 
 procedimento criminal depende sempre de queixa e das situações em que nunca 
 depende de queixa (quando do crime tiver resultado suicídio ou morte da vítima 
 e, com a Lei n.º 99/2001, também quando o crime tiver sido praticado contra 
 menor de 14 anos e o agente tenha legitimidade para requerer procedimento 
 criminal, por exercer sobre a vítima poder paternal, tutela ou curatela ou a 
 tiver a seu cargo, embora, com a possibilidade de o Ministério Público 
 decidir‑se pela suspensão provisória do processo, tendo em conta o interesse da 
 vítima [Maria João Antunes, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte 
 Especial, Tomo I, Coimbra, 1999, p. 595, defendia que já decorria do artigo 
 
 113.º, n.º 5, do Código Penal que o Ministério Público podia dar início ao 
 procedimento criminal se a titularidade do direito de queixa couber apenas ao 
 agente do crime e especiais razões de interesse público o impuserem]), foi 
 introduzido um tertium genus, através da possibilidade de, relativamente a 
 situações à partida dependentes de queixa, o Ministério Público decidir dar 
 início ao procedimento, se a vítima for menor de 12 anos (redacção da Lei n.º 
 
 48/95), limite elevado para 16 anos pela Lei n.º 65/98, mantido pela Lei n.º 
 
 99/2001, e se tal for imposto por “especiais razões de interesse público” 
 
 (redacção de 1995) ou pelo “interesse da vítima” (redacções de 1998 e 2001).
 
                                     Em anotação ao artigo 178.º, na versão de 
 
 1998, Maria João Antunes (Comentário citado, pp. 593‑597), refere, quando à 
 razão da regra da natureza semi‑pública dos ilícitos em causa, que (§ 8):
 
  
 
                   “Estamos nesta matéria na presença de crimes que contendem de 
 uma forma muito particular com a esfera da intimidade, pelo que à vítima cabe 
 
 «decidir se ao mal do crime lhe convém juntar o que pode ser o mal do 
 desvelamento da sua intimidade e da consequente estigmatização processual; sob 
 pena, de outra forma, de poderem frustrar‑se as intenções político‑criminais 
 que, nesses casos, se pretenderam alcançar com a criminalização» (Figueiredo 
 Dias, DP II § 1069). Sendo a vítima menor, a protecção que lhe é concedida 
 através da natureza semi‑pública do crime tem a ver muito especialmente com os 
 prejuízos que um processo penal poderia acarretar para o desenvolvimento da 
 personalidade de alguém que ainda está em fase de formação (…). Sendo a vítima 
 maior de 16 anos, porque tem plena capacidade para o exercício do direito de 
 queixa, a natureza semi‑pública do crime tem a vantagem de permitir uma selecção 
 prévia por parte daquela dos casos que comportam uma efectiva ofensa à sua 
 liberdade e autodeterminação sexual (p. ex., relativamente aos comportamentos 
 previstos nos arts. 167.°, 171.° e 173.°‑1). Para além destas razões 
 fundamentais, é ainda de destacar uma outra: tratando‑se de crime contra a 
 liberdade e autodeterminação sexual em que o agente seja um familiar da vítima, 
 a exigência de queixa desempenha aqui também a função de evitar que o processo 
 penal represente uma indesejável intromissão na esfera das relações familiares.”
 
  
 
                                     Considerações que não impediram a mesma 
 Autora “de aplaudir as alterações introduzidas pela Lei n.º 65/98, de 2 de 
 Setembro: ao admitir a promoção do processo por parte do Ministério Público 
 quando a vítima é menor de 16 anos – e não menor de 12 como acontecia 
 anteriormente – reduzem‑se certamente os casos de impunidade, decorrentes da 
 circunstância de a vítima não ter ainda capacidade para apresentar queixa 
 
 (artigo 113.º, n.º 3) e de o titular não a apresentar dadas especiais relações 
 com o agente da prática do crime (v. g. o agente é cônjuge ou unido de facto da 
 mãe da vítima); ao esclarecer que a promoção processual nestes casos depende do 
 
 «interesse da vítima» fixa‑se o entendimento correcto da expressão anterior – 
 
 «especiais razões de interesse público»” (§ 4). (No sentido de que estas 
 
 “especiais razões de interesse público” eram sempre razões “no interesse do 
 menor”, cf. José Damião da Cunha, “A participação dos particulares no exercício 
 da acção penal (Alguns aspectos)”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 
 
 8, fasc. 4.º, Outubro‑Dezembro 1998, pp. 593 e seguintes, em especial p. 606).
 
  
 
                                     2.3. A questão de saber se, tendo o 
 Ministério Público exercitado o poder‑dever de, independentemente de queixa, dar 
 início ao procedimento por crime sexual praticado contra menor de 16 anos por 
 entender que tal era imposto pelo interesse da vítima implica que o 
 prosseguimento do procedimento deixa de estar na disponibilidade do ofendido ou 
 de quem o represente, ou, ao invés, é compatível com a atribuição de relevância 
 a posteriores manifestações de vontade destes interessados (impropriamente 
 designadas de “desistências de queixa”) no sentido da cessação do procedimento 
 criminal, tem conhecido diferentes respostas por parte da doutrina e da 
 jurisprudência. Assim, em contraponto ao entendimento de que, tomando o 
 Ministério Público a decisão de iniciar o procedimento, tudo se passaria como se 
 de um crime público se tratasse, com a consequente irrelevância de posteriores 
 manifestações de vontade do menor ou seus representantes no sentido da cessação 
 do procedimento (cf. acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11 de Maio de 
 
 2004, 8 de Julho de 2004 e 23 de Setembro de 2004, em www.dgsi.pt/jtrl, do 
 Tribunal da Relação do Porto, de 31 de Janeiro de 2001, Colectânea de 
 Jurisprudência (CJ), ano XXVI, tomo I, pp. 232‑234, e do Tribunal da Relação de 
 Coimbra, de 3 de Novembro de 2004, em www.dgsi.pt/jtrc; Manuel Maia Gonçalves, 
 Código Penal Português, 16.ª edição, Coimbra, 2004, p. 609; Manuel de Oliveira 
 Leal‑Henriques e Manuel José Carrilho de Simas Santos, Código Penal Anotado, 3.ª 
 edição, vol. II, Lisboa, 2000, p. 465)), tem sido sustentado ser relevante a 
 desistência, pelo ofendido ou seus representantes, do procedimento iniciado 
 nesses termos pelo Ministério Público (cf. acórdãos do Tribunal da Relação do 
 Porto, de 3 de Dezembro de 1997, CJ, ano XXII, tomo II, pp. 233‑237, de 10 de 
 Fevereiro de 1999, CJ, ano XXIV, tomo I, pp. 241‑244, criticado por Maria João 
 Antunes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 9, fasc. 2.º, Abril‑Junho 
 de 1999, pp. 315‑329, de 23 de Maio de 2001, em www.dgsi.pt/jtrp, e José Mouraz 
 Lopes, Os Crimes contra a Liberdade e Autodeterminação Sexual no Código Penal, 
 
 3.ª edição, Coimbra, 2002, p. 123).
 
                                     Entre as referidas posições contrapostas, 
 têm sido defendidas posições matizadas, que, sem transformarem os crimes em 
 causa em crimes públicos nem atribuírem irrestrita relevância à oposição do 
 ofendido ou seu representante ao prosseguimento do procedimento, consideram que 
 
 “a todo o tempo o Ministério Público tem de aferir se o prosseguimento do 
 processo não contende com o concreto interesse da vítima, pois se tal suceder 
 cessa a legitimidade para o prosseguimento do processo”, sendo um dos factores 
 relevantes para essa reponderação a manifestação de vontade dos interessados 
 
 (Jorge Dias Duarte, “Homossexualidade com menores”, Revista do Ministério 
 Público, ano 20.º, n.º 78, Abril‑Junho 1999, pp. 73 e seguintes, em especial pp. 
 
 89‑90). Nesta linha intermédia se insere a posição defendida por Maria João 
 Antunes (“Oposição de maior de 16 anos à continuação de processo promovido nos 
 termos do artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal”, Revista do Ministério Público, 
 ano 26, n.º 103, Julho‑Setembro 2005, pp. 21‑37), que defende que, “de acordo 
 com o disposto no artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal, a oposição do maior de 
 
 16 anos de idade é relevante, no sentido de a intervenção processual penal do 
 Ministério Público dever cessar, sempre que por via desta oposição sejam 
 reavaliadas as razões que determinaram o início ou a continuação do processo e 
 se venha a concluir que o interesse da vítima não impõe o prosseguimento 
 deste”. 
 
  
 
                                     2.4. Como é sabido, não compete ao Tribunal 
 Constitucional tomar partido sobre qual das diversas soluções dadas à questão da 
 relevância da manifestação de oposição do ofendido ou seu representante ao 
 prosseguimento de procedimento criminal iniciado ao abrigo do n.º 4 do artigo 
 
 178.º do Código Penal é a preferível, ao nível da interpretação do direito 
 ordinário.
 
                                     Do que se trata é de apreciar se o critério 
 normativo seguido pelo acórdão recorrido se mostra materialmente conforme às 
 normas e princípios constitucionais relevantes.
 
                                     Ora, como este Tribunal tem reiteradamente 
 afirmado, cabe ao legislador ordinário, dentro do respeito do princípio da 
 necessidade das reacções criminais, uma considerável margem de liberdade de 
 conformação na opção pela criminalização de condutas. Como se referiu, entre 
 outros, no Acórdão n.º 494/2003 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 57.º 
 vol., p. 681, e texto integral disponível em www.tribunalconstitucional,pt):
 
  
 
                   “8.2. Ao mesmo tempo que tem reconhecido a consagração 
 constitucional dos princípios da necessidade e da proporcionalidade das penas, 
 o Tribunal Constitucional tem, contudo, também reiteradamente sublinhado que 
 
 «não se deve simultaneamente perder de vista que o juízo de constitucionalidade 
 se não pode confundir com um juízo sobre o mérito da lei, pelo que não cabe ao 
 Tribunal Constitucional substituir‑se ao legislador na determinação das opções 
 políticas sobre a necessidade ou a conveniência na criminalização de certos 
 comportamentos» (assim, designadamente, o Acórdão n.º 99/2002).
 
                   Como sublinha Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria 
 da Constituição, 3.ª ed., Coimbra, 1999, pág. 876), a «política deliberativa 
 sobre as políticas da República pertence à política e não à justiça»; e, por 
 isso mesmo, no dizer de Jorge Miranda, ao juiz constitucional não compete 
 
 «apreciar a oportunidade política desta ou daquela lei ou a sua maior ou menor 
 bondade para o interesse público», mas tão‑só averiguar «a correspondência (ou 
 não descorrespondência) de fins, a harmonização (ou não desarmonização) de 
 valores, a inserção (ou não desinserção) nos critérios constitucionais» (Manual 
 de Direito Constitucional, tomo VI, Coimbra Editora, 2001, págs. 43‑44), sem 
 
 «transformar o juízo de constitucionalidade em juízo de mérito em que se valora 
 se a lei cumpre bem ou mal os fins por ela própria estabelecidos» (idem, vol. 
 II, Coimbra, 1991, pág. 342).
 
                  No mesmo sentido, mas agora referindo‑se já especificamente ao 
 espaço de discricionariedade reconhecido ao legislador penal, refere também 
 Costa Andrade («O novo Código Penal e a moderna criminologia», Jornadas de 
 Direito Criminal, Centro de Estudos Judiciários, fase 1, Lisboa, 1983, nota 34, 
 pág. 228):
 
  
 
                   «(...) importa, acima de tudo, salvaguardar o ‘primado 
 político do legislador’ (Bachof) nos espaços de discricionariedade decorrentes 
 do princípio da subsidiariedade. A sub‑rogação de qualquer outro órgão neste 
 domínio, designadamente do Tribunal Constitucional, representaria uma 
 questionável transposição das fronteiras entre o jurídico e o político e uma 
 violação do princípio da separação dos poderes. Como refere Bachof, deve 
 reservar‑se ao legislador a competência para definir os objectivos políticos e 
 os critérios de adequação, como assumir os riscos pelas expectativas ou 
 prognósticos sobre cuja antecipação assentam as suas decisões normativas.»
 
  
 
                   Também José de Sousa e Brito conclui («A lei penal na 
 Constituição», Estudos sobre a Constituição, 2.º volume, p. 218), no que 
 constitui doutrina sistematicamente reafirmada pelo Tribunal Constitucional, ser 
 
 «evidente que o juízo sobre a necessidade do recurso aos meios penais cabe, em 
 primeira linha, ao legislador, ao qual se há‑de reconhecer, também neste 
 matéria, um largo âmbito de discricionariedade. A limitação da liberdade de 
 conformação legislativa, nestes casos, só pode, pois, ocorrer quando a punição 
 criminal se apresente como manifestamente excessiva».
 
                   Em suma: do que vai dito pode concluir‑se, como se fez no já 
 citado Acórdão n.º 99/2002, que, sendo certo que «também em matéria de 
 criminalização o legislador não beneficia de uma margem de liberdade irrestrita 
 e absoluta, devendo manter‑se dentro das balizas que lhe são traçadas pela 
 Constituição», é, por outro lado, igualmente certo que, «no controlo do 
 respeito pelo legislador dessa ampla margem de liberdade de conformação, com 
 fundamento em violação do princípio da proporcionalidade, o Tribunal 
 Constitucional só deve proceder à censura das opções legislativas manifestamente 
 arbitrárias ou excessivas».”
 
  
 
                                     Mas se isso é assim quanto a esta opção 
 fundamental (criminalizar ou não criminalizar), não menor espaço de actuação 
 assistirá ao legislador na regulação das condições de procedibilidade das 
 condutas criminalizadas. Neste campo, não estava o legislador limitado à opção 
 pela tripartição tradicional entre crimes públicos, semi‑públicos e 
 particulares, sendo‑lhe constitucionalmente lícito criar novas categorias ou 
 introduzir modulação nas categorias tradicionais. Seria, designadamente, lícito 
 ao legislador elevar para o limite de 16 anos de idade do ofendido os casos em 
 que os crimes em causa assumiriam natureza pública, sacrificando inteiramente 
 eventuais interesses na preservação da intimidade da vida privada aos interesses 
 públicos na repressão de condutas tidas como comunitariamente inaceitáveis. Por 
 maioria de razão, é‑lhe lícito estabelecer um regime especial para esses crimes, 
 permitindo que quando o interesse da vítima o impuser o procedimento seja 
 iniciado pelo Ministério Público independentemente de queixa e que, de acordo 
 com o critério seguido pelo acórdão recorrido, seja irrelevante, por si só, a 
 posterior manifestação de vontade da vítima ou dos seus representantes no 
 sentido da cessação do procedimento criminal.
 
                                     A razoabilidade desta solução legislativa 
 foi evidenciada por Maria João Antunes, na referida anotação crítica ao acórdão 
 do Tribunal da Relação do Porto, de 10 de Fevereiro de 1999, onde, além do mais, 
 salientou que “ao exigir uma valoração do interesse da vítima”, a norma em causa 
 
 “supõe claramente uma promoção processual subsidiária” do Ministério Público, 
 
 “duplamente condicionada”: “o titular do direito de queixa não o exerce por 
 razões alheias ao interesse da vítima” e “a protecção do menor exige o início do 
 procedimento criminal”, prosseguindo:
 
  
 
 “(…) a introdução do n.º 2 do artigo 178.° teve como finalidade evitar a 
 desprotecção do menor de 16 anos – incapaz de exercer o direito de queixa 
 
 (artigo 113.°, n.º 3, do Código Penal) – naqueles casos em que o titular do 
 direito de queixa não a apresenta (ou desiste dela) por razões alheias ao 
 interesse da vítima. Ao admitir‑se que o Ministério Público pode dar início ao 
 procedimento quando o crime contra a liberdade e autodeterminação sexual for 
 praticado contra menor de 16 anos reduzem‑se certamente os casos de impunidade: 
 os resultantes da circunstância de a vítima ainda não ter capacidade para o 
 exercício do direito de queixa e de o titular não a apresentar (ou dela 
 desistir), não porque o interesse da vítima justifica a não promoção do processo 
 
 (ou o não prosseguimento), mas porque entre o titular daquele direito e o agente 
 da prática do crime intercedem relações de certo tipo que condicionam a decisão 
 de apresentar queixa (ou dela desistir). (…)
 
 (…) com efeito, com o artigo 178.°, n.º 2, não se quis que o titular do direito 
 de queixa – não a vítima, porque esta não tem capacidade para a apresentar – 
 deixasse de poder decidir se ao mal do crime convém juntar o que pode ser o mal 
 do desvelamento da intimidade do menor e o mal de um desenvolvimento perturbado 
 do ponto de vista sexual. E daí o já assinalado carácter subsidiário da promoção 
 processual por parte do Ministério Público. Mas, seguramente, foi querido pelo 
 legislador que esta magistratura possa dar início ao procedimento (ou decidir a 
 continuação deste), precisamente naqueles casos em que as razões justificativas 
 da natureza semi‑pública dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual 
 não presidem à não apresentação (ou à desistência) da queixa.
 
 (…) bem se compreende, afinal, que o Ministério Público possa decidir dar início 
 ao procedimento criminal, segundo critérios de estrita objectividade (artigo 
 
 53.° do Código de Processo Penal). Decidir se, no caso concreto, o interesse da 
 vítima do crime contra a liberdade e a autodeterminação sexual, menor de 16 
 anos, justifica a iniciativa processual. A iniciativa processual ou, 
 esclareça‑se, a continuação do processo, naqueles casos em que o procedimento 
 criminal se iniciou com a apresentação da queixa pelo respectivo titular, 
 havendo posteriormente uma desistência ditada por razões de todo em todo alheias 
 ao interesse da vítima menor de 16 anos.” 
 
  
 
                                     A atribuição desta faculdade ao Ministério 
 Público, devendo ser, como o foi no caso, devidamente fundamentada, também não 
 contende com os princípios da legalidade e da determinabilidade, estando 
 fixadas na lei as condições que possibilitam o exercício da acção penal. A 
 ponderação, a ser feita necessariamente caso a caso, da intensidade do interesse 
 do menor, sendo, como é, rodeada da referida garantia de dever de fundamentação 
 expressa, não permite a acusação de estarmos perante uma situação em que o 
 risco da arbitrariedade e da subjectividade seja incompatível com aqueles 
 princípios constitucionais.
 
                                     Carece, neste ponto, de todo o sentido a 
 tese do recorrente de que a apontada solução representa um desvio ao princípio 
 da tipicidade das reacções criminais, dado que o arguido só virá a ser condenado 
 se, após julgamento rodeado de todas as garantias de defesa, um tribunal 
 independente e imparcial julgar ter o mesmo praticado factos integradores de 
 condutas qualificadas como criminais por lei anterior.
 
                                     E também não assiste razão ao recorrente 
 quando aduz a violação dos artigos 25.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da CRP. Os 
 direitos à integridade moral e à reserva da intimidade da vida privada não são 
 absolutos, sendo constitucionalmente admissível a sua restrição na medida do 
 necessário para assegurar o respeito de outros valores fundamentais, como a 
 defesa (incluindo criminal) do direito à liberdade e autodeterminação sexuais, 
 designadamente de menores (crianças ou jovens), a quem o Estado deve especial 
 protecção (artigos 69.º e 70.º da CRP).
 
                                     Improcedem, assim, na totalidade, as 
 conclusões da alegação do recorrente, registando‑se ter o mesmo abandonado, no 
 presente recurso, a questão de inconstitucionalidade que, perante o tribunal 
 recorrido, havia suscitado quanto às normas dos artigos 2.º, n.º 2, 68.º, n.º 1, 
 e 76.º, n.ºs 1 e 3, do Estatuto do Ministério Público e 401.º, n.º 1, alínea a), 
 do CPP.
 
                   
 
  
 
                                     3. Decisão
 
                                     Em face do exposto, acordam em:
 
                                     a) Não julgar inconstitucional a norma 
 constante dos artigos 113.º, n.º 6, e 178.º, n.º 4, do Código Penal, 
 interpretados no sentido de que, iniciado o procedimento criminal pelo 
 Ministério Público por crimes de abuso sexual de crianças e de actos sexuais com 
 adolescentes, independentemente de queixa das ofendidas ou seus representantes 
 legais, por ter entendido, em despacho fundamentado, que tal era imposto pelo 
 interesse das vítimas, a posterior oposição destas ou dos seus representantes 
 legais não é suficiente, por si só, para determinar a cessação do procedimento; 
 e, consequentemente,
 
                                     b) Negar provimento ao recurso, confirmando 
 a decisão recorrida, na parte impugnada.
 
                                     Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de 
 justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
 Lisboa, 11 de Julho de 2007.
 Mário José de Araújo Torres
 Benjamim Silva Rodrigues
 João Cura Mariano
 Rui Manuel Moura Ramos (Vencido, nos termos da declaração de voto junta)
 
  
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO DE VOTO
 
  
 
  
 Dissenti da tese que fez vencimento no Acórdão por considerar que o critério 
 normativo subjacente à decisão recorrida, na interpretação que faz das normas 
 dos arts.113º, n.º6, e 178º, n.º4, ambos do Código Penal, para estabelecer a 
 eficácia possível da ulterior oposição das vítimas ou dos seus representantes 
 legais, nos casos em que o Ministério Público haja desencadeado procedimento 
 criminal por crimes de abuso sexual de crianças e de actos sexuais com 
 adolescentes, independentemente de queixa das ofendidas ou dos seus 
 representantes legais, por ter entendido, em despacho fundamentado, que tal era 
 imposto pelo interesse das vítimas, não se limita a considerar que aquela 
 oposição é insuficiente, por si só, para determinar a cessação do procedimento.
 
  
 Com efeito, ao afirmar conclusivamente que tal oposição é ineficaz «por não 
 admissível» e, como antecedente jurídico de tal ilação, que «” […] este 
 dispositivo [o n.º6 do art.113º] veio permitir que os crimes semi-públicos, em 
 casos previstos na lei, como os dos artigos 152º, n.º2, e 178º, n.º2, passem a 
 ter natureza de públicos […]”», a decisão recorrida filia, a nosso ver, o 
 sentido do respectivo pronunciamento no critério segundo o qual, iniciado o 
 procedimento criminal pelo Ministério Público por crimes de abuso sexual de 
 crianças e de actos sexuais com adolescentes, independentemente de queixa das 
 ofendidas ou dos seus representantes legais, por ter entendido, em despacho 
 fundamentado, que tal era imposto pelo interesse das vítimas, a posterior 
 oposição destas ou dos seus representantes legais é sempre inidónea para 
 conduzir à cessação do procedimento, excluindo-se a possibilidade de este findar 
 por efeito, mesmo que concorrente ou mediado, de uma manifestação de vontade 
 contrária à intervenção das instâncias formais de controlo. 
 
  
 Vinculando o raciocínio argumentativo seguido à ideia segundo a qual «não faz 
 sentido que (…) o Ministério Público possa dar início ao procedimento criminal e 
 deduzir acusação, independentemente de queixa, e se venha a admitir como 
 relevante essa mesma desistência de queixa», a decisão recorrida revela, pois, a 
 adesão a uma concepção do sistema em que a atendibilidade da ulterior oposição 
 da vítima e/ou dos respectivos legais representantes se encontra 
 aprioristicamente excluída por lhe corresponder acto de efeito processual 
 incompatível com a natureza e características que o procedimento criminal, pelo 
 facto de haver sido desencadeado ao abrigo do disposto no art.178º, n.º4, do 
 Código Penal, passará a assumir em definitivo.
 
  
 Tendo conduzido a que a manifestação de oposição à continuação do processo 
 ocorrida em primeira instância fosse desatendida por «inadmissível», o critério 
 normativo subjacente à decisão recorrida não se limitou, pois, a recusar-lhe 
 auto-suficiência ou a colocar pressupostos ou condições para a respectiva 
 operatividade. Ao invés, interditou a possibilidade de tal oposição vir a 
 relevar, eliminando assim o espaço que, em diferente concepção, estaria 
 reservado à apreciação judicial, precedida de audição dos demais sujeitos 
 processuais, do contexto factual em que aquela fora concretamente produzida em 
 ordem a verificar, através de juízo sindicável por via de recurso, se a posição 
 assim manifestada deveria ser considerada expressão de circunstâncias, senão 
 infirmadoras do sentido da valoração feita pelo Ministério Público no início do 
 processo, pelo menos reveladoras e justificativas da insubsistência do interesse 
 da vítima no prosseguimento do processo penal.
 
  
 Não se limitando a subordinar a eficácia da oposição da vítima e/ou respectivos 
 legais representantes ao resultado da reavaliação das razões que determinaram a 
 promoção do processo penal, mas negando-lhe, por considerá-la inadmissível, 
 aptidão processual para fazer findar o procedimento criminal, o juízo decisório 
 subjacente ao acórdão recorrido tem necessariamente implícita a assunção de que, 
 iniciado o procedimento criminal pelo Ministério Público por crimes de abuso 
 sexual de crianças e de actos sexuais com adolescentes, independentemente de 
 queixa das ofendidas ou dos seus representantes legais, por ter entendido, em 
 despacho fundamentado, que tal era imposto pelo interesse das vítimas, esse 
 despacho torna-se condição simultaneamente necessária e suficiente da 
 subsistência do processo penal, excluindo, pelas características que directa e 
 autonomamente atribui ao procedimento, a atendibilidade de manifestações de 
 vontade contrárias ao exercício do poder punitivo por parte do Estado.
 
  
 E, assim sendo, a ratio decidendi da decisão recorrida não pode deixar de se 
 considerar integrada pela implícita, cumulativa e sequencial adesão a um 
 conjunto de postulados que, sinteticamente, poderão enunciar-se nos seguintes 
 termos:
 
 - possibilidade de utilização de conceitos indeterminados no âmbito do direito 
 penal positivado, incluindo aqueles cujo preenchimento só possa fazer-se através 
 de um juízo de valor.
 
 - possibilidade de utilização deste tipo de conceitos para definir a natureza do 
 crime e, por consequência, a permeabilidade do procedimento que houver sido 
 instaurado a manifestações de vontade contrárias à sua subsistência.
 
 - possibilidade de um tal conceito ser unilateralmente preenchido pelo titular 
 da acção penal, consequenciando tal preenchimento a legitimidade da instauração 
 do procedimento criminal.
 
 - possibilidade de a integração positiva do conceito em tais termos realizada  
 reconduzir o procedimento criminal à categoria daqueles em que é inadmissível a 
 manifestação de um vontade contrária à sua subsistência por parte do titular do 
 interesse protegido pela norma indiciariamente violada. 
 
 - exclusão apriorística da atendibilidade da oposição à intervenção das 
 instâncias formais de controlo, com consequente negação de qualquer avaliação 
 judicial e contraditada sobre a subsistência do interesse da vítima na 
 continuação do processo por via da imperativa e sindicável valoração das 
 circunstâncias, pretéritas e supervenientes, objecto de alegação pelos 
 intervenientes processuais ouvidos ou passíveis de se tornarem oficiosamente 
 conhecidas.
 
  
 Justamente por pressupor a aceitação integral de um tal conjunto de proposições, 
 a solução jurídica sufragada pela decisão recorrida é, quanto a nós, 
 incompatível com o parâmetro constitucional de controlo colocado pelo art.32º, 
 n.º1, da Constituição.
 
  
 Com efeito, ao excluir a admissibilidade processual da oposição manifestada pelo 
 titular do bem jurídico protegido pela norma indiciariamente violada com 
 fundamento na natureza adquirida pelo procedimento criminal quando instaurado ao 
 abrigo do disposto nos arts.113º, n.º6, e 178º, n.º4, ambos do Código Penal, o 
 critério decisório implícito no acórdão recorrido aceita que a integração 
 positiva do conceito unilateralmente feita pelo Ministério Público para 
 legitimar o exercício da acção penal se converta em condição simultaneamente 
 necessária e suficiente da subsistência do procedimento assim instaurado, 
 prescindindo, por consequência, da confrontação, necessariamente judicial e 
 contraditada, daquele juízo de valor sobre as exigências do interesse da vítima 
 com a singularidade fáctica e dinâmica do caso concreto. 
 
  
 Prescindindo desse julgamento, impede inevitavelmente o arguido de nele 
 participar e, justamente por negar ao arguido a possibilidade de intervir, 
 incluindo pela via de recurso, no controlo da actualidade de um pressuposto 
 resultante de uma actividade valorativa e do qual depende a própria viabilidade 
 do procedimento contra si instaurado, a solução perfilhada pela decisão 
 recorrida, a nosso ver, dificilmente se poderia justificar perante o princípio 
 segundo o qual «o processo criminal assegura todas as garantias de defesa […]». 
 Rui Moura Ramos